Domingo, Maio 5, 2024

 A IMACULADA CONCEIÇÃO NOS RUSSOS NO SÉCULO XVII

É uma das glórias da antiga Igreja grega o ter desenvolvido de uma maneira particular o culto da Virgem Maria e de ter dado ao mundo católico a maior parte das festas que se celebram em sua honra. Uma destas festas é, sabemo-lo, a festa dita da Conceição de Ana, que tomou o nome de festa da Conceição da Virgem, ao passar para o Ocidente[1]. O objecto direto desta solenidade não parece ter sido, pelo menos no início, o privilégio único que subtraiu a alma da futura Mãe de Deus da mancha original, desde o primeiro instante da sua existência, mas era sobretudo o carácter miraculoso do seu nascimento a partir de uma mãe estéril. O que é certo, no entanto, é que esta festa, logo que ela se tornou célebre na Igreja, levou naturalmente o pensamento cristão a refletir sobre a santidade primordial de Maria e a afirmar que ela tinha sido concebida nos esplendores da graça divina. É também nos livros litúrgicos dos Gregos, nos poemas e nas homilias dos Padres Bizantinos do século VII ao século X que o dogma católico da Imaculada Conceição encontra os seus melhores fundamentos tradicionais. E isto não é de maneira nenhuma caluniar as Igrejas ortodoxas autocéfalas dos nossos dias, mas sim dizer que estas filhas e herdeiras da antiga Igreja Bizantina arrancaram da coroa da sua mãe uma das suas mais belas jóias, no dia em que, com uma voz unânime, elas se pronunciaram contra o privilégio de Maria.

            Este dia, de resto, não está muito longe e para o historiador é muito curioso constatar como a Igreja ortodoxa, que fala sempre sobre a sua imutabilidade e que, por tanto falar nisso, acaba algumas vezes por impingir essa ideia àqueles que não têm tempo para estudar as suas variações doutrinais, passou neste ponto e em muitos outros por uma série de etapas que, da afirmação primitiva, a conduziram progressivamente até à negligência completa. Poderíamos caracterizar esta marcha como se disséssemos que ela se fez conforme as palavras de Abraão a Lot: «Se tu vais para a esquerda, eu vou para direita; se tu vais para a direita, eu vou para a esquerda»[2]. Ela foi o contrariar perfeito da evolução dogmática que se produziu na Igreja Católica. Quanto mais o sol da verdade dissipava as nuvens das almas católicas e as inundava dos seus raios, tanta mais os teólogos da ortodoxia passavam da luz para a penumbra e da penumbra para as trevas.

            Na Idade Média, enquanto a doutrina da Imaculada Conceição encontrava a maior oposição no Ocidente, os poucos Bizantinos que se aperceberam da controvérsia não hesitaram em pronunciar-se em favor do privilégio de Nossa senhora e o viveram. E pode ver-se um dos últimos imperadores de Constantinopla, Manuel II o Paleólogo (1391-1425), refutar antecipadamente a opinião em voga entre os gregos modernos, segundo a qual Maria teria sido purificada da mancha original no momento da Anunciação[3].

            No século XVI, e sobretudo no século XVII, a Imaculada Conceição faz a conquista de todas as Universidades ocidentais e impõe-se ao espírito de quase todos os teólogos. Roma toma abertamente partido por ela. Um decreto de São Pio V, em 1570, proíbe aos pregadores, sob pena de suspensão, atacarem uma doutrina que todos os fiéis admitem. Paulo V fecha a boca aos contraditores, inclusive no seio académico (1616-1617), e em 1621, Gregório XV estende a interdição às conversações privadas. Por fim Clemente VII, renovando as prescrições dos predecessores, qualifica de piedosa crença, «pia sententia», a doutrina em questão. Chegou então o momento de os teólogos da ortodoxia começarem o seu movimento de retrocesso e de se levantarem, em nome dos sete concílios, mudos como se sabe, sob o pretexto de um debate, contra a nova Kainotomia [N.T.: inovação] que germinou nos cérebros ocidentais. Da investigação, aliás incompleta, à qual se entregou aqui mesmo o P. S. Pétrides[4], percebe-se que no século XVII a maior parte dos teólogos gregos são hostis ao privilégio de Maria. O que o meu sábio confrade fez para os Gregos, eu queria hoje tentar fazer para o que diz respeito aos Russos, limitando-me ao período do século XVII. Eu tenho perfeita consciência de tudo o que este estudo apresentará de inacabado e fragmentário. Que o leitor me perdoe por eu não saber tudo.

