Domingo, Maio 5, 2024

A imortalidade da alma

PUBLICAÇÃO DO SECRETARIADO NACIONAL DE DEFESA DA FÉ

A Imortalidade da Alma

VOZES EM DEFESA DA FÉ

CADERNO 31

PE. DR. L. RUMBLE, M. S. C.

A Imortalidade da Alma

RESPOSTA AOS RACIONALISTAS, TESTEMUNHAS DE JEOVÁ E ADVENTISTAS

IMPRIMATUR POR COMISSÃO ESPECIAL DO EXMO. E REVMO. SR. DOM MANUEL PEDRO DA CUNHA CINTRA, BISPO DE PETRÓPOLIS. FREI DESIDÉRIO · KALVERKAMP, O. F. M. PETRÓPOLIS, 15-IV-I959.

A IMORTALIDADE DA ALMA


Há quase uma geração, o filósofo C. E. M. joad, então professando um agnosticismo a que mais tarde renunciou, declarou que nunca os homens foram menos religiosos, mas também nunca foram mais infelizes, enquanto a taxa de suicídios era anormalmente alta.

Haja ou não haja sinais de um retorno à religião como dizem alguns observadores, haja ou não haja felicidade mais geral e um declínio no número dos suicídios, os jornais mantêm-nos dolorosamente cônscios de que muitos ainda procuram pôr fim – como pensam – aos seus atropelos, mediante uma morte auto infligida. Dificilmente se passa uma semana sem um triste parágrafo na imprensa dizendo de alguém que “se atirou da janela de um sétimo andar”, ou foi achado morto “num carro fechado”, ou não acordou de “uma superdose de pílulas soporíferas”, ou foi achado sem vida no seu escritório, com um revólver ao lado de uma nota dizendo que “não tinha razão nenhuma para viver” e, portanto, decidira “dar cabo de tudo”.

Seria um engano concluir que as vítimas desses trágicos acontecimentos não tinham crença numa vida futura. Porquanto, mesmo que não fosse questão de deficiência mental crônica ou de loucura temporária, a concentração sobre os atropelos e ansiedades poderia resultar em completa inadvertência para qualquer pensamento exceto o de escapar das dificuldades presentes, deixando o futuro cuidar de si mesmo.

Porém outras pessoas, normais, equilibradas e refletidas, persistem com o problema de saber o que é feito atualmente dessa gente transviada que ficou obsessa unicamente com o pensamento de pôr termo à sua existência neste mundo. Passou ela ao puro nada? Ou ainda é ela mesma, conhecendo as coisas, querendo coisas em algum lugar, capaz de ser feliz ou desgraçada numa vida continuada sob condições diversas que experimentamos deste lado do túmulo? Assim volta a pergunta que os homens sempre se têm feito e sempre se farão em qualquer época: A alma humana é imortal por sua própria natureza? Sobrevive à morte do corpo? Ou a morte é o fim?

CONFUSÃO MODERNA

Há – e são poucos – os que respondem que esta única vida terrena é tudo o que temos. Alguns negam a existência de uma alma realmente distinta do corpo; outros, embora concedendo a realidade da alma, insistem em que ela parece com o corpo. Mas a vasta maioria dos seres humanos não compartilham esses modos de ver. Muitos deles estão convencidos de que isso a que chamamos morte não é o fim. Mesmo · aqueles que carecem dessa certeza definitiva relutam muito em abandonar inteiramente o pensamento da sobrevivência da alma. Por isto refugiam-se em generalidades vagas, dizendo que pessoas enlutadas “podem ser confortadas pelo pensamento de que neste universo nada morre”; ou de que nós “continuamos a viver nas vidas das gerações futuras”; ou mesmo de que “parte da personalidade do homem sobrevive nas suas obras”.

Por certo, esses pronunciamentos patéticos não são somente inadequados, são positivamente falsos. Nenhuma “parte da personalidade do homem sobrevive nas suas obras”. Estas últimas podem prolongar-se neste mundo como uma lembrança dele para outros que se dão conta de que elas foram realização dele. Pelo seu caráter, podem elas refletir os dons particulares dele no campo da ciência, da arte, da literatura, da música ou da filantropia. Por outras palavras, elas perpetuam a memória da personalidade dele entre os homens. Porém a memória que as pessoas têm da personalidade de outro homem não é a personalidade do próprio homem, nem parte dela. Nem tão pouco a personalidade e a imortalidade de alguém, em qualquer sentido da palavra, continuariam a viver nas “vidas das gerações futuras”. As vidas das gerações futuras são próprias destas, e não as vidas dos seus predecessores. Tão seguramente como nós desta geração existimos agora, enquanto eles ainda são como inexistentes, assim também eles terão a sua própria existência separada quando houvermos saído deste cenário terreno. Quanto a confortar as pessoas enlutadas com o pensamento de que “neste universo nada morre”, esta inverdade óbvia ainda não enxugou uma só lágrima. A morte é um fato, e sabemo-lo. A vegetação morre. Os animais morrem. Os seres humanos morrem. E’ um absurdo dizer que neste universo nada morre; nem podem as pessoas enlutadas ser confortadas por semelhante pensamento. Somente quando podemos ir a uma filha desolada que acabou de perder sua mãe, e dizer-lhe que o eu real daquela querida mãe, cuja nobre -mente ela compartilhou, cujo amor tanto significava para ela, cuja virtude e radiante personalidade, com todo o seu altruísmo, era a verdadeira luz da sua vida – somente quando podemos ir e assegurar a essa filha que sua amada mãe não encontrou a sorte da vegetação insensível ou dos animais irracionais, só então é que podemos esperar confortá-la. Pondo de lado todos os subterfúgios, encarecemos, portanto, a questão de saber se a sobrevivência pessoal é ou não é uma realidade efetiva. É ou não é verdade que a alma humana individual é imortal?


O HOMEM TEM UMA ALMA?

Vimos que há quem procure encurtar toda a discussão negando que haja no homem qualquer coisa tal como uma alma distinta do corpo. Para essas pessoas, o homem é meramente corpo; e a morte é apenas uma incapacidade desse corpo para continuar funcionando, devido à desorganização das suas células. Mas isto nada resolve. Porque nos deixa a braços com o problema de sabermos que princípio organizador era esse, e o que sucedeu com ele para que não mais pudesse ser operante.

O Professor Hans Driesch, escrevendo como cientista e como filósofo, e abstraindo totalmente de considerações religiosas, formula o problema claramente como segue:

“O efeito empírico da morte é uma certa mudança com respeito à matéria de um corpo orgânico. Esse corpo foi um “corpo vivo”; agora torna-se .um “cadáver”. E o cadáver obedece a leis puramente mecânicas com respeito a todas as suas mudanças; já não é mais um “organismo”, não há nele “comportamento”, mas simplesmente “mudança”. Assim, alguma coisa desapareceu que tinha sido presente e ativa antes. E a vitalidade mostrou que essa alguma coisa não é uma mera peculiaridade de estrutura material. Um “ens” particular se foi, o qual antes estivera operando com uma matéria do corpo em questão. Haja ou não haja quaisquer “causae occasionales” materiais de morte, o resultado desta é, em qualquer caso, a separação desse “ens” da matéria do corpo. E para onde foi esse “ens” imaterial? (“The Science andPhilosophyoftheOrganism”, “A Ciência e a Filosofia do Organismo”, p. 334).

Pondo de lado, por enquanto, todo esclarecimento adicional feito conhecido a nós pela revelação divina, a solução desse problema só pode ser obtida por uma análise racional de todas as atividades da alma humana, principalmente das de caráter intelectual e moral.

Recusar o esforço mental necessário para tal exame do assunto é ficar ao rés-do-chão de um materialismo inteiramente inadequado e irracional, evitando o esforço para subir aos níveis mais altos da inteligência, onde se pretende que a razão humana acha o seu verdadeiro lar.

