Destaques
7. Discute-se entre os Doutores por que razão e como é que sucedeu que os Apóstolos, ao falarem, fossem entendidos por todos. Com efeito, de dois modos pôde esse dom ser-lhes concedido: um modo, da parte dos ouvintes; outro modo, da parte dos falantes. De facto, por um lado, os Apóstolos, ao pregarem, com apenas uma pronúncia de palavras e um só idioma, foram entendidos ao mesmo tempo por todos os homens presentes que falavam diversas línguas; por outro lado, foram infundidas nos Apóstolos as especificidades e o conhecimento das diversas línguas, e foi-lhes dada a capacidade de falar a todos eles, não ao mesmo tempo e com a forma da mesma voz, mas sucessivamente e conforme as ocasiões. São Tomás examina este assunto na 2.2. questão 176, artº 1, onde ensina que foi necessário que o dom das línguas fosse dado aos Apóstolos, sendo eles enviados a ensinar os outros, pois eram pobres e ser-lhes-ia difícil encontrar alguém que traduzisse fielmente aos outros as suas palavras e lhes explicasse a eles as palavras dos outros. Além disso, tendo sido replicado a São Tomás que Deus podia fazer com que os Apóstolos, falando uma única língua, fossem entendidos por todos e que assim eles não teriam possuído a habilidade de falar todas as línguas, responde assim: Resposta à segunda: Bem podiam acontecer ambas as coisas: serem os apóstolos, falando uma só língua, entendidos por todos; ou falarem as línguas de todos. Contudo era mais conveniente falarem eles as línguas de todos; porque a perfeição da ciência deles exigia não somente o falarem, mas ainda o poderem entender a fala dos outros. Mas se todos entendessem a língua única, que os discípulos falassem, sê–lo–ia pela ciência dos que lhes entendessem a fala, ou uma como que ilusão, pela qual as palavras dos discípulos chegassem aos ouvintes em sentido diferente daquele com que foram proferidas.
8. Vem em favor da explicação de São Tomás aquela passagem de Paulo em 1Cor, 14, 18: Dou graças a Deus, porque falo a língua de todos vós. Comprova-o também a razão pelo mesmo apresentada, de que este dom foi necessário, não só para que os ouvintes entendessem os Apóstolos que falavam, mas também para que os Apóstolos entendessem os outros infiéis que lhes dirigiam a palavra, pudessem responder às suas perguntas e resolver as dificuldades apresentadas. À opinião deste santo Doutor aderem claramente Suarez, Tom.1 de Gratia, prolegom. 3, cap. 5, do número 47 ao 55; Escaco, de not. et sign sanctit. sect. 8, cap.6; Vigner, loco supra cit. cap. 9, vers. 8; os Salamanticenses, in cursu Theol. tom. 3, in arbore praedicamentali § 17, nº 168 e ss; Thyreus, de apparitione vocali, lib. 2, cap. 14; e todos afirmam que podia ter sucedido, e talvez até tenha sucedido, que os Apóstolos, de acordo com as várias circunstâncias, falando por vezes um único idioma, eram entendidos por todos os ouvintes, embora estes tivessem várias línguas. Segue-os Matêucio, in pract. Theologo-Canon. ad causas Beatificat. et Canoniz. tit. 3, cap. 3, artº 2 § 5, do nº 55 ao 62. Sílvio diz de maneira ótima, in 2.2. D. Thomas, qu. 176. artº 1: Não se deve negar que por vezes sucedeu que, falando um só uma única língua, ele fosse entendido pelos ouvintes de diversas e estranhas línguas, tal como aconteceu, quando Pedro, tomando a palavra, discursou para a multidão onde várias línguas estavam misturadas... Mas dizemos não só que isto foi concedido aos Apóstolos e aos Santos que foram como eles, mas também consideramos que se deve afirmar que eles falavam várias línguas, conforme eram aqueles a quem era necessária dirigir a palavra.
9. Cristo Senhor teve, sem dúvida, conhecimento perfeitíssimo de todas as línguas, mas não precisou de as falar a todas, por ter de pregar somente a um povo, ou seja, aos judeus. Assim o advertiu São Tomás, no lugar citado, ad tertium, e Tomás Bózio ponderou-o atentamente, de signis Ecclesiae lib. 6, sign. 22, cap. 5, nº 1. Sílvio, no lugar citado, faz um comentário a São Tomás, dizendo que é muito verossímil que Cristo Senhor não tenha utilizado nenhuma outra língua publicamente e diante do povo, para além da que era familiar ao povo judeu, tendo o Senhor vindo pessoalmente a pregar só a eles. Mas privadamente, requerendo-o a ocasião, utilizou várias línguas, quando falava aos gentios no Egipto e quando falava a uma multidão formada por diversos povos, tal como está em Jo 12; ou quando falava ao Tribuno e à coorte dos soldados romanos que estavam reunidos com os Príncipes dos Sacerdotes, os magistrados do Templo e os Anciãos, tal como está em Jo 18 e em Lc 22. Embora aqui usasse uma única língua, certamente o Sírio, que nessa altura era familiar aos Hebreus, foi entendido por todos os presentes, ainda que nem todos dominassem a língua síria na perfeição. Mas não foi só aos Apóstolos, também à maior parte dos outros foi dado o Dom dos vários géneros de línguas para proveito e edificação dos fiéis. Há exemplos coligidos por Bagatta, in oper. de admirandis orbis Christiani, tom. 2, pag. 153. Nós, porém, apresentaremos aqui alguns exemplos, a partir dos quais se poderá reconhecer que Deus concedeu este dom, de que estamos a tratar, aos seus servos, tanto no primeiro modo, como no segundo modo. Na vida de São Sófio ou Cadoco, Bispo de Benevento e Mártir, editada por Bolando, para o dia 24 de janeiro, tom. 2, cap. 1, pag. 604, lê-se assim: Chegando, por fim, Cadoco a Jerusalém, visitou os lugares santos e o Senhor concedeu-lhe falar os idiomas dos povos por entre os quais Ele tinha passado, e Cadoco começou a falar em várias línguas. Na vida de São Teliau, Bispo de Llandaff, na edição do mesmo Bolando, para o dia 9 de Fevereiro, cap 2, nº 8, pag. 309, tom.2, estão estas palavras: Vendo que o amor da palavra de Deus se incendiava nos seus corações, não tendo ele nenhuma competência na língua deles, a preocupação e a angústia o invadiam de modo admirável. Todavia, para satisfazer o povo suplicante e as preces deles, começou a explicar as Sagradas Escrituras, e cada um dos que estavam diante dele ouviu-o a falar a sua própria língua. O mesmo dom foi concedido aos seus companheiros, isto é, aos Santos David e Paterno, como o atesta o mesmo autor, no lugar citado: Levantaram-se, pois, David e Paterno e pregaram ao povo, e todos os entendiam perfeitamente na sua própria língua. Na Paixão dos vinte Santos Mártires de Laura de São Sabas, na edição de Bolando, para o dia 20 de Março, cap. 7, nº 73, pag. 177, contase como um deles, desejoso de aprender a língua grega, para se dedicar à leitura das Escrituras, não conseguia aprendê-la de modo nenhum: Na verdade, deixando-se vencer pelo sono, foi visitado por um dos santos Padres, o Protodiácono Anastácio, de quem acima fizemos menção, tendo ele sido íntimo deste Padre, que lhe perguntou a causa da sua tristeza. Ele expôs-lhe então a sua dificuldade em aprender e o Santo, sorrindo, disselhe: “Abre a tua boca e mostra-me a tua língua”. Tendo-o em seu poder, tomou um pano novo e, esfregando-lhe a língua e limpando-a, depois de retirada uma substância gordurosa e uma viscosidade lodosa, desapareceu. Então o presbítero, que dormia, acordou. Porém, constatou que, a partir daquele dia, sentiu uma tão grande facilidade em entender o dialeto, e uma tão expedita eloquência, quer na leitura, quer na aprendizagem da língua submissa à sua vontade, que ele próprio se admirava e se espantava com o cuidado que Deus tinha para consigo e com a graça dos Santos. Nos paralipómenos às vidas de São Pacómio e São Teodoro, para o dia 14 de maio, segundo o citado Bolando, cap. 3, refere-se que São Pacómio, querendo corrigir um certo homem romano, que fazia uso do latim e do grego, idiomas esses que ele ignorava, dominando apenas a língua egípcia, dirigiu preces a Deus, durante três horas, para que pudesse auxiliar aquele irmão, e foi enviada do céu uma folha de papel escrita, que ele, logo que a leu, ficou a saber imediatamente as línguas de todos os povos. A seguir, tendo-se aproximado do irmão, o autor acrescenta que ele empregou sem nenhum erro tanto a língua romana, como a língua grega, diante do espanto desse irmão. Santo António dá este testemunho acerca de São Vicente Ferrer, na 3 part. Sum. histor. tit. 23, cap. 8 § 4: Era uma coisa estupenda e dotada de Graça Apostólica o facto de ele pregar no idioma vulgar da Catalunha e ser também entendido pelos outros povos que o ignoravam. Concorda com isto Henrique Espondano, in continuat. annal. Card. Baronii ad an. 1403, num. 7: Enfim, tem sido concedido a todos os pregadores do Evangelho, desde os tempos Apostólicos, que, falando-se na língua pátria e vulgar da Catalunha, o discurso seja entendido pelo povos estrangeiros que a ignoram, e seja ouvido não só pelos que são vizinhos da região, mas também pelos de regiões afastadíssimas, pelo doutos e pelos indoutos, pelos nobres e pelos plebeus. E por mais que se discurse prolixamente, ninguém é afetado pelo tédio. No relatório da causa do São Francisco Xavier, assim falaram os Auditores da Rota, no capítulo acerca do dom das línguas, etc.: Xavier distinguiu-se no dom das línguas, pois falava elegante e expeditamente as línguas dos diversos povos, que ele não tinha aprendido, quando recorria a elas por causa do Evangelho, como se ali tivesse nascido e ali fosse criado. E não raramente acontecia que qualquer um o ouvia a discursar para homens de diversas nações falando na sua língua. Tomás Bózio refere a mesma coisa acerca de São Luís Beltran, no lugar citado nº 3. Entre as epístolas de São Francisco Xavier (publicadas por Horácio Turselino despois da vida deste santo), a Epístola 5, lib. 3, pag. 105, fala a mesma coisa acerca de si próprio: Fez Deus com que, quanto antes, aprendêssemos o japonês, para a explicação das coisas divinas. Por fim, havemos de alcançar algum resultado na ação cristã. Com efeito, agora vivemos entre eles como se fôssemos estátuas mudas. Na verdade, eles dizem e pensam muitas coisas a nosso respeito, diante das quais nós obviamente emudecemos, ignaros como somos da sua fala. No momento presente voltamos à infância com a aprendizagem dos elementos desta língua. Tiago Picenino infere destas palavras que ele não foi dotado com o dom das línguas. Mas o Cardeal Gotto refuta-o energicamente, no tom. 1, de vera Ecclesia, cap. 2 § 4, nº 44, tendo podido o santo, num determinado momento, não dominar as línguas e, no momento seguinte, ser distinguido com o dom das línguas, como aconteceu com os Apóstolos, aos quais foi concedido o dom das línguas não imediatamente no início da sua vocação para o Apostolado, mas quando sobre eles desceu o Espírito Santo.
10. Não se deve duvidar que, com a permissão de Deus, o demónio pode fazer coisas semelhantes. Com efeito, ele pode, ao mover os instrumentos da voz, movê-los de tal maneira, que pronuncie a língua que quiser. E pode também formar a partir do ar diversas manifestações que nos ouvidos dos que ouvem representam palavras, que ele não pronuncia com a fala. Por isso, na vida de Santo Hilarião, São Jerónimo refere que um certo atrabiliário, que antes falava palavras siríacas, foi curado por esse santo, pondo em fuga o demónio. E tornou-se banal, entre os sinais da possessão demoníaca, que nenhum é mais evidente do que uma mulher, ou um camponês, ou um iletrado discutir sobre os mistérios teológicos, que ignorava antes da possessão, e conseguir falar em grego, ou hebraico, ou latim, em alemão ou em outra qualquer língua exótica, como nota Gaspar dos Reis, in Elysio iucundar. quaest. campo quaest. 27, art. 4. Por conseguinte, se ocorrer uma discussão acerca desta Graça dada de graça, que é o dom dos vários géneros de línguas, na Congregação dos Ritos Sagrados, por ocasião do estudo da causa de algum servo de Deus, de cuja beatificação ou canonização se trate, e os Postuladores afirmem que ele foi dotado do dom das línguas, isto é, que ele dominou por influência divina muitas línguas, será necessário que demonstrem, com o testemunho de homens honestos, que ele nunca se esforçou por aprender as línguas de que se trata, e que não foi com o tempo que ele se tornou perito nelas, utilizando-as de forma expedita, quando se proporcionava a ocasião, como alerta Matêncio, in pract. Theologo-Canon. ad causas Beatificat. et Canonizat. tit. 3, cap. 3, art. 2 § 5, num. 68. Os auditores da Rota seguem isto, no citado relatório da causa de São Francisco Xavier, tit. de dono linguarum. Porém, se os Postuladores afirmarem que o servo de Deus falava uma única língua e que foi ouvido por muitas pessoas de diversas línguas a falar a língua deles, como se fosse própria, é necessário que se apresentem testemunhas que assegurem que o ouviram a falar no seu próprio idioma, por exemplo, latim, italiano, etc., e se apresentem mais outras testemunhas de diversas nações a atestar que o ouviram também a falar as suas línguas, como por exemplo, alemães, a língua alemã; espanhóis, a língua hispânica, franceses, a língua francesa, ingleses, a língua inglesa, etc. Além disso, é necessário que todos concordem no facto de que o servo de Deus falou isso, segundo o que está determinado para os Auditores da Rota, no lugar citado. Além disto, deve advertir-se se no uso destas línguas se introduziu alguma vaidade, por exemplo, se isso aconteceu para granjear o aplauso dos povos ou dos príncipes, ou para arrecadar dinheiro, ou honras, ou se ele falou banalidades. Com efeito, estas coisas demonstrariam que o uso das várias línguas não procedeu de Deus. Pelo contrário, se ele falou das grandezas de Deus, se usou as línguas para converter os pecadores e os infiéis, esses serão sinais certíssimos de que ele foi agraciado por Deus com o dom das línguas, e este requisito se terá em muitíssima consideração nas causas de beatificação e canonização, depois estabelecidas principalmente as provas das virtudes em grau heroico, como advertiu Matta, de Canoniz. SS. part. 3, cap. 4, nº 18 e 19; e Matêucio, loc. cit., nº 68. Escaco, de Notis et sign. sanctit. sect. 8, cap.6, pag. 649.
11. A última Graça dada de graça, de que fala o Apóstolo, é a tradução dos discursos, que pode explicar-se de dois modos. Um deles é que a tradução de um discurso se refere ao significado das palavras; o outro é a busca do entendimento dos sentidos e mistérios nas palavras que ali constam. No primeiro modo, traduzir um discurso é transpor as palavras de um idioma para as palavras de outro idioma, coisa que pode fazer-se por escrito ou oralmente. No segundo modo, traduzir um discurso não é transpor as palavras de um idioma para as palavras de outro, mas ensinar os mistérios que se escondem nas palavras e que muitas vezes não são entendidos por aqueles que conhecem o significado das palavras. É isto que ensina Suarez, tom.1 de Gratia, prolegom. 3, cap. 5, nº 55 e ss. Ao primeiro modo deve atribuir-se a versão da Sagrada Escritura traduzida por Setenta homens que, sob a orientação de Ptolomeu de Filadélfia, segundo a comum opinião, compuseram a sua tradução, não a partir de charcos turvos de ribeiros, ou dos vulgares e populares livros caldaicos, siríacos e códices samaritanos, mas a partir das puras fontes hebraicas, tal como com sólidos argumentos o comprovou João Moriano contra o Rabino Azario; quer eles tenham feito esta versão separadamente, cada um fechado nas suas celas, como afirmaram Justino, Ireneu e Cirilo de Jerusalém; quer a tivessem feito reunidos num lugar público, ou numa grande basílica, afastada de todo o tumulto e ruído, como mais provavelmente pensa São Jerónimo. Ao segundo modo dizem respeito os textos que existem dos tradutores dos Santos Apóstolos. Na verdade, Pedro utilizou Marcos como tradutor, e Paulo teve como tradutor Tito, de quem na 2Cor 2, 12 diz: Quando cheguei a Tróade, para pregar o Evangelho de Cristo, e apesar de lá me estar aberta uma porta no Senhor, não tive sossego no meu espírito, porque não encontrei Tito. Na realidade, estes tradutores prestavam os seus serviços aos Apóstolos, como o fazia Tito a Paulo, quer quando se via que eles desejavam o serviço dos tradutores, no momento em que falavam a algum povo, por exemplo aos romanos, estando outros no meio do auditório que ignoravam totalmente o latim; quer quando os mesmos Apóstolos falavam coisas difíceis de entender, visto que nessa ocasião era missão dos tradutores explicá-las. Foi esta a conclusão a que chegou o Cardeal Barónio, depois de longa discussão, in annal. ad an. 45, nº 37.
12. Com o Cardeal Baronio concorda Suarez, loc. cit., nº 61 e ss. Mas Estio, in comment. ad cap.2 epist. 2 ad Corinth., considera que não pode aceitar-se como o múnus de tradutor tivesse sido exercido por Tito, seja de qual dos dois referidos modos for, e como Paulo tivesse podido ficar afetado por uma grande tristeza, ao não encontrar Tito em Tróade, e assim a ação dele não podia utilizar o modo explicado. Com efeito, diz que nessa altura Paulo pregou nas regiões da Ásia, da Acaia e da Macedónia, nas quais se falava a língua grega. Da mesma forma, Paulo alcançou, por um milagre divino, o conhecimento das línguas e falava com igual facilidade o latim, o grego e o hebreu, e, sendo assim, é improvável que ele, por causa da ausência de tradutor, que ele provavelmente nem precisava, ficasse com o espírito de tal modo perturbado, que, deixando Tróade, fosse para a Macedónia a procurar ali o seu tradutor. Este autor diz ainda que os Apóstolos, que pregavam à multidão, adaptavam o seu discurso às capacidades da maioria e que nessa altura reservavam os mistérios mais secretos, para os transmitirem aos mais capazes e mais adiantados na fé. Por essa razão o mesmo Apóstolo, na 1Cor 2, 6, diz: Nós falamos da sabedoria entre os perfeitos; e em 3, 1, diz: Não pude falar-vos a simples homens espirituais, mas como a homens carnais. Como a criancinhas em Cristo foi leite que vos dei a beber e não alimento sólido, que ainda não podíeis suportar. Destas palavras o mesmo Estio deduz que Paulo não precisava de Tito para a explicação dos mistérios e das coisas obscuras. E conclui que o espírito de Paulo não teve sossego, quando não encontrou Tito, porque o tinha enviado a Corinto, para lhe mandar notícias a saber se os Coríntios já se tinham corrigido. Cornélio a Lápide concorda com isto, no seu comentário ao capítulo 2 da Segunda Epístola aos Coríntios, onde tem estas palavras: Houve também outra razão pela qual Paulo se dirigiu de Tróade à Macedónia ao encontro de Tito: porque desejava que Tito, a quem ele tinha enviado a Corinto, lhe desse a conhecer o estado dos Coríntios, antes de regressar a Corinto, como tinha prometido. Por isso, no capítulo 7, versículo 6 diz que ele na Macedónia foi consolado com a chegada de Tito, que lhe contou o pranto dos Coríntios e desejo que tinham de Paulo. Parece, porém, que Tito comunicou a Paulo que ainda não era tempo de voltar a Corinto. Por isso Paulo adiou a sua viagem a Corinto, e enviou-lhes antes esta epístola, que lhe abriria o caminho para chegar até eles e corrigiria os defeitos dos Coríntios. Ora isto que eu referi é suficiente, pois, no que diz respeito às causas da Beatificação e Canonização, parece-me que é muito difícil que se dê ocasião à discussão desta Graça da tradução dos discursos. Embora, na verdade, possa acontecer, e muitas vezes aconteceu, que os mistérios ocultos das Escrituras fossem explicados por algum servo de Deus, sem o contributo do empenho humano, todavia isso não terá nada a ver com a Graça da tradução dos discursos, mas com a ciência infusa, de que falamos acima.
Fonte: https://charlesasullivan.com/6199/pope-benedict-xiv-on-the-gift-of-tongues/ Tradução: Pe. Zé.
Tradução: João Guilherme Pianezzola; Fonte original: Did Pope Agatho teach papal infallibility on his dogmatic epistle accepted by the 6th Ecumenical Council? (erickybarra.org).
Durante o século VII, o erro do monotelismo, a crença de Cristo possui somente uma única vontade atuante, infestou as grandes igrejas do Oriente no Império Romano. Passos para resolver esse problema foram dados através dos esforços de Sofrônio de Jerusalém, Máximo, o Confessor e o Papa Martinho. O Concílio de Latrão (649) condenou oficialmente esse erro e serviu para carimbar a posição de Roma sobre o assunto a partir de então. Em 680 o imperador bizantino Constantino VI buscou a participação do Bispo de Roma para a resolução da disputa no Oriente. Duas cartas significativas foram levadas a Constantinopla, uma escrita pelo próprio Papa ao imperador e outra epístola em nome do sínodo dos bispos realizado em Roma, que reuniu-se para voltar a abordar a questão doutrinal. Ambas as cartas são dogmáticas e foram lidas em voz alta pelos bispos no Concílio Ecumênico que se reuniu em Constantinopla em 681. Preocupo-me aqui exclusivamente com a própria epístola dogmática de Agatão ao imperador, uma vez que é este texto que contém a mais clara afirmação, vinda antes do Formulário do Papa Hormisdas, sobre a infalibilidade dos bispos de Roma.
Isso é particularmente significativo, uma vez que o VI Concílio não apenas leu a epístola e aceitou-a por unanimidade, tal como ela tinha sido escrita, mas também celebrou-a como um texto escrito sob a orientação divina que Cristo prometeu a São Pedro e seus sucessores. Contudo, alguns questionaram isso tudo, insistindo em uma variedade de diferentes pontos para negar que Agatão fez tais reivindicações papais extremas, e ainda mais que o Concílio as aceitou.
Existem algumas maneiras diferentes de distorcer as afirmações de tal modo que a descrição de Roma que faz Agatão não seja uma reivindicação a um ofício docente infalível divinamente instituído, mas simplesmente um acidente contingente que todavia merece a linguagem pomposa por razões relacionadas à superioridade moral, um respeito pela antiguidade de Roma como o lugar onde os principais apóstolos foram martirizados, ou algum outro floreio acidental que não seja intrínseco à estrutura da Igreja de Cristo. Eu tenho um próximo artigo dedicado a examinar outras implicações que resultam da epístola dogmática de Agatão, mas aqui eu prefiro resolver a questão sobre o que é precisamente comunicado pelo Papa sobre o ministério especial da Sé de Pedro.
O texto principal em que Agatão afirma a infalibilidade dos pontífices romanos que sucedem a Pedro é citado abaixo, retirado da obra Post-Nicene Fathers of the Christian Church (2ª série) editada por Philip Schaff e Henry Wace, que também está disponível no artigo Third Council of Constantinople do site New Advent (link aqui). No link para o New Advent, pode-se ler a carta de Agatão na íntegra traduzida para o inglês, e embora não seja necessário, recomendo fortemente ao leitor que vá e imprima, leia com atenção, faça anotações e depois leia o meu artigo.
Pois esta é a regra da verdadeira fé, que esta mãe espiritual de vosso tranquilíssimo império, a Igreja Apostólica de Cristo, sempre sustentou e defendeu com energia, tanto na prosperidade como na adversidade; que, será provado pela graça de Deus todo-poderoso, nunca se desviou do caminho da tradição apostólica, nem foi depravada por ceder a inovações heréticas, mas desde o início ela recebeu a fé cristã de seus fundadores, os príncipes dos apóstolos de Cristo, e permanece imaculada até o fim, de acordo com a promessa divina do próprio Senhor e Salvador, que ele proferiu nos santos evangelhos ao príncipe de seus discípulos, dizendo: “Pedro, Pedro, eis que Satanás desejou ter-te, para peneirar-te como trigo; mas eu orei por ti, para que a tua fé não desfaleça. E quando fores convertido, fortalece teus irmãos.” Considere, pois, Vossa sereníssima Clemência, visto que é o Senhor e Salvador de todos, dono de nossa fé, que prometeu que a fé de Pedro não falharia e o exortou a fortalecer seus irmãos, o quanto é conhecido por todos que os pontífices apostólicos, os predecessores da minha pequenez, sempre fizeram isso com confiança; de quem também nossa pequenez, visto que recebi este ministério por designação divina, deseja ser seguidora, conquanto desigual a eles e a menor de todas.
Ninguém pode razoavelmente negar que aqui Agatão está afirmando que a “Igreja Apostólica de Cristo” é preservada de todos os erros em todos os tempos, até o fim do mundo. Este dom de infalibilidade é dito por Agatão ser fornecido em uma promessa muito precisa que o Senhor Jesus Cristo deu ao apóstolo Pedro em sua citação do evangelho segundo São Lucas. Esta promessa, referida doravante como a promessa de Lucas, era especificamente que a fé do apóstolo não vacilaria, mas duraria para sempre. Também vem com uma missão específica, isto é, a missão lucana, que é o dever de fortalecer seus irmãos para que também eles sejam fortes na fé.
Dedutivamente, Agatão está reivindicando duas coisas a partir desta promessa. A primeira é que a fé de Pedro certamente não falhará porque é divinamente garantido que não isso não ocorrerá em todos os tempos e, em segundo lugar, que Pedro tem o dever de fortalecer as ovelhas espirituais de Cristo, ou seja, toda a fraternidade dos crentes em Cristo. Agora, a primeira pergunta a fazer é se por “Igreja Apostólica de Cristo” (apostolica christi ecclesiae) Agatão quer dizer a Igreja Católica mundial, ou seja, a soma de todos os crentes em Cristo, ou especificamente a Igreja Romana. É essa questão que o presente artigo se ocupará em responder por primeiro.
O leitor notará que Agatão não apenas se referiu à Igreja como “Apostólica de Cristo” mas também chamou-a de “mãe espiritual do vosso mais tranquilo império”, ao dirigir-se ao imperador. O que temos aqui, então, é uma equação entre a Igreja Apostólica de Cristo e esta mãe espiritual. Será útil, para compreender melhor o que Agatão quis dizer na situação acima, ver as várias maneiras em que ele usa essa terminologia em sua carta. É no início da carta a primeira vez que o termo “mãe espiritual” é mencionado, onde Agatão explica como ele comissionou homens de sua companhia para servir como representantes do Ocidente para prestar auxílio no Concílio de Constantinopla. O texto diz o seguinte:
Portanto, senhores e filhos cristãos, de acordo com o mais piedoso comando de sua clemência protegida por Deus, tivemos o cuidado de enviar com devoção de um coração piedoso (...) nossos servos companheiros aqui presentes, Abundantius, João, e João, nossos reverendos irmãos bispos, Teodoro e Jorge, nossos filhos e presbíteros amadíssimos, com nosso amado filho João, um diácono, e com Constantino, um subdiácono desta sagrada mãe espiritual, a Sé Apostólica (subdiacono sanctae hujus spiritualis matris apostolicae sedis), bem como Teodoro, presbítero legado da sagrada Igreja de Ravena e os religiosos servos de Deus, os monges.
Aqui, Agatão descreve claramente a Sé Apostólica, que ninguém argumenta ser diferente da Igreja Romana, como uma “santa mãe espiritual”. Simplesmente não poderia ser que, no meio da descrição dos legados do clero de Roma e Ravena, Constantino pudesse ser considerado subdiácono de toda a Igreja Católica mundial. Portanto, temos uma afirmação clara de que a Igreja Romana é uma mãe para com as outras. Na mesma seção, o Papa prossegue com mais informações sobre seus legados:
A estes mesmos comissários demos também o testemunho de alguns dos Santos Padres, que esta Igreja Apostólica de Cristo acolhe [quos haec apostolica Christi ecclesia suscipit], juntamente com os seus livros, para que, tendo obtido pelo poder de seu benigníssimo cristianismo o privilégio de insinuar, eles possam fora deste esforço dar satisfação (quando vossa Mansidão imperial assim ordenar) para o que esta Igreja Apostólica de Cristo, mãe espiritual deles e de vosso divino império [quid haec spiritualis mater eorum ac a Deo propagate imperii apostolica Christi ecclesia], acredita e prega, não em palavras de eloquência mundana (...) mas que demonstram esta tradição da Sé Apostólica [sed traditionem hujus apostolicae sedis] com toda a sinceridade com que foi ensinada pelos pontífices apostólicos, que foram nossos predecessores.
Continuando sua descrição dos homens que ele está enviando para representar Roma no Concílio, Agatão afirma que os equipou com “o testemunho dos Santos Padres”, que é uma clara referência às citações patrísticas que estão incluídas em suas cartas, dadas por ele para serem lidas em voz alta no Oriente. Porém, ele acrescenta que tais Padres são aqueles que “esta Igreja Apostólica de Cristo acolhe”. Isso dificilmente faz referência a toda a Igreja universal, embora pudesse ser. O uso de “esta” (haec) torna menos adequado ser uma referência à Igreja universal. É muito mais provável que Agatão esteja falando em nome da Igreja Romana e do que ela recebe. Isso é confirmado pela segunda ocorrência de “Igreja Apostólica de Cristo”, porque Agatão prevê que os homens enviados em missão pregariam o que Roma defende, e é dito que isso é o que “esta (haec) mãe espiritual”, a “Igreja Apostólica de Cristo” acredita e prega. Embora se possa dizer que aqui Agatão simplesmente deseja dizer que os legados papais representarão a Igreja universal, é mais apropriado que, por sua vocação como legados de Roma, eles representem a crença e o ensino da Sé Apostólica de Roma, e é precisamente isso que é confirmado mais abaixo na última frase da citação acima, onde Agatão diz que os legados estarão representando a tradição da Sé Apostólica. A Igreja Romana, portanto, está sendo aqui referida como a mãe espiritual do Império Romano, também sendo a “Igreja Apostólica de Cristo”. Mais adiante na epístola, Agatão novamente faz referência à “mãe” e à “Igreja de Cristo”, onde se lê: “Esta é a tradição apostólica e evangélica que a mãe espiritual do vosso império felicíssimo, a Igreja Apostólica de Cristo, mantém.”
O próximo texto a se observar inclui uma forte indicação de que Agatão entende que a promessa de Jesus a Pedro pertence, de forma única, à Igreja Romana:
E, portanto, eu lhe imploro com o coração contrito e com rios de lágrimas, com a mente prostrada, digna-te a estender a tua mão direita clementíssima à doutrina apostólica que o colaborador das suas obras piedosas, o bendito apóstolo Pedro, entregou, para que não seja escondida debaixo do alqueire, mas que seja pregada em toda a terra mais estridente do que um clarim: porque a verdadeira confissão, pela qual Pedro foi declarado bendito pelo Senhor de todas as coisas, foi revelada pelo Pai dos céus, pois recebeu do Redentor de tudo, por meio de três recomendações, o dever de alimentar as ovelhas espirituais da Igreja; sob cujo escudo protetor, esta sua Igreja Apostólica jamais se desviou do caminho da verdade na direção do erro (haec apostolica ejus ecclesia nunquam in via veritatis in qualibet erroris parte deslexa est), cuja autoridade, como a do príncipe de todos os apóstolos, toda a Igreja Católica (omnis catholica ecclesia) e os Sínodos Ecumênicos abraçaram fielmente, e é seguida em todas as coisas; e todos os veneráveis Padres abraçaram sua doutrina apostólica, através da qual eles, como as luminárias mais aprovadas da Igreja de Cristo, brilharam; e os santos doutores ortodoxos a veneraram e seguiram, enquanto os hereges a perseguiram com falsas criminações e ódio deprecativo.