            Sobre a Imaculada Conceição na Igreja Russa, no século XVII, o P. Gagarin forneceu alguns preciosos ensinamentos numa excelente, mas demasiado curta, brochura publicada em 1876[5]. Estes ensinamentos reportam-se principalmente à Pequena Rússia, cujo centro intelectual era o colégio de Kiev, transformado em academia sob o reinado de Pedro o Grande. Nós reproduzimo-los na primeira parte do nosso trabalho, clarificando-os e acrescentando-lhes as nossas pequenas descobertas.

            Em 1904, M.C. Goloubiev revelou aos leitores de Troudy da Academia de Kiev a existência na Rússia Branca, em meados do século XVIII, de uma confraria ortodoxa, cujos membros se consagraram à Imaculada Conceição, com a alta aprovação do arcebispo do lugar[6]. A nossa segunda parte tem por fim fazer conhecer em detalhe esta curiosa associação.

            Para a Moscóvia propriamente dita, as magras notas que pudemos recolher estabelecem que a influência da teologia grega, hostil à Imaculada Conceição, foi aí preponderante, ao menos a partir do patriarca Nicon. Falaremos disso num próximo artigo, limitando hoje a nossa investigação à Pequena Rússia e à Rússia Branca.

1. A Imaculada Conceição na Pequena Rússia – O colégio de Kiev.

            No início do século XVII, a Pequena Rússia, ainda submissa à Polónia, era teatro de querelas religiosas muito violentas entre os Latinos e os Uniatas de um lado e os Ortodoxos do outro. A união estabelecida em Brest, em 1595, tinha reencontrado muitos refractários, tanto entre o clero e a nobreza, como entre o povo. Tratados muito duramente, os Ortodoxos formaram Sociedades de assistência mútua, que eram ao mesmo tempo confrarias religiosas, para lutar contra a propaganda católica, através da escola, da palavra, do livro e às vezes das armas. Uma das confrarias mais célebres foi a de Kiev. A escola que ela tinha fundado foi transformada em colégio eclesiástico por Pedro Moghila em 1632, conforme o voto feito pelo metropolita Job Boretskii antes de morrer (1631). Para melhor subtrair o novo estabelecimento à influência latina, Moghila colocou-o sob a autoridade do patriarca de Constantinopla de quem dependia a famosa Petcherskaia Lavra ou Laura das Criptas. Foi lá que se formaram, durante dois séculos, os campeões da ortodoxia, adversários encarniçados da Igreja Romana, prontos a descobrir e a rejeitar tudo o que lhes parecia uma inovação papista. Como eles tinham de enfrentar um forte partido, eles deviam levar para a luta uma preparação séria; também esta geração de polemistas de Kiev foi bem o que a Igreja Oriental opôs de mais instruído aos teólogos católicos.

            Ora, eis para nós um facto interessante: bem longe de atacarem a doutrina da Imaculada Conceição, que os Jesuítas ensinavam nas academias polacas, reitores e professores do colégio de Kiev a consideraram, durante todo o século XVII e os vinte primeiros anos do século XVIII, como uma verdade indiscutível, fazendo parte do património doutrinal da antiga Igreja, e propuseram-na como tal nas suas lições e nas suas obras, sob a benévola vigilância e aprovação dos seus metropolitas.

            O mais ilustre destes últimos foi, sem dúvida, o próprio fundador do colégio, Pedro Moghila (1596-1647). Depois de ter feito na Polónia estudos sérios, que ele foi completar ao estrangeiro, ele começou a carreira militar. Foi depois de muitas peregrinações a Petcherskaia Lavra que ele se sentiu atraído para a vida monástica. Primeiro foi arquimandrita da Laura, depois foi nomeado em 1633 metropolita de Kiev e tornou-se, desde então, o grande líder do partido ortodoxo. Os seus talentos e as suas relações com Czar Miguel e com o patriarca de Moscovo Filarete Nikitich, as boas relações que soube ter com o patriarca ecuménico, que o nomeou seu exarca para os mosteiros stravopegiacos da Pequena Rússia, tudo contribuiu para engrandecer a sua influência. Das numerosas obras que ele compôs, uma só, que é aliás a mais célebre de todas, nos é acessível: é o seu catecismo, tornado a Confissão ortodoxa da Igreja oriental, depois da sua correcção e sua aprovação pelos patriarcas orientais, em 1643. Não encontramos neste livro absolutamente nenhum ensinamento explícito respeitante à Imaculada Conceição, mas somente expressões que parecem supô-la.

            É assim que, depois de ter afirmado de uma maneira geral, na questão 24 da primeira parte, a universalidade do pecado original para todos os filhos de Adão, o autor declara, na questão seguinte, que Deus criou o homem apesar da previsão da sua queda, porque ele devia enviar sobre a terra o seu Filho único a tomar carne da puríssima Virgem (ἀπὸ τὴν καθαρωτάτην παρθένον). Este epíteto, aplicado a Maria, depois do que se acabava de dizer que todos os homens são contaminados, não indicará que a Mãe de Jesus foi preservada do contágio? O mesmo qualificativo e outros equivalentes (ἀμόλυντος = imaculada, πάναργνος = toda santa, etc.) encontram-se repetidamente na obra[7]. Na explicação da saudação do anjo, lê-se a passagem seguinte:

            «A Virgem é chamada cheia de graça (χεκαριτωμένη), porque ela participa da graça divina mais que qualquer outra criatura e é por isso que a Igreja a exalta acima dos querubins e dos serafins»[8].

