Domingo, Maio 5, 2024

Martinho Lutero tinha razão?

Já há algum tempo temos ouvido de altos prelados da Igreja reconhecimentos e elogios à figura de Lutero. Se tem dito de tudo, desde coisas moderadas (em que se admite que ele pode ter sido movido por uma boa e reta intenção) até louvores desmedidos (situando-o como parte da grande Tradição da Igreja ou até se admitindo que teve razão no que diz respeito à doutrina da justificação). A partir da ponto de vista de um leigo, quero neste artigo compartilhar o que considero acertado e desacertado nestes elogios politicamente corretos feitos em nossa época sobre a figura e doutrina de Lutero.

 
SOBRE AS BOAS INTENÇÕES DE MARTINHO LUTERO


Saber exatamente quais eram as intenções de Lutero para agir como agiu nos tempos da Reforma Protestante é algo impossível, pois como todos nós sabemos, o fôro interno só é conhecido por Deus. O que podemos, sim, fazer é formar uma opinião aproximada e falível, evitando cair em juízo temerário quanto ao que o próprio Lutero admitia e o estudo objetivo dos fatos históricos. A partir desta perspectiva, o máximo que se poderia admitir, na melhor das hipóteses, como mera possibilidade, é que Lutero pode ter agido com o que chamamos "consciência reta" ainda que errônea.
 
Tal como tradicionalmente nos foi ensinado, age em "consciência reta" quem julga da bondade ou malícia de um ato com fundamento e prudência, diferentemente da "consciência falsa", que julga com irreflexão e sem fundamento sério. Ao contrário, age com "consciência verdadeira" aquele que além de agir em consciência reta, acerta em seu juízo e age de acordo com ao ordem moral objetiva. Não se deve confundir a "consciência reta" com a "conciência verdadeira". Uma pessoa pode agir com consciência reta quando, com suas limitações, colocou todo o empenho em agir corretamente independentemente de acertar (consciência verdadeira) ou se equivocar por algum erro especulativo (consciência errônea). Age em consciência reta invencivelmente errônea quem, depois de ter feito todo o possível para agir corretamente, ainda assim erra, porém age de acordo com o que a sua consciência lhe dita, consciência que, neste caso, estaria deficientemente formada.
 
Nos próprios escritos de Lutero o encontramos admitindo que passou por uma intensa luta interior, onde lhe atormentava pensar que poderia ter agido equivocadamente, mas que finalmente ficou convencido de que agia para a glória de Deus. A este respeito, escreveu Lutero:

Certa vez [o diabo] me atormentou e quase me estrangulou com as palavras de Paulo a Timóteo; tanto que o coração se me queria dissolver no peito: ‘Tu foste a causa de que tantos monges e monjas abandonassem seus mosteiros’. O diabo habilmente me tirava da vista os textos sobre a justificação… Eu pensava: ‘Quem ordena estas coisas és somente tu; e, se tudo for falso, tu serás o responsável por tantas almas caírem no inferno’. Com essa tentação cheguei a sofrer tormentos infernais, até que Deus me tirou dela e me confirmou que meus ensinamentos eram palavra de Deus e doutrina verdadeira (Martinho Lutero, Tisch. 141,I,62-63).

 Antes de tudo, o que temos que estabelecer é se nossa doutrina é palavra de Deus. Se isto se verifica, estamos certos de que a causa que defendemos pode e deve ser mantida, e não há demônio que possa lançá-la abaixo… Eu, em meu coração, já rejeitei qualquer outra doutrina religiosa, seja ela qual for, e venci aquele molestíssimo pensamento que o coração murmura: ‘Tu és o único que possuis a palavra de Deus? E os demais, não a têm?’… Tal argumento o acho válido para todos os profetas, àqueles que também se lhes foi dito: ‘Vós sois poucos, o povo de Deus somos nós’(Martinho Lutero, Tisch. 130,I,53-54).