A palavra latina correspondente à alma é “anima” e a alma é definida como sendo o princípio animador do organismo vivo. A inspiração do oxigênio pela respiração, e a tomada de alimento pela comida e bebida são condições da existência continuada do organismo; mas a alma é o princípio de vida dele. Sem a alma a vida não é possível.

Tenhamos em mente o que disse o Professor Driesch – que um corpo morto não é um organismo. A despeito das aparências, ele não é a mesma coisa que um corpo vivo. Um cadáver pode preservar por um tempo a sua aparência externa; mas, se a alma se separou de um corpo humano, esse princípio unificador do corpo retirou-se. O corpo morto não tem verdadeira unidade, nem coordenação de funções em demanda de um objetivo ou fim comum. É somente um agregado de substâncias materiais mais ou menos complexas, já em curso de decomposição. É uma unidade real somente nos nossos pensamentos. Na realidade, é apenas uma coleção de partículas inanimadas de matéria, já a caminho da dissolução.

Enquanto vivos, alguns organismos são sensíveis; outros não o são. Não falamos das manifestações sensitivas de um vegetal. Os animais, entretanto, têm o poder de sensação. Assim também o homem. Mas além desse poder, o homem é dotado de razão. Nenhum simples animal poderia exprimir esses pensamentos sobre o assunto, ou entendê-los. Mostrada a ele esta página, ele veria nela apenas sinais, não achando nestes quaisquer significados inteligíveis. Porém o homem é mais do que um simples animal, e por causa da sua alma é que ele é de um tipo mais alto do que o possuído pelos animais brutos. Como veremos depois, o homem é um ser criado que consiste num corpo material sensível e numa alma imaterial ou espiritual e inteligente – alma imortal por sua própria natureza e incapaz de perecer com o corpo.

Dizem os materialistas – e é uma presunção para a qual não oferecem prova – que, quando o corpo morre, a alma inteligente do homem não mais pode exprimir-se, e, portanto, passa ao esquecimento com o corpo. Mas falar da alma como “já não sendo capaz ‘ de se exprimir” é atribuir-lhe uma realidade em seu próprio direito. Se se sustenta que essa alma, como um agente, se exprimia através do corpo como um instrumento, então logicamente não se pode dizer mais do que, quando o corpo morre, a alma já não pode exprimir-se por meio desse corpo. Saltar daí para a conclusão de que, portanto, a alma “passa ao esquecimento com o corpo” é ir além de qualquer evidência admissível.

Pensando assim, H. G. Wells sustentou a posição tipicamente materialista de que isso a que chamamos a nossa personalidade é meramente uma série de estados mutáveis de consciência, e que a morte significa reabsorção para dentro do universo inconsciente, pondo fim a todos os sonhos individuais e pessoais. Mas, se há coisa certa, é que a nossa personalidade não é meramente uma série de estados mutáveis de consciência. Nem poderíamos mesmo conhecer que temos estados mutáveis de consciência se não houvesse um “eu” permanente cônscio de que eles estavam mudando. Há um “EGO” ou “EU” permanente que tem os vários estados de consciência, que os segura juntos e os relaciona uns com os outros. Um argumento que desdenhe este fato é sem valor. Cada alma humana sobreviverá à morte individualmente e pessoalmente; e é mero senso comum o viver à luz dês de fato.

ATIVIDADES INTELECTUAIS

Acaso a nossa posição é uma presunção, para a qual nenhuma prova pode ser oferecida? Detenhamo-nos sobre o fato da inteligência, pela qual o homem se distingue dos animais meramente sensitivos.

É um fato objetivamente evidente que os seres humanos pensam. Lendo um livro, eles não veemsomente com seus olhos uma série de sinais escritos. Têm outro poder distinto que os habilita a verem um sentido e um significado nas palavras, e a refletirem sobreele. Esse é o poder do pensamento, do qual o organismo meramente material não é capaz. Porquanto o conhecimento intelectual, como oposto ao conhecimento sensitivo, não é material, e sim espiritual. E uma atividade imaterial exige um princípio imaterial responsável por ela.

Esse princípio imaterial no homem é a alma; e, sendo imaterial, difere, em espécie, do corpo material. Enquanto o corpo material é corruptível, a alma imaterial e espiritual é, por sua própria natureza, incorruptível ou imortal.

A reflexão sobre nós mesmos mostra-nos que exercemos atividades que exigem um poder imaterial ou espiritual dentro de nós, poder pertencente a uma alma que não é coisa composta, capaz de se desintegrar e de se corromper, mas que deve ser tão simples, inorgânica e espiritual como o próprio pensamento. Quer gostemos da perspectiva quer não, a alma, por pura necessidade, deve continuar vivendo após a morte.

TENDÊNCIAS INATAS

Se a alma é, por sua própria natureza, imortal, deve haver, em harmonia com essa natureza, um desejo inato de sobrevivência. E esse desejo inato existe. Estar sem ele não seria normal, mas anormal. A única dúvida que aqui poderia surgir é sobre se algum sólido argumento pode ser baseado nas nossas inclinações. Pensamento de desejo, dir-nos-ão, não dá em nada. Contudo, seguramente há uma imensa diferença entre inclinações incitadas pelos nossos desejos, e inclinações que existem independentemente dos nossos desejos e que apenas sucede estarem em concordância com eles. O que devemos fazer é estudar as inclinações em si mesmas.

Quando nos achamos dotados pela natureza de certas inclinações tendentes naturalmente para um objeto dado, inclinações que não nos demos a nós mesmos, e que homens que julgam de seu interesse fazê-lo têm de lutar para suprimir, estamos justificados em basear um argumento sobre elas. Se todos os nossos pensamentos seguem um só caminho, se temos necessidades, desejos, alvos e aspirações inatas para um certo objeto, podemos estar certos de que tal objeto existe.

Dotaria Deus o homem do sentido da audição, sem dar, no entanto, a qualquer coisa o poder de produzir um simples som? A tendência inteira do ouvido seria ouvir, e, no entanto, ele nunca o faria por faltar o seu objeto complementar, o som. Toda tendência natural tem seu objeto. Deus nos deu olhos e a inclinação para ver. É inconcebível que ele nos houvesse dado olhos e no entanto nunca houvesse criado a luz, habilitando-nos a satisfazer essa inclinação. Assim, a arraigada inclinação para a imortalidade implica a existência desta. A inclinação, profundamente arraigada em todos os homens normais, não pode deixar de corresponder a alguma coisa.

Na verdade, nós não deveríamos ajustar as nossas convicções a disposições de ânimo transitórias, crendo aquilo que no momento é agradável de crer. Mas o pensamento da imortalidade não é necessariamente um pensamento agradável. Acarreta um senso de grave responsabilidade e o temor de um possível desastre eterno. Por esta razão, há pessoas que preferiam muito que ela não fosse verdade. Se ela for verdade, elas terão ou de mudar de vida ou de topar com uma desdita que não ousam contemplar. Por isto elas põem de lado pensamentos de uma outra vida na qual terão de responder pela sua conduta na vida presente, e fazem-no por não quererem mudar de vida e negam crer na imortalidade. Mas são as únicas vítimas do seu pensamento de desejos.

SE HOUVESSE JUSTIÇA!

A ideia de justiça constitui uma eficaz linha de pensamento em seu próprio direito. É um conceito ao qual o homem não pode escapar todo o tempo, por mais bem-sucedido que seja em recusar advertência a ele em dados períodos durante a vida. Nós não podemos apartar-nos da convicção de haver coisa tal como a justiça.