            Sem dúvida que estas expressões são por si mesmas muitas vagas, para não despertar as susceptibilidades dos adversários da Imaculada Conceição e, de facto, um destes adversários, Mélèce Syrigos, não encontrou ali nada que censurar, quando ele corrigiu a obra do metropolita de Kiev[9]. Mas é quase certo que, no pensamento de Moghila, estes epítetos tinham o sentido absoluto que os católicos lhes atribuíam. A prova disso é que o nosso prelado deixou ensinar durante a sua vida, no colégio de Kiev, uma doutrina que todos os que o rodeavam admitiam. Com efeito, um partidário comprovado da Imaculada Conceição, José Kononovitch Gorbatskii, foi reitor de 1642 a 1645, e foi ele que, tornado alguns anos mais tarde arcebispo da Rússia Branca, aprovou os estatutos da famosa confraria da Imaculada Conceição, de que nós falaremos daqui a pouco. Acrescentemos que Kononovitch foi um dos três delegados do metropolita de Kiev encarregados de apresentar o catecismo deste à aprovação dos enviados do patriarca ecuménico, no sínodo de Iassy (1642).

            Um outro reitor do colégio de Kiev, que foi provavelmente o sucessor imediato de José Kononovitch entre os anos de 1645 e 1648[10], Lázaro Baranovitch (†1694), professa também muito explicitamente a doutrina católica da Imaculada Conceição. Nomeado bispo de Tchernigov em 1657, este prelado esteve metido, durante a sua longa carreira, em todos os acontecimentos importantes da Igreja russa nesta época. Em particular, ele assistiu ao grande sínodo de Moscovo de 1667. A pedido do patriarca Joaquim (1674-1690), ele compôs uma História do Concílio de Florença. Mas ele distinguiu-se sobretudo como orador e é numa recolha de sermões intitulada: As trompetes dos pregadores para as principais festas do ano, editado em Kiev em 1674 e em 1684, que se lê a seguinte passagem:

            «Todos, sendo aquilo que somos, dizemos esta oração: “Eu concebi na iniquidade, e minha mãe concebeu-me em pecado”[11]. Vós sois a única, ó Maria, a quem esta oração não convém, porque vós não fostes concebida na iniquidade e não nascestes no pecado. Convinha que vós fôsseis concebida sem pecado, visto que devíeis dar à luz Aquele que devia libertar o mundo de todos os pecados e destruir todas as iniquidades…

            Deus, que tudo pode, não poderia fazer que a sua Mãe fosse concebida sem contrair o pecado original? E, se Ele o pôde fazer, Ele o fez, Ele que tudo faz com sabedoria. Não convinha que a Mãe do Senhor fosse escrava do pecado, mesmo que por um pouco de tempo, ela que é a primeira de todas as criaturas. O Esposo diz à Mãe de Deus: “Vós sois toda bela, e em vós não há mancha”[12]. Não era possível portanto haver nada de mau nela. Vós esmagastes a cabeça da serpente na vossa concepção; esta não pôde ferir-vos na vossa Concepção Imaculada…

            Os que nasceram em pecado original são chamados filhos do demónio. Não teria Deus preservado a sua Mãe desta escravidão?… O dilúvio engoliu tudo, só Noé escapou ao desastre. O pecado original também engoliu a todos os homens… Só a arca viva do verdadeiro Noé, a puríssima Virgem, é que não foi engolida e permaneceu intacta»[13].

            Aqui está o que pregava às suas ovelhas aquele que o santo russo, Dimitri de Rostov, chama uma coluna da Igreja. Esta coluna não está isolada no templo da ortodoxia. Enquanto Baranovitch era reitor, um dos seus protegidos, Joannice Galiatovskii († 1688), estudava nos bancos de Kiev. Quando ele terminou o seu curso, foi chamado a ser professor no colégio por duas vezes, de 1650 a 1651, e de 1655 a 1657; depois disto, recebeu o cargo de reitor (1658-1659). Segundo M.T. Titov, de quem nós extraímos estes elementos[14], Joannice foi um dos melhores escritores da Rússia meridional na segunda metade do século XVII. Ele foi sobretudo um polemista vigoroso contra os Latinos e os Uniatas, que comprovaram o seu talento em quatro das suas obras. Ele distinguiu-se também como orador e temos muitas recolhas homiléticas dele. Uma delas intitula-se «Chave do conhecimento» e contém, entre outras peças, um sermão sobre a Natividade da Santa Virgem, do qual apresentamos um extracto:

            «A terceira grande coisa que Deus fez pela puríssima Virgem foi isentá-la do pecado original, porque a puríssima Virgem foi concebida e nasceu sem pecado original. A terra da qual foi feito o velho Adão era uma terra pura, que não tinha sido amaldiçoada; de igual maneira a puríssima Virgem: a terra da qual nasceu o novo Adão, Cristo, era pura e não tinha sido manchada pela maldição do pecado original».