  Parece que Lutero nunca se livrou da dúvida e, ao longo dos anos, retornava a ele um persistente peso de consciência, que identificava como tentações do demônio. No ano de 1535, já na avançada idade de 52 anos, admite todavia que acha o argumento “bastante capcioso e robusto dos falsos apóstolos”, que lhe impugnam deste modo:

Os apóstolos, os Santos Padres e seus sucessores nos deixaram estes ensinamentos; tal é o pensamento e a fé da Igreja. Pois bem, é impossível que Cristo tenha deixado a sua Igreja errar por tantos séculos. Somente tu sabes mais que tantos homens santos e que toda a Igreja… Quem és tu para atrever-te a dissentir de todos eles e para colocar-nos violentamente um dogma diverso? Quando Satanás urge este argumento e quase conspira com a carne e com a razão, a consciência se aterroriza e desespera, e é preciso entrar continuamente dentro de si mesmo e dizer: ainda que os santos Cipriano, Ambrósio e Agostinho; ainda que São Pedro, São Paulo e São João; ainda que os anjos do céu te ensinem outra coisa, isto é o que eu sei de certo: que não ensino coisas humanas, mas divinas; ou seja, que [no negócio da salvação] tudo o atribuo a Deus e nada aos homens (WA 40,1; pp.130-131).

O certo é que se tal boa intenção existiu, a soberba pouco a pouco o levou a afastar-se cada vez mais do ideal evangélico, enchendo seu coração de ódio e maldições, como ele mesmo admitiu:
 

 Visto que não posso rezar, tenho que maldizer. Direi: 'Santificado seja teu nome', porém acrescentarei: 'Maldito, condenado e desonrado seja o nome dos papistas e de todos quantos blasfemam o teu nome'. Direi: 'Venha teu reino', e acrescentarei: 'Maldito, condenado e destruído seja o papado com todos os reinos da terra, contrários ao teu reino'. Direi: 'Faça-se tua vontade', e acrescentarei: 'Malditos, condenados, desonrados e aniquilados sejam todos os pensamentos e planos dos papistas e de quantos maquinam contra a tua vontade e conselho'. Verdadeiramente, assim rezo todos os dias, sem cessar, oralmente e com o coração; e comigo, todos quantos crerem em Cristo (WA 30,3; p.470).

  O cardeal Joseph Ratzinger, antes de se tornar Papa, pontualizou a este respeito:
 

"Há que se levar em conta que não só existem anátemas por parte católica contra a doutrina de Lutero, como também existem desqualificações bastante explícitas contra o Catolicismo por parte do reformador e de seus companheiros; reprovações que culminam na frase de Lutero de que restamos divididos para a eternidade. É este o momento de referir-nos a essas palavras cheias de raiva pronunciadas por Lutero em relação ao Concílio de Trento, nas quais restou finalmente clara sua rejeição à Igreja católica: 'Teria que fazer prisioneiro ao Papa, aos cardeais e a todos esses canalhas que o idolatram e santificam; tê-los por blasfemos e logo arrancar-lhes a linguagem coalhada; colocá-los todos na fila da forca… Então se lhes poderia permitir que celebrassem o Concílio, ou o que quer que seja, a partir da forca ou no inferno, com os diabos'” (Card. Joseph Ratzinger, "Igreja, Ecumenismo e Política: novos ensaios de eclesiologia", Biblioteca de Autores Cristãos, Madri, 1987, p. 120).