Nós todos distinguimos entre o certo e o errado, entre o bem e o mal, embora divirjamos quanto àquilo que precisamente é certo e bom, ou errado e mau, em dados casos. E a nossa razão recusa-se a admitir que realmente possa ser melhor escolher e fazer o mal do que escolher e fazer o bem.

Todavia, o bem e o mal não estão equilibrados nesta vida. Pessoas boas muitas vezes sofrem, enquanto que as más muitas vezes são bem-sucedidas. Se não há vida futura, a gente má tem somente que ser suficientemente cuidadosa para evitar ser pegada pelos agentes da justiça humana, e vê-se livre dela para sempre! A razão revolta-se contra tal proposição. Pode um homem escapar de responder por seus crimes nesta vida, mas certamente responderá por eles na outra. Há uma vida futura, e a alma é imortal.

HUMANIDADE NÃO LOGRADA

Frequentemente se diz que há uma segurança no número. Isto pode ser aplicado, em sentido mui verdadeiro, ao presente problema. Porquanto é um fato notável que a crença na sobrevivência da alma após a morte do corpo tenha sido a convicção mais difundida do gênero humano em todas as épocas, desde os tempos mais primitivos.

Sir James Prazer, destacada autoridade sobre este assunto, diz:

Entre as raças selvagens, uma vida após a morte não é matéria de especulação e de conjectura, de esperança ou de medo; é uma certeza prática, da qual o indivíduo pensa tão pouco em duvidar como duvida da realidade da sua existência consciente. Ele presume-a sem investigação e age com base nela sem hesitação, como se ela fosse uma das mais bem comprovadas dentro dos limites da experiência humana(“Belief in Immortality”, “Crença na Imortalidade”, p. 468).

Como devemos explicar o fato de a convicção geral entre todos os povos ter sido sempre que a alma humana é imortal? Em estrita lógica, pode-se dizer que provar que a imortalidade sempre foi a opinião geral da raça humana inteira é provar somente que os homens sempre pensaram desse modo, e não que pensaram corretamente. Mas o problema é explicar o fato de haverem eles tão natural e espontaneamente alimentado semelhante crença.

Não é fácil sustentar que desde o começo o gênero humano inteiro tenha laborado em ilusão nessa matéria. E a explicação mais razoável é que, por intuição, o homem sempre se deu conta da natureza imperecível do seu espírito ou de sua alma.

Com o progresso da civilização e da cultura, o poder da inteligência humana dedicou-se à análise da arraigada propensão do homem para pensar de si mesmo como sendo incapaz de cessar totalmente de existir; e os filósofos de todas as nações e de todas as religiões têm arrolado as várias razões pelas quais a alma deve diferir, tanto em natureza como em destino, do corpo material. Essas razões podem parecer mais convincentes a muitos, hoje em dia, do que o simples fato do consenso universal da humanidade; mas esse fato em si mesmo não é sem peso como confirmação da verdade de que a alma humana continua a viver após a morte do corpo.

REVELAÇÃO DIVINA

Portanto, a razão natural sozinha, sem o auxílio da revelação divina, proveu a humanidade de fundamentos mais do que suficientes para a crença na imortalidade da alma. Mas tanto judeus como cristãos têm, ademais do fato de que com a morte não acaba tudo, a segurança, imensuravelmente mais impressionante, a eles dada pelo ensino positivo de Deus revelado na Sagrada Escritura. Aquele que nos fez nos diz que as nossas almas são imortais, e que há um destino esperando-nos para além deste mundo.

O próprio Cristo, tanto como os judeus a quem ele falava, tomaram como concedida a verdade natural de que a alma é distinta do corpo e diferente deste em natureza. Quando Cristo disse aos judeus: “Não temais os que podem matar o corpo mas não podem matar a alma”(Mt 10, 28), não houve protestos, da parte dos circunstantes, de que matar o corpo era matar a alma, visto serem eles uma só e mesma coisa! Todos concordaram em que a alma é coisa diversa do corpo, e não sujeita à destruição com ele.

Assim também, não houve murmurações de desaprovação quando Cristo contou a parábola do Homem Rico e do Mendigo Lázaro, falando do mendigo como tendo morrido e como tendo sido levado imediatamente “pelos anjos para o seio de Abraão”, e não como tendo passado a uma inexistência inconsciente. A sobrevivência da alma foi aceita por todos como sendo a verdade revelada.

Para os cristãos, também, o fato histórico da própria ressurreição de Cristo prova que a alma humana de Cristo continuou vivendo após a sua morte na cruz, para se reunir com o seu corpo quando ele ressurgisse do túmulo. E a declaração dele de que finalmente a ressurreição da carne será experimentada por todo o gênero humano pressupõe a existência continuada das suas almas, com as quais os seus corpos ressuscitados deverão se reunir, para formarem, uma vez mais, as completas personalidades que anteriormente existiam neste mundo. “Vem a hora “, disse Jesus, “em que todos os que estão nos túmulos ouvirão a voz do Filho de Deus. E os que obraram o bem sairão para a ressurreição da vida; mas os que obraram o mal, para a ressurreição do juízo” (Jo 5, 28-29).

Se na morte o homem, corpo e alma, passa a uma completa inexistência, não haverá questão da sua “ressurreição”. Seria possível a Deus “criar” outro ser como ele; mas esse outro ser seria outro, e não a mesma pessoa que vivera anteriormente. A “réplica” não possuiria identidade com o homem que morrera. Ressurreição significa restauração do corpo na mesma e idêntica alma que anteriormente o possuía – alma que sobreviveu para aguardar essa reunião.

Todos os ensinamentos de Cristo que declaram o julgamento dos seres humanos após a morte, a vida eterna de felicidade ou de desdita que os aguarda, e a sabedoria de amontoarmos tesouros para nós não na terra, mas no céu (Mt .6, 19), seriam realmente sem sentido se a alma não fosse, por sua própria natureza, imortal, e se não houvesse vida para além do túmulo. Por isso, a Igreja Católica, no Concílio de Latrão, em 1513, condenou como herética e inteiramente oposta à fé cristã qualquer negação da imortalidade da alma humana. Um cristão, se quiser permanecer cristão, deve crer na sobrevivência consciente da alma após a morte.

Foi dito, até mesmo por clérigos protestantes que se professam expoentes da religião cristã, que a ideia da imortalidade é pré-cristã, que as suas origens são pagãs, que os Egípcios e os Gregos acreditavam nela, e que a doutrina não pode ser considerada como fazendo especificamente parte da revelação cristã. A Fé cristã, disseram eles, exige que creiamos na ressurreição da carne, mas não na imortalidade natural da alma. Essa ideia os cristãos foram buscar aos pagãos!

Ora, é verdade, como vimos, que os Egípcios e os Gregos e outros pagãos haviam chegado, pela razão, intuitivamente ou por dedução lógica, à verdade natural da imortalidade da alma. Mas nem tudo o que os Egípcios, Gregos e outros pagãos descobriram era necessariamente errado, por terem eles tido de descobrir tais coisas por si mesmos.

Todavia, não é verdade que os cristãos tenham ido buscar a doutrina aos pagãos; eles a conhecem por divina revelação, como haurida de uma fonte distinta e adicional. O conhecido teólogo anglicano E. L. Mascall diz com razão:

E’ importante notar que, de fato, a crença cristã · na imortalidade humana não assentou, em primeiro lugar, sobre o raciocínio filosófico. Foi herdada pela Igreja Cristã da religião plenamente desenvolvida dos judeus; e, sob a guia divina, os judeus tinham sido levados a crer na imortalidade … O fato importante para os cristãos é haver Jesus Cristo francamente ensinado que a vida do homem se estende para além-túmulo (Man: His OriginandDestiny”, “O Homem: sua Origem e Destino”, pp. 42-43).