 

            O orador prossegue, dizendo que a arca de Noé e o velo de Gedeão eram figuras da Imaculada Conceição e, a seguir, ele explica a Saudação do anjo:

            «As palavras do anjo fazem-nos conhecer a pura concepção da puríssima Virgem. Quando um vaso está cheio de azeite, não é possível deitar-lhe água, nem qualquer outro líquido, porque já não há espaço; a mesma coisa acontece na puríssima Virgem, não há espaço, não só para o pecado original, mas nem sequer para nenhum pecado, porque ela está cheia da graça de Deus»[15]     .

            Muito devoto de Maria, Galiatovskii compôs uma obra especial sobre ela, intitulada: O novo céu criado com novas estrelas, ou: Mãe de Deus com seus milagres[16]. É muito provável que este livro deva conter passagens relativas à Imaculada Conceição, mas é-nos impossível dizê-lo com certeza, porque não tivemos acesso a ele. O testemunho precedente é suficiente, de resto, para nos mostrar a doutrina do nosso autor.

            Não menos explícito é o pensamento de um outro aluno de Kiev, António Radivilovski, que foi vigário da Petcherskaia Lavra. No seu Jardim de Maria, Mãe de Deus, publicado em Kiev, em 1676, encontra-se um sermão sobre ‘A Imaculada Conceição de Maria, sempre Virgem, Mãe de Deus e Nossa Senhora bendita’.

            «É verdade – diz o orador – que nós todos descendemos de Adão pela geração natural, nós encontramo-nos enleados nos laços do pecado original, desde o momento da nossa concepção; o artesão infernal, o diabo, atinge-nos a todos… Samuel, Jeremias e João, o Precursor, receberam de Deus uma alta missão… mas eles não tiveram a felicidade de serem preservados da mancha original, porque o Salmista diz: “Erraverunt ab utero” [N.T.: extraviaram-se desde o seio materno][17]. A puríssima Virgem Maria foi a única a receber esta graça de Deus, em virtude da promessa feita outrora por Deus: “Ela esmagará a tua cabeça”[18]. Ela escapou aos laços diabólicos do pecado original e, embora nascida de Adão pela geração natural, ela não tomou sobre si a mancha do pecado de Adão… São Gregório sabia-o bem, quando, no seu sermão sobre a Concepção, ele diz que a pureza de Maria ultrapassava a dos serafins, dos querubins e das outras milícias celestes. Eu tiro daí esta conclusão: Se Maria tivesse recebido na sua concepção qualquer contacto do pecado original, ela não teria ultrapassado em pureza os anjos que jamais foram manchados por nenhum pecado[19].

            Verdadeiramente, um pregador católico dos nossos dias não diria melhor. Mas que diria António Radivilovskii, se ele regressasse para junto dos seus sucessores na ortodoxia?

            O Mecenas de todo este grupo de polemistas e oradores distintos foi o arquimandrita Inocêncio Gisel († 1683). Nascido de pais protestantes, ele converteu-se à Ortodoxia e abraçou a vida monástica. Primeiro foi professor do colégio de Kiev, no tempo de Pedro Moghila, depois foi reitor de 1648 a 1656. Nesta última data, foi nomeado arquimandrita da Laura das Grotas [Criptas] e ocupou esta função até à sua morte. Defensor ardente da fé da sua Igreja, ele quebrou muitas vezes lanças com os jesuítas. Contra um deles, o Padre Boehme, compôs a sua obra sobre a fé verdadeira; e contra outro, o Padre Tsikovitch, ele discutiu durante três dias. O seu cargo de arquimandrita permitiu-lhe ajudar os outros escritores da Rússia meridional na composição e edição das suas obras. Ele não falhou. A uns fornecia os livros necessários; junto de outros ele desempenhava a função de Aristarco; para todos, ele assumia os custos da impressão. Foi assim que ele próprio corrigiu os sermões de Baranovitch e foi pelos seus cuidados que as Trompetes dos pregadores, de que nós citámos um extracto, apareceram em Kiev em 1674. O mesmo aconteceu com o Jardim de Maria, de António Radivilovskii, em 1676[20]. Isto é suficiente para nos mostrar que Gisel era também um partidário da Imaculada Conceição de Maria.