Uma vez mergulhado nessa espiral de loucura, todos aqueles que divergiam de Lutero em qualquer ponto de doutrina ou o consideravam inimigo era objeto dos qualificativos mais sujos e vulgares: ao duque Jorge da Saxônia, chama-o de “assassino”, “traidor”, “infame” “assassino profissional”, “derramador de sangue”, “patife sem-vergonha”, “mentiroso”, “maldito”, “cão”, “sanguinário”, “demônio”. Os insultos contra o Papa sempre foram uma constante e é quase impossível contabilizá-los: “anticristo maldito”, “burro papal”, “asno papal”, “bispo dos hermafroditas e Papa dos sodomitas”, “apóstolo do diabo”. Não só os católicos eram objeto de seus opróbrios, como também passaram a alcançar os próprios protestantes: a Tomás Münzer chama-o de “arquidemônio que não realiza senão latrocínios, assassinatos e derramamentos de sangue”; seu aliado Andreas Karlstadt, quando passa a divergir dele, se transforma em um “sofista, essa mente louca”, “muito mais louco que os papistas”; o mesmo ocorre com Ulrico Zwinglio, que quando nega a presença de Cristo na Eucaristia passa a ser “digníssimo de santo ódio, pois age tão indecente e maliciosamente em nome da santa palavra de Deus” e um “servidor do diabo”.
 
É evidente que Lutero não era precisamente a pessoa ideal para tentar reformar a Igreja; e já passados tantos séculos desde aqueles acontecimentos, resta claro que a figura do reformador protestante não tem por que seguir separando católicos e protestantes. Eu mesmo, que não nutro simpatia por tão sinistro personagem, não teria problema em admitir que pode ter tido, no começo, justa indignação pelos abusos no tráfico de indulgências, ou que estava sinceramente convencido de estar na verdade. E ao admitir isto, não vejo que esteja sendo concedido a ele qualquer grão de razão.
 

DO OBSCURECIMENTO DO SENTIDO DA GRATUIDADE DA SALVAÇÃO NA IGREJA CATÓLICA


Porém, outro dos louvores que se costuma ouvir a respeito da figura de Lutero e que já começa a ser preocupante, é aquele onde se admite e sustenta que durante séculos perdeu-se, na Igreja Católica, o sentido da gratuidade da salvação divina e foi Lutero quem teve o mérito de recuperá-la. Quanto a isso, pode-se mencionar concretamente a pregação feita pelo padre Rainiero Cantalamessa, em março deste ano [de 2016], na Basílica de São Pedro, em que afirmou o seguinte:

– “Existe o perigo de que alguém ouça falar da justiça de Deus e, sem saber o significado, ao invés de animar-se, se assuste. Santo Agostinho já o havia explicado claramente: "A 'justiça de Deus' – escrevia ele – é aquela pela qual Ele nos faz justos mediante sua graça; exatamente como 'a salvação do Senhor' (Salmo 3,9) é aquela pela qual Ele nos salva" (Do Espírito e da Letra 32,56). Em outras palavras: a justiça de Deus é o ato pelo qual Deus faz justos, agradáveis a Ele, aos que crerem em seu Filho. Não é um 'fazer-se justiça', mas um 'fazer justos'. Lutero teve o mérito de trazer à luz esta verdade, depois de que, durante séculos, pelo menos na pregação cristã, se havia perdido o sentido; e é isto, sobretudo, o que a Cristiandade deve à Reforma, a qual no próximo ano cumpre o quinto centenário. "Quando descobri isto – escreveu mais tarde o reformador – senti que renascia e me parecia que se me abriram de par em par as portas do paraíso"(Prefácio às obras em latim, ed. Weimar 54, p.186). 
 