CRENÇAS JUDAICAS

Devemos dar aqui alguma atenção à crença judaica na imortalidade da alma. Porque há comunidades que se professam cristãs e que, no entanto, enchem os países de panfletos e folhetos declarando falsa a doutrina da imortalidade da alma e em completa divergência com os ensinamentos da Bíblia. As mais ativas dessas comunidades são as Testemunhas de Jeová (fundadas pelo Pastor Charles T. Russell, 1874); os Adventistas do Sétimo Dia (fundados por Mrs. Ellen O. White, 1860); e os Cristadelfos (fundados por Jonh Thomas, 1848).

Comum a estas, e a todas as seitas similares e menores, é a quase intérmina citação dos textos da Escritura cortados do seu contexto e interpretados superficial e literalmente sem preocupação do claro ensino da Bíblia em outros lugares. Gosta-se muito de citar especialmente o Antigo Testamento, e pretende-se que os próprios judeus, que seguramente deviam ter conhecido as suas próprias Escrituras, não tinham crença na imortalidade da alma.

Ora, é verdade que, devido à natureza progressiva da revelação divina, as referências à vida após a morte não são tão claras nos primeiros livros do Antigo Testamento como o são nos últimos, e nos do Novo Testamento. Mas o Antigo Testamento é obscuro quanto à natureza da vida após a morte. Em parte alguma ele nega a existência continuada da alma. Como veremos, isso sempre foi tomado como concedido. O mesmo eu que ocupava o corpo físico sobrevivia no “Sheol”, ou mundo inferior das almas evoladas. E esteve em plena concordância com essa convicção que, falando aos judeus do seu tempo sobre Abraão, Isaac e Jacob, o próprio Cristo dissesse que Deus “não é o Deus dos mortos, mas dos vivos” (Mt 22, 32).

Talvez que o mais claro testemunho, no Antigo Testamento, da imortalidade da alma seja o contido em Sabedoria 3, 1-3:

As almas dos justos estão nas mãos de Deus; e o tormento da morte não as tocará. Aos olhos do ignorante elas pareceram morrer, e a sua partida foi tomada como desdita, e a sua separação de nós como total destruição; elas, porém, estão em paz“.

Alguns Protestantes, nem todos, de modo algum, rejeitam o Livro da Sabedoria como apócrifo, pelo fato de rejeitarem a coleção Septuaginta dos Livros do Antigo Testamento e de só aceitarem o Cânone ou rol Palestinense, o qual não o contém. Mas isto é para sua perdição, e eles não têm esperança de provar que o Cânone Septuaginta deve ser rejeitado. O Livro da Sabedoria é tão verdadeiramente um Livro inspirado do Antigo Testamento como qualquer outro; e S. Paulo fez uso dele nas suas Epístolas aos Romanos, Coríntios e Efésios, assim garantindo a sua aceitação católica.

Todavia, duas passagens do Antigo Testamento que nenhum protestante discutirá são as do Deuteronômio 18, 11 e 1 Samuel (Reis) 28, 1 1. Na primeira lemos: “Não haja entre vós ninguém . . . que procure saber a verdade obtida dos mortos”, proibição que indica a crença reinante na possibilidade de comunicação com as almas sobreviventes dos falecidos. No último achamos a alma de Samuel chamada por ordem de Saul do “Sheol”, a habitação dos espíritos evolados. Como podia isso ser, se a alma de Samuel houvesse perecido com seu corpo?

Mas volvamo-nos para os ensinamentos dos próprios Rabinos judeus sobreeste assunto da sobrevivência da alma após a morte.

O mais eminente dos Rabinos judeus alemães, Leo Baeck, diz, no seu livro “Das WesendesJudentums”, que a imortalidade da alma é uma doutrina do Judaísmo, e que esta vida “recebe o seu sentido da futura”. O Dr. Kohler, Diretor de um Colégio Americano para Rabinos Judeus, na sua autorizada obra “Teologia Judaica”, diz que a nossa própria natureza exige a imortalidade, que “corresponde a crer em Deus, o qual não pode decepcionar o coração humano”. O Rabino Morris Joseph, no seu livro “Judaism as Creedand Life” (“O Judaísmo como Credo e Vida”), escreve: “A doutrina da imortalidade faz parte integrante do Credo judaico”. O Rabino Isaac Epstein, no seu livro “Judaism”, diz que os Judeus, tanto ortodoxos como reformados, creem na imortalidade da alma.

Tome-se esta oração do Serviço Fúnebre no Livro de Oração judeu autorizado:

O’ Senhor, és cheio de compa1xao, tu que habitas no alto; Deus de perdão, que és misericordioso, lento em te irares, e abundante em amorosa bondade, concede o perdão das transgressões, proximidade da salvação e perfeito repouso à sombra da tua divina presença, nos lugares exaltados, entre os santos e puros que brilham como o fulgor do firmamento, àquele que se foi para a sua mansão eterna. Suplicamos-te, ó Senhor de compaixão, te lembres dele por todas as ações boas, meritórias e piedosas que ele praticou enquanto esteve na terra. Abre para ele as portas da justiça e da luz, as portas da compaixão e da graça. Oh! Abriga-o sempre mais sob o manto das tuas asas; e seja a sua alma atada no vínculo da vida eterna. O Senhor é a sua herança. Descanse ele em paz. E digamos: Amém.

Semelhante oração certamente só poderia ser dita pelos que creem que a alma humana é imortal.

DIFICULDADES DO ANTIGO TESTAMENTO

Contra o ensino tanto judeu como cristão uma quantidade de textos mal interpretados da Bíblia são aventados pelas seitas estranhamente materialistas que mencionei. Seria impossível, num livrinho destas dimensões, tratar de todos eles, mas pode ser útil discutir alguns exemplos típicos.

Uma passagem favorita é o Gênese 2, 7, onde lemos que Deus “formou o homem do limo da terra, e insuflou-lhe nas narinas o sopro de vida, e o homem tornou-se uma alma viva”.

Cruamente é arguido que, portanto, o homem não recebeu uma alma, mas é uma alma, e que, conseguintemente, quando um homem morre, a alma também morre, e não pode ser imortal. Mas o sentido do texto hebraico é simplesmente que Deus deu ao corpo do homem -um princípio de vida, uma alma que o habilitasse a tornar-se um ser vivo. Nada é dito, no real texto citado, sobre a natureza dessa alma. O que é tornado claro é que Deus tomou um cuidado todo especial na formação do homem, cuidado que em parte alguma se aplica aos animais, implicando um parentesco especial com Deus não possível no caso dos animais. E a afirmação, no Gênese 1, 26, de que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus só pode referir-se, não ao corpo material do homem, mas à sua alma espiritual, inteligente e imortal – tal como Deus é um puro espírito, inteligente e imortal.

Em outras partes do Antigo Testamento este ensino é tornado suficientemente claro. O Eclesiastes, 12, 7, torna evidente que o homem é um ser composto, constante de dois princípios distintos, um corpo material e uma alma espiritual. Falando da dissolução da união entre o corpo e a alma pela morte, diz ele: “Então o pó voltará para a terra, da qual era, e o espírito voltará para Deus, que o deu”.

E apela-se para o Gênese, 2, 17, onde é dito que Deus decretou a morte como a pena do pecado. Pergunta-se: Se a alma do homem é imortal e não pode morrer, então o castigo foi intentado para o corpo somente? A resposta é que, de diferentes pontos de vista, tanto o corpo como a alma são sujeitos a essa pena.

A alma, imortal por natureza, não pode morrer, no sentido de se tornar inexistente. Mas pode morrer, e, eventualmente, quando o pecado é combatido, ela morre para a vida verdadeiramente espiritual e sobrenatural da graça, do amor e da amizade de Deus. Em inimizade com Deus, as almas de nossos primeiros pais eram mortas para essa vida. Quanto aos seus corpos, desde o momento do seu pecado nossos primeiros pais (e a sua posteridade) ficaram sujeitos à pena, em devido tempo, da morte física corporal, da qual, no entanto, seriam isentos.