            Aos nomes de Moghila, de Kononovitch, de Baranovitch, de Galiatovskii, de Radivilovskii e de Gisel, podemos ainda acrescentar o que Varlaam Iasinskii, que foi reitor de 1669 a 1673 e metropolita da Pequena Rússia, de 1690 a 1707. Este tinha feito os seus estudos em Kiev e tinha depois seguido os cursos da Academia de Cracóvia, que lhe deu o capelo de doutor em filosofia, embora ele não fosse católico[21]. Era um homem sábio que, quando ele foi arquimandrita da Laura das Grotas, encorajou São Dimitri de Rostov a empreender a sua grande obra Tchtis Mineia ou Vidas dos Santos, dispostas por dias e por meses, seguindo a ordem do Menológio, lembrando as nossas Acta sanctorum. Este trabalho, que o autor começou desde 1684 e que teve a aprovação do Metropolita de Kiev, Gedeão, visava sobretudo a edificação e continha aqui e ali apontamentos dogmáticos e históricos. A primeira parte, compreendendo o trimestre Setembro-Outrubro-Novembro, apareceu na Laura de Kiev em 1689. Ora, na festa da Apresentação da Santíssima Virgem no Templo (22 de Novembro), lia-se a passagem seguinte:

«Maria foi introduzida no Santo dos santos, quando ela era ainda criança, porque ela tinha sido santificada na sua concepção»[22].

            M.C. Goloubiev mostra-nos que esta afirmação e muitas outras crenças latinas, que aparecem na obra de Dimitri, desagradaram totalmente ao patriarca moscovita Joaquim (1674-1690), todo devoto das ideias gregas. Este escreve uma carta muito azeda ao arquimandrita Iasinskii, responsável pela impressão, ordenando-lhe que rectificasse os erros assinalados e, em particular, sobre a concepção de Maria. Iasinskii responde ao patriarca uma carta, pedindo desculpas:

            «Nossa Indignidade, prostrando o rosto por terra aos pés de Vossa Santidade, solicita humildemente o perdão patriarcal por todas estas faltas que escaparam à nossa ignorância, e de qualquer maneira será considerada a vossa ordem de pastor supremo. Estas duas folhas serão imprimidas de novo e serão introduzidas nestes livros, no lugar das antigas»[23]

            Não era a convicção, mas a necessidade que ditava estas palavras ao arquimandrita. Vê-se bem isso, quando as folhas em questão foram reimprimidas e ajuntadas às Vidas dos santos. Declarava-se aí que era para obedecer a uma ordem do patriarca que elas tinham sido inseridas e não pela persuasão de que as opiniões incriminadas fossem falsas[24]. Esta confissão de ignorância que Iasisnskii faz a um patriarca, que levou uma vida militar até aos trinta e cinco anos e tinha feito depois os seus estudos mais que sumários, parece-nos um pouco irónico da sua parte. Tornado metropolita  de Kiev em 1690, ele não modifica em nada a sua maneira de ver no que respeita à Imaculada Conceição, que continuou a ser ensinada no colégio de Kiev, durante todo o tempo do seu episcopado, isto é, até 1707. Entre as conclusões filosóficas e teológicas que o colégio lhe dedicou em 1695, encontrava-se esta: «Beatissima haec sponsa, et ante partum, et in partu et post partum est Virgo sine labe originali concepta»  [N.T.: Esta beatíssima esposa é Virgem antes do parto, no parto e depois do parto, concebida sem pecado original][25].

            Estas conclusões eram cartazes-programas que se fixavam nas grandes portas do mosteiro de Bratska, onde estava estabelecido o colégio, para anunciar aos Kievianos a data dos exames públicos e lhes dar a conhecer as teses que seriam discutidas. É que em Kiev os torneios escolásticos eram uma honra. Tinha-se tirado o segredo dos Jesuítas da Polónia. Os cartazes em questão traziam muitas vezes gravuras históricas e simbólicas com uma dedicatória a esta ou aquela personagem visada, metropolita, reitor, etc.[26]. Assim, em 1695, a Imaculada Conceição foi objecto de um circulus [N.T.: debate] público no colégio de Kiev. É provável que não fosse a primeira vez e nem a última. Isto mostra-nos claramente que esta doutrina fazia parte do ensino oficial.

            De resto, M. Goloubiev mostra-nos ainda que os manuais que estavam em uso na Academia no início do século XVIII eram todos favoráveis à doutrina católica[27].