Esta passagem é especialmente significativa, pois Agatão aqui diz claramente que a Igreja Romana, ou seja, a “sua [de Pedro] Igreja Apostólica”, está divinamente protegida sob o “escudo protetor” de Pedro, que atua sob o dever de alimentar as ovelhas espirituais de Jesus Cristo, cumprindo assim a missão joanina de Pedro como aquele que deve pastorear o rebanho. Assim, Pedro cumpre seu dever preservando “sua Igreja”, a Igreja Apostólica Romana, de todo erro, para que “toda a Igreja Católica” de Cristo siga sua autoridade. Não é isso que Agatão afirma? Há uma diferença clara entre “esta sua [de Pedro] Igreja Apostólica” e “toda a Igreja Católica”, e é a primeira que está protegida do erro primariamente, visto que é a Igreja de Pedro; contudo isso serve para o propósito maior de alimentar os demais, ou seja, toda a Igreja, e é por isso que Agatão diz que toda a Igreja Católica, os Concílios Ecumênicos e até os Padres da Igreja seguiram a autoridade da Igreja de Pedro.
Assim, vemos que a instituição divina da primazia em Pedro tem dupla natureza, a saber, a de que a fé de Pedro não falharia e a de que ele daria suporte contínuo à irmandade dos crentes em Cristo. Isso é aplicado por Agatão na inerrância da Igreja Romana e como ela conduziu a casa da verdade apostólica até o momento em que Agatão estava escrevendo.
A próxima passagem da epístola dogmática de Agatão faz ecoar a anterior:
Quem não odeia, se enfurece e não evita tais erros cegos, se tem algum desejo de ser salvo e procura oferecer ao Senhor em sua vinda uma fé correta? Portanto, a Santa Igreja de Deus, a mãe de sua cristianíssima potestade, deve ser liberada e libertada com todas as suas forças (com a ajuda de Deus) dos erros de tais professores, e a retidão evangélica e apostólica da fé ortodoxa, que foi estabelecida sobre a rocha firme desta Igreja do abençoado Pedro, o Príncipe dos Apóstolos, que por sua graça e tutela permanece livre do erro, [essa fé eu digo que] todos os governantes e sacerdotes, clero e povo, devem confessar e pregar conosco como a verdadeira declaração da tradição apostólica, a fim de agradar a Deus e salvar suas próprias almas.
Aqui, Agatão se refere claramente à “Santa Igreja de Deus” como a Igreja universal, e então chama esta Igreja universal de “mãe” do Império Romano, e então há claramente alguma flexibilidade no que Agatão entende por mãe. A imagem é de uma mãe que alimenta, amamenta e cuida dos seus filhos. Isso poderia se aplicar facilmente à Sé Apostólica por seu ministério especial e único de alimentar o rebanho universal sob a autoridade de Pedro, ou poderia se referir à Igreja universal como o povo de Deus. Ambas servem ao Império, em certo sentido. Mas observe-se o que Agatão diz logo em seguida. Mais uma vez, a Igreja universal mundial deve ser libertada de todos os erros através do acordo com a “rocha firme” da “Igreja do abençoado Pedro” (Roma) que “permanece livre de todo erro”. Isso ecoa a passagem de Mateus (Mt 16:16-19) da vocação de Pedro como a rocha fundamental. A mesma imagem de antes, onde toda a Igreja segue a Igreja de Pedro, porque é dessa Igreja que as prerrogativas especiais dadas a Pedro por Cristo continuam na autoridade de seus sucessores.
A próxima passagem serve para corroborar as citações já fornecidas. Aqui, Agatão implora a todo aquele que discorda da Sé Apostólica para se afastar do erro e ser salvo. Não devem “fazer-se estrangeiros da nossa comunhão, isto é, da comunhão do beato Pedro Apóstolo (consortio, imo beati Petri apostoli), cujo ministério nós, embora indignos, exercemos, e pregamos a fé que ele transmitiu, mas devem, junto conosco, orar a Cristo Senhor, o sacrifício imaculado, pela estabilidade de seu mais forte e sereno Império”. Mais uma vez, Agatão se refere ao ofício do Bispo de Roma como o do ministério petrino para toda a Igreja. A comunhão e o ministério de Pedro existem no Bispo Romano.
A partir dessas observações, podemos ver que as terminologias de "mãe espiritual" ou "Igreja Apostólica de Cristo" podem ser entendidas como significando a Igreja universal ou a Igreja Romana, e contextos específicos sozinhos podem realmente determinar se é um caso ou outro. Mas vamos voltar ao texto básico que claramente reivindica a infalibilidade divina para os bispos de Roma:
Pois esta é a regra da verdadeira fé, que esta mãe espiritual de vosso tranquilíssimo império, a Igreja Apostólica de Cristo, sempre sustentou e defendeu com energia, tanto na prosperidade como na adversidade; que, será provado pela graça de Deus todo-poderoso, nunca se desviou do caminho da tradição apostólica, nem foi depravada por ceder a inovações heréticas, mas desde o início ela recebeu a fé cristã de seus fundadores, os príncipes dos apóstolos de Cristo, e permanece imaculada até o fim, de acordo com a promessa divina do próprio Senhor e Salvador, que ele proferiu nos santos evangelhos ao príncipe de seus discípulos, dizendo: “Pedro, Pedro, eis que Satanás desejou ter-te, para peneirar-te como trigo; mas eu orei por ti, para que a tua fé não desfaleça. E quando fores convertido, fortalece teus irmãos.” Considere, pois, Vossa sereníssima Clemência, visto que é o Senhor e Salvador de todos, dono de nossa fé, que prometeu que a fé de Pedro não falharia e o exortou a fortalecer seus irmãos, o quanto é conhecido por todos que os pontífices apostólicos, os predecessores da minha pequenez, sempre fizeram isso com confiança; de quem também nossa pequenez, visto que recebi este ministério por designação divina, deseja ser seguidora, conquanto desigual a eles e a menor de todas.
Em primeiro lugar, as aberturas que referenciam tanto “mãe espiritual” quanto “Igreja Apostólica de Cristo” podem significar tanto Roma quanto a Igreja universal, mas Agatão usou ambas de modo significativo para se referir a Roma anteriormente na mesma carta.
Em segundo lugar, quando ele descreve a Igreja Apostólica de Cristo como tendo sido preservada de todos os erros, tal foi afirmado duas vezes na mesma carta sobre a Igreja Romana especificamente, o que certamente favorece que o que Agatão tem em mente aqui é a Igreja Romana.
Em terceiro lugar, a “Igreja” a que ele se refere é dita por ele ter “fundadores”, os “príncipes dos Apóstolos”, uma referência óbvia a São Pedro e São Paulo. Agora, não estou ciente de nenhuma declaração dos Padres que diga que Pedro e Paulo fundaram a Igreja Católica mundial. No entanto, estou ciente de muitas declarações dos Padres que afirmam que esses dois apóstolos fundaram a Igreja Romana, e essa parece ser a posição da antiguidade.
Quarto, e por último, Agatão traça uma linha reta, da causa para o efeito, da promessa de Jesus de que a fé de Pedro não falhará, e da infalibilidade perpétua da “Igreja Apostólica de Cristo”. As outras ocorrências na carta onde Agatão diz que a Igreja Romana foi preservada de todos os erros, afirma-se que foi por causa do “escudo protetor” e da “tutela” de Pedro, a quem o Senhor deu o dever de alimentar as ovelhas de Cristo. E assim, mesmo que a “Igreja Apostólica de Cristo” fosse interpretada como a Igreja universal mundial, a promessa de sua indefectibilidade está alicerçada na rocha firme da Igreja de Pedro, como Agatão disse em outra parte da mesma carta, que a própria Igreja é preservada de todo erro para cumprir a obrigação petrina de alimentar e fortalecer os irmãos. É preciso ver que esta interpretação é certa pelo simples fato de que Agatão encontra a infalibilidade da Igreja (quer interpretando-a como a Igreja Romana ou a Igreja universal) na promessa de fé inabalável em Pedro. A fé infalível de Pedro deve entrar em sintonia com a Igreja (seja romana ou universal) de alguma forma. E de que maneira Agatão nos disse que isso acontece? Acontece por meio da Igreja Romana herdar as prerrogativas de Pedro, de forma que a Igreja Romana é a Igreja de Pedro por meio da qual se exerce sua vocação, comunhão e ministério único. Essa é a reivindicação repetida por Agatão uma e outra vez. É precisamente assim que Agatão a interpreta nesta mesma passagem, uma vez que ele citou a promessa de Cristo a Pedro, ele passa a dizer que os “Pontífices Apostólicos”, isto é, os bispos de Roma, fortaleceram continuamente os irmãos. Mas se Agatão traça uma linha reta desde a missão original de Pedro para fortalecer a Igreja até a missão dos Romanos Pontífices, isso deve ser apenas porque ele também traça uma linha reta da fé infalível de Pedro à fé infalível dos Romanos Pontífices. Verdadeiramente, a oração pela fé infalível é o que fundamentou o encargo de Cristo a Pedro para fortalecer seus irmãos e, portanto, este elemento de fé infalível, junto com o dever de alimentar e fortalecer, deve continuar nos sucessores de Pedro no episcopado romano. Por esta construção temática, podemos ver como todas as missões de Lucas, João e Mateus convergem no Bispo de Roma. E assim, a título de conclusão, o que “Igreja Apostólica de Cristo” realmente se refere, seja ela a Igreja universal ou a romana, realmente não é a questão decisiva, visto que a infalibilidade papal é ensinada com qualquer um dos significados, mas é certamente preferível, por meio da lógica e da razão sã, que Agatão pretenda em nossa passagem primária não Igreja Católica mundial, mas a Igreja Apostólica de Roma, a Igreja de Pedro que recebe a promessa de Pedro.
Nota final: O leitor que está familiarizado com este Concílio saberá que um ocupante da Sé Apostólica, Honório, foi anatematizado por defender a heresia monotelita. Polêmicos anglicanos e ortodoxos têm insistido contra as afirmações de Agatão de que "Honório foi condenado como herege!" como se isso resolvesse o assunto. Como eu disse no início, um próximo artigo aborda esse enigma, mas deve ser entendido que o Concílio aceitou solenemente a carta de Agatão como dogmática. Basta dizer, então, que enquanto alguém gritar: “Honório foi condenado por heresia! Do que mais você precisa?!", alguém poderia simplesmente responder: "Mas o Concílio adotou a carta de Agatão como se fosse sua, e ela ensina a infalibilidade papal!". A única maneira de lidar com essa aparente contradição é permitir uma extensa investigação.
Supostos erros e contradições dos Papas
[Nota: Esse é um capítulo do livro “Anti-Janus”, escrito pelo Cardeal Joseph Hergenröther em resposta ao livro “The Pope and the Council” de Ignaz von Döllinger, sob o pseudônimo de Janus, um sacerdote cismático que não aceitou o dogma da Infalibilidade Papal.]
Cardeal Joseph Hergenröther
Tradução: Gustavo Lopes
Não é uma tarefa pequena pronunciar-se sobre questões tratadas em muitas centenas de obras eruditas, um julgamento fixo dentro do alcance de algumas linhas. Mas para essa tarefa, Janus reuniu coragem suficiente; ele apresenta, mesmo a partir do século IV, seus argumentos contra a Infalibilidade Papal. Felizes os papas dos primeiros três séculos, dos quais possuímos apenas poucos documentos; pois, a partir da terminologia menos precisa e definida, que já expôs a severas críticas a muitos dos padres pré-Nicenos, esses pontífices dificilmente teriam escapado das mais severas censuras. Vamos agora examinar brevemente o que, por parte dos defensores da Infalibilidade Papal, pode possivelmente ser alegado contra os exemplos aduzidos.
1. “O Papa Júlio I declarou Marcelo de Ancira, um sabeliano confesso, ortodoxo em seu sínodo romano” (p. 68). Não apenas o Papa Júlio fez isso, mas também o Concílio de Sardica. Marcelo esperou em Roma por seus acusadores um ano e três meses.¹ Quando esses não apareceram, e sua confissão de fé pareceu satisfatória, o Papa Júlio o absolveu. Sobre a doutrina de Marcelo, as opiniões ainda divergem. Natalis Alexander, Montfaucon e Möhler defenderam sua ortodoxia; e Hefele observa que é difícil pronunciar um julgamento decisivo sobre ele.² No entanto, deve-se admitir que pesquisas recentes parecem menos favoráveis à sua ortodoxia.³ Mas nenhum infalibilista jamais afirmou, nem um fabilista provou, que a sentença de Júlio foi uma decisão doutrinária, ou que este Papa sancionou qualquer dogma. Em um julgamento sobre as opiniões de um indivíduo, o Papa, não menos que um Concílio Geral, pode, de acordo com os mais rígidos defensores da infalibilidade, cair em um erro de fato (error facti).
2. “Libério comprou seu retorno do exílio do imperador ao condenar Atanásio e subscrever um credo ariano “(p. 68).
O defensor da infalibilidade pode responder que a queda desse Papa no arianismo não é de forma alguma certa, ou melhor, sujeita a graves dúvidas e, se certa, não é o resultado do livre-arbítrio total; pois o medo do imperador Constâncio era o motivo; e menos ainda nesta queda havia uma definição de fé envolvida.⁴ Muitos autores, como Sócrates, Teodoreto e Sulpício Severo, testemunham a favor de Libério. Dos testemunhos apresentados contra ele, vários são evidentemente espúrios,⁵ e mesmo se fossem genuínos, mostrariam apenas uma fórmula católica semi-ariana, mas não “um credo ariano”. Libério pode ser acusado, não do que fez, mas do que deixou de fazer; ele pode, do ponto de vista moral, ser culpado por seu silêncio, por sua fraqueza, enquanto a pureza dogmática de sua fé permanece intacta.⁶ Se agora formos informados, “que esta apostasia de Libério foi suficiente, através de toda a Idade Média, para uma prova de que os papas podiam cair na heresia assim como outras pessoas;” portanto, respondemos que está perfeitamente estabelecido que naquelas épocas a doutrina da infalibilidade papal era a que prevalecia; enquanto nesta passagem, por outro lado, encontramos a explicação de que a inerrância deve ser atribuída apenas às decisões dogmáticas formais do Papa, como pai e mestre de todos os cristãos, e que são as únicas vinculativas a toda a Igreja, e não às suas outras medidas e atos.
3. “Inocêncio I e Gelásio I declararam ser tão indispensável que as crianças recebam a comunhão, que aqueles que morrem sem ela vão direto para o inferno. Mil anos depois, o Concílio de Trento anatematizou essa doutrina.”⁷
Em 6 de junho de 1562, a questão de saber se pela Lei Divina a Santíssima Eucaristia devia ser administrada às crianças antes do uso da razão, foi submetida, entre outros, aos teólogos do Concílio de Trento, e o Concílio pesou maturamente as passagens dos Padres a respeito e, em particular, as palavras do Papa Inocêncio.⁸ As palavras de Inocêncio sobre o assunto, concordam exatamente com a conclusão tirada por Santo Agostinho, que assim argumentou contra os pelagianos: “Ninguém pode alcançar a vida eterna sem ser participante do corpo e do sangue de Cristo; mas ninguém pode participar sem batismo; portanto, ninguém pode obter a vida eterna sem o batismo.”⁹ A referência ao texto (vi. 54) não implica necessariamente comunhão real, pois Santo Agostinho explica frequentemente esta passagem em um sentido amplo;¹⁰ mas foi totalmente justificado com referência à prática que prevaleceu naquele tempo, e bem na Idade Média, de dar a comunhão aos bebês; uma prática que implicava o batismo como condição prévia. As palavras de Inocêncio são dirigidas exatamente da mesma maneira contra a doutrina dos pelagianos, de que é possível obter a vida eterna sem o batismo; e da mesma forma, ele baseia seu argumento em João 6, 54. Diretamente, ele afirma apenas a necessidade do batismo;¹¹ a proposição precisa afirmada, e não a ratio addita, é autoritativa.¹² As mesmas observações se aplicam a Gelásio¹³ e outros. O Concílio de Trento defende os Santos Padres, que tiveram uma probabilis causa por agir de acordo com a prática da sua época, e está muito longe de condenar qualquer um deles.¹⁴
4. “Que o Papa Zósimo falou sobre as doutrinas Pelagianas de uma forma muito diferente de seu predecessor imediato, Inocêncio”(p. 70), é totalmente falso. Inocêncio havia decidido a questão dogmática, mas não a questão pessoal relacionada à ortodoxia de Celéstio. Este se apresentou a Zósimo como perfeitamente ortodoxo e obteve dele um tratamento brando; como de fato Inocêncio tinha, no caso de seu arrependimento, oferecido a ele a mesma perspectiva; de modo que, embora por algum tempo tenha enganado o pontífice, ele nunca recebeu pelo menos qualquer tipo de sanção por seus erros, que depois foram totalmente descobertos. Assim, até mesmo Agostinho, o mais decidido adversário do Pelagianismo, considerou o assunto.¹⁵ Mas foi a Tractoria do Papa Zósimo que em todos os pontos resolveu a controvérsia. Esse documento, como uma decisão doutrinal, foi apresentado aos bispos para sua assinatura e difundido por toda a cristandade.¹⁶ Os dezoito prelados que não o assinaram foram depostos e banidos.¹⁷
5. Quanto ao Papa Vigílio, ele de forma alguma se contradisse três vezes em uma questão de fé (p. 72). O caráter repreensível das proposições a favor do Nestorianismo, formuladas por Teodoro de Mopsuestia, bem como das expressões de Teodoreto e Ibas a respeito, não foi negado por este pontífice, mas apenas a oportunidade e a justiça de uma condenação de suas pessoas. O significado dogmático positivo do judicatum, do constitutum e de seu último decreto não está envolvido em contradição.¹⁸ A censura em que Vigílio incorreu é a da vacilação de conduta em uma posição de dificuldade incomparável, da qual nada é dito aqui ao leitor; e mesmo contra essa acusação, muitos teólogos, inclusive franceses, não deixaram de defendê-lo. O cisma no Ocidente não foi culpa dele. O Oriente e o Ocidente, como muitas vezes acontecia em outras ocasiões, eram então opostos um ao outro; e é precisamente a história da disputa dos três capítulos, que mostra quão necessária foi a decisão do Papa.¹⁹
6.Naturalmente, o caso de Honório não é ignorado. Este pontífice, dizem, expressou-se em epístolas dogmáticas favorável à heresia monotelita (p. 74); e essas epístolas foram no sexto Concílio Ecumênico cometidas, como heréticas, às chamas (p. 74). A literatura quase incomensurável a respeito de Honório está aqui de uma maneira suficientemente arbitrária, comprimida em algumas frases; e o estado atual da pesquisa histórica sobre o assunto é totalmente ignorado. Com isso, o Sr. Hagemann observa que, após as novas e múltiplas investigações (às quais Döllinger e Hefele abriram caminho) pelo jornal Katholik, 1863, por Schneeman (em seus “Studies on the Honorius Question”, 1864), por Rump (na edição alemã de “History of the Church” de Rohrbacher, vol. X., p. 121-47), por Reinerding (em seu “Contributions to the Question of Liberius and Honorius”, 1865), o julgamento sobre Honório sempre assumiu uma forma mais favorável. A inábil defesa de Damberger por si só prejudicou a causa.²⁰ O mesmo revisor observa: “é, acima de tudo, necessário examinar a primeira epístola de Honório em si, em seu sentido doutrinário, e de forma bastante independente de sua conexão histórica, como se a heresia monotelita nunca tivesse existido. Não temos dúvidas de que, para uma mente realmente sem preconceitos, a inocência de Honório seria aparente, e a expressão ofensiva, ἓν θέλημα, será do contexto referido à unidade moral da vontade divina e humana em Cristo.” Na verdade, os argumentos de Schneemann, que compara as expressões do Papa com passagens de Santo Agostinho, que ele tinha diante de seus olhos,²¹ ainda não foram refutados em lugar nenhum; e no sentido de suas palavras, essas cartas, que aparecem como epistolæ privatæ, e não como epistolæ doginaticæ,²² estão livres de heresia.²³ Assim, apenas está claro, o astuto bizantino, Sérgio, colocou o desavisado Papa em uma expectativa enganosa criada por uma escrita ambígua e arrancou dele uma carta, que ele foi capaz de usar indevidamente para seus próprios fins, e na verdade em favor de uma heresia defendida por ele mesmo mas então totalmente desconhecida pelo pontífice. Essas expectativas foram bem-sucedidas. As expressões de Honório, como não podiam deixar de acontecer, foram formuladas pelos gregos em conexão com a questão então tão calorosamente agitada; e assim, como os bizantinos exigiam, a quem a condenação de tantos de seus patriarcas era excessivamente enfadonha e desagradável, seguiu-se a condenação de Honório, defendido e elogiado como fora por São Máximo. “Que os legados papais”, continua Hagemann, “não se opuseram a este decreto, como no caso da epístola interpolada do Papa Vigílio, pode ter tido seu fundamento ali, que sem o anátema lançado sobre Honório, o Concílio dificilmente poderia ter sido levado a um fim bem-sucedido.” Por outro lado, devemos colocar ao lado da frase do Concílio a carta de confirmação do Papa Leão II; e, por mais que possamos explicar as palavras do Pontífice, mais não podemos extorquir delas, do que o anátema punia o esquecimento do dever, ao invés de uma cumplicidade moral nos erros monotelistas.²⁴ Esta tem sido a opinião até agora assumida pelos mais ilustres teólogos, e entre outros, por muitos doutores da Sorbonne, a saber, que Honório não era um herege, mas apenas um defensor da heresia,²⁵ ou que foi condenado por um erro quanto ao fato, errore facti.²⁶ Que o bispo d’Argentré e o arcebispo Fenelon foram injustamente acusados de terem negado a ortodoxia desse papa, há muito foi demonstrado.²⁷ Menos conhecido é o julgamento do doutor da Sorbonne, conselheiro real e bispo, Isaac Habert.²⁸ Este último observa, não é surpreendente que o nome de Honório também não deva faltar no formulário de entronização do patriarca grego,²⁹ pois mesmo na edição romana das “Atas do Sexto Concílio Geral” (ea fides extitit et candor) ocorre, primeiro no artigo décimo terceiro, onde a carta de Honório, por ser mal compreendida, é condenada; e novamente no décimo oitavo artigo seu nome ocorre.
Habert cita as provas documentais da condenação de Honório até os tempos do Papa Adriano II, rejeita a hipótese de falsificação das Atas do Sexto Concílio, e explica a sentença em questão como decorrente de um erro quanto ao fato, que até um Sínodo Ecumênico está sujeito.³⁰ Ele ressalta especialmente, primeiro, que as cartas de Honório eram cartas privadas, e não epístolas sinódicas, a forma usual de decretos solenes, e como o Papa Agatão posteriormente emitiu; em segundo lugar, que essas epístolas não contêm nada de herético; e em terceiro lugar, que o Papa Agatão não nomeia Honório entre os hereges, e que Máximo, o mais decidido oponente do monotelismo, considera ele e suas expressões como perfeitamente ortodoxas, conhecendo as afirmações de Pirro e de seus companheiros sectários. Os defensores deste Papa podem, de fato, considerar um grande triunfo para sua causa que, apesar de todo o conhecimento e perspicácia crítica trazidos contra sua opinião, eles ainda não foram refutados; ainda menos a opinião adversa foi elevada à plenitude da evidência; mais ainda, que investigações históricas mais profundas sempre servem para estabelecer sua crença em uma base mais sólida.
7.Deixando de lado as acusações contra Gregório II e Gregório III, que há muito tiveram seu justo apreço,³¹ Janus passa para o Papa Estêvão II, que reinou de 752 a 757, e que, segundo ele, emitiu duas respostas dogmáticas insustentáveis³² ( p. 54). Mas em uma delas, a questão não é sobre a dissolução do casamento de uma escrava, mas sobre a expulsão de uma escrava que vivia em concubinato; e esta decisão estava em conformidade com a tomada por Leão Magno.³³ Na outra resposta, o assunto imediatamente em questão dizia respeito ao castigo do sacerdote que, em caso de necessidade, havia administrado o batismo com vinho. Além disso, o texto está corrompido e a autenticidade do documento é questionada.³⁴
8.Nicolau I, nos é dito, declarou que o batismo dado em nome de Jesus era válido. Mas a questão que lhe foi proposta dizia respeito ao administrador do batismo, fosse judeu ou pagão, e não à forma do sacramento, do qual Nicolau falava apenas obiter, a propósito, e não ex professo;³⁵ e por isso muitos teólogos dizem que aqui se expressou apenas como doutor privado (p. 405). Um julgamento definitivo certamente não foi pronunciado; e a opinião em questão, que ocorre também em outros escritores, nunca foi considerada herética pelos muitos estudiosos, que ilustraram esta passagem.³⁶
9.A anulação de ordens e as reordenações, que encontramos a partir do final do século IX (p. 51), nada provam contra a doutrina dos infalibilistas, porque nenhum tipo de decisão dogmática está envolvida nisso, e eles não entendem sua doutrina como Janus a interpreta. A questão ainda estava por muito tempo indecisa;³⁷ e muitas expressões ásperas contra certas ordens devem ser interpretadas apenas no sentido de ilicitude, não de invalidade; pois, de acordo com a disciplina antiga, ordenações absolutas eram proibidas, e o irritum (o nulo) era muitas vezes oposto apenas ao ratum (o aprovado).³⁸ Janus pode ter alegado exemplos ainda mais antigos desse erro, mesmo desde os tempos de Inocêncio I; mas estes, os teólogos há muito explicaram e apreciaram devidamente.³⁹ Podem ser citadas passagens de muitos Papas que parecem expressar a nulidade absoluta das ordens transmitidas por hereges, cismáticos, simonistas e o resto; e outras passagens novamente, como uma, por exemplo, de Gregório Magno,⁴⁰ que pressupõe sua validade. Estêvão VI (VII) cegamente cedeu à sua paixão, mas não aprovou nenhum decreto dogmático; enquanto João IX proibiu reordenações.⁴¹ Que no século XI um rito reconciliatório, já conhecido em épocas anteriores, existia para a reinstalação em dignidades eclesiásticas obtidas ilicitamente, é certo. É igualmente certo que foi o effectus virtutis, e não a forma sacramenti, que em muitos casos foi contestado.⁴²
10.“A doutrina Cafarnaita, já rejeitada por toda a Igreja, e contradizendo o dogma da impassibilidade do corpo de Cristo”, estava em um formulário proposto a Berengário, afirmado em 1059 pelo Papa Nicolau II (p. 55). Esse formulário, embora calculado para manter o sofista hábil e sempre escorregadio, não é de forma alguma herético. As expressões ásperas podem ser justificadas pela união íntima do sinal externo com o corpo de Cristo, que admite uma comnunicatio idiomatum, da mesma forma que a união das duas naturezas em Cristo; de modo que o que ocorre externamente ao sinal pode, em certa medida, ser atribuído ao corpo do Senhor oculto sob ele. Nesse sentido, os Padres e, entre outros, Crisóstomo, já haviam falado de um toque do corpo de Cristo.⁴³
- “Celestino III tentou afrouxar o vínculo matrimonial declarando-o dissolvido se uma das partes se tornasse herética.⁴⁴ Inocêncio III anulou essa decisão,⁴⁵ e Adriano VI chamou Celestino de herege por fazer isso”(p. 54).
Mas Celestino dirigiu um mero rescrito a indivíduos; foi um responsum juris, e não um decreto de fé; a fórmula videtur nobis expressa apenas uma opinião particular; e isso é apresentado pelo Papa, não ex proposito, mas apenas obitter, a propósito.⁴⁶ Se Adriano VI chamou Celestino de herege, isso foi feito pelo Professor de Utrecht, e não pelo Papa.⁴⁷
12.Inocêncio III, “este pai da lei”, era, ao que parece, bastante ignorante de teologia, porque em um decreto ele declarou Deuteronômio, como o segundo livro da lei, obrigatório para a Igreja Cristã (p. 56).⁴⁸ Mas este Papa, agindo de acordo com o gosto de sua época, e a analogia de Gregório Magno, procurou, com a ajuda de uma interpretação alegórica de Deuteronômio (xvii. 8-12), para obter motivos de congruência para sua decisão, que tinha nada a ver com o quinto livro de Moisés. Acusá-lo de um erro neste caso é totalmente fútil.⁴⁹ Nas atas oficiais dos Papas, bem como dos Concílios, são apenas as partes reguladoras que têm autoridade, e não os argumentos, nem os adornos retóricos.⁵⁰ Tão pouco pode qualquer erro ser mostrado no que este Pontífice diz em relação a interpretação dos bispos (p. 55).⁵¹
13.O Papa João XXII está sob dupla acusação. Em primeiro lugar, no que diz respeito à doutrina da pobreza de Cristo e da regra de São Francisco, ele estava em oposição mais direta ao decreto de Nicolau III (pp. 57-59). Em segundo lugar, ele pregou em Avignon a doutrina de que antes da ressurreição geral os bem-aventurados no céu são privados da visão beatífica; e por causa disso ele era em Paris acusado de heresia (p. 274).
Agora, no que diz respeito ao primeiro ponto, os primeiros galicanos não encontraram entre Nicolau III⁵² e João XXII⁵³ nenhuma contradição na substância de sua doutrina, mas sim em suas palavras. A oposição entre eles reside, não na esfera do dogma, mas em diferentes visões filosóficas e jurídicas. Três questões, a saber, vêm aqui em consideração. A primeira é se, nas coisas que são consumidas pelo uso, o usus pode ser separado do dominium ou da propriedade? A próxima é, se um estado de pobreza, que exclui todas as espécies de propriedade, é meritório e sagrado? E a última é, se Cristo nosso Senhor, por palavra e exemplo, ensinou tal tipo de pobreza.⁵⁵ A primeira pergunta Nicolau respondeu afirmativamente, mas João negativamente; e aqui cada um partiu de uma concepção filosófica e jurídica diferente. As palavras simplex facti usus não podiam significar o uso da propriedade de outrem contra a vontade do proprietário, pois isso seria imoral, mas o uso moderado e permitido, como durante concedentis licentiâ, era permitido aos franciscanos.⁵⁶ João partiu do princípio, o simplex usus facti sem o jus utendi is usus injustus, e defendeu fortemente a opinião oposta, que quem é dono da coisa pode vender, trocar e dar como quiser; mas isso, por sua regra, não é permitido aos Minoritas. A resposta à primeira pergunta determina a resposta à segunda. Nicolau deve dar uma resposta afirmativa e João uma negativa; ambos aqui falando de acordo com suas visões peculiares da relação do usus com o jus. Do mesmo modo, a terceira questão pode ser respondida afirmativamente ou negativamente, de acordo com o ponto de vista da qual é considerada. Cristo e os apóstolos ensinaram e praticaram as vezes a pobreza completa, mas as vezes também possuíam bens temporais; eles ensinaram o perfeito e o menos perfeito.⁵⁷ Não mais do que Nicolau III,⁵⁸ João XXII desejou pronunciar uma definição neste assunto. Ele desejava resistir ao fanatismo dos espiritualistas e opor os fatos reais ao seu falso entusiasmo. Tanto quanto a regra de São Francisco é considerada, como sancionada e recomendada pela Igreja para conduzir a um seguimento mais perfeito de Cristo, ela não é em si mesma e, justamente explicado, um assunto de revelação—do depositum fidei. Os decretos pontifícios que pertencem a esta classe são apenas aqueles que sancionam solenemente regras de fé e de moral para toda a Igreja; e, no caso que temos diante de nós, isso não pode de forma alguma ser provado.⁵⁹
Em segundo lugar, no que diz respeito à doutrina da visão beatífica, João XXII apenas se expressou por meio de contestação, sem tentar formular qualquer definição sobre o assunto—uma definição reservada a seu sucessor, Bento XII. Vinte e três doutores da Universidade de Paris testemunharam, no dia 2 de janeiro de 1333, que o Papa não tinha nem asserendo, scu opinando, expressando a visão ainda defendida pelos gregos, e ainda não declarada herética. Além disso, antes de sua morte, o Pontífice deu uma explicação muito satisfatória de seus pontos de vista sobre o assunto, que ele tratou como um teólogo erudito.⁶⁰
14. O decreto de Eugênio IV sobre os sacramentos que os teólogos conhecem há muito; mas era reservado a Janus pronunciá-lo completamente errado. O leitor não familiarizado com o texto pode quase ser enganado na crença de que o Papa, em vez de sete, reconheceu apenas quatro sacramentos da Igreja. Mas não é assim. O decreto enumera todos os nossos sete sacramentos, e a omissão de três é apenas uma conclusão tirada por Janus. O decreto é, na verdade, uma instrução prática pro faciliori doctrinâ, e faz parte de um grande todo, ao qual pertencem o Credo Niceno, as Definições de Calcedônia e até mesmo um decreto sobre festivais. Certamente, esses documentos não têm todos a mesma autoridade.⁶¹ Se a entrega dos vasos é declarada como matéria das ordens sagradas, isso não exclui certamente a imposição das mãos, que já era usada entre os armênios e também foi prescrita no Pontifical Romano, ao qual se faz referência expressa. Eugênio falou da forma e matéria integral e acessória, que, para uma maior conformidade com a Igreja Romana, os armênios ainda deveriam adotar.⁶² A forma da Confirmação costumeira entre os latinos é brevemente declarada; mas não é ordenado como uma forma absoluta. A forma usual entre os gregos foi sempre reconhecida;⁶³ como também foi o caso com sua forma da Penitência.⁶⁴ Visto que esta Instrução tinha por objetivo aproximar os armênios o mais possível do rito romano na administração dos sacramentos, este modo de falar não tem nada de notável; ainda menos é imputável de erro.
