Domingo, Maio 5, 2024

“κεχαριτωμενη” em Lucas 1,28 X “κεχαριτωμένῳ” em Eclesiástico 18,17

Pergunta do Leitor:

À luz da patrística, dos contextos e da fé católica, há alguma análise dos termos “κεχαριτωμενη”/“κεχαριτωμένῳ” em resposta à acusação protestante contida no texto abaixo?

“(…)
“Vejamos o fato do ensinamento Católico Romano – de que Maria foi agraciada no passado com a Imaculada Conceição – ser totalmente falso. A mesma palavra é usada com a forma verbal do particípio perfeito na versão grega da Septuaginta (LXX), no livro de Eclesiástico de Jesus Ben Siraque (apenas com exceção da mudança de gênero. Masc/Fem):

“οὐκ ἰδοὺ λόγος ὑπὲρ δόμα ἀγαθόν καὶ ἀμφότερα παρὰ ἀνδρὶ κεχαριτωμένῳ” (Eclesiástico 18:17…)

A transliteração aproximada seria assim: “ouk idou lógos hyper dóma hágaton kai amfótera parà andri kacharitomeno” (Eclesiástico 18:17)

Vejamos como a Bíblia de Jerusalém traduziu o versículo: “Não é isso? Uma palavra não vale mais do que um rico presente? Mas o homem caridoso une as duas coisas.” (Eclesiástico 18:17 – A Bíblia de Jerusalém)

Aplique agora o pensamento Católico Romano usado em Lucas 1:28, em Eclesiástico 18:17: Se a forma de particípio perfeito da palavra “κεχαριτωμενη” (kecharitomene) em Lucas 1:28 comprova que Maria foi agraciada na Imaculada Conceição, ela da mesma forma também prova que o “homem caridoso” “κεχαριτωμένῳ” (kecharitomeno) em Eclesiástico 18:17 foi agraciado em sua Imaculada Conceição também. Mas a Bíblia de Jerusalém traduziu “κεχαριτωμένῳ”” (kecharitomeno) como “CARIDOSO”. Ora! Por que não aplicar o termo “CARIDOSA” em Lucas 1:28? Obviamente o termo não dará força para tentar amparar um dogma criado. No entanto, os católicos acreditam que Maria foi agraciada com exclusividade na concepção da mesma forma Cristo foi.
(…)”

RESPOSTA


Neste caso concreto do significado da palavra «Kecharitomene» movem-me mais razões de ordem lógica, linguística, gramatical e estética, do que qualquer temor de prejuízo teológico quanto à definição do dogma da Imaculada Conceição, até porque os dogmas da Igreja Católica são baseados em fundamentos lógicos, filosóficos e teológicos e não dependem exclusivamente do significado de uma simples palavra. Como dizia A. Vieira: «Não são as palavras que fazem as pessoas grandes, as pessoas é que fazem as palavras grandes». E esta palavra, depois de aplicada à Virgem Maria, tornou-se tão grande, que nunca mais foi aplicada a ninguém, a não ser ao Espírito Santo, como adiante demonstro.
Vejamos:

1. O termo «graça», no sentido daquele dom de Deus que torna alguém santo, sem pecado e salvo, é expresso pela palavra grega «charis». Mas «charis» pode significar também beleza física ou espiritual.

2. O verbo grego «charitoo» significa «encher de graça» ou «conceder graça», mas também significa «tornar belo» ou «favorecer».

3. «Kecharitomenos» é um particípio perfeito, do verbo «charitoo». Como todos os particípios perfeitos, de natureza passiva, tem uma natureza adjectival. Ora sabemos que os adjectivos, em determinados contextos, podem assumir uma natureza substantiva. Ex: 


—«Eu sou velho» – «velho» é adjectivo tomado como adjectivo.
—«Eu vi um velho» – «velho» é adjectivo tomado como substantivo.

4. Em Lc. 1, 28, «kecharitomene» é tomado como substantivo no caso vocativo, singular, femino: não caracteriza, mas identifica uma pessoa singular do sexo feminino.

3. Em Sir. 18, 17, «Kecharitomeno» é tomado como adjectivo, no caso dativo do singular masculino: não está a identificar ninguém em concreto, mas está a caracterizar um ser humano genérico que pode adquirir a qualidade da «graça», da «santidade» ou da «salvação».

5. Dito doutra maneira: 


— em Sir. 18, 17, a pessoa poderá ter a «graça», a «santidade» ou a «salvação»,
— em Lc. 1, 18, a pessoa é a «graça», é a «santidade» é a «salvação».


6. São Jerónimo, linguista subtil, percebeu bem esta importante diferença entre os dois particípios gregos do verbo «charitoo» na Biblia dos LXX, traduzindo:


— em Lc 1, 18: «gratia plena» – natureza substantiva, acentuada pelo vocativo, que identifica a pessoa – ‘ó plenitude da graça’ e não apenas ‘ó mulher que tens graça’.
— em Sir. 18, 17: «gratioso» – natureza adjectiva, que atribui uma qualidade a um homem indeterminado: «homine gratioso» – ‘qualquer coisa que existe num homem que tem graça’ e não ‘qualquer coisa que existe neste homem que é a plenitude da graça’.

7. Isto revela a grande diferença entre as duas palavras, a ponto de podemos afirmar que em mais lugar nenhum se encontra a palavra «kecharitomene» usada com a particularidade verificada em Lc. 1, 28: «Eu te saído, ó plenitude da graça».