            Ao falar de Varlaam Iasinskii, fomos levados a dar a conhecer o pensamento do metropolita de Rostov, Dimitri Touptalo (1651-1709). Era também ele um Pequeno Russo, que tinha estudado em Kiev sob o reitorado de Joannice Galiatovskii. Lázaro Baranovitch conta-o durante muito tempo entre os seus diocesanos e foi ele que o ordenou padre em 1675. Ele foi sempre fiel às doutrinas e aos interesses de Kiev contra as contendas e as invasões de Moscovo. O seu testemunho em favor da Imaculada Conceição é tanto mais importante para nós, quanto estamos a referir-nos a alguém que a Igreja Russa julgou digno das honras da canonização[28]. É provável que o colégio que ele estabelece na sua diocese, segundo o modelo do de Kiev, tenha também patrocinado o privilégio de Maria. Infelizmente não podemos dar a seguir indicação precisa.

            Devemos ainda contar, entre os partidários da Imaculada Conceição, o protegido de Varlaam Iasinskii e o amigo íntimo de Dimitri de Rostov, Estêvão Iavorski. Nascido na Rússia meridional, fez os seus estudos em Kiev. Varlaam enviou-o depois a completar a sua educação filosófica e teológica na Polónia, onde ele abraçou o catolicismo enquanto esteve neste país. Nomeado primeiro para a metrópole de Riazan, foi chamado, alguns meses depois, para o posto de exarca da sé patriarcal, vacante pela morte do patriarca Adriano (1700). Ele ocupou este cargo até à realização do santo sínodo (1721). A única obra dele que pudemos consultar, A Pedra da fé, não trata explicitamente da Imaculada Conceição de Maria. Mas, tendo de defender contra os protestantes a legitimidade do culto de invocação rendido à Mãe de Deus, o autor celebra em termos magníficos a impecabilidade absoluta daquela que ele chama sempre a puríssima e imaculada Theotocos «que, semelhante ao sol, é completamente isenta de todo e do mais pequeno pecado»[29]. Por outro lado, o patriarca de Jerusalém, Dositeu, que sabia muito bem que os Kievianos ensinavam a Imaculada Conceição, opôs-se com todo o seu poder à eleição de Iavorski como chefe supremo da Igreja russa, justamente porque este admitia três inovações papistas: a consagração da Eucaristia só pelas palavras da Instituição, a Imaculada Conceição e a mudança no corpo do Senhor das parcelas (μερίδες) oferecidas em honra dos santos[30].

            Se tivéssemos ao nosso alcance todas as obras compostas pelos antigos alunos de Kiev no século XVII, é provável que a lista dos defensores do privilégio de Maria se alongasse consideravelmente. Mas novos nomes não acrescentarão nada à certeza da conclusão que se tira do que temos vindo a dizer, a saber: que a doutrina católica da Imaculada Conceição foi oficialmente ensinada na Academia de Kiev durante um século.

2. A Imaculada Conceição na Rússia Branca – A Confraria de Polotsk.

            Como a Pequena Rússia, a Rússia Branca fazia parte, no século XVII do reino da Polónia. A luta religiosa entre Uniatas e Ortodoxos era aí ainda mais viva que na região de Kiev. Lembremo-nos, por exemplo, do episcopado tão agitado de São Joasafat e seu martírio em Vitebsk, em 1623. Esta situação não era daquelas que favoreciam as ligações doutrinais entre confissões inimigas, mas a Imaculada Conceição passava tão pouco por uma doutrina suspeita, aos olhos dos Ortodoxos desta época, que, longe de fazer dela uma acusação contra os católicos, eles rivalizavam em zelo para proclamar e honrar um mistério tão glorioso para a Mãe de Deus. Para estabelecer este facto, bastaria em rigor assinalar que nesta época os bispos da Rússia Branca tinham sido todos formados em Kiev; mas nós podemos apresentar um testemunho muito mais explícito, que nos fornece M.C. Goloubiev no artigo já citado. Ele mostra-nos que em meados do século XVII existia na cidade de Polotsk uma confraria da juventude ortodoxa com o nome de Imaculada Conceição.

            Foi aquele José Kononovitch Gorbatskii que já encontramos entre os reitores do colégio de Kiev, que lhe aprovou os estatutos, no dia 10 de Junho de 1651, quando ele acabava de ser nomeado metropolitano da Rússia Branca. Na sua carta de aprovação, que se conserva ainda entre os manuscritos do mosteiro se São Miguel de Kiev[31], ele declara que o abade do Mosteiro da Epifania de Polotsk, o magnífico P. Melece Kguéidrots, lhe apresentou um requerimento para lhe pedir que abençoasse a nova confraria. Considerando que esta associação poderá ser muito útil e salutar, o bispo concede de boa vontade a sua aprovação e a sua bênção, e confirma o regulamento que lhe foi submetido em todas as suas prescrições. Os pastores das almas são convidados a vigiar por que todos os confrades professem a fé da Santa Igreja católica ortodoxa oriental: que eles aprendam os dogmas e dos guardem irrevogavelmente até à morte; que eles sejam sempre submissos ao seu bispo e aos seus sucessores, ordenados pelo metropolita de Kiev, da Galicia e de toda a Rússia. Nesta insistência em recomendar a pureza da fé, nós reconhecemos o ardente defensor da Ortodoxia e o adversário encarniçado do partido uniata, que não temia ir ele próprio pleitear diante da assembleia polaca a causa dos seus correligionários perseguidos. Quando morreu, os católicos puderam suspirar de alívio e vingaram-se do mal que ele lhes tinha feito, compondo versos sobre ele. E dizer que este ortodoxo de velha rocha passaria hoje por um herege e um papista, na Rússia e na Grécia, porque ele admitia a Imaculada Conceição! Mas não insistamos.