15. O que Janus ainda diz sobre esses assuntos refere-se a meras minúcias. A questão “sobre a vírgula na bula de Pio V contra Baio”(p. 49), pode, como justamente observa o editor mais recente das controvérsias de Baio, ser considerada resolvida.⁶⁵ Como disputas frequentemente ocorrem, e isso demonstra apenas uma falta de instrução jurídica para exaltar as dificuldades de interpretação em um sistema de antagonismo irreconciliável. Janus se detém muito (pp. 62, 63), à maneira de alguns protestantes, e de Launoius, na edição da Bíblia de Sisto V—uma obra na qual aquele pontífice demonstrou seu amor pelos estudos bíblicos, mas sobre a qual ele passou nenhum tipo de decreto. Ele não promulgou nenhuma bula sobre o assunto; ele nem mesmo desejava que seu trabalho fosse recebido fide divinâ, como totalmente correto e perfeito. Os erros em sua edição não se referem a questões de fé; e nem ele nem seu sucessor, Clemente VIII, jamais imaginaram, ou poderiam imaginar, que estava em seu poder publicar uma edição perfeitamente impecável das Escrituras, na qual a posteridade nada encontraria para mudar para melhor.⁶⁶ A decisão do Papa Alexandre VII, no ano de 1687, “a favor da recém-descoberta doutrina da atrição” (prefácio xxvii.), nada mais é do que uma proibição de censurar uma das duas opiniões ventiladas nas escolas.⁶⁷ A bula de Clemente Xl contra Quesnel,⁶⁸ bem como as decisões de Bento XIII e dos primeiros pontífices contra o jansenismo, são recebidas em toda a Igreja; e contra essa aceitação universal, o protesto de um punhado de sectários não vale nada. E não consigo entender como um teólogo católico pode dizer que, pela condenação das Cinco Proposições de Jansénio, Inocêncio X iniciou uma controvérsia “que durou mais de um século e nunca encontrou uma solução”(p. 414). Janus, com seus amigos dessa escola, pode ter representado também o Papa Clemente XI, por causa de sua homilia de Páscoa em 1702, como um eutiquiano. Por mais infundada que tal imputação fosse,⁶⁹ mesmo assim, não poderia deixar de exercer grande influência sobre seus leitores.
Analisei em ordem cronológica a massa heterogênea e confusa de casos de alegadas contradições e erros papais, aos quais outros de igual valor poderiam facilmente ter sido anexados.⁷⁰ Se nosso erudito tivesse refutado solidamente todas as exceções dos advogados papais, ele poderia então se gabar de um serviço prestado ao ensino. Mas simplesmente copiar, sem quase qualquer consideração aos ricos tesouros da literatura eclesiástica sobre este assunto, velhas acusações, não é avançar de forma alguma nem os interesses da ciência, nem os interesses da Igreja. É apenas poeira que foi lançada aos olhos de um público totalmente desconhecido das obras teológicas, tanto dos tempos antigos quanto dos modernos; mas nem um único oponente científico foi refutado
¹ Ep. Ad Jul., p. 392 Coustant.
²“Concil. Geschichte,” vol. i., p. 456.—[“Hist. Of Councils.”]
³ De acordo com as investigações de Dorner, Döllinger, Hefele e Th. Zahn. See the latter’s Marcellus of Ancyra, Gotha, 1867.
⁴ Liberii lapsus non certus, nec si certus, voluntarius, nec in definitione fidei. P. Ballerini de vi ac ratione primatûs, c. 15, § 13, n. 30, p. 297, 299, 300.
⁵ O quinto fragmento de Santo Hilário é, de acordo com Hefele, espúrio; (Concil., vol. 1, p. 605, et seq.), mas, de acordo com Reinkens, é genuíno (Hilarius, p. 216, seq.) Até o Sr. Renouf se vê forçado a desistir de pelo menos uma parte do Fragmento; pois sua defesa o teria envolvido na mais flagrante autocontradição. (Vide “The Condemnation of Pope Honorius,” London, 1868, p. 41, seq. Note.)
⁶ Hagemann in the Journal of Theol. Literature of Bonn, 1869, No. 3, p. 79-81.
⁷ Uma observação semelhante é feita em um panfleto que está em múltiplas concordâncias com Janus, “The Roman Congregation of the Index, and its Working,” Munich 1863, p. 26.
⁸ Pallavic Hist. Council, Trident. Lxvii. C. 1, n. 1, c. 6, n. 12, c. 12, n. 5, seq.
⁹ Aug. De peccat. Mer. Et rem., iii. 4. Cf. i. 20.
Op. Imperf., ii. 29. Tract. 26 in John.
¹⁰ Noris. Vindic. Aug., § 4 Bona Liturg., ii. 19. Natal. Alex. H. E. Saec. V., cap. IV., a. 3, § 1º, n. 7.
¹¹ Pallav. 1. C., n. 9, upon Innoc., 1. Ep. 26 ad PP. Milev. Aug., ep. 93.
¹² Melch. Canus de loc. Theol. V., §. Nonne igitur.
¹³ Gelas. Ep. Ad Episc. Per Picenum constitutos.
¹⁴ Sess. Xxi., cap. 4, de commun, coll. Can. 4.
¹⁵ Aug. L. ii. Contra duas epist. Pelag. Ad Bonif., c. 3, seq.; quidquid interea lenius actum est cum Coelestio, servatâ dumtaxat
Antiquissimæ et robustissimæ fidei firmitate, correctionis fuit clementissima suasio, non approbatio exitiosissimæ pravitatis.
¹⁶ Marius Mercator Com., p. 138, ed. Baluz.
¹⁷ O dominicano, B. de Rubeis, em seu tratado “De peccato originali,” cap. 9, seq., trata esta questão de forma consistente e a partir das fontes originais
¹⁸ Dollinger, Manual of Eccles. Hist., i. p. 149
¹⁹ Ludov. Thomassin. Diss. Xix. In Concil., p. 621, seq. Petrus de Marca Diss. De Vigilio. Cf. Card. Orsi, Storia, L. 41, n. 84. Ballerini de vi ac ratione primatûs, c. 15, n. 39. P. 313. Bennettis Privileg. Rom. Pontif. Vindic., P. II., tom. V. Append., § v., p. 625, seq. P. 1., tom. i., art, ii., § 3, p. 189-204.
²⁰ Journal of Theological Literature. Bonn, 1st February 1869. No. 3, p. 76.
²¹ No já citado ”Studies on the question of Honorius,” especially p. 48, seg. Freiburg, 1864.
²² Natal, Alex. H. E. Saec. Vii., Diss. Ii., prop. 1. Hefele Conc. Ii., p. 284.
²³ Rump in Rohrbacher’s Church Hist., vol. X., p. 134, seq. P. 146 (Germ. Trans.)
²⁴ Loc. Cit, p. 77.
²⁵ Petrus Ballerini loc. Cit., pp. 306, 307; damnatus a sexta Synodo non ob hæresin, sed quia improvida dispensatione et nonnullis minus cautis locutionibus hæresi favorem impendisse visus est., pp. 306, 307, not. Præscriptum ab eo silentium, non fuit definitio fidei. O Galicano Natalis Alexander (HE. Sæc. Vii., Diss. Ii., prop. 2, 3) diz que Honório é absolvido da acusação de heresia tam vere quam pie, e apela contra seus acusadores para Combefis e Garnier. Cf. also Lud. Thomassin., Dissert. In Conc., Diss. Xx., n. 18, seq. Bennettis loc. Cit., vol. Vi., pp. 655-686.
²⁶ L. Cozza Hist. Polem. De Græcorum Schismate. Romæ, 1719, P. ii., c. I7, P. 339.
²⁷ Schneeman loc. Cit., pp. 31-33
²⁸ Αρχιερατικόν. Liber Pontificalis Ecclesiæ Græcæ nunc primum ex Reg. MSS. Collectus Meditatione et labore Is. Haberti Ep. Vabrensis. Paris, 1676, p. 565, seq.
²⁹ Ibid., pp. 557-559.
³⁰ P. 566. Haæc omnia tamen ex errore facti orta sunt, qui certe et in synodos æcumenicas cadere potest.
³¹ O panfleto citado acima na Congregação do Índice trata de ambas as respostas papais, p. 25. Conferir com isso Von Moy’s Archives for Canon Law. 1864 (em alemão) Vol. Xi., p. 174, seq. Chilianeum, vol. Iv., 1864, p. 254.
³² Labbé Conc. Vi., 1650, 1652. Resp. ad. Q. 3, 11.
³³ Leo M. ep. Ad Rusticum Narbon., ep. 167, c. 5, p. 1422. Ball., p. 1205, ed. Migne.
³⁴ Natal. Alex. Saec. Viii., c. 1, art. 6. Este assunto é tratado copiosamente por Bennettis loc. Cit., pp. 691-694. Conferir também Hefele, Conc., vol. Ii., p. 542.
³⁵ Nicol. Ad Consulta Bulgar., c. 104. S. Alphons. Liguori, Theol. Moral., lib. Vi., n. 112.
³⁶ Bennettis loc. Cit., § vii. Pp. 706-708. Conferir minha monografia sobre Fócio, vol. Iii., p. 593, seq.
³⁷ Cf. the Augsburg Pastoral Journal, 1869, No. 42, p. 334.
³⁸ Estas e outras explicações são estabelecidas extensivamente em meu “Vida de Fócio”, vol. Ii., p. 321, seq.
³⁹ Bennettis loc. Cit., § iv., pp. 531-600. Ballerini loc. Cil., p. 713.
⁴⁰ Greg. M. L. iii, ep. 15, coll. L. ii., ep. 51, ad Joh. Rav. L. xi., ep. 67
⁴¹ Mansi Conc., vol. Xviii. 221, Seq.
⁴² Bennettis loc. Cit., especially p. 597, seq., t. iv., p. 415, seq.
⁴³ Vide Döllinger’s Manual of Church Hist., vol. i., p. 376.
⁴⁴ Cap. Laudabilem (iii. 33) de Convers. Infid. Cf. Urban III., cap. 6, de illa iv. 19 de divort.
⁴⁵ Cap. 7, quanto iv., 19 de divort.
⁴⁶ Bennettis loc. Cit., t. v., § viii., p. 720, seq. Card. Sfondratus (Gallia Vindicata., Dissert. Iv., § 4, n. 1, p. 813), nos lembra que Inocêncio diz “Etsi quidam prædecessores nostri aliter sensisse videantur,” e que sentire não é sinônimo de definire; e que o Inocente também não definiu, como mostram as palavras a seguir: “Credimus aliter respondendum:” então o Cardeal acrescentar: “Sed parcendum Maimburgo solius historiæ gnaro.”
⁴⁷ Cf. Pichler loc. Cit., vol. Ii., pp. 681, 682. Bennettis loc. Cit., p. 243
⁴⁸ C. 13 per venerabilem, t. iv. 17. Qui fili sint legitimi. Esta passagem também é citada no panfleto “On the Congregation of the Index,” p. 26.
⁴⁹ Uma investigação completa deste assunto pode ser encontrada no Augsburg Postzeitung de 12 de Outubro de 1869, Append., No. 49, no artigo entitulado “A Characteristic Specimen of Janus.”
⁵⁰ Berardi Comment. In jus Eccles., Dissert. Ii., c. 2: In pluribus pontificiis Rescriptis nonnulla continentur extra principalem sententiam, in qua uma vis Rescripti consistit, quæ sunt aut prorsus extranea, quandoque etiam minus ad rectam rationem exacta, in quibus scil. Capellanus plurimum suo ingenio indulsit, iis præsertim temporibus, quibus aut theologiæ aut canonum aut etiam solidæ philosophiæ studia non satis exculta fuisse non ignoramus.
⁵¹ Vide Phillips’s Can. Law, t. v., § 226, especially page 445, and seq
⁵² C. 3, Exiit de V. S., v. 12 in 6.
⁵³ Joh. Xxii., Extravag., tit. 14, c. 3. Ad Conditorem canonum; c. 4, cum inter nonnullos; c. 5, Quia quorundam.
⁵⁴ Natal. Alex. Hist. Eccles., Sæc. Xiii. Et xiv., Dissert. Xi., art. 1. A dissertatio prævia da edição de Amsterdam da Defensio
Declarationis Cleri Gallicani do ano 1745, tem, no § 46: Ceterum neque hic sollicite quærimus, qua de re præcise ageretur et na
Revera Nicolaus pro cathedræ auctoritate ita decreverit, nec magis curamus hic, rectene na secus ipse ac Johannes egerint et na summâ consentiant, verbis litigent.
⁵⁵ Cf. Raynald, anno 1322, n. 65; Bellarm. De Rom. Pont., iv. 14.
⁵⁶ Ballerini de Potest. Eccles. Sum. Pont. Et Concil. General., liber. Veronæ, 1768. Append. De Infall. Pont., p. 277, n. 9.
⁵⁷ Bennettis loc. Cit., § viii., pp. 725-730.
⁵⁸ Card. Orsi, t. ii., de Rom. Pont. Auctoritate, l. ii., c. 42, p. 268.
⁵⁹ Ballerini de vi ac ratione primatûs, c. 15, p. 317: In his et similibus decretis potissimum cavendum, ne idem esse credatur aliquid pertinere ad materiam fidei, et decreta, quae a Pontificibus eduntur, ut respondeant interpellantibus apostolicam sententiam et
Auctoritatem, si quo hujus auctoritatis charactere muniantur, semper esse definitionem fidei. In re enim, quæ referri queat ad jus naturale vel divinum, respondere possunt, quod ex opinione probabilius judicant vel tutius, nisi exprimant aliquid credendum aut damnandum ex Catholica fide, idque possunt, etiamsi ad compescendas acriores contentiones sub excommunicationis pænâ vetent constitutis glossas addere et aliter interpretari, ut Nicolaus vetuit. Potest enim excommunicatio ferri ob præsumptionem et inobedientiam, quæ pacem turbet et scandala foveat, tametsi circa articulum nondum defnitum ex Catholica fide nullum læsæ fidei periculum sit. Hoc uno principio quam multæ constitutiones Pontificum aliquem characterem auctoritatis apostolicæ præferentes a proprie dictæ definitionis fidei catalogo excluduntur.
⁶⁰ Bulæus Hist. Univ. Paris, t. iv., B. p. 236. Spondan., anno 1334. Raynald, anno 1334, nn 27, 35. Bennettis loc. Cit., pp. 730-734. Ballerini loc. Cit., n. 40, pp. 313, 314. Wermer’s Hist. Of Polemic Literature, vol. Ii., p. 522, seq.
⁶¹ Isso é mostrado até mesmo pela distinção no encerramento: Capitula, declarationes, præcepta, etc. Denzinger Enchiridion Definitionum, p. 201, ed. Iv. Não é, como afirma Janus (n. 17), que “Denzinger tenha omitido a primeira parte sobre a doutrina da Trindade e da Encarnação, a fim de ocultar em algum grau o caráter dogmático deste célebre decreto”, mas a fim de não repetir o que já havia comunicado em outro lugar.
⁶² Bened. XIV. De Syn. Diœces., l. vii., c. 10, n. 8. St Alphons. Liguori Theol. Moral., l. vi., n. 749. Arcud. De Concordia, vi. 5, p. 442, seq.
⁶³ Liguori loc. Cit., n. 167-179. Arcud. De Concordia, ii. 7. Pignatelli Consult. Can., t. viii., Cons. 78, p. 141.
⁶⁴ Pignatelli op. Cit., t. iii., Cons. 6º n. 23; t. vii. Cons. 50, n. 1, p. 102. Decr. Congr. S. Of., 19 Dec. 1613. Arcud. Loc. Cit., iv.3
⁶⁵ Linsenmann’s Michael Baius and the Foundation of Jansenism. Tübingen, 1867, p. 266.
⁶⁶ Bennettis loc. Cit., pp. 741-744
⁶⁷ Denzinger loc. Cit., n. 93, p. 322.
⁶⁸ Ibid., n. 101, p. 351, seq.
⁶⁹ Bennettis loc. Cit., pp. 744-746.
⁷⁰ Por exemplo, a concessão do Papa Inocêncio VIII aos noruegueses para fazer uso da água em vez do vinho no sacrifício da missa; a pretensa dispensa do Papa Martinho V no primeiro grau de consanguinidade; a venda de indulgências sob o Papa Celestino V e Bonifácio IX. Veja a seguir Benettis loc. Cit., pp. 722, 735, 738.
CARD. HERGENRÖTHER, Joseph. Anti-Janus: an historico-theological criticism of the work entitled “The Pope and the Council”, by Janus. Londres: Burns and Oates, 1870. P. 74-93.
No século XIX, o Magistério da Igreja definiu infalivelmente que a Santíssima Virgem, em virtude de sua maternidade divina e singular missão para a redenção do gênero humano, jamais foi contaminada por qualquer tipo de pecado, incluindo o pecado original (cf. Pio IX, Ineffabilis Deus, 41). Trata-se do dogma da Imaculada Conceição de Maria, que, como estou a argumentar, sempre foi confessado pelos cristãos, ainda que, ao longo dos séculos, a forma de expressar esta mesmíssima verdade transmitida pelos Apóstolos tenha diferido acidentalmente através de um processo conhecido por “desenvolvimento de doutrina”.
Ora, desde o princípio do cristianismo temos inúmeras evidências de que os Santos Padres já confessavam não somente a pureza extraordinária da Virgem como também sua pureza absoluta, para poder ser digna da missão de Mãe de Deus. Se não afirmavam explicitamente ainda o privilégio da isenção do pecado original – que é a Imaculada Conceição propriamente dita – é porque as heresias de então ainda não haviam lhes obrigado a discutir a maneira de como conciliar esta primeira tradição – que afirmava a absoluta pureza de Nossa Senhora – com a doutrina que também lhes foi transmitida do pecado original (que até Santo Agostinho, embora sempre confessada, também precisava em muitos pontos ser clarificada). A síntese destas duas doutrinas ocorrerá apenas a partir dos debates de Santo Agostinho com os pelagianos, onde o problema da Imaculada Conceição propriamente dito será apresentado pela primeira vez ao maior Padre da Igreja Ocidental, e, após séculos de discussão, culminará na supracitada definição dogmática de 1854.
Faz-se necessário, antes de qualquer coisa, introduzir o estudo do desenvolvimento histórico do dogma da Imaculada com uma breve exposição do ensinamento dos próprios Apóstolos sobre o tema, já que, em primeiro lugar, seus escritos são infalíveis, e, em segundo lugar, porque foram eles mesmos os responsáveis por transmitir a seus sucessores a doutrina da absoluta pureza da Santíssima Virgem.
Entre os escritos apostólicos, o primeiro a abordar o singular privilégio mariano é o Evangelho escrito por um dos mais proeminentes discípulos de São Paulo, São Lucas. Em seu Evangelho, o “médico amado” afirma que quando o Arcanjo Gabriel apareceu à Santíssima Virgem para anunciar-lhe a dádiva de sua divina maternidade, saudou-a pelos seguintes termos: “Alegra-te, cheia de graça (κεχαριτωμένη), o Senhor é contigo!” (cf. Lc 1,28). Ora, aqui Lucas está aplicando à Virgem o verbo grego causativo χαριτοω (“cumular de graça”) no particípio perfeito passivo. Na teologia de São Paulo – de quem São Lucas foi discípulo – o verbo χαριτοω está relacionado à plena recepção da graça santificante na alma do justo, com o intuito de o tornar “santo e imaculado” para que ele seja digno de estar “na presença de Deus” (cf. Ef 1,6) [1]. Ao empregar tal verbo no particípio perfeito passivo, que indica uma ação passada plenamente concluída cujo efeito ainda persiste [2], Lucas sugere que, diferentemente dos demais homens, a mãe de Jesus já havia recebido a graça divina mesmo antes da Encarnação do Messias, já sendo “santa e imaculada” para poder receber a presença de Deus em seu ventre, uma vez que, segundo São Paulo, Ele é incompatível com qualquer tipo de pecado (cf. 2 Cor 6,14-15). Por se tratar de um verbo terminado em –όω, χαριτοω expressa ainda a ideia de plenitude [3] [4], motivo pelo qual a Tradição ocidental corretamente traduziu a expressão grega κεχαριτωμένη para a latina “gratia plena” (“plena de graça”, “cheia de graça”) na Vulgata [5].
Da mesma forma é válido destacar que a Virgem é descrita por São Lucas como a κεχαριτωμένη por antonomásia. “Cheia de Graça” se torna o seu novo nome, que indica sua nova missão, assim como “Abraão” (“pai de multidões”) fora o novo nome de Abrão (“pai”) e “Cefas” (“rocha”), o de Simão (“ouvinte”). Santo Estêvão, por outro lado, é chamado de “cheio de graça” em Atos 1,6 por estar repleto da graça divina naquele momento específico em que “fazia milagres e prodígios entre o povo”.
Mais claro ainda é o testemunho de São João Apóstolo, que conviveu com a Santíssima Virgem após a crucificação de Nosso Senhor (cf. Jo 19,27). No capítulo 12 do seu Livro do Apocalipse, o discípulo amado a apresenta como uma mulher celeste “revestida de sol” que possui “a lua debaixo dos seus pés” (Ap 12,1) e que ele claramente apresenta como a inimiga de Satanás descrita pelo Gênesis (cf. Gn 3,15; Ap 12,9). Ora, o verbo grego empregado por João nesta passagem para designar o ato de “revestir-se” é “περιβεβλημένη”, que, no contexto das simbologias do Apocalipse, faz referência à aquilo que é próprio de um indivíduo, assim como a púrpura e o escarlate são próprios da grande meretriz do final do livro (Ap 17,4; 18,6). Ao dizer que Maria se “reveste de sol”, João está afirmando que é próprio de Maria estar revestida de Cristo, simbolizado como o “sol nascente” pelos primeiros cristãos (cf. 1 João 1,5; Lucas 1,78; Mateus 17,2; Malaquias 4,2; 2 Samuel 23,4). Como quem está com Cristo não tem parte com o demônio (1 Cor 6,14-15; Rm 6,14), através de sua simbologia, João afirma já no final do século I, a doutrina da absoluta pureza de Nossa Senhora.
Além disso, São João diz ainda que a Virgem têm “a lua debaixo dos seus pés” (Ap 12,1), linguagem própria para definir oposição entre as duas entidades, assim como o triunfo da primeira sob a segunda (cf. Rm 16,20; 1 Cor 15,25; etc). A lua aqui assume clara conotação negativa, já que contrasta com a mulher que, como argumentamos acima, está revestida de santidade. É provavelmente um símbolo do pecado, comumente associado na Igreja Primitiva às simbologias da noite e da escuridão (cf. Jo 1,5; 12,46; 1 Jo 1,6; 2,9-11; e também S. Paulo em 1 Ts 5,5; etc). Ao dizer que a Virgem tem “a lua debaixo dos seus pés” (Ap 12,1), São João afirma-nos, portanto, que a Virgem não foi derrotada pelo pecado, mas triunfou sob ele, subjulgando-o. Se consideramos tudo isso em conjunto com o cenário geral de Apocalipse 12, que apresenta Maria como em um eterno confronto e oposição a Satanás (ressoando a Gn 3,15), não se pode ter dúvida que o Apóstolo João afirmava para as comunidades destinatárias a doutrina da santidade extraordinária e absoluta da Santíssima Virgem.
A prova mais explícita, no entanto, que já desde os tempos mais remotos de cristianismo se professava a absoluta pureza e santidade de Maria, se encontra numa obra pseudo-epigráfica escrita provavelmente no Egito algum tempo depois do ano 150 d.C. Trata-se do chamado Protoevangelho de Tiago, unanimamente descrito pela crítica moderna como uma obra doutrinariamente ortodoxa [6], que gozava de certo prestígio nos primeiros século de cristianismo a ponto de ter deixado profundas marcas na liturgia oficial da Igreja [7]. Alusões a ele são encontradas por exemplo nos escritos de São Justino de Roma (†165), Clemente de Alexandria (†215), Orígenes (†253-254), São Gregório de Nissa (†394) e Santo Epifânio de Salamia (†403) [8].
O Protoevangelho (ou simplesmente Natividade de Maria) é a única obra pré-nicênica que não aborda mariologia de maneira meramente incidental, mas foi escrita com o objetivo expresso de glorificar e defender os privilégios da Virgem [9]. Seu caráter popular nos dá uma visão de como a piedade da época via a figura da mãe de Jesus. Para o Pseudo-Tiago, Maria era pura “como uma pequena pomba” (VIII,1), que, para poder ser “a Virgem do Senhor” (IX,1), nasceu aos sete meses (V,5), jamais se contaminou com qualquer “coisa impura” (VI,1), foi criada “no Santo dos Santos” (XIII, 2; XV, 3) e recebia seu sustento diretamente “das mãos de um anjo” (VIII,1; XIII,2; XV,3). Mais significativo ainda é o fato da maior parte da crítica moderna concordar que as versões mais antigas do Protoevangelho sugeriam também uma concepção virginal de Maria por seus pais, Joaquim e Ana [10], o que, nos primeiros séculos, era considerado como um sinônimo de impecabilidade [11]. Sobre isso, comenta o Pe. De Aldama: “Por mais falso que seja o caminho planejado, é difícil não ver o desejo de estender a pureza única de Maria, tanto quanto possível, até suas próprias origens. Poderia ser, como Wenger salienta, a expressão falsa de uma verdade confusa.”[12]. E escreve Shoemaker: “Em outras palavras, Maria é retratada como possuindo uma santidade única que a distingue dos outros seres humanos, não no sentido de alguém que observa a sua piedade pessoal, mas como alguém que encarnava o próprio sagrado em sua própria pessoa. Desde o início, o Protoevangelho ressalta a extraordinária santidade de Maria” [13].
Os exageros do autor na defesa dos privilégios marianos (que, por exemplo, também exagera ao afirmar que a virgindade física de Maria no parto foi confirmada por uma parteira), assim como sua ênfase demasiada em livrar Maria de qualquer tipo de impureza externa (jurídico-ritual), ressoam o caráter popular da obra: “Para ler corretamente a verdadeira intenção do autor, é necessário separar qual é o pano de fundo de seu pensamento e qual é o procedimento literário puro inspirado em situações e fórmulas preferencialmente veterotestamentárias e orientadas para um estilo de inteligência popular fácil. Sob formas populares e ingênuas, supera a profunda intuição de que Maria, a Virgem Mãe de Jesus, é eminentemente pura, como convém a quem pertence a Deus e é inteiramente consagrada a Ele: ela é a Virgem do Senhor. No fundo, o ideal de uma virgindade superior, inspirada por São Paulo [2 Cor 11,2], começa a ser traçada em sua figura: Maria não é deste mundo que passa, seu cuidado está nas coisas do Senhor; É pura em corpo e espírito, pura para Ele. Seu coração não está dividido entre dois amores; mesmo casada (se assim pode ser dita na mente do autor), ela vive como se não estivesse. É verdade que o autor nunca nos descobre os sentimentos íntimos que essa perfeita rendição a Deus provocou na alma de Maria. Mas esses sentimentos não são suficientemente sugeridos para um leitor da aldeia? As formas podem ser imperfeitas, mas a idéia fundamental é bem sucedida. É a mesma coisa que aconteceu com o autor quando ele lidou com a virgindade corporal de Maria: o caráter popular de sua obra o levou (como outros antes dele) a não imitar a delicada sobriedade evangélica; mas sua intuição era exata.” [14].
De fato, tendo sido o Protoevangelho provavelmente escrito no Egito, não é de se admirar que já no século III encontremos os Padres Alexandrinos chamando-a de “Παναγία” (Panagía), que quer dizer “Toda-Santa” [18], um termo igualmente aplicado pela Divina Liturgia de São Tiago para designar a santidade absoluta do Espírito Santo (“πανάγιον Πνεῦμα”, isto é, o “Espírito Todo-Santo“). Encontramos possivelmente também resquícios dessa antiga tradição na oração Sub Tuum Praesidium, escrita por volta do ano 250 d.C., que invoca a Santíssima Virgem designando-a sob os títulos de “μονη αγνη, μονη ευλογημενη” (“única pura, única bendita”), o que pode ser uma referência à doutrina da singular e absoluta santidade atribuída pelos alexandrinos à Mãe de Deus, uma vez que, nos primeiros séculos, os conceitos de santidade e pureza muitas vezes estavam associados entre si (cf. 2 Cor 11,2).
No Ocidente, Santo Irineu de Lião, ao comentar como o próprio Deus encarnou-se no seio da Virgem, escreveu: “Ele que é Puro (purus) sai puramente do seio puro, que regenera os homens em Deus e que Ele mesmo fez puro (quam Ipse puram fecit)” [19]. Ora, segundo o Pe. Jugie, aqui o bispo de Lião parece claramente assemelhar a pureza de Maria à de Cristo [20]. Sua carne foi “feita pura” (puram fecit) pelo próprio Deus, para que Ele que é também é Puro pudesse sair dela. A partir deste verbo (fecit), muitos autores concluíram que Santo Irineu cria que Nossa Senhora já havia sido feita ou formada “pura”, uma interpretação certamente possível [21]. Não obstante, o Pe. De Aldama considera-a precipitada, uma vez que ao verbo fecit também podem ser dadas outras interpretações [22]. Seja como for, à semelhança que o bispo faz entre as duas purezas não é discutível. Ao associar a pureza de Cristo à da Virgem, Santo Irineu ressalta que diferentemente dos protestantes atuais que vêem Maria como uma mulher qualquer, o discípulo de São Policarpo (por sua vez discípulo do próprio Apóstolo São João), via a mãe de Jesus como detentora de uma pureza extraordinária e até mesmo absoluta (já que a compara com a do próprio Cristo). Considerando este texto em conjunto com os demais textos de Santo Irineu sobre a Nova Eva, o Pe. De Aldama chega a seguinte conclusão: “Santo Irineu coloca Cristo e Maria em um lugar privilegiado quando se trata de reparar a ruína causada por nossos primeiros pais. De Cristo e Maria, da obediência de um e de outro (já vimos isso antes), a salvação se origina. Cristo é o princípio da vida para toda a humanidade que o segue; mas é antes de tudo, unindo a humanidade no ventre puro e pela ação materna, livre e santa de Maria. Tudo isso indica uma pureza absoluta na alma e no corpo da Mãe, semelhante à pureza do Filho Redentor: purus puram. Uma pureza cujas perspectivas certamente se abrem na linha da incorruptibilidade divina, antítese da corrupção do pecado. (…) A pintura de Santo Irineu da alma de Maria no momento da mensagem angélica certamente exige uma santidade moral que não é improvisada. Sua perfeita adesão à vontade divina e sua intervenção, pela obediência prestada, nos planos redentores de Deus, nos orientam para uma absoluta pureza prévia, que normalmente deve ser assumida como mantida e aumentada no resto da vida.” (Pe. José Antonio de Aldama, María en la patrística de los siglos I y II, pp. 318-320)
Alguns anos mais tarde, o discípulo de Santo Irineu, Santo Hipólito de Roma, em sua Demonstratio de Christo et Antichristo, afirmará que Jesus tomou para si uma “carne santa através da santa Virgem” [24], associando claramente a santidade de Cristo com a santidade de Maria, a quem mais de uma vez chama ἅγιος (hagios) [25]. A Virgem é, portanto, apresentada como sendo detentora de uma santidade singular, digna de formar uma carne de santidade igualmente singular, isto é, a carne imaculada do Verbo Divino [26].
Há, no entanto, nesse período, três autores que negarão explicitamente a doutrina da absoluta pureza da Virgem.