“ALMA” E “SHEOL”

As comunidades protestantes que se dispõem a provar que a alma não é imortal pegam-se da palavra “alma”, onde quer que ela ocorra na Bíblia, de um modo que parece quadrar com o seu propósito, sem se preocuparem com o sentido em que ela é usada. Assim, Juízes, 16, 30, são citados onde Sansão, na iminência de abater o templo sobre si mesmo e sobre os seus inimigos, exclamou: “Morra minha alma com os Filisteus”. Mas Sansão quis apenas dizer: “Morra eu com os Filisteus”. Então como agora, era uma figura de linguagem inteiramente comum o aludir a um objeto completo falando da sua parte principal. Sinédoque é o termo técnico para essa figura de linguagem.

Se dissermos que um homem se fez de vela para um porto distante, não queremos dizer que um barco é uma vela, em vez de ter tomado uma vela. Nem, quando dizemos que algumas centenas de almas pereceram num naufrágio, queremos dizer que os passageiros eram todos almas desencarnadas! Expressões tais como a usada por Sansão são simplesmente sem aplicação ao problema da imortalidade da alma.

Semelhantemente, pelo fato de ser o de “túmulo” um dos sentidos que a palavra hebraica “sheol” pode ter, pretensos opositores escriturários da doutrina da imortalidade falam como se esse fosse o único significado possível dessa palavra, ignorando o sentido muito mais frequente em que ela é usada, a saber: como se referindo ao “mundo inferior dos espíritos evolados” reservado para as almas daqueles cujos corpos mortos foram colocados no túmulo. A importância desta distinção tornar-se-á clara quando tratarmos de passagens específicas da Escritura.

Dizem-nos que no livro de Job, 3, 17, é dito do estado do homem após a morte: “Ali o mau cessa de perturbar; e ali o cansado está em repouso”. Porém tais declarações no Antigo Testamento devem ser julgadas de acordo com o imperfeito grau de conhecimento concedido aos homens antes de a plenitude da verdade ter vindo com a dispensação cristã. O “sheol” ou mundo inferior que Job tinha em mente era o lugar de reunião dos mortos que estavam livres das provações e cuidados deste mundo, mas que ainda viviam devido à imortalidade de suas almas. A vida deles, entretanto, era considerada como uma vida em trevas e sombras, sem pensamento ou atividade como a conhecemos deste lado do túmulo. Essas ideias, inadequadas, daquilo que a vida futura representa não são argumentos contra o fato da existência dela.

No Novo Testamento nos é dito que o espírito de Cristo, entre a sua morte na cruz e a sua ressurreição, visitou e instruiu os espíritos conscientes dos que haviam morrido antes do seu advento a este mundo (1Ped 3, 19-20). Todo Judeu teria reconhecido nesse incidente particular a referência ao “sheol” hebraico.

Ainda, em Job 7, 9, lemos: “Assim como a nuvem é consumida e dissipada, assim também aquele que baixa ao túmulo não mais se levantará”. Inteiramente certo. Do ponto de vista da vida como a conhecemos neste mundo e deste lado do túmulo, é matéria de experiência comum que, uma vez que um homem morre, está morto, e não pode reassumir as atividades em que anteriormente se empenhara na terra. Mas o mesmo Job, que filosofava que a vida neste mundo acabava com a morte, insistiu em que ele teria vida depois desta vida e noutro mundo. Em 19, 25-27, declara: “Pois sei que meu Redentor vive, e no último dia ressuscitarei da terra. E serei revestido novamente da minha pele; e em minha carne verei a meu Deus. O qual eu mesmo verei, e os meus olhos contemplarão; e não outro”. O verdadeiro “eu” de Job, a sua alma, estará ali esperando ser “revestida novamente” da sua contraparte corporal, para poder ter uma vida futura não apenas como um espírito desencarnado, mas na sua humanidade completa, consistente em corpo e alma.

Foi aventado que, em 27, 3, Job identifica a sua alma com o ar que respiramos. Acaso ele não disse: “Enquanto o meu hálito estiver em mim, e o espírito de Deus nas minhas narinas, meus lábios não falarão a maldade”? Disse, falando a linguagem da -poesia hebraica, para dizer simplesmente: “Enquanto eu viver”. Mas, quando, por exemplo, S. Paulo disse: “Quem é que conhece o que existe no homem, senão o espírito do homem que nele está?” (1 Cor 2, 11), não falava do ar que respiramos, e sim da alma inteligente do homem. A citação de palavras sem consideração com o sentido em que elas são usadas é perda de tempo na discussão deste assunto – ou, dessa forma, de qualquer outro assunto.

OS SALMOS

Desnecessário é dizer que ·também os Salmos são catados em busca de algumas frases soltas que possam parecer apoiar, mesmo superficialmente, a negação da imortalidade feita por aquelas seitas cujos preconcebidos sistemas religiosos exigem tal negação.

Assim, o Salmo 6, 5, é invocado: “Pois na morte não há lembrança de ti; e no túmulo quem te agradecerá?” Mas estas palavras de modo algum são opostas à doutrina da imortalidade da alma. São naturalmente condicionadas pelo conhecimento imperfeito da vida futura permitido nos tempos do Antigo Testamento. A crença então era que as almas sobreviviam à morte do corpo, mas que o “sheol” para o qual elas iam era uma região de tristeza, sem muitas das coisas quetornam desejável a vida neste mundo. As almas evoladas eram julgadas como tendo somente uma fraca consciência de existir, sem serem capazes de empenhar-se no culto externo de lembrança e de louvor oferecido a Deus nos serviços religiosos que tanto significavam para o povo judeu. O quanto estes significavam para ele é expresso no Salmo 25, 8: “Amei, ó Deus, a beleza de tua casa e o lugar onde habita a tua glória”.

Mas, se os falecidos deviam ser lastimados por não mais poderem participar dos serviços religiosos de lembrança e de louvor, não eram considerados inexistentes. Assim, no Salmo 16, 9-11, achamos a convicção da felicidade futura: “Portanto meu coração está alegre e a minha glória se rejubila. Minha carne descansará na esperança. Pois não deixarás minha alma no “sheol”; nem sofrerás que o teu santo veja a corrupção. Mostrar-me-ás o caminho da vida. Em tua presença há plenitude de alegria. À tua direita há prazeres para sempre”.

Em favor de uma restauração para a vida, saindo de um estado de inexistência, o Salmo 17, 15 é citado: “Quanto a mim, contemplarei a tua face em justiça; serei satisfeito quando acordar com a tua semelhança”. Mas estas palavras nem sequer se referem ao estado das almas após a morte, e ainda menos a qualquer despertar de uma condição de inexistência para a existência. Elas eram simplesmente as preces noturnas do salmista, e exprimiam a alegria que ele acharia em acordar na manhã seguinte para retomar a sua contemplação mental e o sentimento interior da união espiritual com Deus.

O Salmo 49, 15 muitas vezes é citado para mostrar que a alma está tão morta no túmulo como o corpo quefoi sepultado. Mas novamente a palavra traduzida como “túmulo” é o hebraico “sheol”. Lemos: “Deusredimirá minha alma do poder do túmulo (“sheol”): pois ele me receberá”. Os pensamentos do salmista são de almas num estado de trevas e de frustração. As suas ideias eram necessariamente condicionadas pelo grau imperfeito de verdade revelada então disponível. Ele não tinha ideias claras acerca da “redenção” e da “ressurreição da carne” no sentido cristão desses termos. Sabia que Enoc e Elias haviam sido transportados deste mundo sem terem tido de morrer; e sente obscuramente que de algum modo – ele não sabe como – Deus certamente tratará o justo diferentemente de como tratará o mau. Em espírito de fé e de confiança ele exprime essa esperança.