            Os estatutos da confraria da Imaculada Conceição têm dezassete artigos. Eles tratam das condições de admissão, das virtudes que devem praticar os associados, da modéstia que deve presidir às reuniões, dos dias consagrados aos serviço de Deus e à oração, da obrigação de renovar o homem interior, dos registos da confraria, da eleição dos presidentes e dos secretários, dos funerais e das orações a fazer pelos confrades defuntos, etc.

            À cabeça do regulamento lê-se a fórmula da consagração a Maria imaculada que devem recitar os associados, rapazes e raparigas. Eis a tradução desta peça interessante:

            Santíssima Virgem Maria, Mãe de Deus e Virgem imaculada, eu, humilde pecadora[32], indigna do vosso santo olhar, desejando servir-vos e confiando-me à vossa grande misericórdia, em presença do vosso Filho bendito e de todos os poderes celestes, eu me consagro agora a vós, para ser eternamente vossa serva e vossa escrava na confraria da vossa Imaculada Conceição, da vossa Anunciação jubilosa e da vossa gloriosa Assunção. Eu tomo-vos por minha Mãe querida, minha soberana e minha padroeira, e eu decido-me irrevogavelmente a nunca me separar de vós, a nunca manchar a vossa glória, a ser fiel todos os dias da minha vida à vossa imaculada e puríssima Conceição, como também aos dogmas da fé católica ortodoxa, e a ficar até à morte na Igreja oriental, ecuménica, apostólica e nesta associação. Eu vos peço portanto humildemente, ó Santíssima Virgem, pela paixão e pelo sangue que vosso Filho único, Jesus Cristo Nosso Senhor, derramou pelo mundo inteiro e por mim, maldita e indigna, eu vos suplico que me aceiteis amorosamente e misericordiosamente no número dos vossos servos e dos vossos escravos pela eternidade. Assisti-me com bondade em todas as minhas necessidades e sobretudo na hora da minha morte, porque vós sois a Mãe de misericórdia, pronta a vir em nosso socorro. Amen[33].

            «Esta fórmula de consagração – acrescenta M. Goloubiev – mostra até que ponto a doutrina católica da Imaculada Conceição da Mãe de Deus estava enraizada nesta época na Rússia ocidental, evidentemente sob a influência latino-polaca». É assim que com facilidade se resolve o problema. Mas isto não é uma razão séria, é uma escapatória. Como é que M. Goloubiev explica que estes Pequenos Russos, tão letrados, tão sábios, tão versados no conhecimento dos sete concílios, tão encarniçados contra os Latinos e os Uniatas, tão superiores a todos os truculentos gregos de ontem e de hoje, não duvidassem que caíam numa grosseira heresia, ao admitirem como um dogma da Igreja ortodoxa, que era preciso defender até à morte, a Imaculada Conceição de Maria? Que é que se passou então depois? Houve um novo concílio ecuménico no seio da ortodoxia? Não. O que houve foi a palavra de pio IX em 1854, e o cisma, como acontece no protestantismo, vive de protestos contra a verdadeira Igreja. A solução do problema está aí e não noutro lugar.

PARA CITAR

M. Jugie, L’Immaculée Conception chez les Russes, Echos d’Orient tome 12, n°75, 1909. pp. 66-75. Tradução Pe Ze. Disponível em: <>

 

 

NOTAS


[1] Sobre a origem grega da festa da Imaculada Conceição no Ocidente, ver o meu artigo na Revue Augustinienne, Novembro 1908.

[2] Gen. 13, 9.