O primeiro deles é Tertuliano de Cartago, que foi católico por um tempo, antes de abandonar a unidade da Igreja para aderir à heresia montanista, e, posteriormente, fundar sua própria seita, os tertulianistas. Ao comentar a passagem de Mateus 12,46-50, Tertuliano afirma que “há uma falta de evidência da adesão de sua mãe a Ele (Cristo), embora Marta e as outras Marias estivessem constantes na sua presença” [27], o que o leva a concluir que “nessa passagem, sua incredulidade é evidente.”[28]. Para compreender tal leitura, deve-se ter em mente que Tertuliano favorecia ao máximo as interpretações literais das Sagradas Escrituras [29]. Isso facilitou que ele – assim como os seguidores da escola de Antioquia, tais quais São João Crisóstomo – lessem também literalmente as passagens em que Cristo aparentemente “despreza” sua mãe (Mt 12,46-50; Jo 2,4; etc) como uma repreensão de seus supostos “pecados”. Ademais, sabe-se que o pensamento mariológico de Tertuliano é um tanto excêntrico, uma vez que o autor tende a ignorar todas as tradições marianas de então para favorecer suas interpretações pessoais das Sagradas Escrituras. Ele é, por exemplo, o único Padre da Igreja (utilizando-se o termo “Padre” em sentido lato) que se tem registro de ter negado a doutrina da virgindade de Maria após o parto [30], motivo pelo qual o Pe. Donnelly escreveu: “Nada há, por outro lado, que nos autorize a crer que as opiniões de Tertuliano representem os sentimentos da Igreja africana de seus dias; é perfeitamente possível e talvez provável que o temperamento fogoso de Tertuliano lhe fizesse aferrar-se a certas atitudes singulares neste como em outros pontos. É igualmente possível, até onde podemos julgar por escritos contemporâneos a nosso alcance, que expusesse ele livremente suas crenças sem que nem remotamente temesse causar escândalo”[31].
O segundo deles é Orígenes de Alexandria, autor cuja influência marcará profundamente o pensamento mariológico posterior sobre o tema no Oriente. Se por um lado, seus escritos ainda ressoam um pouco da tradição da absoluta pureza de Maria presente no Protoevangelho de Tiago (já que em alguns de seus escritos a chama, por exemplo, de “Toda-Santa”, “Παναγία”[32]), por outro, inventa uma interpretação absurda para convencer seus leitores que a Virgem também duvidou no Calvário. Ele escreve: “Assim, todos ficaram tão escandalizados que Pedro também, o líder dos apóstolos, o negou três vezes. Porque nós pensamos que a mãe do Senhor foi imune do escândalo quando os apóstolos estavam escandalizados? Se ela não sofresse o escândalo da Paixão do Senhor, então Jesus não morreu por seus pecados. Mas, se “todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus, e são justificados gratuitamente por sua graça” (Romanos 3:23-24), então Maria também estava escandalizada naquele momento. Isso é o que Simeão profetizou… ‘Sua alma será transpassada pela espada da incredulidade e será ferida pelo ponto da espada da dúvida'” [33]. Essa interpretação completamente nova, levará vários autores orientais a negar o privilégio mariano e atribuir à Virgem a dúvida no Calvário.
Por fim, temos o autor do Liber Requiei Mariae (“Livro do Repouso de Maria”), que, segundo Shoemaker, é uma obra “composta provavelmente no terceiro século, se não, talvez, até mesmo antes disso” [34], com o intuito de narrar a dormição e posterior assunção da mãe de Jesus aos Céus. Nesta obra, Maria revela um segredo: ela temeria a morte pois teria supostamente cometido um pecado em sua vida, que narrará logo após revelá-lo aos presentes [35]. Diferentemente do Protoevangelho de Tiago, no entanto, o Liber Requiei Mariae é uma obra contaminada pelo gnosticismo [36], motivo pelo qual adiciona “segredos” e “mistérios” esotéricos às tradições que narra [37]. O “segredo” que Maria revela aos presentes, pode muito bem estar incluído entre essas partes, uma vez que o texto inteiro parece indicar uma crença na absoluta pureza da Virgem, a quem o autor tenta contrastar com o suposto “segredo” que ele e os demais gnósticos têm conhecimento de que ela teria um único pecado. Na versão georgiana, por exemplo, isso se torna explícito já que antes da “revelação” absurda que o autor atribui à Virgem, o povo confessa explicitamente que ela não tem pecado [38]. Na etíope, o contexto parece igualmente sugerir, uma vez que “as mulheres” distinguem Maria dos “pecadores” como elas [39].
De maneira geral, as abordagens pré-nicênicas que chegaram até nós a respeito da santidade de Maria tratam o tema apenas de maneira incidental. O Protoevangelho de Tiago mostra-nos, no entanto, que já havia uma mariologia bem desenvolvida a respeito do tema em meados do século II, nos levando a concluir que o que conhecemos hoje sobre a mariologia deste período ainda é extremamente superficial. E este problema não parece ser somente na área de mariologia. José M. Pedrozo, por exemplo, lembra que também outras áreas como os escritos de pneumatologia que chegaram até nós do período anterior à Nicéia são muito escassos em comparação com o que se têm a partir do século IV [40]. Desse silêncio relativo, Pedrozo afirma que não se pode concluir, no entanto, uma suposta inexistência de sólidas bases para tais doutrinas, mas tão somente que tais temáticas eram secundárias diante das demais necessidades apologéticas que motivavam os escritos do autores de então [41]. O mesmo pode ser aplicado à doutrina da impecabilidade da Virgem no período em questão, dado os conhecimentos obtidos pelo Protoevangelho de Tiago.
A partir do século IV, encontramos, principalmente no Ocidente, afirmações explícitas acerca da impecabilidade e santidade absoluta de Maria. Vale ressaltar, no entanto, que tais comentários são igualmente incidentais, não tendo nenhum – com a única exceção, talvez, de Santo Agostinho – se confrontado diretamente com o problema da Imaculada Conceição (isto é, como conciliar a doutrina da plena santidade de Maria com a do pecado original e necessidade de salvação universal). Nesta região, já há, de fato, certo consenso dos Padres sobre o tema, como se perceberá na polêmica entre Santo Agostinho e os pelagianos.
O Oriente, por outro lado, não parecerá ter qualquer tipo de consenso sobre o assunto. Divididos entre duas escolas teológicas e altamente influenciados pelos escritos de Orígenes, alguns Padres orientais ressoarão a doutrina da absoluta pureza da Virgem afirmando que ela fora previamente santificada por Deus em ordem de conceber a seu Filho Divino. Outros, afirmarão que ela foi santificada na Anunciação. Outros ainda, seguirão Orígenes e interpretações literalistas da Bíblia, atribuindo-lhe falhas e pecados.
Desde já vale ressaltar que tanto no século IV como no V, houve padres, bispos e até mesmo santos que negaram a doutrina da absoluta pureza e santidade de Maria. Isso ocorreu porque esta doutrina ainda não havia sido definida pela Igreja. Suas particularidades ainda não estavam completamente esclarecidas a ponto de fazer incorrer em anátema aqueles que a negassem. Os Santos Padres abordam o problema de maneira ínfima e breve pois têm problemas muito maiores para resolver, tais quais a rápida difusão do arianismo, do pelagianismo ou do nestorianismo. Tudo isso adiará a resolução final da controvérsia acerca do privilégio mariano para a época da Escolástica, já no segundo milênio, mesmo com as posições dos Santos Padres sendo absurdamente discrepantes sobre o tema (vide, por exemplo, as posições de Santo Ambrósio e São João Crisóstomo).
a) No Ocidente cristão.
O bispo mais famoso do Ocidente no século IV, Santo Ambrósio de Milão, demonstra que recebeu de seus antecessores a doutrina da absoluta pureza e santidade de Maria: “Procure o seu servo, porque não esqueci seus mandamentos. Vem, então, e procure sua ovelha, não através de seus funcionários ou homens contratados, mas faze-o sozinho. Dai-me a vida corporal e na carne, que está caída em Adão. Levante-me não de Sara, mas de Maria, uma Virgem não só imaculada, mas uma Virgem que a graça fez inviolada, livre de toda mancha de pecado.” [42].
Perceba que nesta passagem, Santo Ambrósio afirma que Maria era imune de todo tipo de pecado: ab omni integra labe peccati. Sua impecabilidade contrasta com aqueles “cuja carne está caída em Adão”, motivo pelo qual ela, diferentemente de Sara, pode ser usada por Deus para levantar o homem caído. É certamente uma prova de que a crença na santidade absoluta de Maria sempre existiu, como demonstra o Pe. Gabrielle Roschini em seus escritos [43].
A forma de como conciliar as doutrinas do pecado original, necessidade de salvação universal, e, santidade absoluta de Maria (ou seja, o problema da Imaculada Conceição propriamente dito), terá início apenas, nos confrontos de seu discípulo, Santo Agostinho, para com Pelágio e seus seguidores.
Em seu De libero arbitrio, Pelágio propagava o erro de que o homem, sem a ajuda da graça e pela sua própria força, poderia viver sem pecado, como teria acontecido supostamente com os justos do Antigo Testamento segundo sua interpretação particular das Sagradas Escrituras e como também teria acontecido com a Virgem, pois, afirma Pelágio: “já que a piedade exige que ela seja crida como sem pecado” [44]. Santo Agostinho então lhe responde através de seu tratado De natura et gratia, onde argumenta que todos os santos pecaram mas que, no entanto, acrescenta: “Devemos excluir a Santa Virgem Maria, a respeito da qual eu não gostaria de levantar qualquer questão quando o assunto é pecados, em honra ao Senhor, porque Dele sabemos qual abundância de graça para vencer o pecado em cada detalhe foi conferido a ela que teve o mérito de conceber e suportar aquele que, sem dúvida, não tinha pecado. – com a exceção, então, desta Virgem, poderíamos reunir em suas vidas todos os santos, homens e mulheres, e perguntar-lhes se estavam livres do pecado, o que, em nossa opinião qual teria sido as suas respostas? … Não importa o quão notável sua santidade neste corpo… eles teriam clamado a uma só voz: “Se dissermos que não temos pecado, enganamos a nós mesmos, e a verdade não está em nós” [1 João 1, 8].” [45].
Alguns anos mais tarde, Juliano de Eclanum, discípulo de Pelágio, tentará sensibilizar a opinião pública contra Santo Agostinho comparando-o ao herege Joviniano: “Como é certo que Joviniano era um inimigo de Ambrósio, é certo que, em comparação a você, ele merece ser sido absolvido… Ele afirma que Maria perdeu a virgindade no parto, mas você a torna escrava do diabo por causa da condição de seu nascimento” [46]. O argumento do herege era certamente forte, pois demonstra que o povo de sua região considerava escandaloso entregar Maria ao demônio de qualquer forma, mas errôneo por concluir a partir disso não que a Imaculada Conceição fosse um privilégio da Mãe de Deus, mas sim que todos os seres-humanos nasciam sob esta condição. A isto, Santo Agostinho responderá: “Preciosa, realmente magnífica, sua tentativa de querer fazer-me passar por pior que Joviniano. Bem, estou certo em me alegrar ao ver que, para me insultar, você me coloca na companhia de Ambrósio. Só sinto pena de você, vendo-o cair em tanta loucura… A verdade é que não digo que o mal é necessário, nem Ambrósio o diz… Não digo que os homens não são libertados pela graça, tampouco Ambrósio o diz; dizemos, pelo contrário, o que vocês não gostam, ou seja, que você não é libertado de outro modo que pela graça, não apenas para que suas dívidas sejam pagas, mas também para que não caiam em tentação. Não submetemos Maria ao diabo pela condição de seu nascimento, mas para Deus, porque essa condição de nascimento é invalidada pela graça do renascimento” [47].
A frase de Santo Agostinho é ambígua. Ao mesmo tempo em que ele não quer entregar Maria ao diabo por razão de seu nascimento, para não negar a Tradição que lhe foi transmitida, ele pelo menos parece entregá-la. Isso fez com que os teólogos se dividissem a respeito do tema. Roschini, Portalié, Jugie, Schwaine, Mueller, Boyer, etc., e também o protestante Schaft, etc. consideram que Santo Agostinho afirmou a Imaculada Conceição de Maria Santíssima, enquanto que Friedrich, Tixeront, Capelle, Cecchin (e, acrescento, aparentemente a maioria da crítica moderna) o negam [48]. Sua teologia também atribui a Maria uma carne de pecado por ter sido concebida de modo ordinário. Tal pensamento influenciará seus seguidores como São Fulgêncio de Ruspe [49]. Por outro lado, a influência de Ambrósio e Agostinho também levará outros autores, como São Máximo de Turim, a afirmar que Maria foi digna morada de Cristo por conta de sua “graça original” [50].
Seja como for, percebemos que por mais que a teologia da época não estivesse bem desenvolvida a respeito do tema (uma vez que não consegue conciliar satisfatoriamente ambas as doutrinas), era consenso mesmo entre os hereges que deveria-se atribuir à Maria a máxima santidade que lhe fosse possível, pois a piedade o exigia (como afirmava Pelágio). Era escandalosa a proposição de que a Santíssima Virgem esteve em algum momento de sua vida sujeita ao domínio do demônio e à escravidão do pecado. Tudo isso ressoa a antiga tradição herdada por eles pelos apóstolos de que a Santíssima Virgem era detentora de uma pureza e santidade extraordinária e absoluta, embora a natureza de tal santidade ainda não fosse plenamente compreendida a luz da doutrina do pecado original.
Nos limitaremos aqui à estes dois autores (S. Ambrósio e S. Agostinho), considerando a influência que gozavam no Ocidente de então. Houve, no entanto, como falamos acima, outros autores que, mesmo no Ocidente, atribuíram falhas e defeitos à Maria, uma vez que a doutrina da absoluta santidade da Virgem ainda não havia sido plenamente esclarecida e muito menos definida pela Igreja a ponto de incorrer em anátema ou excomunhão aqueles que a negassem. Vale por fim ressaltar que muitos autores afirmaram genericamente que “somente Deus é sem pecado”, sem se aprofundar na questão da santidade de Maria [51]. Nesse sentido, Santo Ambrósio, por exemplo, que acima vimos afirmar que Nossa Senhora é “uma Virgem que a graça fez inviolada, livre de toda mancha de pecado”, também afirma que “o eterno Deus somente é livre do pecado e sem mácula” [52].
b) No Oriente cristão.
Entre os séculos IV e V, o Oriente cristão estará profundamente dividido acerca da doutrina da absoluta pureza e santidade de Maria. Alguns padres afirmarão que a Virgem já havia sido previamente santificada para conceber ao Filho de Deus. Outros, afirmarão que ela foi santificada no momento da Encarnação com o intuito de ser digna de tamanha missão. Há, no entanto, um número significativo de autores que atribuirão pecados à Virgem, motivados principalmente à erros oriundos das duas principais escolas catequéticas presentes no Oriente de então: as escolas de Antioquia e Alexandria. A primeira, favorecedora de interpretações literais das Sagradas Escrituras, cometerá o mesmo erro de Tertuliano, lendo as passagens em que Jesus aparentemente “despreza” sua mãe (Mt 12,46-50; Jo 2,4; etc) como uma repreensão a seus supostos “pecados”. Os membros dessa escola produzirão as críticas mais severas à Nossa Senhora, como podemos observar nos escritos de São João Crisóstomo [53]. A segunda, por sua vez, favorecedora de interpretações alegóricas e altamente influenciada pelos escritos de Orígenes, imitará também o erro de seu mestre, interpretando a espada de Simeão como uma “espada da dúvida”. Comparada com a escola de Antioquia, sua crítica é certamente mais suave, como se observa nos escritos de São Basílio [54] e até mesmo São Cirilo de Alexandria [55].
A doutrina da absoluta pureza e santidade de Nossa Senhora, no entanto, é visível nos escritos de dois Padres Capadócios: São Gregório Nazianzeno e São Gregório de Nissa, ambos influenciados pela antiga tradição alexandrina da qual o Protoevangelho de Tiago nos é testemunha. São Gregório Nazianzeno, por exemplo, afirmará que a Virgem “foi previamente purificada (prokathartheises) pelo Espírito Santo em corpo e alma” [56] e “previamente santificada (hegnise prosthen)” [57] para poder ser digna de receber Deus em seu seio. Ora, o termo “santificar” não implica na teologia oriental (especialmente na dos Padres Capadócios) necessariamente a remoção de uma falha moral, mas pode designar simplesmente o “ato divino que eleva Maria ao nível de santidade próprio para a concepção divina” [58]. São Gregório de Nissa, por exemplo, afirma que a carne de Cristo foi “santificada” com a presença do Verbo de Deus nela [59]. Não é claro, no entanto, qual dos significados possíveis São Gregório Nazianzeno quis expressar [60]. De toda forma, São Gregório de Nazianzeno nega explicitamente a opinião dos Padres que consideram que Maria fora santificada apenas na Anunciação. Para ele, ela já havia sido santificada antes, num momento em que ele não define.
Sobre a santidade de Maria, seu contemporâneo e amigo, São Gregório de Nissa, é ainda mais claro. Em seu Sermo de Annuntiatione [61], Gregório afirma que Maria é uma “oficina puríssima” (έργαστήριον καθαρτατον)[62], e escreve sobre ela: “Maria, não temas, porque você achou graça diante de Deus (Lc 1,30). Você foi adornada sobre toda criatura, você foi embelezada acima de todos os céus, você foi exaltada acima de todos os anjos… Você tem, no seu ventre, o Senhor, Criador de tudo, que, de sua carne santa e imaculada (άγίας σου καί άχράντος σαρκός), edifica sem esforço o templo de sua carne santa.” [63]. Em outro lugar ele escreve ainda: “A plenitude da divindade que residia em Cristo brilhou através de Maria, a imaculada” [64]. Por mais que o termo “imaculada” seja ambiguo, já que pode descrever tanto a santidade imaculada de Maria quanto sua virgindade perfeitíssima, ao apresentar Nossa Senhora como superior aos anjos em dignidade, utilizar o termo άγίας (que é mais específico para descrever santidade que ἁγνὴν) e colocar em paralelo a santidade de sua carne com a santidade da carne do próprio Cristo, não parece absurdo enxergar aí também uma afirmação de sua absoluta santidade, assim como outrora o Protoevangelho de Tiago afirmara no Oriente.
De fato, os escritos de Santo Epifânio e Santo André de Creta nos indicam que ainda haverá inclusive alguns grupos orientais que conservarão, entre os séculos IV e VIII, a antiga tradição criada pelo Pseudo-Tiago de que Maria teria sido concebida virginalmente [65], o que pressupõe igualmente a manutenção na crença de sua absoluta pureza e perfeição moral.
Na Palestina, Santo Epifânio, por sua vez, chamará Maria repetidas vezes de “Hagia Maria” (Santa Maria), além de descrevê-la como “toda cheia de graça” [66], “toda bela” [67], “santa e digna de honra” [68] e “vaso sagrado” [69]. Ele escreve: “Ela foi considerada digna de receber em seu ventre o absoluto monarca e Deus do Céu, o Filho de Deus; seu ventre foi preparado, no amor de Deus pelo homem e por um mistério surpreendente, como um templo e morada para Encarnação do Senhor.” [70].
Na Síria, Santo Efrém, por outro lado, parece receber e aceitar sem dificuldade todas as tradições orientais contraditórias acerca da santidade de Maria, motivo pelo qual, ora ele a isenta de todo pecado [71] e ora também a atribui alguns pecados tais quais a “espada da dúvida” de Orígenes [72].
Uma homilia copta de autenticidade disputada atribuída a Santo Atanásio (e que data por volta do século IV [73]) compara Maria à arca da aliança e descreve sua pureza e dignidade a níveis tão altos que ressoam à doutrina da absoluta pureza encontrada no Protoevangelho de Tiago: “Ó nobre Virgem, verdadeiramente você é maior que qualquer outra grandeza. Pois quem é igual a vós em grandeza, ó morada de Deus, o Verbo? Com quem, entre todas as criaturas, devo comparar-vos, ó Virgem? Você é maior do que todos eles, ó Arca da Aliança, vestida de pureza em vez de ouro! Você é a arca na qual se encontra o vaso de ouro que contém o maná verdadeiro, isto é, a carne na qual a divindade reside… Se eu digo que o céu é exaltado, ainda não é igual a você, pois está escrito: “O céu é meu trono” (Is 66,1), enquanto você é o lugar de repouso de Deus. Se eu disser que os anjos e os arcanjos são grandes, você é maior do que todos, pois os anjos e os arcanjos servem com tremor Aquele que habita em seu ventre, e eles não ousam falar em sua presença, enquanto você fala com ele livremente.” [74]. Se por “pureza” ele inclui aqui também “santidade”, o texto é mais uma prova da doutrina da absoluta pureza e santidade da Mãe de Deus.
Com a proclamação do primeiro dogma mariano no Concílio de Éfeso, o Oriente tenderá a unificar-se cada vez mais em prol da doutrina da impecabilidade e plena santidade da Virgem [75]. Na Síria, por exemplo, Tiago de Serugh afirma: “Se tivesse uma mancha ou defeito em sua alma, Deus teria escolhido outra alma imaculada” [76] e também: “Ela era cheia de beleza tanto por sua natureza quanto por vontade própria, uma vez que nunca foi contaminada por pensamentos ignóbeis, seguiu seu caminho sem falhas, sem pecados” [77]. Mesmo confessando que a beleza de Maria se estendia não apenas a sua vontade, como também à sua “natureza”, há certas passagens contraditórias onde ele fala que a carne de Maria foi purificada da antiga condenação de Eva, para fazê-la “como Eva antes da queda” [78]. Ainda que se considere que na passagem em questão Tiago esteja se referindo não à pecados em si, mas à concupiscência supostamente herdada por Maria de Eva, tal frase de toda forma mostra que mesmo com o estabelecimento da doutrina da impecabilidade da Virgem em praticamente todo o mundo cristão, faltava ainda uma conciliação mais plena das verdades transmitidas à Igreja acerca do pecado original (ainda não tão bem esclarecido no Oriente da época, menos influenciado por Santo Agostinho) para com a noção da plena santidade de Maria, algo que só viria a ocorrer de fato com os debates escolásticos entre maculistas e imaculistas.
Conclusão
Do estudo dos Padres da Igreja podemos claramente concluir que sempre existiu entre os cristãos a crença de que Maria era completamente santa. Não se sabia, no entanto, como conciliar essa doutrina com a doutrina também recebida acerca do pecado original, motivo pelo qual varias explicações foram dadas, tendo alguns inclusive apelado para uma concepção virginal de Maria (!). É daí que surge o princípio propagado posteriormente no Medievo por Santo Anselmo de que se deve atribuir à Virgem a máxima santidade que for possível de se imaginar a um ser-humano. Este princípio será a razão de conveniência, o “decuit”, do dogma da Imaculada Conceição. Se os teólogos conseguissem provar por meio de seus raciocínios que a preservação de Maria do pecado original era possível de ser conciliada com o restante da Teologia Católica acerca da universalidade da redenção do gênero humano por Cristo, este princípio os obrigaria a professar o singular privilégio mariano (Potuit, decuit, ergo fecit). E como o Magistério infalível de Pio IX afirmou que a possibilidade da Imaculada Conceição já havia sido suficientemente provada como possível pelos teólogos de então, a única conclusão que poderiam tomar era acatar o princípio que receberam dos primeiros séculos: sua preservação de todo tipo de pecado, incluindo o pecado original.
(Texto publicado originalmente no site SalveRoma, em 19 de Dezembro de 2019)
Referências
[1] Pe. Ignace de La Potterie, Κεχαριτωμένη en Lc 1,28 Étude exégétique et théologique, in Biblica 68, nº4 (1987) pp. 480-508
[2] cf. H. W. Smyth, Greek Grammar (Harvard Univ Press, 1968), p. 108-109, sec. 1852:b; Blass & DeBrunner, Greek Grammar of the New Testament, p. 175.
[3] “Deve-se notar... que os verbos denominativos gregos em –όω têm todos um sentido de plenitude: αίματόω, ensanguentar; θαυμάστόω encher-se de estupor; σποδόω, cobrir com cinzas. κεχαριτωμένη, com o passivo perfeito, é, portanto, aquela que recebeu de forma estável a abundância da graça” (Médebielle, Annonciation, dans DBS, I, col. 262-297, ef. col. 283).
[4] “Χάρɩς quer dizer “graça”, “beleza”, que deve entender/-se com base no contexto, em sentido moral e não, como o faz Erasmo, em sentido físico (cf. Ef 1, 6). Χαρɩτόω é o verbo ativo correspondente, que inclui, como os verbos em όω, o conceito de abundância: “dar graça abundante”, assim, por exemplo, do mítico Argos se diz que é ὡμματωμένος, ou seja, “cheio de olhos”. Na forma passiva, tem-se o significado de “receber” ou “ser revestido”; e, no particípio perfeito, “de modo estável” (cf. Simon-Dorado, Praelectiones Biblicae – Novum Testamentum I, Marietti, 1947, N. T., I, p. 283; Vosté, De Conc. virg. I. C., Romae, 1933, p. 9).
[5] cf. a própria Vulgata de São Jerônimo e os escritos de S. AMBRÓSIO, Expositio Evangelii secundum Lucam, II, 9 (CSEL 32, 45-46; PL 15, 1636 B); S. JERÓNIMO, Epist. 65, ad Principiam virginem sive explanatio psalmi 44, 9 (PL 22, 628); QUODVULTDEUS, Sermo I de Symbolo, V, 11, PL 40, 643; PEDRO CRISÓLOGO, De Annunt. PL 52, 576 B; etc.
[6] Cf. L. Moraldi, ed., Apocrifi del Nuovo Testamento (Turin, 1994), 1:37-81. E também Schmaus: “Há que se distinguir, na literatura apócrifa, entre um grupo que permanece dentro da doutrina da Igreja e um outro grupo, herético. O grupo eclesiástico propôs como tarefa defender as verdades da fé atacadas pelos hereges. Os autores utilizam, para isto, o método da perífrase e a beleza poética dos textos da Escritura. O limite entre os apócrifos heréticos e os ortodoxos nem sempre é fácil de se traçar; porém, enquanto os apócrifos heréticos nasceram do espírito gnóstico-maniqueísta e combatem, por isso, a verdadeira encarnação de Deus, os apócrifos ortodoxos servem à crença na realidade da natureza humana de Jesus Cristo. Os escritos apócrifos mariológicos se ocupam detalhadamente do nascimento e infância, assim como da morte e assunção de Maria. Os principais testemunhos deste gênero de literatura são o Protoevangelho de Tiago (originariamente chamava-se: História de São Tiago sobre o Nascimento de Maria), o Evangelho do Pseudo-Mateus, o Evangelho de Tomé, o Evangelho de Pedro, o Evangelho Árabe da Infância, a Ode Décima de Salomão, a Assunção de Isaías e o ‘Transitus Mariae’, divulgado em várias edições. Particular influência exerceu sobre a piedade mariana e sobre a arte da Idade Média, o Protoevangelho de Tiago, narrativa do século II sobre a infância e o nascimento virginal de Cristo. Apareceu na forma latina em princípios do século IV no Ocidente e gozou de grande estima. A obra pertence à literatura eclesiástica e ortodoxa” (Michael Schmaus, “Teologia Dogmática”, Tomo VIII: A Virgem Maria, Edições Rialp S.A., Madri, 1963, p.76).
[7] cf. Ignazio M. Calabuig, O.S.M., The Liturgical Cult of Mary in the East and West, in The Pontifical Liturgical Institute, ‘Handbook for Liturgical Studies (Vol. V): Liturgical Time and Space’, (The Liturgical Press, Collegeville Minnesota, 2000), p. 233. Sobre a influência que o Protoevangelho de Tiago tinha nos primeiros séculos de cristianismo, ler Stephen Shoemaker, Mary in Early Christian Faith and Devotion, p. 50-51.
[8] cf. José C. R. García Paredes, “Mariologia”, BAC, Madri, 1995, p.170.
[9] cf. José C. R. García Paredes, op. cit., p.170.
[10] Cf. Pe. José Antonio de Aldama, María en la patrística de los siglos I y II, p. 348-352. Stephen Shoemaker, Mary in Early Christian Faith and Devotion, p. 55-56. Tal tradição ficará viva até os tempos de Santo Epifânio de Salamina (cf. Panarion 77) e Santo André de Creta (Canon in B. Annae conceptionem: PG 97, 1313).
[11] cf. Santo Hipólito de Roma, In Ps. XII (GCS 1², 146-47), São Leão Magno, Sermão XXV, 5, PL 54:211. E também em Raymond Brown, The Virginal Conception and Bodily Resurrection of Jesus, p. 41, nota 53. Ao atribuir tal característica a Maria, o autor claramente sugere sua impecabilidade, cf. Amann, Le Protéangile de Jacques et ses alterations latins (Paris 1910) p. 17; Jugie, L’Immaculée Conception dans l ‘ Ecriture Sainte et dans la Tradition orientale p . 27.
[12] Cf. Pe. José Antonio de Aldama, María en la patrística de los siglos I y II, p. 355.
[13] Cf. Stephen Shoemaker, Mary in Early Christian Faith and Devotion, p. 55.
[14] Cf. Pe. José Antonio de Aldama, María en la patrística de los siglos I y II, p. 347-348.
[15] Cf. Santo Agostinho de Hipona, Dei Civ. Dei. IV, 23, 4 ; PL. 41, 478.
[16] Cf. São Jerônimo de Estridão, Ad Laetam de institutione filiae, Ep. 107, 12; CSEL., 55, 303.
[17] Pe. Gabrielle Roschini, O.S.M., La madre de Dios según la Fe y la Teologia (Tomo I), p. 73.
[18] cf. Orígenes de Alexandria, In Luc. 6, in PG 17, 329.
[19] cf. Santo Irineu de Lião, Contra as Heresias, IV, 33, 11.
[20] “Outra coisa são as passagens nas quais [Santo Irineu] parece assemelhar Maria a Jesus na linha de pureza. Esses textos realmente suscitam a idéia do dogma e suspeitam de uma crença explícita naqueles que os escreveram. Eis, por exemplo, o que Santo Irineu diz: “Aquele que é puro sai puramente do seio puro, que ele próprio fez puro”. Essas palavras sugerem claramente que, na linha da pureza, a Mãe se assemelha ao seu Filho.” (Jugie, L’Immaculée Conception dans l’Ecriture Sainte et dans la Tradition orientale p 65).
[21] Cf. Hayd, Bibliothek der Kirchenvater, Irenaeus 2, 195; Rivera, a.c., 91; Moholy, a.c., 1773, todos citados na nota 35 da obra do Pe. José Antonio de Aldama, María en la patrística de los siglos I y II, pp. 328-329.
[22] Pe. José Antonio de Aldama, María en la patrística de los siglos I y II, p. 329.
[23] Pe. José Antonio de Aldama, María en la patrística de los siglos I y II, p. 321-324.
[24] Santo Hipólito de Roma, De Christo et Antichristo, 4; PG 10, 732. Que ele se refere à car/ne santa de Cristo é claro tanto no parágrafo 4 quanto no parágrafo 6.
[25] cf. Santo Hipólito de Roma, Contra Noeto, Cap. 17; PG 10:825.
[26] Nos limitaremos a essas passagens sobre Santo Hipólito pois a famosa passagem em que o discípulo de Santo Irineu afirma que a Virgem e o Espírito Santo são uma “madeira incorruptível”[25] é ambígua, uma vez que pode descrever tanto a santidade absoluta deles quanto a concepção virginal de Cristo (cf. Santo Hipólito de Roma, In Ps. XII (GCS 1², 146-47).
[27] Tertuliano de Cartago, De carne Christi, 7, 13; CCL 2,889
[28] Tertuliano de Cartago, De carne Christi, 7, 13; CCL 2,889
[29] Dunn, Tertullian’s Scriptural Exegesis, p. 155. Todd D. Still & David Wilhite, Tertullian and Paul, p. 196.
[30] “Virum passum”, cf. Tertuliano, De virginibus velandis, 6,6.
[31] cf. Pe. Donnely, em Juniper, Mariology, p. 657.
[32] cf. Orígenes de Alexandria, In Luc. 6, in PG 17, 329.
[33] cf. Orígenes de Alexandria, Homilia 17 sobre Lucas, 6-7; PG 13, 1845.
[34] Stephen Shoemaker, ‘Death and the Maiden: The Early History of the Dormition and Assumption Apocrypha’, p. 65.
[35] Stephen Shoemaker, Ancient Traditions of the Virgin Mary’s Dormition and Assumption, p. 314.
[36] Stephen Shoemaker, ‘Death and the Maiden: The Early History of the Dormition and Assumption Apocrypha’, p. 65.