O cristão, olhando para trás, com a luz mais clara do Novo Testamento para ajudá-lo, vê nessas palavras uma significação maior do que a percebeu o próprio escritor delas. Todas as almas são imortais por sua própria natureza, e continuarão conscientemente após a morte. Mas, ao passo que as almas dos maus serão deixadas no submundo do “sheol”, Deus tomará as almas dos justos para si no céu. Por isto S. Paulo disse aos Coríntios que, se o nosso tabernáculo terreno for dissolvido, nós temos uma casa não feita com as mãos, mas eterna, no céu (2 Cor 5, 1); e escreveu aos Filipenses (1, 23) sobre o seu próprio desejo “de ser dissolvido e estar com Cristo, coisa muitíssimo melhor”. Estas palavras seriam inteiramente sem sentido se a morte significasse o não estar ele com Cristo, mas simplesmente ser inexistente!

No Salmo 78, 50, pedes-nos considerarmos as palavras: “Ele não poupou da morte a alma deles, mas entregou a vida deles à peste”. A própria referência à doença corporal é, no entanto, bastante para mostrar que a morte física do corpo era o castigo deles. A sorte da alma depois da sua separação do corpo nem sequer é aí aludida. Se pensa que a cada vez que as palavras “alma” e “morte” são encontradas na Sagrada Escritura, a imortalidade da alma está sendo negada, não haverá fim para as ilusões de quem quer que seja.

O Salmo 115, 16-17, quando diz: “Os céus são os céus do Senhor; mas a terra ele a deu aos filhos dos homens. Os mortos não louvam o Senhor, nem aquele que desce ao silêncio”, apenas afirma que os mortos não podem mais juntar-se ao louvor que Israel oferece a Deus neste mundo, e de modo algum se refere à condição das almas evoladas, salvo para dizer que elas foram para o grande silêncio na medida em que a comunicação conosco ainda nesta vida entra em causa.

O Salmo 146, 4, diz: “Seu espírito ir-se-á, e ele voltará à terra; nesse mesmo dia perecerão os seus desígnios”. Mas, aí também, do nosso ponto de vista nesta vida, um homem morre e é sepultado, voltando seu corpo ao pó; e a morte pôs um fim a tudo o que êle planejara fazer neste mundo. Nada além disto é dito atinente mente a ele no estado ao qual a sua alma passou.

ECLESIASTES

O Eclesiastes é provavelmente o mais popular de todos os Livros do Antigo Testamento entre os anti-imortalistas. Tomemos algumas passagens mais frequentemente citadas. O Eclesiastes, 3, 18, diz: “Eu disse no meu coração, a respeito dos filhos dos homens: Deus quer prová-los, e mostrar-lhes que eles são como as bestas”. Aqui devemos notar que em versículos anteriores o escritor acentuara a prevalência da injustiça entre os homens, declarando que Deus finalmente julgará a humanidade e verá que a justiça triunfe. No versículo 18 ele prossegue dizendo, não que o homem perece totalmente como os animais, mas que em muita coisa compartilha com eles as condições da vida animal. A fim de provar ou experimentar os homens, pondo à prova a sua boa vontade, Deus não põe fim a todas as desordens morais neste mundo. E, da visão da sua própria conduta, tão pouco acorde com a razão, tão ditada pela paixão cega, que às vezes eles caem mais baixo do que os próprios animais, deveriam os homens aprender ao menos a humildade.

O versículo 19 continua: “Porque a morte do homem e dos animais é uma só. Assim como o homem morre, assim também morrem eles. Todas as coisas respiram igualmente, e o homem não tem nada mais do que a besta. Todas as coisas estão sujeitas à vaidade”. Ora, seria ir muito além e mesmo contra o pensamento do escritor imaginar estar ele aí tratando da natureza intrínseca do homem e negando a imortalidade da alma. Ele não está interessado em psicologia, mas no ensino de uma lição de moral. A morte é tão inevitável para o homem como para os animais, e todos os interesses meramente terrenos são temporais, na melhor das hipóteses. Seria, pois, loucura concentrar-se somente em interesses terrenos como se eles fossem todo o fim e objetivo da existência humana, com exclusão dos interesses mais altos e eternos.

O mesmo pensamento é repetido no versículo 20: “Todas as coisas vão para um mesmo lugar; da terra foram feitas, e à terra voltam juntas”. Os corpos dos homens, do mesmo modo que os corpos dos animais, voltam à terra. Que o pensamento aqui não é da alma do homem, feita à imagem e semelhança de Deus, isto é evidente pelas palavras: “da terra foram feitos”.

O versículo 21 acrescenta: “Quem sabe se o espírito dos filhos de Adão sobe ao alto, e se o espírito dos animais desce para baixo?” Mas o escritor aí está em nexo não com o fato da sobrevivência das almas humanas, mas com o modo de ser dela. Que ele admite o fato, é claro por 12, 7, onde ele diz que, na morte, ”o pó retorna à sua terra de onde era, e o espírito retorna a Deus, que o deu”. Tudo o que ele aqui indica é que o homem é ignorante das condições do além-túmulo, e dá isto como uma razão a mais para a humildade. A questão da imortalidade da alma não é tratada em parte alguma do Eclesiastes 3, 18-20.

Outro texto favorito no livro é achado em 9, 4-5: “Para todos os vivos há esperança; é melhor um cão vivo do que um leão morto. Porque os vivos sabem que morrerão; mas os mortos nada sabem; nem têm mais recompensa; pois sua memória é esquecida”. Quem crê na imortalidade pode aceitar cada palavra aí. Enquanto um homem está nesta vida pode esperar realizar alguma coisa pelas suas atividades físicas e mentais; mas a morte porá fim a todos os seus projetos neste mundo. A pessoa viva mais incompetente está em melhor situação, no que respeita à atividade neste mundo, do que a pessoa mais competente que morreu. Os vivos sabem que morrerão; mas os mortos já não são capazes de usar a sua inteligência nesta vida, nem de gozar qualquer dos frutos dos seus labores, embora os tenham acumulado muitos; nem são lembrados muito tempo pelos que deixaram atrás. Mas esta descrição dos mortos em relação à vida neste mundo não diz nada, e nem pretende dizer coisa alguma, concernente às condições para as quais eles foram. De modo algum nega a imortalidade da alma e a retribuição futura.

Mas o Eclesiastes não continua no versículo 6: “O seu amor também, e o seu ódio e a sua inveja, tudo pereceu: nem eles têm parte neste mundo nem na obra que se faz debaixo do sol”?Sim; e confirma o fato de estar falando sob o ponto de vista desta vida somente. Os mortos não mais têm parte na vida que deixaram, a vida que passaram “debaixo do sol”. Nadaé dito sobre o estado da alma desde o momento em que ela se foi para Deus, que a deu.

E nem o caso contra a imortalidade é melhorado pela citação do versículo 10: “Seja o que for que a tua mão entenda fazer, faze-o seriamente; porque nem obra, nem razão, nem sabedoria, nem ciência estarão no inferno para onde vais celeremente”. Porquanto o sentido aí é simplesmente o de que a morte em breve nos cortará desta vida, e, portanto, deveríamos fazer o máximo das nossas oportunidades em deveres que cessam quando somos tirados deste mundo. Dizer que as nossas ocupações terrenas não serão possíveis no “sheol” não tem nada que ver com quais serão as condições ali. O Eclesiastes não teve intenção de tratar da questão de ser a alma imortal ou não.