Se bem que seja possível que na época de Lutero alguns pregadores de indulgências pudessem deixar em segundo plano a doutrina sobre a gratuidade da graça (desconheço até que ponto), não é justo atribuir isto à pregação cristã da Igreja durante séculos. Como bem fez notar o sacerdote e doutor em teologia José María Iraburu em um artigo publicado recentemente[1], sustentar isto é cometer uma grande injustiça para com aqueles pregadores que mais prestígio e influência tiveram na Cristiandade de seu tempo, tanto antes como depois da época de Lutero, e que ensinaram sempre a verdadeira doutrina católica da graça e da justificação, e estavam livres de toda espécie de pelagianismo ou semipelagianismo; entre eles, recordou: Santa Hildegarda de Bingen (+1179), São Domingo de Gusmão (+1221), São Francisco de Assis (+1226), Santo Antonio de Pádua (+1231), Beato Ricério de Múcia (+1236), Davi de Augsburgo (+1272), São Tomás de Aquino (+1274), São Boaventura (+1274), Santa Gertrudes de Helfta (+1302), Santa Ângela de Foligno (+1309), mestre Eckahrt (+1328), Taulero (+1361), Beato Henrique Suson (+1366), Santa Brígida da Suécia (+1373), Santa Catarina de Sena (+1380), Ruysbroeck (+1381), Beato Raimundo de Cápua (+1399), São Vicente Férrer (+1419), São Bernardino de Sena (+1444), São João de Capistrano (+1456), Tomás de Kempis (+1471), Santa Catarina de Gênova (+1507), Barnabé de Palma (+1532), Francisco de Osuna (+1540), Santo Inácio de Loiola (+1556), São Pedro de Alcântara (+1562), São João d'Ávila (+1569), e tantos outros.
 
Realmente se pode afirmar com justiça que estes santos, doutores, pregadores e mestres espirituais desconheceram em suas pregações a gratuidade da justificação do homem pela graça que na fé tem seu início? Obscureceram em seu tempo, "durante séculos", "ao menos na pregação" ao povo, o entendimento da salvação como pura graça concedida pelo Senhor gratuitamente? As pregações de todos esses mestres e doutores, conservadas hoje em dia, são uma clara evidência de que isso não é certo; e ainda que tenhamos o mais nobre desejo de melhorar as relações com nossos irmãos luteranos, a solução não pode ser lançada injustamente contra os nossos antepassados na fé…

 

 
DIFERENÇAS ENTRE A DOUTRINA CATÓLICA E A LUTERANA


Para compreender quais são as diferenças reais que subsistem entre a doutrina católica e a luterana, temos que resumir, ainda que seja bem brevemente, os erros do ex-monge alemão:
 
A concupiscência é sempre pecado
 
Nós, católicos, cremos que se comete pecado ao consentir o impulso pecaminoso, não simplesmente ao senti-lo. Para Lutero, ao contrário, a concupiscência é pecado já em si mesma, formal e imputável. Este primeiro erro conduziu Lutero a uma vida de tormento, porque apesar de todas as boas obras que tentava fazer, não conseguia alcançar a paz interior ao sentir-se constantemente em pecado mortal e próximo da condenação eterna. 
 
Neste estado psicológico, Lutero foi conduzido ao seu segundo erro: a negação total da liberdade humana.
 
O homem não é livre
 
Tal como sustenta Lutero, em sua obra "De Servo Arbitrio", o pecado original destruiu totalmente o livre arbítrio da pessoa humana. Para o ex-monge alemão, o homem é já incapaz de fazer alguma obra boa; portanto todas as suas obras, ainda que tenham uma aparência bela, são, não obstante e provavelmente, pecados mortais… E se as obras dos justos são pecado, como afirma sua conclusão, com maior motivo o são as dos que ainda não foram justificados.
 
A doutrina católica ensina, ao contrário, que em razão do pecado original o livre arbítrio encontra-se debilitado, porém não aniquilado, e que ainda que para efetuar atos saudáveis (atos que conduzem à salvação) é imprescindível a graça de Deus, podendo realizar sem a ajuda da graça obras moralmente boas.
 
O homem se justifica somente pela graça através da fé fiducial ou fé somente
 
O terceiro erro de Lutero parte do anterior, pois conclui que se o homem não é livre, aqueles que se salvam o conseguem porque Deus lhes outorga a salvação de uma forma absolutamente passiva e extrínseca. O homem não coopera em nada para sua salvação, mas tudo se resolve pela certeza subjetiva de ter sido justificado pela fé graças à imputação dos méritos de Cristo. Basta aceitar Cristo como salvador e confia

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