[37] Stephen Shoemaker, ‘Death and the Maiden: The Early History of the Dormition and Assumption Apocrypha’, p. 100-129.
[38] Stephen Shoemaker, Ancient Traditions of the Virgin Mary’s Dormition and Assumption, p. 314.
[39] Stephen Shoemaker, Ancient Traditions of the Virgin Mary’s Dormition and Assumption, p. 314.
[40] José M. Pedrozo, The Brothers of Jesus and His mother’s virginity, in The Thomist 63 (1999), p. 91-92.
[41] José M. Pedrozo, The Brothers of Jesus and His mother’s virginity, in The Thomist 63 (1999), p. 91-92.
[42] Santo Ambrósio de Milão, Exposição ao Salmo 118, nº 30; PL 15:1521.
[43] Pe. Gabrielle Roschini, O.S.M., La madre de Dios según la Fe y la Teologia (Tomo II), pp. 24-25.
[44] “Quam sine peccato confiten necease est pietali.”, cf. Pelágio, De libero arbitrio, citado por Agostinho em De natura et gratia 36, 42: PL 44, 267.
[45] “Excepta sancta Virgine María, de qua, propter honorem Domini nullam prorsus cum de peccato agitur haberi volo questionem: unde enim scimtis quod ei plus gratiae collatum fuerit ad vinccndum omni ex parte peccatum, quae concipere ac parere meruit quem constat nullum habuisse peccatum.”. cf. Santo Agostinho de Hipona, De natura et gratia 36, 42: PL 44, 267.
[46] “Verum, ut illi Ambrosio infensus Joviníanus arguitur, ¡ta vobis comparatus absolvitur. Quando enim tantum prudentium censura donabit, ut te cum Joviniani mérito componat? IUe quippe dixit boni csse necessitatem, tu malí: ille ait per mysteria homines ab errore cohiberi, tu vero nec per gratiam liberari: ille virginitatem Mariae partus conditione dissolvit, tu ipsam Mariam diaholo nascendi condítione trascribís etc.” (Opits imperf. Contra Julián., 1. IV, c. 22; PL. 45, 1417).
[47] “Quam bellus tibi videris, cum me Joviniano comparans, peiorem conaris ostendere. Vením banc aunque contumeliam mendacissimam cum Ambrosio me a te accipero gaudeo; sed te sic insanire conlristor… Ecce ego non dico mali esse neccssitatem, quia nec Ambrosius… Non dico nec per gratiam homines liberari, quod absit ut dicat S. Ambrosios; sed quod non vis dicimus, nonnisi per gratiam liberari, non solum ut eis; debita dimittantur, vertim etiam ne in tentationem inferanlur. Non transcribimus diabolo Mariam conditione nascendi; sed ideo quia ipsa conditio solvitur gratia renascendi.” (Opits imperf. Contra Julián., 1. IV, c. 22; PL. 45, 1417).
[48] cf. Pe. Gabrielle Roschini, O.S.M., La madre de Dios según la Fe y la Teologia (Tomo II), pp. 34-35.
[49] Por exemplo, São Fulgêncio de Ruspe, Epist 17, cap 7, n 13;. PL 65:458. Por outro lado, ele também contrasta a pecaminosidade de Eva com a santidade perpétua de Maria (Sermão 2, De duplici Nativ Christi, No. 6, PL 65:728 C). Em um comentário sobre a saudação angélica, ele explica com precisão considerável, o significado de “cheia de graça”, tornando-se praticamente equivalente ao que hoje é entendido como sendo a imunidade do pecado original (Sermão 36, De Laudibus Mariae ex partu Salvatoris; PL 65:899 C).
[50] São Máximo de Turim, Hom V incipit dictum ante Natale Domini; PL57:235D.
[51] cf, Pe. Gabrielle Roschini, O.S.M., La madre de Dios según la Fe y la Teologia (Tomo II), pp. 35.
[52] Santo Ambrósio de Milão, Do Espírito Santo 3:18:133-4, 3:18:136.
[53] cf. São João Crisóstomo, Hom IV in Mat,, n 5;. PG 57:45; Hom XXVII in Matt, n 3;. PG 57:347; Hom XLIV in Matt, n 1,. PG 57:464-5; Hom XXI in Ioh., n 2;. PG 59:130; In sanctum martyrem Acacium.
[54] São Basílio Magno, Epistola 260, n. 9; PG 32:965-8.
[55] São Cirilo de Alexandria, Comm in Joannis Evang, lib 12; PG 74:661-4.
[56] São Gregório Nazianzeno, Oratio 38, n. 13; PG 36:325; ibid 45, n. 9; PG 36:633.
[57] Michael O’Caroll, C.S.S.p., Theotokos: A Theological Encyclopedia of the Blessed Virgin Mary, p. 300.
[58] São Gregório de Nissa, De Testamentis et adventu Christi, 45 (Patrologia Graeca 37:455–462).
[59] É nesse sentido, por exemplo, que São Gregório de Nissa afirma que o corpo de Cristo “foi santificado pela inabitação do Verbo” (Cath. Oratio 37; PG 45, 96D), o que certamente não implica dizer que Cristo tomou para si uma carne pecadora.
[60] Michael O’Caroll, C.S.S.p., Theotokos: A Theological Encyclopedia of the Blessed Virgin Mary, p. 300.
[61] Migne publicou o Sermo de Annuntiatione entre as obras espúrias de São João Crisóstomo (PG 62, 764-768). Hoje em dia no entanto, a homilia é atribuída ao Nisseno (cf. R . LAURENTIN, Court Traité de Theologie Mariale, Paris (1953), 163; ALDAMA, Repertorium pseudochrys ostmi, Paris (1965), 77-78; e MONTAGNA (Mar 24(1963), 120).
[62] São Gregório de Nissa, Sermo de Annuntiatione, (PG 62, 765-766).
[63] São Gregório de Nissa, Sermo de Annuntiatione, (PG 62, 766).
[64] São Gregório de Nissa, De virginitate, 19.
[65] cf. Santo Epifânio de Salamina (cf. Panarion 79, n 5) e Santo André de Creta (Canon in B. Annae conceptionem: PG 97, 1313).
[66] Santo Epifânio de Salamina, Panarion, LXXVIII, 25 (PG 42, 737).
[67] Santo Epifânio de Salamina, Panarion, LXXIX, 7 (PG 42, 752 B).
[68] Santo Epifânio de Salamina, Panarion, LXXIX, 7 (PG 42, 752 B).
[69] Santo Epifânio de Salamia, Panarion 78:21; PG 42:733 A.
[70] Santo Epifânio de Salamia, Panarion 79, 3.
[71] “Em absoluta verdade, você e sua mãe são sozinhos perfeitamente lindos em todos os aspectos, porque em vós, Senhor, não há mancha alguma, e em sua Mãe não há mácula. Entre meus filhos não há ninguém como estes dois magníficos.” (Santo Efrém da Síria, Carmina Nisibena, 27, 8; CSCO 219, 76); “Maria e Eva, duas mulheres inocentes, duas mulheres simples, foram colocadas na balança. Uma tornou-se a causa da nossa morte, a outra a causa de nossa vida.” (Santo Efrém da Síria, Sermones Exegetici in Gen 3,6; Opera omnia syriace et latine, Vol. 2:327); “Como os próprios corpos pecaram e morrem, e a terra, sua mãe, é maldita (cf. Gn 3, 17-19), assim por causa deste corpo que é a Igreja incorruptível, lá sua terra é abençoada desde o início. Esta terra é o corpo de Maria, templo no qual foi lançada uma semente.” (Santo Efrém da Síria, Comentário no Diatessaron 4, 15: SC 121, 102).
[72] cf. As várias citações encontradas na obra de ORTIZ DE URBINA, Ignácio, Maria en la Patristica Siriaca, página 69-70.
[73] cf. Michael O’Carroll, Theotokos: A Theological Encyclopedia of the Blessed Virgin Mary, p. 50.
[74] Santo Atanásio de Alexandria, Sermão copta no papiro de Turim, ed. L. Lefort, in Mus, 71 (1958), 216.
[75] Para uma análise das obras dos Padres Orientais do século V (São Proclo de Constantinopla, Hesíquio de Jerusalém, Crisípo de Jerusalém, Jacob de Serugh, Theotodo de Ancira, Basílio de Seleucia, Antipater de Bostra) sobre o tema, ler Jugie, L’Immaculée Conception dans l’Ecriture Sainte et dans la Tradition orientale p. 80-94. Segundo O’Carroll, Theotokos: A Theological Encyclopedia of the Blessed Virgin Mary, p. 173, há também quem defenda que o próprio São Cirilo de Alexandria professou esta impecabilidade de Nossa Senhora (ler Pe. H. du Manoir, S.J., Dogme et spiritualite chez St. Cyrille d’ Alexandrie).
[76] Tiago de Serguh, Hom. I, in Vona 193-194 (citado por Michael O’Carroll, Theotokos: A Theological Encyclopedia of the Blessed Virgin Mary, p. 194-195).
[76] Tiago de Serguh, Hom. I, in Vona 143ff (citado por Michael O’Carroll, Theotokos: A Theological Encyclopedia of the Blessed Virgin Mary, p. 194-195).
Exegese do Antigo Testamento sobre os Termos Hebraicos de Prostração e Adoração[i]
619 (hawa) III, exclusivamente no tronco de Eshtaphal, hishtahawa "prostrar-se"; "adorar."
Antigamente isso era analisado como um Hithpael[ii] de shaha (q.v.)[iii]. Cognato com o hgar ugarítico[iv] "curvar-se" (UT 19: n. 847), usado em paralelo com kbd "honrar", o verbo ocorre 170 vezes, na maioria dos casos ligados a adoração a Deus, deuses ou ídolos .
O verbo, em seu sentido original, significava prostrar-se no chão, como em Ne 8, 6 "adoraram" (KJA, JFAA), mas mais corretamente "prostraram" (BAM, BJ) como a expressão arsa' "no chão” requer.
A prostração era bastante comum como um ato de submissão diante de um superior. Os vassalos nas cartas de Amarna escrevem: "Aos pés do rei ... sete vezes, sete vezes caio, para a frente e para trás". (Cf. ANEP[v], fig. 5.) Jeú ou seu servo se ajoelha com a testa tocando o chão diante de Shalmaneser III no Obelisco Negro (cf. ANEP, fig. 351).
Os muçulmanos realizam sua salah ou oração ao fazer um sugud elaboradamente prescrito (do hebraico sagad "curvar-se") no qual a testa deve tocar o chão.
A palavra grega proskuneo, que é usada para traduzir hishtahawa 148 vezes na LXX, teve um desenvolvimento semântico semelhante à palavra hebraica. Assim, proskuneo pode significar "prostração" ou "adoração". Se a proskunesis que Alexandre o Grande recebeu, implicava "adoração" ou simplesmente "reverência" era incerta para seus contemporâneos, como tem sido para os estudiosos.
A prostração era um ato comum de auto-humilhação realizado diante de parentes, estranhos, superiores e especialmente ante à realeza. Abraão se curvou diante dos hititas de Hebrom (Gn 23, 7, 12). Ele também se curvou diante dos três estrangeiros que o visitaram em Mamre (Gn 18, 2), assim como Ló diante dos dois visitantes angélicos que vieram a ele em Sodoma (Gn 19, 1).
Nem perceberam na época que estavam diante de seres sobre-humanos. Balaão, no entanto, percebeu que era um anjo que bloqueava seu caminho, e ele "caiu em prostração" (Nm 22,31).
Seguindo o protocolo egípcio, os irmãos de José fizeram reverência diante dele (Gênesis 42, 6; 43, 26, 28), cumprindo assim seu sonho (Gênesis 37; 7, 9, 10).
Por causa da infidelidade dos filhos de Eli, sua posteridade será reduzida pelo julgamento de Deus (1Sm 2,36) "se curvará” (KJA); “irão prostrar-se" (BAM); “virá se prostrar” (BJ). Em En-Dor Saul reconheceu Samuel revivificado e “lhe fez reverência" (1Sm 28,14, JFMA).
Foi em pleno desafio à etiqueta da corte persa que Mardoqueu se recusou a se curvar ou se prostrar diante de Hamã (Est 3, 2; 5; cf. Heródoto 1.134; 3.86; 8.118). Targum e Midrash explicam a recusa de Mordecai com base em um suposto ídolo na túnica de Hamã. Mardoqueu pode ter se irritado com o pensamento de se curvar diante de um amalequita ou agagita (Est 3; 1; cf. 1Sm 15, 32-33).
O verbo é usado em 1Cr 29, 20 com duas frases, literalmente como na Ave Maria: "prostrando-se diante do Senhor e diante do rei.". Na Bíblia KJA "ajoelhou-se em homenagem ao Senhor e ao rei”. Na BJ “para se prostrar diante de Deus e diante do rei”. Na JFAA fornece um segundo verbo: "inclinaram-se e prostraram-se perante a Senhor e perante o rei". Assim, os egípcios se curvarão diante de Moisés, pedindo que ele se retire, e reis e princesas se curvarão perante a Sião redimida (Ex 11, 8; Is 45:14; 49:23).
O verbo é usado com menos frequência para a adoração de um indivíduo ao Senhor. Abraão, a caminho do sacrifício, diz a Isaac diz que ele está indo adorar (Gn 22, 5). O desolado Saul pede perdão para que ele possa adorar (1Sm 15, 25, 30-31). É usado com mais frequência em atos particulares de adoração, por exemplo, do servo de Abraão que “Inclinou-se, então, o homem e prostrou-se" (Gn 24, 26, 48) e de Gideão (Jz 7, 15) ao experimentar a graça de Deus. Tais atos frequentemente envolviam prostração real "à terra", como no caso do servo de Abraão (Gn 24, 52), Moisés (Ex 34, 8), Josué (Js 5, 14) e Jó (Jó 1, 20).
No Êxodo, há três casos de adoração comunitária espontânea: quando as pessoas ouviram que o Senhor havia falado com Moisés (Ex 4,31), quando receberam instruções para a Páscoa (Ex 12, 27) e quando viram o coluna de nuvem (Ex 33, 10). Em 2Cr 20,18, Josafá e o povo prosternaram-se “em adoração diante do Senhor." (Ave Maria), quando ouviram sua promessa de vitória.
Ordens ou convites para adoração são dados a Moisés, Arão e aos anciãos em Ex 24, 1: "Sobe para o Senhor,...e prostrai-vos à distância." (Ave Maria), e por ocasião das primícias, “deporás o cesto diante do Senhor, teu Deus, prostrando-te em sua presença."(Dt 26, 10; a menos que seja indicado o contrário, as citações subsequentes serão da Ave Maria). O salmista exorta: "Vinde, inclinemo-nos em adoração, de joelhos diante do Senhor que nos criou." (Sl 94, 6).
Após a morte do filho de Betsabeia, Davi entrou em sua capela para adorar (2Sam 12, 20). Seu filho, Salomão, terminou o templo (2Cr 7, 3), que se tornou o foco do culto organizado. Embora houvesse santuários rivais, como a arqueologia confirmou, Ezequias insistiu que o culto fosse realizado "diante deste altar em Jerusalém" (2Rs 18,22; Is 36, 7; 2Cr 32,12; 29, 29-30). O salmista declara: "Adorarei em direção ao teu santo templo" (Sl 5, 8; cf. 137, 2). Jeremias falou aos que adoravam no templo que precisavam se arrepender (Jr 7; 2; 26; 2). Como eles não se arrependeram, Nabucodonosor destruiu o templo, mas Ezequiel teve uma visão de um novo templo no qual o príncipe e seu povo iriam adorar (Ez 46, 2, 3, 9).
Os Salmos e os profetas prevêem o dia em que os gentios também adorarão. Os que adoram o Senhor incluem: "Que os povos vos louvem" (Sl 66, 4); "todos virão prostrar-se" (Is 66, 23), todas as nações (Sl 21, 28; 72, 11, Sf 2,11; Zc 14, 16-17) reis e príncipes (Is 49, 7; cf Sl 71,11); "todos os que dormem" (Sl 22, 30), que na BJ interpreta como "todos os prósperos" da terra.
Perante o Senhor, não apenas os homens adoram, mas também os b'ne'elim (Sl 28, 1-2) "filhos dos poderosos", literalmente "filhos de Deus” (BAM e BJ), provavelmente anjos (cf. Sl 88, 6, mas também Sl 96, 7). Neemias 9, 6 declara que “o céu do céu e todo o seu exército, a terra e tudo o que ela contém, o mar e tudo o que nele se encerra; sois vós quem dais a vida a todos os seres e o exército do céu vos adora.”. De acordo com Sl 96: 7, mesmo “os deuses se prostram diante do Senhor”[vi].
O segundo mandamento proíbe a adoração de quaisquer imagens esculpidas ou outros deuses (Ex 20, 5; 34-14; Dt 5, 9). Os israelitas foram avisados para não adorarem os deuses dos amorreus, hititas, etc. (Ex 23,24; Sl 80, 10).
No entanto, Israel adorava repetidamente outros deuses (Dt 29, 25; Jud 2,12, 17; Jr 13,10; 16,11; 22, 9). Esses deuses incluíam os dos moabitas (Nm 25, 2), os dos edomitas 2Cr 25, 14). Astarte dos sidônios, Camos de Moab, Melcom dos amonitas (1Rs 11,33) e Baal de Sidom (1Rs 16, 31; 22, 54).
Em uma passagem interessante, o verbo é usado tanto para "adoração" quanto para "reverenciar" sem uma atitude de adoração. Após a cura de Naamã e sua conversão à adoração monoteísta do Senhor (2Rs 5, 17), o oficial sírio perguntou a Eliseu: "Nesse caso, o Senhor perdoa seu servo: quando meu mestre (ou seja, o rei) entra em casa de Rimmon para adorar ali, apoiado no meu braço, e me curvo na casa de Rimmon, quando me curvo na casa de Rimmon, o Senhor perdoa seu servo neste assunto "(2Rs 5,18, BJ). Eliseu não se opôs e disse: "Vá em paz”.
Uma passagem problemática é Gênesis 47, 31, onde Jacó antes de morrer "prostrou-se sobre a cabeceira de sua cama (mitta)". Na LXX, no entanto, lê-se: "Israel fez reverência, inclinando-se do alto de seu cajado.", tornando as consoantes como matteh "cajado". O Siríaco e Itala concordam; Hb 11, 21 cita a LXX. Nesse contexto, Speiser sugere: "O termo 'curvar-se' 'não precisa significar aqui nada além de um gesto de apreço silencioso...". Conferir também 1Reis 1,47, onde o moribundo Davi se curva na cama.
Veja também kakap, kara’, qadad, sagad, ‘abad.
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Driver, G. R., "Studies in the Vocabulary of the Old Testament," JTS 31: 27940.
Rowley, H. H., Worship in Ancient Israel, London: S. P. C. K., 1967,
Watts, John D. W., "Elements of Old Testament Worship," JBR 26:217-21. TDNT, VI, pp. 758-463. THAT, I, pp. 530-32.
Original em Inglês: Old Testament Exegesis on the Hebrew Terms for Prostration and Worship - http://orthodoxinfo.com/inquirers/prostration_heb.aspx
Notas
[i] N. T. Legendas:
BJ - Bíblia de Jerusalém
KJA - King James Atualizada BAM - Bíblia Ave Maria
JFAA - João Ferreira de Almeida Atualizada
LXX - Septuaginta
[ii] N.T.: Existem 3 graus de intensidade para os verbos em hebraico:
1. Qal - É a forma básica para as demais declinações dos verbos em hebraico (o homem matou)
2. Piel - É a voz intensiva ativa do Qal, sendo assim no completo. Enquanto no Qal se dizia que “o homem matou”, no Piel se diz que “o homem assassinou”. O grau já deixa bem claro a extensão da ação.
3. Hithpael - É a voz reflexiva e intensiva do Piel. Enquanto voz reflexiva, o sujeito tanto pratica como sofre a ação. Em português é o caso da frase “Eduardo suicidou-se”. Assim, enquanto no Piel se dizia que “o homem assassinou”, no Hitpael se diz que “o homem estrangulou-se ou suicidou-se” – ou seja, demonstra que o homem cometeu um crime muito bárbaro contra si mesmo.
[iii] N.T.: shaha, significa “curvar-se”, “prostrar-se”
[iv] N.T.: Ver Língua Ugarítica no link: https://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADngua_ugar%C3%ADtica
[v] N.T.: ANEP Ancient Near East in Pictures (Pritchard) é uma antologia de importantes textos históricos, legais, mitológicos, litúrgicos e seculares do antigo Oriente Próximo. Apesar do nome, os textos incluídos têm ampla cobertura e não se relacionam necessariamente ao Antigo Testamento.
[vi] N.T.: Sl. 96,7. Texto citado em Hb 1,6. A palavra deuses é empregada no sentido de anjos.
Tradução: JBF
Questão disputada sobre o culto aos santos
I. ARGUMENTOS DOS ADVERSÁRIOS:
1) O prof. Paulo Cristiano da Silva em seu artigo “Dulia, Hiperdulia e Latria” argumenta que a distinção de latria e dulia é apenas teórica, mas não existe na prática. A prática de culto dos católicos aos santos e a Deus é rigorosamente a mesma. E o que importa nessa questão é a prática quando se trata de adoração.
2) Lucas Banzoli em seu artigo “Não adoram, só veneram” argumenta que os exemplos de se ajoelhar perante um homem ou anjo no Antigo Testamento se referem a cumprimento cultural e não uma forma de culto.
3) Argumenta-se que São Pedro recusou o culto manifestado por Cornélio (Atos 10,25) e um anjo recusou o culto prestado por São João (Apocalipse 19).
4) Argumenta-se que Santo Agostinho ensina que não se deve prestar culto religioso aos santos e anjos (cf. De vera religione, cap. 55).
5) Argumenta-se, ainda, que Santo Agostinho diz que a construção de templos faz parte do culto de latria (cf. De Civitate Dei, lib. VIII, cap. 27), enquanto que os católicos constroem altares e templos em homenagem aos santos. É famosa a Basílica de São Pedro no Vaticano e a Basílica de Nossa Senhora Aparecida em Aparecida do Norte - SP.
II. A DOUTRINA CATÓLICA É EXPOSTA
A Igreja ensina que os santos devem ser adorados com culto de dulia, enquanto Deus e somente Ele deve ser adorado com culto de latria. Modernamente, os teólogos e o Magistério preferem utilizar a palavra “adorar” exclusivamente ao culto de latria, enquanto “venerar” foi restringido ao culto de dulia. Nessa exposição a palavra “adorar” será utilizada em sentido lato, como um gênero que inclui as duas espécies dos referidos cultos, e não em sentido estrito.
Para o estudo da matéria precisamos, inicialmente, definir os termos que utilizados, pois muito do desentendimento católico e protestante se deve a uma variedade de expressões e usos contraditórios nos sentidos dados por cada interlocutor, que acaba por minar qualquer diálogo.
Definição de adoração/culto
O que é adorar? Adorar ou culto é uma espécie de honra.
Por sua vez, o que é honra? Segundo o conceito clássico honra é testemunho manifestado (reconhecimento) pela excelência de alguém (cf. Aristóteles, Ethica Nicomachea, 1.12; Santo Tomás, Commentarium. Ethica Nicomachea 1.12, lect.18 n. 20, ST II-II.103.1c).
Excelência encerra a ideia de perfeição. Assim, no caso dos seres humanos, estará, principalmente, ligada à virtude, isto é, na linguagem aristotélica “hábito de escolher conforme a reta razão” e “disposição de um ser perfeito” (cf. ST III, q.85, a.1).
Quando a honra é manifestada perante outrem igual ou inferior diz-se simplesmente honra. Porém, quando a honra é manifestada perante um superior se diz culto ou adoração.
Assim, eis a definição de adoração ou culto: “sinal de submissão em reconhecimento à superioridade e excelência de alguém”. “Unanimemente os teólogos, na trilha de São João Damasceno (Orat. III, De imaginibus, no. 26, P.G. tomo 94, col. 1346,....), com Franzelin (De Verbo incarnato, Roma, 1874, th. XLV, p. 456), definem o culto como um sinal de submissão em reconhecimento à superioridade e excelência de alguém -- nota submissionis ad agnitam excellentiam alterius" (A. Chollet. Dictionnaire de Théologie Catholique, (verbete Culte en général, Letouzey et Ané, Paris, 1923, tomo III, col. 2404)
Importantes autores protestantes demonstraram não possuir óbice em se falar de culto ou adoração em relação a outras pessoas ou seres. A Bíblia de Genebra em sua nota a Atos 10,25 diz que “o culto civil é dado aos Ministros da palavra”. Calvino em “Institutio christianae religionis (lib I, cap. 12)”, diz: “É verdade que lemos não raras vezes que criaturas humanas foram adoradas (adoratos). Mas essa foi, por assim dizer, uma honra civil”. O calvinista Walerjan Skorobohaty Krasinski em sua Dissertação “on the Miraculous Images, as Well as Other Superstitions of the Roman Catholic and Russo-Greek Churches (1855)” diz: “O culto heroico é inato à natureza humana e fundamentado em alguns dos sentimentos mais nobres como a gratidão, o amor e a admiração...”.
Espécies de adoração/culto
Há duas espécies de cultos: o civil e o religioso
O culto civil considera nos homens a excelência natural, pela qual eles nos são superiores. Subdivide-se em:
- culto individual: "Um ser, com efeito, pode manifestar sua excelência e superioridade de diversas maneiras e em diferentes esferas. Ele pode ser superior, eminente, por seu valor pessoal. É um gênio cuja ciência é imensa, cujas instituições são maravilhosas, e que abre ao conhecimento humano horizontes até então insuspeitados; é um herói, cujo caráter e energia se impõem à admiração de todos e que pela perspicácia e poder de sua vontade triunfou de dificuldades inauditas; ou é mais simplesmente um colosso, cuja constituição física e cujos músculos de aço, lembram os gigantes antigos: valor intelectual, valor moral, força física se impõem aos demais e dão origem a um sentimento de admiração mesclado de deferência e de respeito, que é um culto. Estes heróis arrastam facilmente atrás de si aos demais, e o vínculo que submete aos seus ascendentes as multidões é um culto (culto individual)" (A. CHOLLET, loc. cit., col. 2404).
- culto familiar: "Um homem pode ser superior pela função que ele desempenha na família; é um pai; fundou um lar, governa-o com a autoridade que lhe advém do contrato solene feito com sua esposa perante Deus, ou do fato da procriação de seus filhos. A mulher e os filhos reconhecem a autoridade dele, respeitam-no, e lhe testemunham sua submissão ou sua piedade filial. É ainda um culto (culto familiar)". (A. CHOLLET, loc. cit., cols. 2404-2405).
- culto social: "Se um homem tem uma missão social e ocupa na nação um cargo que o torna chefe de seus concidadãos, estes reconhecem nele a autoridade e o prestígio que o cerca, e manifestam publicamente deferência por sua pessoa: eles praticam desse modo atos de um culto real (culto social)" (A. CHOLLET, loc. cit., col. 2405).
A Bíblia apresenta alguns exemplos sobre o culto social: "Joab, prostrando-se por terra sobre o seu rosto, adorou e felicitou o rei." (II Reis, 14,22); "Inclinando-se Betsabé profundamente, adorou o rei." (III Reis, 1,16); "O profeta Natã... veio perante o rei, inclinando-se o adorou." (III Reis 1, 23)
O culto religioso, por sua vez, "é um reconhecimento da perfeição divina, da eminente superioridade e excelência de Deus sobre todas criaturas. Estende-se também ao reconhecimento das superioridades emanadas de Deus na sociedade religiosa, seja natural (a sociedade humana), seja sobrenatural (a Igreja), seja preternatural (a sociedade angélica)" (A. CHOLLET, loc. cit., col. 2405). Assim, “conhecer e proclamar a excelência de Deus e dos ministros que Ele constituiu para nos conduzir a Ele, testemunhar respeito e submissão às pessoas sagradas ou às pessoas divinas é praticar o culto religioso". (A. CHOLLET, loc. cit., col. 2405).
Em outras palavras, o culto religioso é devido para Deus, em reconhecimento a sua divina e infinita excelência (latria), e para todo aquele que possui alguma excelência espiritual ou excelência sobrenatural criada (dulia em sentido mais estrito).
O culto religioso subdivide-se em: culto de latria e o culto de dulia. Santo Agostinho foi o primeiro teólogo a delinear detidamente essa distinção. Entre outras passagens, diz: “Veneramos, então, aos mártires com o culto do amor e companhia, que nesta vida os homens santos de Deus também são tributados, cujo coração percebemos que está disposto a sofrer o martírio para a verdade do evangelho... O que é propriamente o culto divino, que os gregos chamam de latria, e para o qual não existe uma palavra em latim, tanto na doutrina, quanto na prática, damos somente a Deus”. (Contra Faustum Manichaeum, lib XX, cap. 21) E ainda: “Mas que o Espírito Santo não é uma criatura, é muito simples por aquela passagem acima de todos os outros, onde somos ordenados para não servir a criatura, mas ao Criador, não no sentido em que somos ordenados a “servir” um ao outro pelo amor, que é douleuein [dúlia] em grego, mas naquele em que só Deus é servido, que está latreuein [latria] em grego”. (De Trinitate, lib I, cap. 6).
O protestante Leibniz reconhece o "discrimen infinitum atque immensum entre a honra que é devida a Deus e a que é mostrada aos santos, sendo essa chamada pelos teólogos, segundo o exemplo de Agostinho, latria, e a outra dulia"; e ele declara ainda que essa distinção "não deve ser apenas inculcada nas mentes dos ouvintes e aprendizes, mas também deve ser manifestada, tanto quanto possível, por sinais externos" (Syst. theol., p. 184).
O culto de latria
Latria quer dizer serviço. Teologicamente, refere-se ao serviço sagrado dedicado ao divino. Santo Agostinho diz que a latria é um culto devido a Deus somente, como verificamos nas duas passagens acima.
Santo Agostinho nota que esse culto pertence à oferta de sacrifícios (cf. Contra Faustum Manichaeum, lib. XX, cap. 21). Em outra obra, acrescenta outras práticas restritas ao culto de latria, como construir templos, ordenar sacerdotes e ritos sagrados. (cf. De Civitate Dei, lib. VIII, cap. 27). Definamos esses pontos.
Por óbvio, o sacrifício se relaciona, em primeira vista, à imolação de um animal como oferta a Deus. Na Nova Aliança, Santo Agostinho explica que a celebração eucarística é o sacrifício atual oferecido a Deus (cf. Contra Faustum Manichaeum, lib. XX, 21 e De Civitate Dei, lib. X, cap. 6). Também explica que sacrifício é nos consagrarmos inteiramente a Deus (cf. De Civitate Dei, lib. X, cap. 6). Santo Tomás explica que se consagrar a Deus é a mente humana se oferecer a si mesma a Ele, “e se oferece a Ele como a quem é princípio de sua criação, autor de seus atos e fim de sua bem-aventurança” (Summa contra Gentiles, lib III, 120). Portanto, chama-se o primeiro de sacrifício exterior e o segundo de sacrifício interior.
O templo é a edificação para promover sacrifício (cf. São Roberto Bellarmino, De Controversiis Christianae Fidei, lib. III, cap. IV). Santo Agostinho menciona que os cristãos levantavam altares para Deus (cf. Sermones 318, 228, In Evangelium Ioannis tractatus centum viginti quatuor, tractatus 2, etc). Os Padres da Igreja utilizaram comumente a palavra “templo” para se referir as edificações cristãs (Eusébio, A vida de Constantino, livro 3, cap. 40 e 43; Santo Ambrósio, De officiis ministrorum, 16; São João Crisóstomo, Homilia in Matthaeum, 50, entre outros). Santo Agostinho relembra, também, que nós mesmos somos templos do Espírito Santo (cf. Epistolae 170, 173A).
O sacerdócio é ordenado principalmente para o sacrifício. Sacerdote em latim é sacerdos, derivado de “sacra dans”, isto é, aquele que dá as coisas sagradas. Nesse sentido, lemos em Hebreus 5,1 que “todo sumo sacerdote é escolhido entre os homens e constituído em favor dos homens como mediador nas coisas que dizem respeito a Deus, para oferecer dons e sacrifícios pelos pecados”. Com efeito, o Pontifical Romano diz que “ao sacerdote lhe corresponde OFERECER, benzer, presidir, pregar e batizar”.
Os ritos sagrados (sacra) referem-se, primariamente, aos ritos que contemplam o serviço eucarístico, como podemos notar em Eusébio, De laudibus Constantini, prologum, De vita Constantini, cap. 71, e Tertuliano, De anima, cap. IX.