OS PROFETAS

Que se deve dizer de Isaías 26, 14? Ali lemos: “Eles estão mortos; não viverão. Faleceram; não ressuscitarão: por isso visitaste-os e destruíste-os, ·e fizeste perecer toda a sua memória”. Aqui, uma vez mais, não há referência, de um modo ou de outro, à sorte das almas no outro mundo. Isaías está falando das nações opostas ao povo de Deus. Declara a destruição delas da face da terra, e prediz o seu desaparecimento até mesmo das páginas da história humana.

Que Isaías considerava o “sheol” ou as regiões inferiores como um mundo dos ainda viventes, é evidente pela sua descrição, em 14, 9-10, da recepção feita pelas outras almas que já ali se achavam à alma do rei de Babilônia. Descrevendo essa recepção, escreve ele: “O “sheol” nas suas profundezas conturbou-se para vir ao teu encontro, à tua chegada … todos responderão e dir-te-ão: Também tu foste ferido tal como nós, foste feito semelhante a nós”. Isso seria impossível se as almas não sobrevivessem à morte do corpo.

As Testemunhas de Jeová gostam muito de citar Jeremias 51, 57: “Embriagarei os seus príncipes e os seus sábios, os seus capitães e os seus magistrados, e os seus homens poderosos; e eles dormirão um sono perpétuo e não acordarão, diz o rei, cujo nome é o Senhor dos exércitos”. As palavras aí não têm a menor referência à questão da imortalidade da alma. Jeremias apenas prediz a destruição a sobrevir a Babilônia, declarando que os governadores e soldados dela serão cortados permanentemente desta vida pela – morte.

Ainda mais frisam eles Ezequiel 18, 4: “A alma que peca morrerá”. Estas palavras são interpretadas como significando que a alma que peca morre no sentido de se tornar inexistente. Contudo, no mesmo capítulo, versículo 23, Ezequiel diz: “Tenho eu algum prazer em que o mau morra, e não em que se converta dos seus caminhos e viva?” Longe de se referir a qualquer morte física da alma, Ezequiel está atacando uma noção judaica então reinante, de que toda a responsabilidade pelo pecado poderia ser lançada sobre os antepassados, e que os judeus ainda estavam sendo punidos pelos pecados de seus pais. Ele portanto anunciou de forma vigorosa e incisiva que cada indivíduo pelos seus próprios pecados também merece o castigo da morte corporal que veio ao mundo para o homem como pena do pecado dos nossos protoparentes. Por causa de uma passagem que trata da responsabilidade moral dos pecadores arguir que a alma não é imortal por sua própria natureza, mostra completa incompreensão dos princípios ordinários da interpretação escriturária.

OS EVANGELHOS

É-nos dito que os que creem na imortalidade da alma gostam muito de citar S. Mateus 10, 28: “Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma”, porém evitam ardilosamente completar a citação, que assim continua: “antes temei os que podem perder tanto a alma como o corpo no inferno (Geena) “. Estas últimas palavras não mostram a destrutibilidade da alma? Certamente não, em qualquer sentido de reduzir a alma a um estado de inexistência.

Cristo usou a palavra inferno no sentido da palavra grega “Geena”, para significar a desgraça dos perdidos que experimentarão a eterna destruição de todas suas esperanças de felicidade celeste, e não deles mesmos. Em Mateus 18, 9, lemos como, noutra ocasião, ele preveniu os seus ouvintes: “Se teu olho te escandaliza, arranca-o e lança-o fora de ti. É melhor para ti entrares na vida com um só olho do que, tendo dois olhos, seres lançado no fogo do inferno (Geena)”. Se Geena significasse destruição ou extinção absoluta, o aviso perderia toda a sua força. O que a posse dos dois olhos nunca poderia compensar é a consciência da ruína irreparável; e a experiência eterna pressupõe a imortalidade da alma.

Outra indicação do pensamento de Cristo sobre o assunto é a de, na disputa dos Fariseus, que acreditavam na imortalidade, com os Saduceus, que a negavam, haver Cristo ficado do lado dos Fariseus e contra os Sadueeus (Mt 22, -23-34).

Uma passagem nos evangelhos que tem causado muita perturbação aos opositores da sobrevivência da alma após a morte é a de S. Lucas 23, 43, onde achamos registadas as palavras de Nosso Senhor ao ladrão moribundo: “Em verdade, te digo, hoje mesmo estarás comigo no paraíso”. Seria fatal para as teorias deles admitir que a alma do ladrão naquele mesmo dia experimentaria a felicidade do além-túmulo. Assim, para fugirem a esta dificuldade eles fazem essas palavras rezar assim: “Em verdade, digo-te hoje: Estarás comigo no paraíso”.

Mas, posta inteiramente de parte a não garantida mudança na pontuação, fazer essas palavras rezarem desse modo é coisa inteiramente oposta às regras gramaticais da sintaxe grega concernente à ênfase posicional. “Semeron”, a palavra grega correspondente a “hoje”, tem a sua posição enfática dada em relação às palavras que a seguem. Não haveria sentido em Nosso Senhor dizer: “Digo-te hoje”. O ladrão penitente sabia perfeitamente que não era ontem ou amanhã. “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso” mostra o inesperado privilégio prometido ao bom ladrão no meio dos seus sofrimentos agônicos. A reprodução sugerida é uma distorção da Escritura para quadrar com ideias preconcebidas.

Do evangelho de S. João com frequência são citadas estas palavras: “Ninguém subiu ao céu, senão aquele que do céu desceu, o Filho do Homem, que está no céu” (Jo 3, 13). No tempo em que Cristo falou, isso era inteiramente verdadeiro. Porquanto o céu não esteve aberto à humanidade enquanto Cristo não completou a sua obra redentora e para lá subiu ele próprio. Mas perguntam-nos: Se as almas são imortais, onde estavam enquanto se achavam impedidas de ir para o céu? A resposta a isso seria clara por tudo o que foi dito sobre o ensino do Antigo Testamento. Estavam no “sheol” ou mundo inferior dos espíritos evolados; ou, para usar um termo mais recente, estavam na “limbo”, o estado intermediário onde elas aguardavam a ascensão de Cristo. S. Pedro, em 1 Ped 3, 19-20, diz-nos expressamente que as almas em prisão, ao encontro das quais a alma de Cristo foi após a sua morte na cruz, eram os espíritos daqueles que tinham vivido e morrido nos tempos do Antigo Testamento. Esse ensino certamente pressupõe a imortalidade da alma.

ATOS DOS APÓSTOLOS

Por algum estranho processo mental, os opositores escriturários da imortalidade pensam provar David como inexistente, citando os Atos 2, 34: “David não subiu ao céu, mas ele próprio disse: O Senhor disse a meu Senhor, senta-te à minha direita, até que eu faça de teus inimigos o escabelo dos teus pés”.

Ora, S. Pedro usou essas palavras no seu primeiro sermão em Jerusalém. Estava provando aos judeus a ressurreição e ascensão corporal de Cristo, e o fato de ser Cristo maior do que David. Por isso ele frisou o fato de que o corpo de David ainda estava no túmulo, e que ainda não tinha havido para ele qualquer ressurreição e ascensão corporal ao céu. Por outro lado, S. Pedro mostrou que esse mesmo David havia profeticamente olhado no futuro um maior do ele, ao qual ele mesmo tinha de chamar “Senhor”, e que ressurgiria corporalmente do túmulo, ascenderia em corpo e alma ao céu, e ali seria entronizado, no mais alto lugar de honra e glória. O seu argumento era que, se eles tinham qualquer crença em David, deveriam aceitar Cristo, no qual era cumprido tudo o que David profetizara relativamente ao Messias.

Tudo isso precisamente não diz nada sobre a condição da alma de David, nem fornece a mais leve evidência de que a sua alma não esteja agora no céu com Cristo ressuscitado e ascendido, embora o seu corpo ainda não haja ressurgido dos mortos. Para isso David deve esperar, com o resto do gênero humano, a ressurreição geral no fim dos tempos. Mas a alma de David está no céu, tal como S. Paulo ansiava por esse mesmo privilégio quando dizia que desejava “ser dissolvido e estar com Cristo, coisa muito melhor”.