8. Já em Lc. 1, 42, «Eulogemene su en gunaiksin», o particípio perfeito «eulogemene» = «bendita», no nominativo singular feminino, tem claramente uma natureza adjectival: «Tu és bendita entre as mulheres».

9. São sábias as palavras do Papa João Paulo II sobre o «kecharitomene»:
«Para tornar mais exacto o sentido do termo grego, não se deveria dizer simplesmente “cheia de graça”, mas sim “feita cheia de graça” ou “plenificada de graça”, o que indicaria claramente que se trata de um dom feito por Deus à Virgem. O termo, na forma de particípio perfeito, revela a imagem de uma graça perfeita e duradoira que implica plenitude. O mesmo verbo, no significado de “dotar de graça”, é adoptado na carta aos Efésios (1, 16), para indicar a abundância da graça, concedida a nós pelo Pai no seu Filho dilecto» (Audiência Geral, 8 de Maio de 1996).


10. O Cardeal Bertone afirmava: «No Livro do êxodo lemos que também Deus é “cheio de graça” (Ex. 34, 6), mas, enquanto Deus o é em sentido activo, como aquele que enche de graças, Maria o é no sentido receptivo, como Aquela que é plenificada de graça e por isso se tornou ícone sublime da divina graça» (Card. Tar. Bertone, Homiia, 8 de Dez de 2007).

11. A Bíblia grega de Simaco também emprega o particípio «kecharitomeno» para traduzir a palavra hebraica «barar» = ‘puro’, no Salmo 18, 26. Da mesma forma este particípio tem uma natureza adjectival que caracteriza um homem indeterminado: «Com o homem puro/gracioso (kecharitomeno) sois complacente».


12. Clemente de Alexandria usa o particípio «kecharitomenon», no género neutro singular, como um adjectivo para caracterizar o Espírito Santo: « Ἡ μὲν οὖν τῶνδέ μοι τῶν ὑπομνημάτων γραφὴ ἀσθενὴς μὲν εὖ οἶδ´ ὅτι παραβαλλομένη πρὸς τὸ πνεῦμα ἐκεῖνο τὸ κεχαριτωμένον» = «Eu sei qual é a fraqueza das reflexões que compõem esta recolha, se as compararmos a este Espírito cheio de graça» (Stromata, I, 1, 14).


13. Jesus e Santo Estêvão são considerados como cheios de graça, mas com palavras diferentes e a eles se não aplica o particípio «kecharitomene»:


— Jesus é cheio de graça: «Καὶ ἐκ τοῦ πληρώματος αὐτοῦ ἡμεῖς πάντες ἐλάβομεν, καὶ χάριν ἀντὶ χάριτος· » = «Da sua plenitude todos recebemos graça sobre graça» (Jo. 1, 16)
— Santo Estêvão é cheio de graça: «Στέφανος δὲ πλήρης πίστεως καὶ δυνάμεως ἐποίει τέρατα καὶ σημεῖα μεγάλα ἐν τῷ λαῷ. » = «Estêvão, cheio de graça e força, fazia extraordinários milagres entre o povo» (Act. 6, 8).

14. O termo em si exprime realmente a plenitude da graça em Maria, por duas razões:

1ª – O significado que S. Lucas dá ao verbo «charitoo» é «encher de graça», porque é sempre com este significado que ele emprega este verbo muitas vezes usado quer no seu Evangelho, quer nos Actos. Tal como a palavra «charis» (que está na raiz deste verbo) é sempre usada por S. Lucas com o significado de «graça» santificante.

2ª – A maneira mais apropriada de se traduzir do grego o particípio perfeito passivo do verbo «encher de graça» («kecharitomene») na língua latina é «gratia plena». Caso contrário teria de se usar o particípio passado regular «impleta gratia» = «enchida de graça», expressão literáriamente horrível em latim e, já agora, em português também!

 

15. Em ambas as passagens (Sir.18,27 e Lc.1,28) trata-se do particípio perfeito passivo. Mas então porque são traduzidos de modo diferente? 

É o que Inácio de la Potterie explica muito bem no seu estudo já publicado aqui:

1º Em Sir. 18,27, o particípio perfeito passivo aparece ligado a um nome, exercendo aí a função de simples atributo, sendo portanto equivalente a um adjectivo: παρὰ ἀνδρὶ κεχαριτωμένῳ – «no homem gracioso/amável»

2º Em Lc. 1,28, o particípio perfeito passivo não pode aqui ser considerado um adjectivo, porque não é atributo de um nome, mas conserva a sua natureza verbal, com o seu sentido causativo, exercendo a função de uma oração completiva ligada a um verbo de sentimento: Χαῖρε κεχαριτωμένη – «Alegra-te de seres (de teres sido) transformada pela graça».

Portanto, o tempo verbal é o mesmo nos dois textos, ambos na voz passiva, mas não têm a mesma tradução, por causa da diferente função sintáctica que exercem nas respectivas frases. (É obrigatório ler atentamente os estudos de Inácio de la Potterie, porque são muito esclarecedores, com muitos exemplos!)


16. Para aprofundar o assunto: M. Cambe, La χάρις chez saint Luc. Remarques sur quelques textes, notamment le κεχαριτωμένη, in Revue Biblique 70 (1963) 193–202.

PARA CITAR


Pe Ze, “κεχαριτωμενη” em  Lucas 1,28  X  “κεχαριτωμένῳ”  em Eclesiástico 18,17. Disponível em <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/apologetica/virgem-maria/978-em-lucas-1-28-x-em-eclesiastico-18-17>. Desde: 06/07/2017

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