Santo Tomás traz definições importantes sobre o conceito de latria. Diz “a latria, que é a adoração a Deus como o começo de todas as coisas, é o dever do homem nesta vida” (cf. Contra Impugnantes, part 1). Explica que há dois modos de considerar a servidão da latria, isto é, “consiste em servi-lo em preferência a tudo; a outra servidão consiste em tender para ele como para o nosso fim último”. (Super Evangelium Matthaei, cap. 4, lectio 1 - Mt 4, 10) Diz ainda que latria “consiste principalmente em sacrifícios e oblação, pelos quais o homem reconhece que Deus é o autor de todos os bens”. (Super Epistulam ad Romanos, 1, 20-25) Ademais, diz: “E como Deus é não somente causa e princípio de nosso ser, mas também dono absoluto do mesmo, e tudo o que temos lhe devemos, e por isso é verdadeiramente Senhor nosso, tudo o que fazemos em sua honra se chama serviço. Ademais, Deus é senhor não acidentalmente, como um homem o é de outro, mas por natureza”. (Summa contra Gentiles, lib III, 119) Ademais, comenta: “o sacrifício externo é uma representação do sacrifício interior, segundo o qual a mente humana se oferece a si mesma a Deus. E se oferece a Ele como a quem é princípio de sua criação, autor de seus atos e fim de sua bem-aventurança”. (Summa contra Gentiles, lib III, 120).
Após todos esses elementos apresentados, vamos definir o culto de latria com São Roberto Bellarmino no seguinte sentido: “a suprema submissão, e inclinação da vontade com a apreensão de Deus, como primeiro princípio e fim último, e, portanto o supremo bem” (De controversiis Christianae Fidei, tomus 2, cap. XV).
É possível estudar sobre o culto de latria sob a ótica da virtude, de modo que compreendamos de onde deriva o culto que devemos a Deus.
A Justiça “consiste em dar a outrem o que lhe é devido, conforme a igualdade”. (Santo Tomás, ST II-II, 80, 1, resp.). Anexa à virtude da Justiça há a virtude da religião.
O homem não pode retribuir a Deus, em plano de igualdade, tudo o que dEle recebeu, como diz o salmista: Que retribuirei ao Senhor por tudo que ele me concedeu?" (Salmo 115,3). Por isso, oferece-lhe, em retribuição, respeito, homenagem e culto, o que pertence à virtude da religião. É a primeira virtude anexa à justiça (cf. ST II-II, 80, 1, resp).
Sobre o que é religião, deixemos que o Doutor comum responda extensamente sobre o tema: “Para entender o significado da religião, precisamos conhecer a etimologia da palavra. Santo Agostinho, em seu livro De vera religione considera que é derivado de re-ligare (para re-ligar). Uma coisa está ligada a outra, quando está tão unida a ela, que não pode se separar e se unir a qualquer outra coisa. A palavra re-ligação, no entanto, implica que uma coisa, embora unida a outra, começou, em certo grau, a se desconectar dessa outra. Agora toda criatura existia, originalmente, mais em Deus do que em si. Pela criação, no entanto, ela saiu de Deus e, em certa medida, começou, em sua essência, a ter uma existência separada dEle. Portanto, toda criatura racional deveria se reunir a Deus, a quem estava unida antes de existir à parte dEle, assim como “no lugar de onde vêm os rios, eles voltam a fluir novamente” (Eclesiast. I.). Portanto, Santo Agostinho diz (De vera religione): "A religião nos reúne ao Deus Todo-Poderoso". Encontramos a mesma ideia expressa no comentário da Glosa, nas palavras "por Ele e por Ele" (Rom. Xi. 36). O primeiro vínculo pelo qual o homem se une a Deus é o da fé. Pois “quem vem a Deus deve crer” (Heb. Xi. 6). Latria, que é a adoração a Deus como o começo de todas as coisas, é o dever do homem nesta vida. Portanto, a religião, primariamente e principalmente, significa latria, que torna a adoração a Deus pela expressão da verdadeira fé. Santo Agostinho faz a mesma observação em seu De civitate Dei (livro 10), onde diz: “Religião significa não adoração de nenhum tipo, mas adoração a Deus”. Cícero, em sua antiga retórica, dá quase a mesma definição de religião. Ele diz que "a religião é aquela que apresenta certas homenagens e cerimônias a uma natureza superior, que os homens chamam de natureza divina". Portanto, tudo o que pertence à verdadeira fé e a homenagem da latria que devemos a Deus são os primários e principais elementos da religião. Mas, a religião é afetada, de maneira secundária, por tudo pelo qual manifestamos nosso serviço a Deus. Pois, como Santo Agostinho diz em seu Enchiridion, “Deus é adorado não apenas pela fé, mas também pela esperança e caridade. Portanto, todos os ofícios de caridade podem ser chamados de obras religiosas. Nesse sentido, São Tiago diz (i. 27): “A religião limpa e imaculada diante de Deus e do Pai é esta: visitar os órfãos e a viúva em sua tribulação” etc”. (Contra Impugnantes, part 1).
Assim, em sentido estrito e direto, como virtude especial, não devemos culto de religião aos santos e outras pessoas, mas tão somente a Deus. Mas tal definição difere da outra que foi dada anteriormente, onde se pretendia antes distinguir o culto religioso do culto civil, portanto, tenha-se presente que a mesma expressão é tomada em distintos sentidos aqui e ali. Para mais sobre o tema, leia a resposta ao argumento 4 dos adversários.
O culto de dulia
Dulia quer dizer escravidão/servidão. Santo Agostinho a define como “servir um ao outro pelo amor”. (De Trinitate, lib. I, cap. 6). Também “culto do amor e companhia” (Contra Faustum Manichaeum, lib. XX, cap. 21).
Santo Tomás ensina com mais clareza: "A dulia pode ser tomada em duplo sentido. -- Primeiro, em sentido geral, quando tributa reverência a qualquer pessoa, em razão de uma certa excelência. E então inclui a piedade filial, o respeito e qualquer outra virtude, que tenha por fim prestar reverência a outrem". (ST II-II, 103, 4, resp).
A dulia é uma forma de manifestação da virtude da observância ou respeito, sendo esta anexa à virtude da Justiça, que antes definimos. O homem não pode dar à virtude uma recompensa que lhe seja inteiramente côngrua. Por isso, como diz Cícero, citado por Santo Tomás, "os homens eminentes por alguma dignidade são dignificados por um certo culto e honra". (De invent. Rhet. l. II, cap. 53) É o que compete à virtude da observância, ou do respeito. (cf. II-II, 80, 1, resp).
Sobre a tríplice divisão da observância: “Costumam-se distinguir uma tríplice observância, conforme a tríplice dignidade pela qual se presta a observância: a) observância civil, se a dignidade é civil, como nos reis, mestres, patrões, etc; b) observância religiosa, se a dignidade é eclesiástica, como no Papa, no Bispo, no Sacerdote, etc; c) observância sobrenatural, se a dignidade se baseia na virtude heróica dos santos. Neste último sentido, a observância costuma chamar-se dulia, numa acepção estrita. As vezes, porém, toma-se dulia numa acepção mais lata, para designar a honra prestada mesmo a homens vivos" (Prummer-Munchp. Manuale Theologiae Moralis secundum principia S. Thomae Aquinatis, Herder, Freiburg-Breisgau, 1940, 9a ed, tomo II, p. 454)
No que se refere aos santos e anjos, a reverência é tributada em razão da excelência espiritual ou sobrenatural criada, como antes já havíamos assinalado.
Culto interno e culto externo
"Se das razões objetivas do culto passamos a suas manifestações subjetivas, vê-lo-emos ainda tomar várias formas e se diversificar. Distinguiremos, por exemplo, o culto interno e o culto externo. O primeiro é o que se passa inteiramente ao fundo da alma. É uma linguagem na qual, dirigida pela vontade e o coração, a razão exprime a Deus a submissão, e a veneração da alma. Mas estes sentimentos íntimos podem se traduzir externamente por palavras, atos ou sinais sensíveis, como a genuflexão, a inclinação da cabeça, as mãos juntas, levantadas ou estendidas (à maneira dos orantes antigos), os ósculos, as prosternações do corpo. Estes sinais se tornam então um culto externo, se estão organizados em um cerimonial completo e sagrado, fixado pela autoridade religiosa, constituem a liturgia. Relações estreitas, análogas às relações da alma e do corpo, vinculam entre si o culto interior e exterior. Este procede daquele, manifesta-o, é o seu desabrochamento e complemento. A devoção interior da alma tem uma tendência espontânea a se manifestar externamente por sinais religiosos; tem com eles uma relação de causa e efeito” (A CHOLLET, loc. cit., cols. 2410-2411).
A conveniência dos atos corporais para o culto divino é explicada por Santo Tomás no seguinte sentido: “Pois vemos pela experiência que nossa alma se vale de atos corporais para se excitar ao conhecimento e ao afeto. Isto manifesta, pois, a conveniência de que nos sirvamos de certas coisas corporais para elevar nossa mente a Deus”.
Ademais, explica que o culto interior é principal: “Porque dizemos que rendemos culto a uma coisa quando mediante nossas obras pomos nela nosso interesse. Assim, ao prestar a Deus nosso interesse mediante nossos atos, não o fazemos em proveito seu, como quando rendemos culto às outras coisas como com nossas obras, mas o fazemos em promeito próprio, acercando-nos por esses atos a Ele. E como pelos atos interiores tendemos diretamente a Deus, resulta que com isso propriamente lhe rendemos culto; não obstante, os atos exteriores também pertencem ao culto divino, posto que por eles se eleva nossa mente a Deus, segundo temos dito” (Summa contra Gentiles, lib. III, cap. 119).
Os atos externos, em si mesmos, não comprovam o culto de latria, eis que todos os atos externos são comuns a outras espécies de adoração, com exceção do sacrifício, e tudo aquilo a ele relacionado, isto é, templos, altares, sacerdócio e ritos sagrados, como vimos em Santo Agostinho. Assim, o ato externo não é especialmente próprio e essencial, pois inclusive pode ser manifestado em zombaria, como os soldados romanos perante Jesus Cristo (cf. Mateus 27, 29). O que é essencial é o ato da vontade pelo qual somos inclinados interiormente à profissão da excelência infinita e divina e nossa sujeição, seja por um ato externo ou não.
Provas tiradas da Sagrada Escritura do culto religioso em razão excelência espiritual ou sobrenatural criada
A doutrina católica é comprovada pela adoração de anjos e homens piedosos na Escritura.
Utilizamos para as citações “A Biblia Sagrada contendo o Velho e o Novo Testamento traduzida em Portuguez segundo a Vulgata Latina” do padre Antonio Pereira de Figueiredo, ano 1867.
a) o culto religioso a anjos
A razão da adoração de anjos não pode ser relacionada ao culto civil, eis que não se deve à excelência natural, mas, por evidente, à excelência espiritual.
- "E tendo Abrahão levantando os olhos, appareceram tres homens que estavam em pé junto a ele. Tanto que elle os viu, correu da porta da tenda a recebel-os; e prostrado em terra os adorou" (Gênesis, 18, 2)
- "Sobre a tarde chegaram os dois anjos a Sodoma, e a tempo que Lot estava assentado as portas da Cidade. Tanto que elle os viu, levantou-se, e saiu a recebel-os, e prostrado por terra os adorou" (Gênesis, 19, 1)
- "No mesmo ponto abriu o Senhor os olhos de Balaão, e elle vi o Anjo parado no caminho com a espada desembainhada, e prostrado por terra o adorou" (Números, 22, 31)
- “E estando Josué no campo da Cidade de Jericó, levantou os olhos, e viu um homem posto em pé diante d'elle, que tinha uma espada nua e foi ter com elle, e disse-lhe: Tu és dos nossos, ou dos inimigos? O qual lhe respondeu: Não: mas sou o Príncipe do exército do Senhor, agora venho. Josué se lançou com o rosto em terra. E adorando-o disse: Que diz meu Senhor ao seu servo?” (Josué, 5, 13-15)
- "Tira, lhe disse elle, o calçado de teus pés: porque o logar em que estás, é sancto. E Josué fez como se lhe havia mandado." (Josué, 5, 16)
O lugar foi dito santo em razão da presença do anjo, pois Josué não estava em local sagrado, mas nas planícies de Jericó. Josué tirou o calçado em sinal de culto.
b) o culto religioso a homens piedosos
- “E disse-lhe Saul: Como é a sua figura? Respondeu a mulher: Subiu um homem ancião, e esse coberto com uma capa. E entendeu Saul que era Samuel, e fez-lhe uma profunda reverência, e prostrou-se por terra”. (I Reis, 28, 14)
Samuel já era morto nesse episódio, mas o culto civil não é adequado para almas de mortos, trata-se aqui de outro exemplo de culto religioso.
- "E quando Abdias estava em caminho, Elias se encontrou com elle: e Abdias tendo-o conhecido, se prostrou com o rosto em terra, e disse: És tu, Elias meu senhor?”. (III Reis, 18, 7)
Tal ato não se poderia considerar como culto civil, pois no que diz respeito à excelência humana, Abdias era maior que Elias, pois este último era um homem privado, enquanto Abdias era um dos príncipes do rei. Portanto, Abdias adorou Elias como um profeta, e homem de Deus, em razão de sua excelência espiritual.
- "Vendo pois os filhos dos Prophetas, que estavam em Jericó defronte, disseram: O espirito de Elias repousou sobre Eliseu. E vindo sair-lhe ao encontro, se prostraram por terra a seus pés com profundo respeito" (IV Reis, 2, 15)
Mais um caso em que só pela noção de culto religioso pode ser definido.
- "Então o Rei Nabucodonoor se prostrou com o rosto em terra, e adorou a Daniel, e mandou, que lhe fizessem sacrificios de victimas, e de incenso" (Daniel, 2, 46) (Originalmente מנחה “mincha”, isto é, “presentes” e não necessariamente “sacrifícios de victimas”)
Daniel, um prisioneiro, foi adorado por um rei supremo. Portanto, o rei adorou Daniel através de culto religioso como um homem cheio de Deus.
Provas tiradas através dos Padres da Igreja do culto religioso em razão excelência espiritual ou sobrenatural criada
A doutrina católica é comprovada pelo testemunho dos Padres da Igreja.
Nesse sentido, o teólogo protestante Herman Bavinck reconhece: “Desde o início do 2º século, todos esses elementos penetraram também no culto cristão. Assim como os monges, no Budismo, e os místicos, no Islamismo, os mártires da igreja logo se tomaram objeto de veneração religiosa. Altares, capelas e igrejas foram construídos nos lugares onde eles morreram ou onde suas relíquias foram enterradas. Especialmente na data da morte dos mártires, os crentes se reuniam nesses lugares para honrá-los com vigílias e o cântico de salmos, a leitura das atas de martírio, para ouvir sermões em sua honra e, especialmente, para celebrar a santa eucaristia”. (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, Espírito Santo, a Igreja e nova criação, volume 4. ano 2012., originalmente 1895, p. 627, grifei)
- Na Epístola do Martyrium Polycarpi, escrita por volta do ano 250, pode-se ler: “Contudo, o invejoso, o perverso e o mau, o adversário da geração dos justos, vendo a grandeza do seu testemunho e de sua vida irrepreensível desde o início, vendo-o ornado com a coroa da incorruptibilidade e conquistando uma recompensa incontestável, procurou impedir-nos de levar o corpo, embora muitos de nós o desejassem fazer e possuir sua carne santa. Ele sugeriu a Nicetas, pai de Herodes e irmão de Alce, que procurasse o magistrado, a fim que ele não nos entregasse o corpo. Ele disse: "Não aconteça que eles, abandonando o crucificado, passem a cultuar esse aí." Dizia essas coisas por sugestão insistente dos judeus, que nos tinham vigiado quando queríamos retirar o corpo do fogo. Ignoravam eles que não poderíamos jamais abandonar Cristo, que sofreu pela salvação de todos aqueles que são salvos no mundo, como inocente em favor dos pecadores, nem prestarmos culto a outro. Nós o adoramos, porque é o Filho de Deus. Quanto aos mártires, nós os amamos justamente como discípulos e imitadores do Senhor, por causa da incomparável devoção que tinham para com o rei e mestre. Pudéssemos nós também ser seus companheiros e condiscípulos!... Desse modo, pudemos mais tarde recolher seus ossos, mais preciosos do que pedras preciosas e mais valiosos do que o ouro, para colocá-los em lugar conveniente. Quando possível, é aí que o Senhor nos permitirá reunir-nos, na alegria e contentamento, para celebrar o aniversário de seu martírio, em memória daqueles que combateram antes de nós, e para exercitar e preparar aqueles que deverão combater no futuro. (cap. XVII)
- São Justino diz: “A ele e ao Filho, que dele veio e nos ensinou tudo isso, ao exército dos outros anjos bons, que o seguem e lhe são semelhantes, e ao Espírito profético, nós cultuamos e adoramos, honrando-os com razão e verdade”. (Apologia I, 6)
- Eusébio diz: “Nós praticamos diariamente, pois honramos os soldados da verdadeira piedade, como grandes amigos de Deus” (praeparat. Evangel. 13,7).
- São Basílio diz: “A Igreja urge aqueles nesta vida pelo fato de que ela honra aqueles que foram antes deles” (Orat. in S. Mamantem) E ainda: “a honra, que mostramos aos nossos bons servos de si mesmo, oferece o sinal de boa vontade ao nosso Senhor comum” (Orat. in quadraginta martyres)
- São Gregório Nazianzeno comentando uma época em que Juliano, o Apóstata, homenageou certo mártir, que recusou tal culto, com um sinal maravilhoso, diz: “Ó milagre inesperado! Ó amor fraternal dos Mártires! Eles não aceitaram a honra dele que foi daqui em diante para fazer desonra a tantos mártires!” (Oratio 4) E na mesma obra diz: “Nos monumentos mais suntuosos aos mártires, pela emulação em suas ofertas, por todas as outras marcas pelas quais o temor de Deus é caracterizado, eles deram a conhecer seu amor à sabedoria e seu amor a Cristo”. Em sua Oratio aos Macabeus, diz: “Os Macabeus: o festival hoje é de fato em sua homenagem... eles merecem reconhecimento universal por sua inabalável devoção aos caminhos de seus pais”.
- São Gregório de Nissa em sua oração sobre Teodoro, o mártir, disse que a honra que é dada aos mártires supera às honras que se prestam aos reis: “Para qual rei foi mostrata tal honra? Quem deles, que só parecem se sobressair dos homens de uma maneira, é celebrado com tal memorial? Qual imperador foi cantado e celebrado com tal relato, como este pobre soldado, um recruta, Tyro, a quem Paulo armou, a quem os anjos ungiram, a quem Cristo coroou?”.
- Santo Epifânio diz: “Onde Maria é mantida em honra, o Senhor é adorado”. (Paranarion haeres. 79).
- São João Crisóstomo diz: “Você não venera por um lado os santos mais antigos, e por outro os mais recentes, mas todos eles com o mesmo ardor... E os mártires que veneramos, eles adoram.... É por isso que os visitamos frequentemente, adoramos seus túmulos”. (hom. De sanctis Juventino et Maximo).
- São Cirilo de Alexandria diz: “Não dizemos que os santos mártires se tornaram deuses, mas habitualmente consideramos eles dignos de toda honra” (In Julianum, lib 6).
- Teodoreto diz: “Pois nosso Senhor trouxe seus mortos para o lugar de seus deuses, os quais ele aboliu totalmente e deu sua honra aos mártires”. Ainda: “Mas nós, ó homens gregos, não corremos com sacrifícios nem oferendas de bebidas, ao invés nós honramos eles como homens santos e amigos de Deus” (ad Graecos, lib. 8).
- São João Damasceno diz: “É apropriado honrar os santos como amigos de Cristo, como filhos e herdeiros de Deus”. (de fide Orthodoxa, 4, 16).
- Santo Ambrósio diz: “Quem quer honrar os mártires honra a Cristo também, e aquele que despreza os santos, despreza o Senhor” (Serm. 6)
- São Máximo diz: “Todos os mártires devem ser devotamente venerados, mas especialmente aqueles cujas relíquias possuímos”. (serm. de natali sanctorum Octavii, Aventoris et Solutoris, Martyrum).
- Prudêncio sobre Santo Hipólito diz: “Sempre que eu me curvava em oração aqui, um homem doente de alma e corpo, eu ganhava”. (Peristephanon Hymn, 11)
- Paulino sobre a natividade de São Felix diz: “Roma, possuindo os altares de são Pedro e São Paulo, alegrou-se em se abrir em honra deste Deus”. (Carmen I). E ainda: “Em cuja honra Deus se alegra, porque o mártir tinha desprezo por sua própria honra”. (Carmen VIII)
- São Jerônimo diz: “Honramos os servos para que sua honra recaia sobre o Senhor” (in epist. ad Riparium). E sobre a vida de Paula diz: “Adeus, Ó Paula, e ajude o seu adorador (cultorem) com suas orações”. E no mesmo livro ele diz que Paula, quando visitou os eremitas, habitualmente estava prostrada aos pés de cada para que ela pudesse venerá-los, como se ela venerasse Cristo em cada um deles.
- Santo Agostinho diz: “A multidão das nações adoram (adorat) o mais abençoado Pedro, o pescador, de joelhos”. (serm. 1 de Sanctis Petro et Paulo). E ainda: “Mostre-me em Roma um templo de Rômulo realizado em tão grande honra como eu mostro o memorial de Pedro. Quem é honrado em Pedro, exceto aquele que morreu por nós?” (Enarrationes Psalmos 44 [45]) E mais: “Veneramos (colimus), então, aos mártires com o culto do amor e companhia” (Contra Faustum Manichaeum, lib. XX, cap. 21) E mais: “Quando Jacó se apresentou a ele (Esaú), adorou-lhe (adoravit) de longe. Como, então, o maior servirá ao menor, se está vendo que o menor adora (adorare) o maior?” (Sermo 5). Ainda: "Portanto, amados, venerem (veneramini) os mártires, louve-os, ame-os, proclame-os, honre-os; adore o Deus dos mártires". (Sermo 273) Ainda: “(...) A glória dos Macabeus se fez solene para nós, neste dia. Quando foram lidas suas admiráveis paixões, não só ouvimos, mas participamos como espectadores delas. Aconteceram há muito tempo, antes da encarnação e da paixão de Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador. (...) Assim os Macabeus foram mártires de Cristo. Portanto, não está fora de lógica, nem é inoportuno, pelo contrário, é muito comovedor, que sejam os cristãos que celebram solenemente o dia de sua festa. Os judeus celebram algo parecido? Sabe-se que a basílica dedicada aos santos Macabeus está em Antioquia (...)” (Sermo 300)
- Papa são Gregório diz que São Pedro apareceu para um certo Teodoro enquanto este estava pendurando vejas em uma igreja dedicada ao próprio Pedro, interpretando Gregório que São Pedro mostrava aprovar a veneração que lhe era manifestada (cf. Diálog. 3, 24).
III. RESPOSTAS AOS ARGUMENTOS DOS ADVERSÁRIOS
1) Não é verdade que a prática de cultos dos católicos a Deus e aos santos seja a mesma. Primeiramente, é preciso observar que os católicos não oferecem sacrifícios, ordenam sacerdotes e constroem templos aos santos. Portanto, a prática ainda que materialmente é diversa. Ademais, como explicamos na nossa exposição, praticamente todos os atos externos, em si mesmos, não comprovam o culto especial que se deve dedicar a Deus. Assim, de nada serve demonstrar que quase todos os atos externos que os católicos prestam a Deus, também prestam aos santos, pois o culto é distinto, essencial e naturalmente, pelo ato interno, que é a alma do externo, e o único que podem praticar os anjos. O culto é, antes de tudo, uma apreensão intelectual, combinada com a inclinação da vontade em sujeição. O ato externo é, portanto, elemento secundário, ordenado para o interno, para que a inteligência do homem seja provocada aos atos espirituais.
2) Não é verdade que a prática de se ajoelhar perante homens e anjos lida na História Sagrada representa meramente um cumprimento cultural. Como explica o exegeta protestante Edwin Yamauchi: “A prostração era um ato comum de auto-humilhação realizado diante de parentes, estranhos, superiores e especialmente perante a realeza... Seguindo o protocolo egípcio, os irmãos de José fizeram reverência diante dele (Gênesis 42: 6; 43:26, 28), cumprindo assim seu sonho (Gênesis 37: 7, 9, 10)”. (Theological Wordbook of the Old Testament, Vol. I, ed. R. Laird Harris, et al. (Chicago: Moody Press, 1980), pp. 267-269). O Dictionnaire de Théologie Catholique também explica: “A adoração, προσκυνήσις, nos povos orientais, era uma marca de respeito que consistia em se ajoelhar a dois joelhos e a se prostrar ante a terra diante uma pessoa que se pretendia venerar. Beijamos os pés dessa pessoa ou tocamos o chão com a cabeça na frente dela. A prática de adorar não apenas os deuses, mas os reis e grandes personagens existia entre os egípcios. F. Vigouroux, La Bible et les découvertes modernes, 6ª edit., Paris, 1896, t. II, p. 145-146” (A. Chollet. Dictionnaire de Théologie Catholique, (verbete adoration), Letouzey et Ané, Paris, 1923, tomo I)
A famosa Bíblia Protestante King James Version em 1 Crônicas 29,7 utiliza a seguinte tradução: “and worshipped the Lord, and the king”. A Bíblia protestante João Ferreira de Almeida traduz Josué 5, 14 do seguinte modo: “Então, Josué se prostrou sobre o seu rosto na terra, e o adorou...” (um anjo). São Jerônimo em sua Vulgata traduz para adorat/adoravit passagens mencionadas nas provas. Ele estava bem familiarizado com a cultura dos hebreus. O próprio Calvino chama de adoração os exemplos bíblicos, como referimos.
3) Em relação a Cornélio, duas respostas são possíveis. Segundo São Jerônimo (Contra Vigilantium), Cornélio pensou que alguma divindade residia em Pedro, e portanto, foi justamente corrigido. Ou, segundo São João Crisóstomo (Homilia 23 sobre Atos), Cornélio piedosamente venerou Pedro, mas Pedro recusou esta honra por modéstia.
Em relação a São João, apresentamos duas respostas, novamente. Segundo Santo Agostinho (q. 61 de Genesi), São João poderia ter se confundido crendo que o anjo era o próprio Cristo, pois o anjo havia dito “Eu sou o primeiro e o último, e estava morto, e eis que agora eu vivo”. Assim, São João foi corrigido não por um erro de adoração, mas por um erro de pessoa. Outra posição é que o anjo recusou a adoração de São João em reverência à humanidade de Cristo, pois queria deixar patente a dignidade a que, pelos méritos de Cristo, o homem subiu, equiparando–se aos anjos. Neste sentido, note-se que após a recusa da adoração pelo anjo (Apocalipse 19), São João novamente o adora (Apocalipse 22). Estaria São João tão esquecido ou indócil às palavras do anjo? Assim, parece que ninguém errou na ocasião.
4) Como foi dito na nossa exposição, “religião” pode ser entendida em sentido estrito, como virtude especial, confundindo-se com a latria, e assim está certo Santo Agostinho quando diz que o culto de religião não se deve a anjos e santos. Mas a mesma expressão pode ser tomada em sentido lato, significando qualquer culto relacionado à excelência espiritual ou sobrenatural criada, ou ainda mais largo... Explica o próprio Santo Agostinho: "Segundo o latim vulgar, não apenas entre os ignorantes como também entre os cultos, se diz que a religião deve ser manifestada aos parentes e afins e em qualquer necessidade. Este termo não evita ambiguidades quando se atribui ao culto de Deus, pois não se pode com certeza afirmar que o termo religião se atribua só a este culto (cultu)”. (De Civitate Dei, X) O próprio Santo Agostinho diz que os cristãos “celebram o memorial dos mártires com solenidade religiosa (religiosa solemnitate)” (Contra Faustum Manichaeum XX, cap. 21).
Além disso, o culto prestado aos santos, indiretamente, está relacionado à virtude da religião, uma vez que a “devoção que se tem aos santos, vivos ou mortos, não termina neles, mas chega até Deus, pois os veneramos como representantes de Deus” (ST II-II, 82, 2 ad 3) A questão 82 era “Se a devoção é um ato de religião”, onde Santo Tomás demonstrava que sim.
5) Sobre esse argumento propomos duas soluções. Primeira: Basílicas são templos dedicados a Deus em memória e em nome de um santo, como dizemos que o sacrifício da Missa é oferecido a Deus em ação de graças pela glória de um santo específico. Segunda: templos e basílicas não são sinônimos. A edificação se diz templo se construída em razão do sacrifício a Deus, ou basílica se erigida para ornar o sepulcro e em atenção à comodidade dos visitantes das relíquias. Lápide dizemos altar sob a razão de sacrifício ou túmulo (ou sepulcro) enquanto cobre os ossos de algum mártir.
Santo Agostinho sobre o tema explica: “E nós nem construímos templos a nossos mártires como se fossem deuses, mas memoriais (monumentos) como a homens mortos, cujo espírito vive com Deus; nem lhe erigimos ali altares em que sacrifiquemos aos mártires, mas ao único Deus dos mártires e nosso. E nesse sacrifício se lhes nomeia segundo a ordem e lugar que lhes corresponde, como homens de Deus que venceram ao mundo confessando sua fé”. (De Civitate Dei, XXII, 10). Num sermão, junto ao sepulcro de Cipriano, Santo Agostinho diz: “Com efeito, não temos levantado um altar a Cipriano como a um deus, mas que temos feito de Cipriano um altar para o verdadeiro Deus”. (Sermone 313A). Sobre o mártir Santo Estevão: “Nós não temos levantado neste lugar um altar para Estevão, mas, com as relíquias de Estevão, um altar a Deus”. (Sermone 318).
Santo Agostinho faz menção expressa das basílicas: “Testemunhos são disso os santuários dos mártires e as basílicas dos Apóstolos” (De Civitate Dei, I, 1). E ainda: “o jovem cristão Cinérgio, fora sepultado na basílica do bem-aventurado confessor da fé, Félix”. (De cura pro mortuius, 1)
Por Nelson Sarmento.
Referências:
St. Robert Bellarmine. On the canonization and veneration of the saints, Mediatrix Press, 2019. Translated from: De controversiis Christianae Fidei, tomus 2, 1721, Prague.
Refutação da TFP a uma investida frustra, Volume I, São Paulo, junho de 1984, por uma Comissão de sócios da TFP com a colaboração, revisão e posfácio de Antonio Augusto Borelli Machado. https://www.pliniocorreadeoliveira.info/Torreao_1_PDF_pesquisavel.htm#.Xp4jW5l7nIU
(1909). Dulia. In The Catholic Encyclopedia. New York: Robert Appleton Company. Retrieved April 26, 2020 from New Advent: http://www.newadvent.org/cathen/05188b.htm
Tradicionalmente, a Igreja sempre viu na figura apocalíptica da “mulher revestida de sol” (Ap 12,1-18), um símbolo de si mesma e da Virgem Maria. Em sua encíclica Ad diem illum, São Pio X, por exemplo, ensinava que “ora, ninguém ignora que essa mulher significa a Virgem Maria, que, sem violentar sua integridade, engendrou nossa Cabeça.” (parágrafo 16). Pio XII, ao proclamar o dogma da assunção de Nossa Senhora, também recordou: “Os doutores escolásticos vislumbram igualmente a assunção da Mãe de Deus não só em várias figuras do Antigo Testamento, mas também naquela mulher, revestida de sol, que o apóstolo S. João contemplou na ilha de Patmos (Ap 12, l)” (Munificentissimus Deus, 27). Para Bento XVI ela “representa ao mesmo tempo Nossa Senhora e a Igreja. Antes de tudo a ‘mulher’ do Apocalipse é Maria… além de representar Nossa Senhora, este sinal encarna a Igreja, a comunidade cristã de todos os tempos.” (Discurso na Solenidade da Imaculada Conceição da Bem-Aventurada Virgem Maria, Quinta-Feira, 8 de Dezembro de 2011).
Obviamente a gigantesca maioria dos protestantes sempre rejeitou a identificação de Maria com a “mulher” do Apocalipse, preferindo interpretações exclusivas com referência à Igreja ou à Israel. Desde o início da crise na Igreja em 1960, no entanto, a interpretação mariana do texto passou a ser desfavorecida nas academias católicas, tendo, mesmo diante de uma forte Tradição interpretativa no Magistério de vários Soberanos Pontífices, vários teólogos “católicos” passado a questioná-la ou mesmo a negá-la, baseando-se supostamente no chamado “método crítico-histórico” de exegese das Sagradas Escrituras.