AS EPÍSTOLAS

Em 1 Cor 15, 45, S. Paulo escreve: “O primeiro homem, Adão, tornou-se uma alma viva; o último Adão tornou-se espírito vivificante”. Mais uma vez é tirada daí a conclusão de que o corpo e a alma devem ser uma coisa só; que Adão não “teve” uma alma – “era” uma alma. Essa crua literalidade, entretanto, absolutamente não acarreta tal significado. Que Adão se tornou uma “alma viva” é um modo figurado de dizer que lhe foram dados todos os elementos constitutivos de uma vida humana natural, constante de corpo e alma.

Todavia, Cristo veio do céu para restaurar o homem numa vida mais do que meramente natural. “Eu vim”, disse ele de si mesmo, “para que eles tenham a vida, e a tenham mais abundantemente” (Jo 10, 10). Cristo veio para ser o Doador ele uma vida celestial e sobrenatural. Como Redentor do homem, o seu intuito era desfazer o pecado do primeiro Adão e elevar o homem a um destino mais alto e celestial, muito acima do nível dessa vida meramente natural acima ela qual ele nunca poderia elevar-se pelo seu próprio poder. Esse destino, tanto para a alma como também para o corpo depois da ressurreição, será à semelhança de Cristo ressuscitado, ascendido e glorificado – mesmo como ele é dado por Cristo.

Como todo o capítulo quinze da primeira Epístola aos Coríntios tem dado origem a muitas ideias falsas poderia ser bom aditar uma nota acerca do ensino de S. Paulo sobre a ressurreição.

Depois que a alma deixa o corpo, na morte, sobrevivendo sob condições próprias aos seres espirituais desencarnados, o próprio corpo é sepultado e se corrompe como os outros corpos materiais. Mas os nossos corpos, diz-nos S. Paulo, ressurgirão de novo no último dia, não no mesmo estado de quando foram sepultados, mas tão mudados e “espiritualizados”, que serão capazes de compartilhar o destino das almas espirituais às quais foram reunidos. Assim, a parte mortal do homem “assumirá a imortalidade”, semelhante à parte já imortal do homem, a alma; e, se alguém houver morrido em estado de graça e amizade com Deus, ·corpo e alma serão glorificados para um destino celestial e eterno.

Outro repto à doutrina da imortalidade da alma é tirado de 1 Tim 6, 16. Ali S. Paulo fala de Cristo “Rei dos reis e Senhor dos senhores, o único que tem a imortalidade”. Com que direito então se diz que as almas humanas possuem a imortalidade por uma lei própria da sua verdadeira natureza?

Aqui a dificuldade surge da tentativa de interpretar o Cristianismo sobre o nível puramente natural, e não de acordo com o nível sobrenatural e espiritual a que ele realmente pertence. Escreve S. Paulo: “O simples homem com os seus dons naturais não pode perceber os pensamentos do espírito de Deus; estes parecem loucura para ele, e ele não pode apreendê-los, porque eles exigem um exame que é espiritual” (1 Cor 2, 14).

Todas as almas são naturalmente imortais. Todavia, a afirmação de que “só Cristo tem a imortalidade” não se refere à imortalidade natural, porém a algo imensuravelmente mais alto e inteiramente único. Enquanto toda alma deve por necessidade continuar a viver, pode continuar a viver ou em trevas e em desdita, ou em luz e em felicidade. Mas, para fazer isto, ela precisa herdar uma vida divina. Nenhum poder natural do homem habilitá-lo-á a herdar essa vida divina. Tal vida, comunicada a nós pela Natureza Divina do próprio Deus, a única espécie de imortalidade que realmente vale a pena procurar, só pode ser dada por Cristo. Neste sentido, “só ele tem a imortalidade”.

Esta é a imortalidade cristã, completamente diferente da imortalidade meramente natural. Ela supõe a alma elevada a um nível muito mais alto do que o nível meramente natural, e colhida na própria vida de Deus através de Cristo. O princípio dessa vida divina e imortal, a graça santificante, podemos possuí-lo desde agora. Por ele se verificam as palavras de Cristo: “O reino de Deus está dentro de vós” (Lc 17, 21). Isto fornece a chave para a compreensão da ulterior e seguinte passagem da primeira Epístola de S. João.

Em l João, 5, 12, ocorrem estas palavras: “Aquele que tem o Filho tem a vida. Aquele que não tem o Filho não tem a vida”. Isso não parece como se a alma humana não tivesse imortalidade inerente por si mesma? Se tomarmos modos de ver meramente naturais, assim poderia parecer. Porém modos de ver meramente naturais nunca podem fornecer uma compreensão verdadeira da religião cristã.

O que S. João quer dizer é que somente aqueles que aceitam, amam e servem Cristo é que têm a espécie de vida que Cristo veio dar. Os que rejeitam Cristo não têm dentro de si essa vida divina da graça. Nós todos somos naturalmente imortais; mas Cristo ajunta uma qualidade especial à nossa imortalidade natural, habilitando-nos não apenas a continuar a viver depois da morte, mas a fazermo-lo no próprio céu, achando intérmina felicidade na muito íntima relação pessoal com o próprio Deus. Neste sentido nos é dito: “Esta é a vida eterna: conhecer-te, e a Jesus Cristo que nos enviaste” (Jo 17, 3). Os que rejeitam isto serão imortais no sentido de continuarem vivendo eternamente, mas não terão essa espécie de vida eterna que é a única digna do nome de vida.

CONCLUSÃO

Como vimos na primeira parte deste livrinho, é sem fundamento toda asserção de haver-se a razão emancipado da crença numa vida futura. A própria razão conhece que este mundo é pequeno demais para ela. Os animais inferiores acham nele tudo o que requerem. O homem, não. Pode ele achar o bastante para as suas necessidades corporais, mas certamente não o bastante para os seus poderes de mente, e de vontade, e de amor. Do ponto de vista deles, se não há vida futura, o homem seria como um milionário condenado a viver numa pequena aldeia, incapaz, a despeito de todos os seus recursos, de comprar qualquer coisa exceto aquilo que ele pudesse achar no armazém dessa única aldeia!

As pretensas dificuldades tiradas da Sagrada Escritura absolutamente não são dificuldades. Muitas das passagens citadas são simplesmente irrelevantes, não tendo conexão com a questão da imortalidade da alma. O próprio Cristo tomou como pressuposta a doutrina da imortalidade natural da alma. Ele veio oferecer uma “super-imortalidade” de graça neste mundo, e de eterna felicidade no outro. Ele mesmo, naquela natureza humana pela qual se fez um só conosco, atingiu uma nova e gloriosa vida depois da sua morte, e repetidas vezes manifestou-se aos seus seguidores, nas aparências da Ressurreição, assegurando-os – e a nós da realidade daquela nova e gloriosa vida, privilégio que ele tornara possível também para nós. Tudo isso não é fantasia, mas fato histórico.

Por uma verdadeira necessidade do nosso ser, nós todos devemos continuar a viver depois da morte, queiramos ou não. A única escolha em nosso poder é entre continuarmos a viver em suprema felicidade ou continuarmos a viver na mais horrenda desdita. Foi com a seriedade desta alternativa em mente que Cristo formulou a questão: “Que aproveita a um homem ganhar o mundo inteiro se sofrer a perda da sua alma?” (Me 8, 36). A negação de uma vida futura simplesmente esvaziaria essa questão de qualquer significado real. A única coisa sensata a fazer é guardarmos essa pergunta em mente para nós mesmos, e vivermos à luz dela.

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