[3] Simul ac nata fuit, dixerim quoque simul atque concepta Beata Virgo, sua illam gratia implebat qui sibi futuram praestituerat matrem, immo vero cum illa erat ipse, antequam esset nata… Non enim gratia plenam quasi futuram, sed ut existentem quod erat, appellavit Angelus, et benedicatam salutavit, quasi diceret: Cum gratia sis plena, o Virgo, Dominus tecum» (In Dormit. B. Mariae, PG t. CLVI, col 98). [N.T.: Logo que nasceu, diria também, logo que foi concebida a Bem-aventurada Virgem, Aquele que a si próprio a dava como sua futura mãe a enchia da sua graça, ou antes, Ele próprio estava com ela, antes que ela nascesse… Com efeito, o Anjo não a chamou como se ela fosse a futura cheia de graça, mas como a que era, porque o era; e saudou-a, como se dissesse: “Sendo tu cheia de graça, ó Virgem, o Senhor está contigo”»]

[4] Echos d’Orient, t. VII (1905), p. 257-270.

[5] L’Église russe et l’Imaculée Conception, Paris, 1876, 96 páginas.

[6] Obeiasnitel’nye paragraphy po istorii zapadno-rousskoi tserkvi, Troudy, Novembro 1904, p. 464-467.

[7] Ver MICHALCESCU, Die Bekenntnisse der griechisch-orientalischen Kirche, Leipzig, 1904, p. 40, 41, 45, 46, 47, etc.

[8] Idid. p. 48.

[9] Mélèce Syrigos, o teólogo grego mais famoso da metade do século XVII, que os leitores dos Echos d’Orient conhecem bem, graças ao P. Pargoire, ensina que Maria foi preservada do pecado original no momento da Anunciação e que foi esta a razão pela qual ela escapou às dores de parto. Ἀντίρρησις κατὰ καλβινικῶν κεφαλαίων. Bucarest, 1690, p. 31-32. Nós sabemos por Scogardi, agente diplomático austríaco , que se encontrava em Iassy no momento das negociações entre Gregos e Kievianos acerca da confissão de Moghila, que vivas discussões tiveram lugar entre eles sobre a epiclese e as sepulturas. (Em E. HURMUZAKI, Documente privitore la istoria Romanilor, t. IV, pars I, Bucarest, 1882, p. 668). Discutiu-se também sobre a Imaculada Conceição? É o que nós ignoramos. É provável que não, justamente porque os termos do catecismo eram bastante vagos.

[10] As fontes russas que nós pudemos consultar não se estendem sobre esta questão.

[11] Sl. 50, 7.

[12] Cant. 4, 7.

[13] Trouby na dni narotchityre prazdnikov, Kiev, 1684, p. 100-105. Ver o texto russo em Gagarin, op. cit., p. 65-69.

[14] Pravoslavnaia bogoslovskaia entsiclopediia, t. VI, col. 749-750.

[15] Klioutch razouméniia, Kiev, 1659, p. 171-173.

[16] Pravols. Bog. Entsicl., loc. cit., p. 71-73.

[17] Sl. 57, 4.

[18] Gen. 3,15.

[19] Ogorodok Marii bogoroditsy, Kiev, 1676, p. 718, 723, 728, 740; Gagarin, p. 75-77.

[20] Pravoslavnaia bog. entsicl., t. V, col. 911-950.

[21] As regras da Academia proibiam atribuir graus académicos aos heterodoxos. Pravosl. Bog. Entsicl., t. III, col. 147.

[22] Citado por C. TONDINI, La Russia e l’unione dele Chiese, Roma, 1895, p. 55. M. Goloubiev, art. cit., p. 467, na nota faz alusão a isso.

[23] GOLOUBIEV,Ibid.

[24] Ibid.

[25] Ibid., p. 468, sempre na nota.

[26] Nós retiramos esta definição de «conclusões» do recente trabalho de M.A.P. Rybolovskii, sobre o metropolita de Kiev, Varlaam Vanatovitch. Troudy, Setembro 1908, p. 82-83.

[27] GLOUBIEV, ibid.

[28] Sobre Dimitri de Rostov, ver o artigo da Ecyclopédie théologique, t. IV, col, 1038-1054. Dimitri foi canonizado porque o seu corpo foi encontrado conservado, em 1752. Sabe-se que a incorruptibilidade do cadáver é a grande prova de santidade exigida na Igreja russa para a canonização. Os Gregos, aos contrário, consideram um semelhante fenómeno como um sinal de maldição. Desejar que alguém não se dissolva após a morte e se torne «τυμπανιαῖος» = ‘grande como um tambor’ é o cúmulo da ofensa.

[29] Kamène Very. Moscovo, 1843, t. II, p. 309.

[30] K. DÉLIKANIS, Πατριαρχικῶν ἐγγράφων τόμος τρίτος, Constantinopla, 1905, p. 211-215. Dositeu escreve ao patriarca ecuménico para solicitor a sua intervenção contra a eleição de Iavorski.

[31] Manuscrito 1749.

[32] O manuscrito citado faz falar uma rapariga.

[33] GOLOUBIEV, art. cit., p. 466-467.

 M. Jugie, L’Immaculée Conception chez les Russes, Echos d’Orient tome 12, n°75, 1909. pp. 66-75

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