Esse breve texto terá por intuito defender a interpretação tradicional da Igreja, demonstrando que é da Virgem Santíssima e da Santa Madre Igreja que o capítulo de Apocalipse em questão se refere.
A autoria do Livro do Apocalipse e suas principais influências
Antes de começarmos a abordar o texto de Apocalipse 12 em si, é necessário discutirmos sua autoria para termos em mente quais suas principais influências. Para isso não podemos deixar de analisar a chamada “literatura joanina” como um todo, ou, pelo menos, a relação entre o Evangelho de João e o Apocalipse de João, que, diferentemente das Cartas de João, de alguma forma contêm temas marianos e possuem alguma importância no estudo da mariologia.
O Evangelho de João foi escrito pelo chamado “discípulo amado” (Jo 21,20-24), unanimemente identificado pela Tradição com o Apóstolo João. Sua identidade apostólica é facilmente reconhecida pelo fato do autor identificar-se na última ceia como tendo reclinado sua cabeça sob o peito do Senhor (cf. Jo 13,23), quando se sabe que na última ceia Jesus estava acompanhado apenas de seus Doze Apóstolos (Cf. Mt 26,20; Mc 14,17; Lc 22,14). Os escritos de Santo Irineu de Lião (que foi discípulo de São Policarpo de Esmirna, que, por sua vez, foi discípulo do próprio Apóstolo São João), escritos no século II, concordam com a visão tradicional: “João, o discípulo do Senhor, que também se reclinara no peito, publicou um Evangelho durante sua residência em Éfeso, na Ásia.” (Contra as Heresias III, 11, 7).
Igualmente escrito por um autor identificado pelo nome de “João”, foi o Livro do Apocalipse (cf. Ap 1,1.4.9). A Tradição novamente favorece a identificação transmitida ao longo dos séculos de que este João apresentado como autor tenha sido o próprio Apóstolo João, ainda que, diferentemente da unanimidade encontrada nos escritos dos Santos Padres acerca da autoria do Quarto Evangelho, tenha havido alguma divergência nos primeiros séculos de cristianismo sobre quem foi o autor do Apocalipse, especialmente por parte de Dionísio de Alexandria e Eusébio de Cesaréia, que propuseram que o livro teria sido escrito não pelo Apóstolo que escreveu o Evangelho, mas por um fictício “João, o presbítero”. Dionísio e Eusébio, no entanto, negaram a identificação de João de Patmos com o filho de Zebedeu influenciados por questões teológicas relacionadas a uma suspeita de que o Livro do Apocalipse promovesse a heresia mileniarista [1], o que obviamente não é o caso [2], motivo pelo qual sua tese foi sendo esquecida ao longo dos séculos (principalmente após a definição do cânon do Novo Testamento).
A evidência externa, por sua vez, suporta a identificação do autor do Apocalipse com o discípulo amado. Sem fazer qualquer distinção entre João de Patmos e o Apóstolo João, por exemplo, Santo Irineu aplica a João, autor do Apocalipse, o mesmo epíteto que aplicara ao autor do Quarto Evangelho, chamando-o de João, “o discípulo do Senhor” (Contra as Heresias 4.20.11). Isso certamente aponta para uma identificação entre os dois personagens. São Justino de Roma também identifica João de Patmos como “um dos apóstolos de Cristo” (Diálogo com Trifão, 81.4), sendo essa visão compartilhada por outros autores dos séculos II-III como o Cânone Muratoriano, Clemente de Alexandria, Tertuliano, Hipólito e Orígenes.
As demais argumentações feitas contra a identificação dos autores das duas obras com o filho de Zebedeu são insustentáveis. A diferença de estilo entre o Evangelho de João e o Livro do Apocalipse, por exemplo, se explica por motivos literários óbvios, já que os gêneros textuais das duas obras são completamente diferentes. Além disso, os supostos “erros” de ortografia atribuídos ao autor do Apocalipse – que não seriam encontrados no Evangelho de João – são claramente esperados ao se considerar que tal obra fora escrita quando São João ainda estava exilado em Patmos, sem o auxílio de bons copistas (como São Marcos e São Silvano, no caso de São Pedro, cf. I Pd 5, 12) e muito menos com tempo para revisar a obra (diferentemente de quando escreveu seu Evangelho).
As várias evidências internas igualmente favorecem à identificação tradicional dos dois “Joãos”. O Dr. Scott Hahn e Mark Shea, por exemplo, escrevem: “André Feuillet, em seu livro The Apocalypse, apresenta um resumo persuasivo dos argumentos que apóiam a autoria do apóstolo João. Entre as razões mais convincentes estão as muitas semelhanças entre o modo como a linguagem teológica é usada no Livro do Apocalipse e no evangelho de João. Por exemplo, esses são os dois únicos livros do Novo Testamento que usam a frase “água viva”. No Evangelho de João, essa água viva flui do coração daqueles que crêem em Jesus (739), enquanto em Apocalipse ela flui do trono de Deus localizado na nova Jerusalém, que é a noiva de Cristo (Apocalipse 7: 17 e Ap 22: 1). A mesma linha mística de pensamento parece estar no centro de ambos os livros, e há outras semelhanças não encontradas em nenhum outro lugar. No Novo Testamento, Jesus Cristo é apresentado como “o Cordeiro” duas vezes no Evangelho de João, e 28 vezes em Apocalipse. Jesus é a Palavra de Deus” (Jo 1:1, 1:14 e Ap 19: 13). e a Igreja é “a noiva” (Jo 3: 29. Ap 21: 2, Ap 21: 9 e Ap 22: 17). A ausência de qualquer templo na Nova Jerusalém (Ap 21 22) parece estar alinhada com a declaração de Jesus à mulher samaritana no poço: “Mulher, acredite em mim, está chegando a hora em que nem neste monte nem em Jerusalém você adorará o Pai (Jo 4: 21)” [3].
Tanto as evidências externas quanto as evidências internas, portanto, apontam para um mesmo autor das duas obras, o Apóstolo João, cuja teologia utilizada em seu Evangelho influencia diretamente a teologia utilizada no Livro do Apocalipse. Se quisermos entender as simbologias por trás dessa última obra, temos que, em primeiro lugar, levar em conta as simbologias da primeira. Por isso, novamente, antes de passarmos a discutir propriamente o texto de Apocalipse 12, discutiremos brevemente a mariologia contida no Evangelho de São João.
A Virgem Maria no Evangelho de São João
Embora sem citá-la nominalmente, o Evangelho de João, refere-se à mãe de Jesus em duas ocasiões: nas Bodas de Caná (cf. Jo 2, 1-12) e aos pés da cruz (cf. Jo 19,25-26). Em ambas, Jesus utiliza-se do termo “Mulher” (em grego γύναι) para descrever sua mãe, algo sem precedentes para os costumes e literatura da época [4], o que indica que aqui João está atribuindo à Maria um papel simbólico associado ao termo e não apenas utilizando-se de uma mera descrição do sexo feminino (como fez com Maria Madalena e a Samaritana) [5]. Que simbologia seria essa então? Edward Siri argumenta convincentemente em sua obra “Rethinking Mary in the New Testament”: “A maneira como João estabelece o relato das Bodas em Caná deixa claro que ele está orientando os leitores a pensar no diálogo de Jesus com Maria à luz da história de Gênesis.” [6].
Sri, então, faz-nos observar primeiro como o Evangelho de João se inicia com um derramamento de palavras-chave e imagens do relato da criação em Gênesis: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus; Todas as coisas foram feitas através dele, e sem ele nada do que foi feito foi feito. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. A luz brilha nas trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela.” (Jo 1: 1-5). Ora, a primeira frase do Evangelho – “No princípio” – remete imediatamente ao primeiro versículo do livro de Gênesis: “No princípio, Deus criou os céus e a terra” (Gn 1: 1). São João passa a contar então sobre luz, vida, criaturas e luz brilhando nas trevas – imagens tiradas diretamente da história da criação em Gênesis 1. Sri explica então que, com base em muitos temas de Gênesis 1, São João coloca a história de Jesus no pano de fundo da história da criação, destacando como Jesus vem para renovar toda a criação [7]. Trata-se do tema da “recapitulação”, tão comum aos escritos de Santo Irineu de Lião (um discípulo de São Policarpo, discípulo do próprio Apóstolo João) [8].
São João continua, então, as alusões ao Gênesis em sua sequência inicial de eventos, estabelecendo uma série de sete dias, que, segundo Sri, seria uma “nova semana de criação” [9]. “Ignace De la Potterie demonstra belamente como, no primeiro capítulo, João estabelece uma sucessão de quatro dias. Depois de contar as discussões de João Batista com os sacerdotes e levitas no primeiro dia da narrativa do Evangelho (1: 19-28), João demarca um segundo dia em 1:29 com as palavras “No dia seguinte” e usa a mesma frase para observar um terceiro dia em 1:35 (“no dia seguinte”) e um quarto dia em 1:43 (“no dia seguinte”). Finalmente, após a sequência desses primeiros quatro dias no Evangelho, a história do banquete de casamento em Caná é apresentada como se se realizasse três dias após o quarto dia: “No terceiro dia houve um casamento em Caná…” (2: 1). O terceiro dia após o quarto dia seria o sétimo dia no Evangelho de João.” [10]. E continua Sri: “De la Potterie argumenta que a história das Bodas de Caná, em João 2, deve ser vista como o clímax da nova semana de dias que começou em João 1. Ele conclui: “Assim, os dias são enumerados exatamente; na realidade, temos aqui o relato de uma semana de dias… Onde a festa nupcial de Caná ocorreria no sétimo dia, o último dia da semana” (cf. De La Potterie, Mary in the Mystery of the Covenant, 165). Portanto, com as imagens iniciais da criação (“no princípio”, luz, vida, luz brilhando nas trevas) e a série de sete dias, o casamento em Caná toma lugar no sétimo dia, o clímax da nova semana da criação no Evangelho de João”[11], onde Jesus realiza seu primeiro milagre e pela primeira vez “manifestou a sua glória” (cf. Jo 2,11), outra referência que liga as Bodas de Caná ao preâmbulo do Quarto Evangelho (cf. Jo 1, 14).
Diante desse cenário em que se fundamenta as Bodas de Caná, quem seria Maria então? Sri explica: “Agora, estamos prontos para entender o profundo significado de Jesus chamando sua mãe de “mulher” na festa de núpcias em Caná. Pense em como o uso de João do tema da Criação de Gênesis lança luz sobre isso. É como se João estivesse preparando seus leitores para a cena de Caná, decorando o palco com adereços de Gênesis 1: “No princípio…”. Todas as coisas criadas através dEle. Luz. Vida. Luz brilhando nas trevas. Uma série de sete dias. João claramente quer que vejamos a história de Caná à luz da história da criação. Então, subindo ao palco estão os dois personagens principais, Jesus e Maria. Contra todas essas imagens de Gênesis-Criação no palco, Jesus chama sua mãe de “Mulher” (Jo 2,4). Em que mulher devemos estar pensando? Claramente, a mulher de Gênesis, Eva. (…) De fato, a conexão com Eva faz sentido para a mãe de Jesus em Caná, mas não é tão forte com a Samaritana, a mulher apanhada em adultério, ou Maria Madalena. Jesus pode chamá-las de “mulher” também, mas não em cenas que tenham tantas imagens do Gênesis em segundo plano. Mas em Caná, uma cena repleta de alusões tão ricas a Gênesis, Jesus chamando Maria de “mulher” não é apenas o discurso educado de Maria Madalena ou da mulher samaritana. Pelo contrário, o título revela que Maria é a mulher de Gênesis 3:15. Ela é a Nova Eva” [12].
Mas o texto das Bodas de Caná não cessa seu significado no tema da Nova Eva (Gn 3,15). Ao atribuir o ato de providenciar o vinho do casamento à Jesus, São João atribui-o também o papel do próprio noivo [13], evocando às antigas esperanças judaicas de que Deus viria como um “noivo” renovar sua aliança com sua “noiva”, Israel (Is 62:4-6; Jer 2:1-2; Os 2: 16-25; Jo 3:29) [14]. Maria Santíssima, por outro lado, é apresentada por São João como a Filha de Sião, a noiva mística do Cordeiro e representante perfeita do povo de Deus: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo 2,5), diz ela. A. Serra, depois de examinar a fundo a utilização dessa fórmula no Antigo Testamento, conclui que as palavras da mãe de Jesus reproduzem uma fórmula técnica que aparece várias vezes no Antigo Testamento, e sempre em relação com a Aliança [15]. São as palavras de aceitação da Aliança (Cf. Ex 19, 8; 24, 3-7; Dt 5,27.49). Serão as palavras para renovar a Aliança mais tarde (Cf. Is 24, 24; Es 10,12; Ne 5,12). A fórmula aparece pela primeira vez em Ex 19,8: “No terceiro mês depois da saída dos filhos de Israel da terra do Egito…, chegaram ao deserto do Sinai… Moisés subiu a Deus e Javé o chamou do alto da montanha dizendo: “Fala assim à casa de Jacó, diz isto aos filhos de Israel… Se ouvis minha voz e guardais minha aliança, vós sereis minha propriedade entre todos os povos… Tais palavras são as palavras que tens de dizer aos filhos de Israel. Moisés veio e chamou os anciãos de Israel e lhes expôs todas essas palavras, como Javé lhe havia mandado. O povo todo respondeu: Nós faremos tudo quanto disse Javé. Moisés foi transmitir a Javé as palavras do povo.” (Ex 19, 1-8). Conclui o Pe. A. Serra: “João coloca nos lábios de Maria a profissão de fé que toda a comunidade do povo escolhido pronunciou um dia diante do Sinai” [16]. Maria passa a representar todo o Israel, personificando o povo de Deus em um contexto da Nova Aliança. Assim como a Lei foi dada no Monte Sinai no “terceiro dia” (Êx 19: 16) e a glória de Deus foi manifestada ao povo (Êx 19: 16 – 17; 24: 15 – 17), assim também Jesus lança seu ministério público neste casamento que ocorre “no terceiro dia” (2: 1), realizando um milagre que revela sua glória (2: 11). E assim como as pessoas no Sinai responderam às palavras de Deus com fé. “Nós faremos tudo quanto disse Javé.” (Êx 24: 3, 7), assim Maria ecoa essa fórmula de obediência ao pacto quando exorta os servos: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo 2: 5). Ela, portanto, permanece como a Filha de Sião, representante do povo de Deus, um modelo de fé, falando as palavras de fidelidade à aliança [17]. Vale ressaltar que aqui, a mãe de Jesus é considerada enquanto sua “esposa” apenas em sentido místico, não literal, como fizeram os demais Padres da Igreja [18].
Aos pés da cruz (Jo 19,25-27), São João evocará em conjunto novamente as figuras da Nova Eva e da Filha de Sião para descrever a Virgem Maria. Abordando a derrota final do príncipe deste mundo (cf. Jo 12,31-32), o Evangelista colocará pela segunda vez na boca de Jesus o termo “Mulher” para se referir à sua própria mãe (algo que, como vimos acima, é incomum, possuindo provavelmente um valor simbólico [19]) que será chamada por Ele de “mãe” do “discípulo amado”, que personifica toda a Igreja [20]. Assim, São João retoma a profecia do Protoevangelho que previa a derrota final da serpente infernal (Gn 3,15), por meio de uma nova “mulher”, a Nova Eva, que seria a antítese da Eva caída, que igualmente fora outrora chamada pelo Antigo Adão de “a mãe de todos os viventes” (Gn 3,20) [21]. Mais significante, no entanto, é o paralelo entre João 19:25-27 e João 16:20-22, que, abordando igualmente o tema da morte de Jesus na cruz, possuem correspondências verbais (“mulher”, “hora”) e paralelos temáticos (maternidade, morte de Cristo), associando-as [22]. A passagem de João 16,20-22, que claramente faz referência às dores de parto da Filha de Sião messiânica (Isaías 26), diz: “A mulher, quando vai dar à luz, fica angustiada, porque chegou a sua hora. Mas depois que a criança nasceu, já não se lembra mais das dores, na alegria de um homem ter vindo ao mundo.” (Jo 16,21). Explica Sri: “no Calvário, Maria encarna a alegoria das dores de parto. Ela permanece como aquela “mulher” na “hora” da morte de seu Filho. Mais do que qualquer outro personagem do Quarto Evangelho, Maria exemplifica a mãe que suporta as dores metafóricas do nascimento, que retratam poeticamente as provações que os discípulos de Cristo enfrentam por sua paixão e morte.” [23]. Essas são as duas simbologias associadas à Virgem Maria por São João em seu Evangelho.
A “mulher revestida de sol” de Apocalipse 12
Analisemos agora o texto do Apocalipse 12 propriamente dito: “Apareceu em seguida um grande sinal no céu: uma Mulher revestida do sol, a lua debaixo dos seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas. Estava grávida e gritava de dores, sentindo as angústias de dar à luz. Depois apareceu outro sinal no céu: um grande Dragão vermelho, com sete cabeças e dez chifres, e nas cabeças sete coroas. Varria com sua cauda uma terça parte das estrelas do céu, e as atirou à terra. Esse Dragão deteve-se diante da Mulher que estava para dar à luz, a fim de que, quando ela desse à luz, lhe devorasse o filho. Ela deu à luz um Filho, um menino, aquele que deve reger todas as nações pagãs com cetro de ferro. Mas seu Filho foi arrebatado para junto de Deus e do seu trono. A Mulher fugiu então para o deserto, onde Deus lhe havia preparado um lugar para aí ser sustentada por mil duzentos e sessenta dias. (…) O Dragão, vendo que fora precipitado na terra, perseguiu a Mulher que dera à luz o Menino. Mas à Mulher foram dadas duas asas de grande águia, a fim de voar para o deserto, para o lugar de seu retiro, onde é alimentada por um tempo, dois tempos e a metade de um tempo, fora do alcance da face da Serpente. A Serpente vomitou contra a Mulher um rio de água, para fazê-la submergir. A terra, porém, acudiu à Mulher, abrindo a boca para engolir o rio que o Dragão vomitara. Este, então, se irritou contra a Mulher e foi fazer guerra ao resto de sua descendência, aos que guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus. E ele se estabeleceu na praia.” (Ap 12,1-6.13-18).
Perceba que aqui, o texto novamente faz referência à duas simbologias vetero-testamentárias: a da Nova Eva (Gn 3,15) e a da Filha de Sião (Is 26,27; 66,7-9). Da primeira simbologia, recupera-se do Gênesis o tema da “inimizade” para descrever o confronto final entre a “mulher” (v. 1) e sua “semente” (v. 5.17) contra a “antiga serpente” (v. 9,14, 15). Da segunda, o tema da “mulher” Sião que geme em “dores de parto” (v. 2), dá a luz ao Messias (v. 5) e foge para o “deserto” (v. 6.14). O sol, a lua e as doze estrelas igualmente evocam o sonho de José acerca de Israel (cf. Gn 37,7-9). A criança “que deve reger todas as nações pagãs com um cetro de ferro”, por sua vez, é uma clara alusão ao Messias (cf. Sl 2,9).
Ora, em seu Evangelho, São João utiliza-se em conjunto dos dois símbolos supracitados (i.e. Nova Eva e Filha de Sião) para designar apenas uma personagem específica: a Virgem Maria. Aqui não devemos ler, portanto, de maneira diferente: é da mãe de Jesus – com quem São João viveu até sua gloriosa Assunção – que o texto se refere.
O tema da “mulher” que, em “dores de parto”, dá a luz ao Messias é evocado pelo próprio São João em Jo 16,20, uma passagem que, como demonstramos acima, está intimamente relacionada com Jo 19,25-27, que trata da Virgem Maria. Tomando por base esses dois textos, compreende-se que as dores a que João se refere não fazem alusão ao parto de Maria em Belém (que foi virginal e indolor), mas ao “parto” místico de Maria no Calvário. O sofrimento de Maria com a morte de Cristo é comparada à dores de “parto”, e sua alegria com a ressurreição de Cristo, como um “novo nascimento” do Messias: “De fato, o Novo Testamento freqüentemente usa imagens de nascimento em geral para representar a Ressurreição de Cristo (1 Cor 15: 20, 36; Col 1: 18; Atos 13: 33; Jo 12: 24; 16: 20 – 21), que é algo que o próprio livro do Apocalipse faz ao descrever Jesus como o “primogênito dos mortos” (Ap 1: 5). Da mesma forma, as imagens de dores de parto estão associadas aos sofrimentos de Cristo no Calvário (Em 16:20-21; cf. Atos 2:24). É assim que é usado aqui em Apocalipse 12: as imagens das dores de parto em 12: 3-4 apontam metaforicamente para o sofrimento em torno da morte de Jesus, enquanto o parto da criança em 12:5 descreve a ressurreição de Jesus. Assim, Apocalipse 12 deve ser visto como uma recontagem apocalíptica, não principalmente da história do Natal, mas do Mistério Pascal como um todo. Além disso, o fato de que a palavra específica em Apocalipse 12:2 para descrever a mulher “angustiada” (basanizomenē) nunca ser utilizada na Septuaginta, nos Apócrifos ou nos escritores dos Padres para descrever as dores físicas reais do nascimento nos dá mais uma razão para concluir que Apocalipse 12 não está focado no nascimento físico de Jesus, mas sim usando a imagem da dor do parto metaforicamente.” [24].
A Igreja, por sua vez, também é ressoada secundariamente no texto já que a Virgem, enquanto Filha de Sião, representa todo o povo de Deus (isto é, tanto a Antiga quanto a Nova Aliança). É forçoso se atribuir à Igreja a interpretação primária do texto pois na literatura joanina, as figuras da “Nova Eva” e da “Filha de Sião” utilizadas em conjunto não são as simbologias clássicas para se designar a Igreja, mas a Virgem Maria (como mostramos acima). As simbologias clássicas para descrever a Igreja são as simbologias da “noiva” ou da “esposa” de Cristo (vide os capítulos 19-20 do Apocalipse). Além disso, a associação das passagens de Jo 16,20-21 e Jo 19,25-27 com o texto de Ap 12,1-17 claramente dá a prioridade à interpretação mariana, ainda que, como em Ap 17, não exclua-se também a possibilidade de interpretações secundárias ou paralelas [25].
a) A descrição da mulher (v. 1)
Estabelecida a identidade da “mulher”, faz-se necessário comentar um pouco do restante dos temas associados a ela pelo capítulo. Segundo o versículo 1, a “mulher” foi apareceu a São João “revestida do sol”, com “a lua debaixo dos seus pés” e “na cabeça uma coroa de doze estrelas”. Ora, o verbo grego empregado para designar o ato de “revestir-se” é o verbo “περιβεβλημένη”, que, no contexto das simbologias do Apocalipse, faz referência à aquilo que é próprio de um indivíduo, assim como a púrpura e o escarlate são próprios da grande meretriz do final do livro (Ap 17,4; 18,6). Ao dizer que Maria se “reveste de sol”, João está afirmando que é próprio de Maria estar revestida de Cristo, simbolizado como o “sol nascente” pelos primeiros cristãos (cf. 1 João 1,5; Lucas 1,78; Mateus 17,2; Malaquias 4,2; 2 Samuel 23,4). Como quem está com Cristo não tem parte com o demônio (1 Cor 6,14-15; Rm 6,14), através de sua simbologia, João está implicitamente ressaltando a absoluta santidade daquela que o Senhor lhe confiou por mãe (cf. Jo 19,25-27).
Ao afirmar que a mulher possui “a lua debaixo dos seus pés” (Ap 12,1), o discípulo amado utiliza-se de uma linguagem própria para definir oposição entre duas entidades, assim como o triunfo da primeira sob a segunda (cf. Rm 16,20; 1 Cor 15,25; etc). A lua aqui assume clara conotação negativa, já que contrasta com a mulher que, como argumentamos acima, está revestida de santidade (simbolizada pelo “sol”). A partir disso, pode-se concluir que o símbolo da “lua” refira-se ao pecado, comumente associado na Igreja Primitiva e especialmente na literatura joanina com as simbologias da noite e da escuridão (cf. Jo 1,5; 12,46; 1 Jo 1,6; 2,9-11; e também S. Paulo em 1 Ts 5,5; etc). Pode ainda ser uma demonstração da autoridade que a “mulher” tem sob o mundo, já que muitas vezes no Antigo Testamento, Deus era identificado como descendo do céu e “calcando aos pés escuras nuvens” (2 Samuel 22,10; Salmo 18 (17), 9-12). A mulher, associada a Ele e revestida dEle, tem domínio, portanto, também sob a terra (ainda que se trate, obviamente de um poder dado por Ele, distinto do dEle e a Ele condicionado).
O símbolo da “coroa de doze estrelas”, por sua vez, está profundamente relacionado com o fato de seu Filho ser um Rei Davídico (cf. Ap 12,5; Sl 2,9). Nas dinastias davídicas, um rei tinha sua mãe como Rainha em vez de sua esposa, porque ele raramente tinha uma esposa, mas muitas mulheres. Partilhar o poder com muitas esposas seria muito difícil, e como ele só tinha uma mãe, a ela era atribuído o título de “Rainha”. Quase toda vez que um novo rei é introduzido em 1 e 2 Reis, por exemplo, sua mãe é mencionada. Ela era um membro da corte real, usava uma coroa, sentava-se em um trono, e compartilhava do reinado do rei (2 Reis 24:12, 15; Jer. 13: 18-20). Ela atuou como conselheira para seu filho (Pr 31), uma defensora para o povo e como uma intercessora para os cidadãos do reino (1Rs 2: 17-20). Ela era chamada de Gebirah (em hebraico גְּבִירָה, “Rainha-mãe”). A coroa da “mulher” apocalíptica revela seu status real: trata-se da Rainha do Céu, cujo domínio se estende para todo o povo de Deus. O símbolo das “12 estrelas” representa as 12 tribos de Israel e os 12 apóstolos do Cordeiro, sob as quais a “mulher” exerce sua autoridade.
b) A fuga da mulher para o “deserto” (v. 6 e 14)
Após a ascensão de seu Filho Divino (v. 5), São João enfatiza duas vezes a fuga da mulher para o “deserto” (v. 6 e 14). Na literatura bíblica, a simbologia do “deserto” faz alusão à um lugar seguro, protegido pela presença divina (cf. Ex 3,18; 4,27; 7,16). É um “lugar” – como o próprio São João diz – “fora do alcance da face da serpente” (v. 14), onde “o príncipe deste mundo” (Jo 12,31-32) já não tem mais domínio. É um símbolo do Paraíso, o “lugar preparado por Deus” (Hemotasai topon) para os justos após a Ressurreição (cf. Jo 14,2-3). Ao diz que a mulher já recebeu o seu “lugar preparado por Deus” (Topon hētoimasmenon), o discípulo amado afirma implicitamente sua Assunção corporal aos Céus, prefigurando escatologicamente aquilo que a Igreja receberá também no último dia. A ela já foi aplicada aquela promessa que Cristo fez aos seus discípulos no Quarto Evangelho: “E depois que eu tiver ido e preparado um lugar para vós, voltarei e vos levarei comigo, a fim de que, onde eu estiver, estejais vós também.” (Jo 14,3).
As “asas de águia” que a mulher recebe (v. 14) são símbolos do cuidado que Deus tem em encaminhar-nos para junto Dele (cf. Ex 19,4), pois a águia é a ave que voa mais alto (cf. Ab 1,4; Pr 30,19). Seu vôo simboliza a jornada para o Céu (cf. Pr 23,5).
O símbolo dos 1260 dias (v. 6) ou “um tempo, dois tempos e a metade de um tempo” (v. 14) evocam o tempo em que a Igreja será perseguida pela terra: “os santos serão entregues ao seu poder durante um tempo, tempos e metade de um tempo. Mas realizar-se-á o julgamento e lhe será arrancado seu domínio, para destruí-lo e suprimi-lo definitivamente.” (Daniel 7:25-26). Isso está também implícito no versículo 17, onde o demônio persegue o “resto da descendência” da Mulher. Quando este tempo acabar, ocorrerá o Juízo Final e a Mulher, finalmente retornará junto do “Senhor com milhares de seus santos” (cf. Judas 1:14).
c) O vômito de Satanás contra a mulher (v. 15)
Mesmo com a mulher indo para um lugar “fora do alcance da face da serpente” (v. 14), Satanás continua tentando destruí-la. Para isso ele abre a boca para vomitar contra ela “um rio de água” (v. 15). Há aí uma possível alusão às várias blasfêmias que Satanás faz contra a “mulher”, com o intuito de destruí-la (cf. Ap 13,5-6). A própria terra porém ajuda a mulher, engolindo o rio que o dragão vomitara, uma imagem extraída de Números (16,30-34). Trata-se do confronto que continua a existir entre Maria Santíssima e Satanás. Deste confronto, sabe-se que a cabeça de Satanás sairá esmagada (cf. Gn 3,15).
d) O resto da descendência da mulher (v. 17)
Apocalipse, por fim, nos afirma que a Igreja (isto é, “os que observam os mandamentos de Deus e guardam o testemunho de Jesus”) são também parte da descendência da “mulher”, mãe do Messias. Na literatura joanina, esse símbolo é comum, tendo sido evocado por João quando Maria estava aos pés da cruz (cf. Jo 19,25-27). Sendo a Filha de Sião, Maria é a mãe espiritual de todo o povo de Deus.
Os Pais da Igreja e a interpretação mariana de Apocalipse 12
A Igreja sempre utilizou a passagem de Apocalipse 12 ora para se referir à ela mesma, ora para se referir à Santíssima Virgem. Segundo um estudo do Pe. Bellarmino Bagatti [26], a interpretação mariana de Apocalipse 12 pode já ser encontrada implicitamente nos escritos de Santo Inácio de Antioquia e na obra apócrifa Historia Fabrii Lignari (cuja versão copta pode datar da Era Pré-Nicênica [27]). Santo Hipólito de Roma, São Metódio de Olimpo e São Vitorino de Pettau, por outro lado, viram na mulher o símbolo da Igreja, perseguida pelo demônio.
No século IV, ao discutir se Maria morreu ou não, Santo Epifânio de Salamia escreveu: “Por outro lado, quando o Apocalipse de João diz ‘E o dragão se apressou contra a mulher que deu à luz a criança do sexo masculino, e havia dado a ela as asas de uma águia, e ela foi levada para o deserto, para que o dragão não possa agarrá-la’ (Ap 12, 13-14), pode ser que esta [profecia] seja cumprida nela. No entanto, eu não afirmo isso com certeza. Não estou dizendo que ela permaneceu imortal, mas também não posso afirmar que ela morreu.”[28]. Até então ele aceitava a doutrina da Assunção da Virgem mas tinha duvidas quanto a sua Dormição. Ele via nessa passagem uma possibilidade de sua imortalidade. Em uma carta posterior, no entanto, Santo Epifânio dirá que Maria “é como Elias, pois era virgem desde o ventre de sua mãe, permaneceu assim perpetuamente, foi assunta (analamba nomenos) e não viu a morte” [29]. Ele nega, portanto, a Dormição e adota uma posição imortalista (assim como seu contemporâneo Timóteo de Jerusalém). Se S. Epifânio se inspirou ou não na passagem para concluir a imortalidade da Virgem não é claro, no entanto.
No século V, a interpretação mariana começa a ficar mais comum. São Quodvultdeus, discípulo de Santo Agostinho, por exemplo, escreve: “Nenhum de vocês ignora o fato de que o dragão era o diabo. A mulher significava a Virgem Maria” [30]. Como os demais Padres, a partir do paralelo Maria-Igreja, Quodvultdeus vê também a figura da Igreja na Mulher do Apocalipse: “A mulher significa Maria, que, sendo Imaculada, trouxe nossa Cabeça Imaculada. Quem mostrou-se também adiante de si mesma a figura da Santa Igreja, já que, como ela permaneceu Virgem trazendo à luz um filho”[31]. No Oriente, São Theotodo de Ancira, por sua vez, saúda Maria nos seguintes termos: “Alegra-te, Mãe revestida de luz e que dá à luz o Sol que não conhece poente!” [32], o que pode ser uma referência à “mulher” do Apocalipse “revestida de sol” (cf. Ap 12,1).
Reforços indiretos à interpretação mariana de Apocalipse 12 são encontrados na grande abundância de Padres que viram na “mulher” de Gênesis 3:15, uma referência à Maria [33], e, é claro, no paralelo que a Igreja Primitiva fazia entre Maria e a Igreja [34].
Conclusão
Concluímos, portanto, que, mediante a análise da simbologia utilizada pelo discípulo amado em seu Evangelho, a interpretação mariana do texto de Apocalipse 12 não só é possível como também é a mais provável enquanto interpretação primária do texto (que não exclui, é claro, uma referência secundária à Igreja enquanto povo de Deus). Mesmo protestantes podem reconhecer isso, desde que, é claro, estejam bem-intencionados em procurar a verdade. Um exemplo disso é o caso do famoso crítico anglicano Richard Bauckham, especialista em literatura joanina e um dos principais adversários acadêmicos de Bart Ehrman (tendo ficado conhecido no mundo inteiro por sua obra Jesus and the Eyewitnesses: The Gospels as Eyewitness Testemony, em que defendia que os Evangelhos foram escritos por testemunhas oculares), que, ao esclarecer sua posição sobre a identidade da "Mulher" do Apocalipse, afirmou: "Ela é a mãe de Jesus e dos cristãos - Eva e Maria, Israel, Sião e a igreja, todas combinadas em uma imagem da essência espiritual do povo da aliança de Deus." (Richard Bauckham, The Theology of the Book of Revelation, 128). A inclusão de Eva nos parece arbitrária, mas ainda assim, a passagem como um todo demonstra que, considerado todos os argumentos acima, é inevitável, na literatura joanina, uma identificação plural da "Mulher" também com Nossa Senhora.
“Eis a Virgem. Qual? A distinta de todas as mulheres, a eleita de todas as virgens, o excelente ornamento de nossa natureza, a glória de nossa raça, a que libertou Eva da vergonha e Adão da ameaça e decapitou a ousadia do dragão.” (Hesíquio de Jerusalém, Oratio V, PG 93, 1465A).
(Texto publicado originalmente no site SalveRoma, em 3 de Fevereiro de 2020)
Referências
[1] Gundry, R.H. “The apostolically Johannine pre-Papian tradition concerning the Gospels of Mark and Matthew,” in Gundry R.H., The old is better: New Testament essays in support of traditional interpretations. Tübingen: Mohr Siebeck, 2005, pp. 49-73.
[2] Para mais informações, ler Catholic Encyclopedia, Millenium and Milleniarism.
[3] Dr. Scott Hahn & Mark Shea, Revelation: An Invitation to a Wedding.
[4] “Não há… nenhum exemplo conhecido de um filho usar esse termo para se dirigir à sua mãe e, portanto, esse vocativo deve ter mais significado do que teria quando, por exemplo, Jesus o usou para se dirigir a Maria Madalena.” (Ben Witherington, John’s Winsdom, (Louisville: Westminster John Knox Press, 1995), 79. Ênfase no original). Cf. Raymond Brown, The Gospel of John (Nova York: Doubleday, 1966), p. 99.
[5] Cf. Ben Witherington, John’s Winsdom, (Louisville: Westminster John Knox Press, 1995), 79.
[6] Edward Sri, Rethinking Mary in the New Testament, p. 157.
[7] Edward Sri, Rethinking Mary in the New Testament, p. 157-160.
[8] Santo Irineu de Lião, Contra as Heresias, Livro V.
[9] Edward Sri, Rethinking Mary in the New Testament, p. 158.
[10] Edward Sri, Rethinking Mary in the New Testament, p. 158.
[11] Edward Sri, Rethinking Mary in the New Testament, p. 159.
[12] Edward Sri, Rethinking Mary in the New Testament, p. 159-160.
[13] Edward Sri, Rethinking Mary in the New Testament, p. 169.
[14] Edward Sri, Rethinking Mary in the New Testament, p. 168-171.
[15] A. Serra, Contributi dell’antica letteratura giudaica per l’esegesi di Gv 2,1-12 e 19,25-27 (Roma 1977), 139 – 229 ; Id., Maria a Cana e sotto la Croce. Saggio di mariologia giovannea (Roma, 1978), 30-37 .
[16] A. Serra, Maria a Cana e sotto la Croce, 30.
[17] Cf. Edward Sri, Rethinking Mary in the New Testament, p. 168-171; Ignace de la Potterie , “La Madre di Gesú e il misterio di Cana”, Civiltà Cattolica 130 (1979), 436. “Embora esse episódio ocorra em um contexto de casamento, o evangelista nunca menciona a noiva. A mãe de Jesus é apresentada como um dos principais personagens do episódio no primeiro verso. E Jesus é a figura central do episódio. Observamos que os cônjuges não são apresentados nesses primeiros versículos, enquanto Jesus e sua mãe são, e, portanto, é muito claro que esses dois personagens (Jesus e Maria) no episódio devem ser simbolicamente tomados como cônjuges.” (Denis Kulandaisamy, “The First Sign of Jesus at the Wedding at Cana: An Exegetical Study on the Function and Meaning of John 2:1-12″, Marianum (2006), vol . 169-170, 101).
[18] cf. Pe. Michael O’Caroll, Theotokos: a Theological Encyclopedia of the Blessed Virgin Mary, p. 333-334.
[19] Cf. Ben Witherington, John’s Winsdom, (Louisville: Westminster John Knox Press, 1995), 79.
[20] Edward Sri, Rethinking Mary in the New Testament, p. 186-188.
[21] Cf. BRAUN, La Mere des fidèles, pp. 77ff. (Eng. ed.: Mother of God’s People, pp. 75ff); GAECHTER, Maria im Erdenleben, pp. 224ff.; P. KEARNEY, “Gen. 3:15 and Johannine Theology", Marian Studies 27 (1976): 99-109; GAROFALO, La Madonna della Bibbia, pp. 132-133; VARÓN VARÓN, Sagrada Escritura, P. 171; PIETRAFESA, La Madonna nella Rivelazione, p. 312.
[22] Edward Sri, Rethinking Mary in the New Testament, p. 187-188.
[23] Edward Sri, Rethinking Mary in the New Testament, p. 187-188.
[24] Edward Sri, Rethinking Mary in the New Testament, cap. 21.
[25] As “sete cabeças” da fera de Ap 17,3 evocam duas simbologias: as sete montanhas sob a qual se assenta a prostituta da Babilônia e seus sete reis. Isso indica que em uma mesma simbologia, São João pode se referir à mais de uma entidade ou pessoa.
[26] Cf. Bagatti, Bellarmino, O.F.M., L’interpretazione mariana di Apocalisse 12,1-6 nel II secolo, Marianum 40, 153-159.
[27] Cf. Bagatti, Bellarmino, O.F.M., L’interpretazione mariana di Apocalisse 12,1-6 nel II secolo, Marianum 40, 153-159.
[28] Santo Epifânio de Salamia, Panarion 78, n. 10-11
[29] Santo Epifânio de Salamina, Panarion 79.5.2 (Holl and Dummer, eds., Epiphanius, vol. 3, 479).
[30] São Quodvultdeus, De Symbolo 3, PL 40, 661.
[31] São Quodvultdeus, De Symbolo 3, PL 40, 661.
[32] São Theodoto de Ancira, Homilia IV in S. Deiparam et Simeonem III, PG 77,1393.
[33] Pe. Dominic J. Unger, Patristic Interpretation of the Protoevangelium, p. 135.
[34] Santo Ireneu de Lião, Adv. Haer. III,10; SC 34,164; Clemente de Alexandria, Paedag. I, 6, 21, PG 8,300-301; Tertuliano, Adv. Marc. 2,4,4-5; PL 2,289A; Santo Efrém da Síria, Hinos sobre a crucificação, 4,17; CSCO 249, p. 43; Santo Ambrósio de Milão, In Lucam 2,7; PL 15, 1555; São Gregório de Nissa, De virg. 2: PG 46,324B; Hegemônio, Acta Archelai, 55,3; PG 10,1508; Santo Epifânio de Salamia, Haer. 78, 19; PG 42,730; Santo Agostinho de Hipona, Serm. Denis, ed. Morin, 8, p. 163; São Cirilo de Alexandria, Hom. Div. 4; PG 77,996B-C; São Beda, o Venerável, In Luc. expos., I, cap. 2, PL 92, 330.
I. Introdução
Tertuliano de Cartago, um autor cristão que viveu entre o fim do século II e o início do século III, ficou historicamente conhecido no estudo da mariologia por ter sido o único dos tradicionalmente identificados “Padres da Igreja” a ter negado a doutrina da virgindade de Maria depois do parto. A razão disso é simples: quando, no século IV, São Jerônimo escreveu sua réplica ao heresiarca Helvídio, não impugnou a parte de sua argumentação que se utilizava da autoridade de Tertuliano para negar a virgindade de Maria, limitando-se, sobre o tema, a escrever: “De Tertulliano nihil amplius dico quam ecclesiasticum hominera non fuiase” (Adv. Helv., PL. 23, 201 B).
O silêncio do santo foi interpretado erroneamente pelos autores posteriores – católicos incluso – como um consentimento tácito com a tese de Helvídio de que Tertuliano teria negado a virgindade de Maria depois do parto. Um dos maiores mariologistas do século passado, o Pe. Gabrielle Roschini, O.S.M., por exemplo, escreveu que, no Ocidente, “negou a virgindade de Maria depois do parto – como também no parto – Tertuliano (c. 202), quando já era herege, como nota o mesmo S. Jerônimo contra os que se apoiavam na autoridade daquele”1. Atitude semelhante tiveram os Padres Luigi Gambero e Michael O’Caroll em suas obras.2 Eles, em geral, utilizavam-se ainda de cerca de uns cinco textos que supostamente corroborariam com a interpretação de Helvídio sobre Tertuliano e a virgindade de Maria: “De monogamia” 8.1-3 (CCL 2:1239), “De virginibus velandis” 6.2-3 (CCL 2:1215-16), “Adversus Marcionem” 4.19 (CCL 1:592-94), “De carne Christi” 7 (CCL 2:886-89) e, por fim, “De carne Christi” 23 (CCL 2:914-15).
Ao refutar Helvídio, São Jerônimo, na realidade, sequer entrou no mérito dos escritos de Tertuliano, sendo-lhe suficiente questionar a autoridade do presbítero apóstata de Cartago sobre o assunto. Há motivos, entretanto, para se questionar a recepção acrítica da interpretação de Helvídio sobre os textos de Tertuliano quanto a este tema. O primeiro é que todos os escritores contemporâneos a Tertuliano afirmavam a virgindade perpétua de Maria3, com Orígenes chegando até mesmo, segundo o Pe. Gambero, “a implicar diretamente que esta é uma verdade já reconhecida como parte integrante do depósito da fé”4. O segundo é que os cinco textos apresentados como “provas” de que Tertuliano teria negado a virgindade de Maria depois do parto não só são insatisfatórios para provar esta tese, como também podem ser utilizados em defesa da virgindade de Maria depois do parto5. Os mariólogos Josef Blinzer6, John McHugh7 e José M. Pedrozo8, são exemplos de autores que discordam da interpretação “tradicional” (i.e. “helvidiana”) desses escritos de Tertuliano e que defendem que as passagens citadas em favor dessa interpretação podem ser lidas de uma maneira a não negar a doutrina da virgindade de Maria post partum.
As teses de Blinzer, McHugh e Pedrozo serão defendidas no presente trabalho. Para isso, analisaremos individualmente cada texto de Tertuliano citado em favor da interpretação helvidiana, prosseguindo para nossas conclusões.
II. Os escritos de Tertuliano
a) “De monogamia” 8,1-3:
“A monogamia e a castidade são as duas sacerdotisas de santidade cristã: uma modesta em Zacarias o sacerdote, outra absoluta em João, o mensageiro [João Batista]. Uma apazigua Deus; a outra prega Cristo; uma proclama um sacerdote perfeito; a outra exibe “mais do que um profeta” - ele que não só tem pregado ou pessoalmente apontado, mas que batizou Cristo. Pois quem era mais digno de realizar o rito iniciático sobre o corpo do Senhor, do que carne semelhante em tipo àquela que concebeu e deu à luz esse [corpo]? E na verdade era uma virgem, prestes a casar-se uma vez por todas depois do seu parto, que deu à luz Cristo, para que cada título de santidade pudesse cumprir-se na parentela de Cristo, por meio de uma mãe que era tanto virgem, como esposa de um só marido.” (Tertuliano de Cartago, “De monogamia”, 8, 1-3; PL 2, 939B; CCL 2:1239)
Neste texto, Tertuliano afirma que existem duas virtudes que expressam a santidade cristã: uma é a monogamia e a outra é a castidade. Ele afirma que Zacarias, pai de São João Batista, é um exemplo da primeira enquanto São João Batista é um exemplo da segunda. Maria, por sua vez, conteria ambas as virtudes, sendo virgem e casada ao mesmo tempo “para que cada título de santidade pudesse cumprir-se na parentela de Cristo”. Não há nenhuma negação explícita da virgindade de Maria post partum nessa passagem.
O teólogo modernista John Meier sugere que haveria uma crítica implícita à virgindade de Maria nesta passagem pois, segundo ele, “o paralelo [de Maria] com Zacarias sugere naturalmente a relação sexual normal e fértil.”9 Dada a devida vênia, a interpretação de Meier é obviamente uma interpretação extensiva, pois apenas o status monogâmico de Zacarias está em questão no argumento de Tertuliano. Inferir qualquer coisa além disso é ir além do que diz o próprio texto quanto a essa questão.
Muito mais significativo, no entanto, é o paralelo que o texto faz entre a castidade de Maria e a castidade de São João Batista, um nazireu cuja castidade foi, de acordo com o próprio Tertuliano, uma castidade “absoluta”. Argumenta o Pe. McHugh: “Aqui Tertuliano está argumentando contra o re-casamento de viúvas e, portanto, está preocupado em enfatizar que Maria foi casada apenas uma vez. Não há, entretanto, nenhuma indicação de que ela tenha consumado esse casamento. De fato, na frase que precede a que acabamos de citar, ele fala do Batista como um homem “de total continência” (integra continentia) e de Zacarias, seu pai, como “casto em um casamento” (monogamia pudica) (ver 8,1: CC 2.1239, linhas 4=5 = ML 2.939 A). Ao comparar o Batista com Maria, portanto (ele era “eiusmodi caro qualis et concepit et peperit”), Tertuliano parece implicar que Maria permaneceu sempre virgem, assim como o Batista, embora ele não o diga explicitamente. Comparado com esta afirmação sobre o Batista, a mera afirmação de que Maria foi casada após o nascimento de Jesus (semel nuptura post partum) não é evidência de que Tertuliano acreditava que este casamento tivesse sido consumado, particularmente porque a sua ênfase não se baseia no fato de casamento, mas sobre o fato de que Maria se casou apenas uma vez.”10.
E, contra as interpretações de Meier, responde Pedrozo: “Primeiro de tudo, ele [Tertuliano] está argumentando contra o re-casamento de viúvas. Para alcançar a santidade cristã, acredita ele, há duas opções a seguir: monogamia ou continentia. Ele prossegue desenvolvendo uma analogia entre Zacarias e seu filho João Batista como representantes dessas duas opções: “monogamia et continentia, alia pudica in Zacharia sacerdote, alia integra in Ioanne antecursore, alia placans Deum, alia praedicans Christum, alia totum praedicans sacerdotem, alia plus praeferens quam propheten.” De acordo com Tertuliano, alguém deveria ser monogâmico, como Zacarias, ou permanecer solteiro como João Batista (e, é claro, neste caso, um cristão seria obrigado a praticar a continência). Mas a ênfase está em ser casado apenas uma vez. Observe que o termo usado por Tertuliano é continentia, não virginitas. Em certo sentido, a virgindade tem apenas um caráter incidental nessa analogia. Tertuliano acrescenta que, devido à santidade de Cristo, era apropriado que ele fosse nascido de uma mulher que era virgem e casada apenas uma vez (uirgine et uniuira). Isso é tudo o que Tertuliano está dizendo. Meier supõe que, como as pessoas casadas geralmente não são guardam perpetuamente a continência, as relações sexuais e a procriação devem ter seguido o caso de Maria e José. Mas não há razão para assumir isso a partir do próprio texto. Que Maria deve ter filhos é óbvio para Meier pelo fato de o próprio Zacarias ter um filho. Mas esta é uma observação irrelevante, uma vez que apenas o status monogâmico de Zacarias está em questão no argumento de Tertuliano. Sua ênfase particular é revelada ainda mais quando ele menciona Ana, a profetisa feminina no templo (cf. Lucas 2:36), que era uidua et uniuira. Para Tertuliano, é irrelevante se ela teve filhos ou não. Ele só está interessado em apontar que Ana era casada, que ela ficou viúva e que ela permaneceu viúva. Portanto, a menos que alguém implore a questão assumindo o que deve ser mostrado, este texto do De monogamia - e similarmente os outros quatro textos supracitados de Tertuliano - não podem ser usados como prova da negação de Tertuliano da virgindade de Maria no pós-parto. De fato, no presente exemplo, poderíamos pressionar a analogia na outra direção. Isso poderia implicar que Maria pertence a ambos os grupos (continente e monogâmico) permanentemente. Afinal, Tertuliano compara a virgindade de Maria diretamente com a virgindade de João Batista (ele não compara Zacarias diretamente com Maria).”11
A monogamia e a continência de Maria são, portanto, comparadas nessa passagem à “monogamia modesta” de Zacarias e à “continência absoluta” de São João Batista. Cada um desses “títulos de santidade” cumpriu-se, de acordo com Tertuliano, na mãe de Cristo. Se essa passagem não prova que Maria, em semelhança a São João Batista, permaneceu em continência absoluta, ela, no mínimo, é insuficiente para provar o ponto de Helvídio e seus seguidores.
b) “De virginibus velandis” 6.2-3:
“Além disso, no que diz respeito à presente passagem, se Maria é aqui colocada no mesmo nível de uma ‘noiva’, de modo que ela é chamada de mulher não por ser uma mulher, mas por ser designada a um marido, segue-se imediatamente que Cristo não nasceu de uma virgem, porque [seria nascido] de uma ‘noiva’, que, por este fato, terá deixado de ser virgem. Considerando que Ele nasceu de uma ‘virgem’ – embora ‘noiva’, mas intacta – reconhece que mesmo uma virgem, mesmo uma intacta, é chamada de ‘mulher’. Pois ele não poderia estar nomeando uma mulher posterior, da qual Cristo não deveria nascer – isto é, alguém que conheceu um homem; mas aquela que estava então presente, que era virgem, também foi chamada de mulher por causa da propriedade desse nome – justificada, de acordo com a norma primordial, (como pertencente) a uma virgem e, portanto, à classe universal das mulheres.” (Tertuliano de Cartago, “De virginibus velandis”, 6, 2-3; PL 2, 897B-898B; CCL 2:1215-16)
A discussão aqui concentra-se na frase “que, por este fato, terá deixado de ser virgem (virum passam)”. Uma interpretação literal da passagem levaria o leitor à conclusão absurda de que Tertuliano estaria defendendo que todas as mulheres passariam a ter relações sexuais após se tornem “noivas” (isto é, serem “designadas a um marido”), o que claramente não está de acordo com o pensamento do autor, conhecido por seu rigor moral e que sempre condenou o sexo pré-marital. O contexto deve, portanto, ser considerado para sua correta interpretação.
No livro em questão, Tertuliano não segue o significado ordinário do termo “virgem” (isto é, aquela que não teve relações sexuais), mas cria o seu próprio significado para o termo:
“Mas mesmo que seja “por causa dos anjos” que ela [a mulher] deve ser velada, sem dúvida a idade a partir da qual a lei do véu entrará em operação será aquela a partir da qual “as filhas dos homens” puderem atrair a concupiscência das pessoas e experimentar o casamento. Pois uma virgem deixa de ser virgem a partir do momento em que se torna possível que ela não o seja. E, portanto, em Israel, é ilegal entregar uma ao marido, exceto após o atestado por sangue de sua maturidade; assim, antes dessa indicação, a natureza é imatura. Portanto, se ela é virgem enquanto não está madura, ela deixa de ser virgem quando se percebe que está madura; e, como não virgem, está agora sujeita à lei, assim como está ao casamento. E os noivos, de fato, têm o exemplo de Rebeca, que, quando estava sendo conduzida - ela ainda desconhecida - a um noivo desconhecido, assim que soube que aquele que ela avistara de longe era o homem, não esperou o alcançar da mão, nem o encontro do beijo, nem o intercâmbio de saudações; mas confessando o que ela sentiu - ou seja, que ela (já) estava casada em espírito - negou-se a ser virgem até então e ali se velou. Oh mulher já pertencente à disciplina de Cristo!” (Tertuliano de Cartago, De virginibus velandis, 11)
Como se pode observar, na obra em questão, Tertuliano usa o termo “virgem” num sentido impróprio que se aplica não para mulheres que nunca tiveram relações sexuais, mas sim para mulheres ou imaturas ou que nunca foram designadas a um marido. Ao ser designada em noivado a Isaac, Rebecca deixa de ser virgem para Tertuliano, apesar de ainda não ter tido qualquer relação sexual. Para Tertuliano, portanto, as mulheres deixam de ser “virgens” no noivado não no sentido de que tiveram relações sexuais, mas porque atingiram a maturidade e foram designadas a um marido.
Temos, portanto, que concordar aqui com a conclusão que o Pe. John McHugh faz dessa passagem: “novamente tudo o que Tertuliano está dizendo é que Maria na época do nascimento de Jesus não conhecia homem”12.
c) “Adversus Marcionem” 4,19:
“‘Quem é minha mãe e meus irmãos?’ (...) Ele estava justamente indignado de que pessoas tão próximas dEle “permanecessem fora”, enquanto uns estranhos estivessem dentro aferrando-se às Suas palavras. Isto é particularmente assim dado que sua mãe e seus irmãos desejavam apartá-lo da obra solene que tinha entre mãos. Mais que negá-los, Ele os desautorizou. Portanto, à pergunta prévia, “Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos?” acrescentou a resposta: “Ninguém senão os que ouvem as minhas palavras e as praticam”. Deste modo transferiu os nomes das relações consanguíneas a outros que considerava mais estreitamente relacionados com Ele por causa da fé (...) Não é surpreendente que preferisse gente de fé aos seus próprios parentes, que não possuíam tal fé.” (Tertuliano de Cartago, “Adversus Marcionem” 4.19; CCL 1:592-94)
A discussão aqui se centra no fato de Tertuliano reconhecer “relações consanguíneas” entre Jesus e seus “irmãos”. Em favor da interpretação helvidiana de Tertuliano, esta passagem seria, segundo Meier, “a mais forte evidência”.13 Não há, no entanto, nada de tão excêntrico no texto que permita Meier a chegar a tão grandes conclusões.
Santo Agostinho, por exemplo, que sempre defendeu que os irmãos de Jesus nada mais eram para Ele do que meros primos14, não só os chama de “os consangüíneos de Maria”15, como também, com relação à Cristo, os identifica como “os seus irmãos segundo a carne”.16 O mesmo ocorre com o cânon XXXII do Concílio Quinissexto de 692 e no Decreto de Graciano do ano de 1142 (p. III, dist. 1, can. 47), que reconhecem os irmãos de Jesus como sendo seus irmãos “segundo a carne”. Nenhum deles nega a virgindade perpétua de Maria, mas apenas reconhece que os irmãos de Jesus possuíam um parentesco biológico verdadeiro com Ele, distinguindo-o do parentesco meramente espiritual (“irmãos segundo a fé”).
Sobre essa passagem, comenta o Pe. McHugh: “Novamente, deve-se afirmar que Tertuliano não disse [nessa passagem] que esses irmãos eram filhos de Maria; suas palavras certamente afirmam que possuíam relações de sangue com Jesus, mas isso não é suficiente para provar que ele acreditava que fossem filhos da mesma mãe. E se ele acreditasse que esses irmãos eram nascidos de Maria, por que ele não o fez em ambas as ocasiões (em De carne Christi 7 e aqui), declarando de forma explícita e acabando com o argumento contra esses docetistas gnósticos com um só golpe?”17
E Pedrozo escreve: “No Adversus Marcionem, 4, 19, Tertuliano de fato responde aos Marcionitas sobre a interpretação deles de Mateus 12:48, argumentando que o significado do texto é que Jesus prefere a relação de fé a uma de sangue. Mas, mais uma vez, apenas se assumirmos o que [eles, Meier e os demais críticos] precisam mostrar - a saber, que os irmãos de Jesus são filhos de Maria - pode-se concluir que as declarações retóricas de Tertuliano constituem uma afirmação explícita contra a virgindade de Maria no pós-parto.”18
Como vários outros Padres da Igreja, nessa passagem, Tertuliano só contrasta o parentesco segundo o sangue dos “irmãos” de Jesus, com o parentesco segundo a Fé da comunidade de discípulos. Nada se diz sobre tipo específico de parentesco que há entre os “irmãos” de Jesus e o próprio Cristo.
d)“De carne Christi”, 7:
“Ele negou a seus pais, então, no sentido em que Ele nos ensinou a negar os nossos – pela obra de Deus. Mas há também outra visão do caso: na mãe abjurada há uma figura da sinagoga, bem como dos judeus nos irmãos incrédulos. Na sua pessoa, Israel permaneceu do lado de fora, enquanto os novos discípulos que se mantiveram perto de Cristo, ouvindo e acreditando, representavam a Igreja, que ele chamava de mãe em um sentido preferível e uma irmandade digna, com o repúdio do relacionamento carnal.” (Tertuliano de Cartago, “De carne Christi”, 7, CCL 2:886-89)
Essa passagem segue a mesma linha de argumentação de “Adversus Marcionem” 4,19. Comenta o Pe. McHugh: “Tertuliano está defendendo a realidade do nascimento de Cristo contra certos docetistas que aparentemente sustentavam que as palavras em Mt 12:48 (“Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?”) continham uma negação implícita, pelo próprio Jesus, de que ele havia entrado em o mundo por nascimento como uma criança. Em resposta, Tertuliano repetidamente insiste que Jesus tinha mãe e irmãos, mas em nenhum lugar declara, ou mesmo insinua, que esses irmãos eram filhos nascidos de Maria. Agora, se ele acreditasse que esses irmãos eram de fato filhos de Maria, certamente esse não teria sido um bom argumento a ser usado contra os docetistas? Os estudiosos modernos argumentam que a existência de tais irmãos e irmãs sublinha a realidade e a integridade da Encarnação; e mesmo aqueles que discordam dessa tese permitiriam que, se Maria tivesse outros filhos, isso sublinharia a realidade da humanidade de Jesus. Tertuliano nunca foi um homem a ignorar um argumento revelador; ele era um advogado nato que nunca perdeu uma oportunidade ou falhou em detectar uma fraqueza no caso de seu oponente. Portanto, a única razão possível para ele não mencionar explicitamente a interpretação ‘Helvidiana’ neste ponto é que ele não acreditava que os irmãos fossem filhos de Maria.” 19
Nessa passagem, portanto, Tertuliano simplesmente contrasta àqueles com quem Cristo tem um relacionamento carnal daqueles com quem Cristo tem um meramente relacionamento espiritual. Santo Agostinho, que, como demonstrado acima, sempre defendeu que os “irmãos de Jesus” eram apenas seus primos20, faz uma interpretação muito parecida à de Tertuliano:
“Das próprias palavras do Senhor, nós aprendemos que a Igreja são seus irmãos e que a Igreja são suas irmãs e que a Igreja é sua mãe, pois quando lhe foi transmitida uma mensagem que sua mãe e seus irmãos estavam ali, um fato simbólico foi mencionado: eles estavam do lado de fora (Cf. Mateus 12:46; Marcos 3:31). Quem era sua mãe, em um sentido típico? A sinagoga. E quem seus irmãos segundo a carne representavam? Os judeus que estavam do lado de fora.” 21.
Seria Santo Agostinho também um adversário da doutrina da virgindade de Maria após o parto? É óbvio que não. Essa passagem de Tertuliano, portanto, é insignificante para essa discussão.
e) “De carne Christi”, 23:
“Deu à luz porque produziu um descendente de sua própria carne; não o deu, porque o fez sem intervenção de varão. Foi virgem em relação ao marido, não o foi em relação ao parto... A que deu à luz o fez verdadeiramente, e se foi virgem quando concebeu, no parto foi esposa... Mas é o casamento que abre o útero em todos os casos. O seio da Virgem se abriu de um modo especial, porque havia sido selado especialmente. De fato, se deveria chamá-la não tanto “uma virgem” como “a virgem” que se fez mãe sem transição, como se disséssemos, antes de ser esposa.” (Tertuliano de Cartago, “De carne Christi”, 23, CCL 2:914-15)
Nessa passagem, Tertuliano afirma que com o seu parto, Maria deixou de ser fisicamente “virgem” e se tornou “esposa”, no sentido de que seu ventre foi aberto (pois, de acordo com o Cartaginense, “é o casamento que abre o útero em todos os casos”). Tertuliano não diz que Maria se tornou “esposa” pois teve relações sexuais, mas simplesmente porque supostamente o seu útero foi aberto e supostamente perdeu sua virgindade física.
O texto é uma negação da virgindade de Maria no parto (virginitas in partum), mas nada fala sobre o que aconteceu depois deste evento (virginitas post-partum). Escreve Pedrozo: “No De carne Christi XXIII não há declarações a favor ou contra a virgindade de Maria após o nascimento de Cristo. Os irmãos de Jesus nem sequer são mencionados. Tertuliano simplesmente afirma que Maria era uma mãe virgem. Sua expressão “virgo, quantum a uiro, non virgo, quantum a partu” reflete sua agenda anti-docetista. Nada além do nascimento de Cristo é considerado.”22.
E conclui o Pe. McHugh: “Aqui Tertuliano está meramente defendendo o fato de que Maria era tanto uma virgem na época do nascimento de Jesus (porque ela nunca conhecera homem) e também a verdadeira mãe de Jesus (porque sua carne não veio do céu, mas da carne dela). Não há referência aos irmãos do Senhor e nenhuma afirmação a favor ou contra a virgindade de Maria depois do nascimento de seu filho.”23
Sobre Tertuliano e a virgindade de Maria in partum, indica-se o estudo do colega Nelson Sarmento, “A virgindade perpétua de Maria nos cinco primeiros séculos (parte 1)” (2017), disponível aqui.
III. Conclusão.
Todos os textos historicamente citados para se defender que Tertuliano negou a virgindade de Maria post partum não são insuficientes para sustentar tal tese. O presbítero apóstata africano, de fato, negou a virgindade física de Maria no parto (virginitas in partum), mas isto não é a mesma coisa que atribuir relações sexuais à Virgem. Em seu De monogamia VIII, ao mesmo tempo em que comparou a monogamia de Maria à “monogamia modesta” de Zacarias, Tertuliano explicitamente comparou a continência da Virgem à “continência absoluta” de São João Batista. É uma afirmação implícita da virgindade post partum da mãe de Jesus, que coloca Tertuliano na mesma linha de pensamento de Orígenes e dos demais autores dos séculos II e III. Nada além disso pode ser extraído de seus escritos. Assim, a opinião de Helvídio de que Maria teria tido outros filhos com São José, como escreve Pedrozo, “não consegue encontrar uma única testemunha explícita antes do século IV”24.
IV. Referências.
1 ROSCHINI, Gabriel. La Madre de Dios según la Fe y la Teologia, Volume II, p. 166.
2 GAMBERO, Luigi, “Mary and the Fathers of the Church”, p.62-63; O’Caroll, Michael, “Theotokos: A Theological Encyclopedia of the Blessed Virgin Mary”, p. 338.
3 SARMENTO, Nelson. A virgindade perpétua de Maria nos cinco primeiros séculos (parte 2). Disponível em <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/apologetica/virgem-maria/952-a-virgindade-perpetua-de-maria-nos-cinco-primeiros-seculos-parte-2> Desde 08/03/2017.
4 GAMBERO, Luigi, Mary and the Fathers of the Church, p. 75.
5 Cf. MCHUGH, John, “The mother of Jesus in the New Testament”, p. 448.
6 BLINZER, Josef, “Die Bruder und Schwestern Jesu”, Stuttgart, 1967, pp. 139-141.
7 MCHUGH, John, “The mother of Jesus in the New Testament”, pp. 448-449.
8 PEDROZO, José M. The Brothers of Jesus and his Mother’s Virginity. The Thomist: A Speculative Quarterly Review, Volume 63, n. 1, jan. 1999, pp. 90-95.
9 MEIER, John, “A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus”, p. 68.
10 MCHUGH, John, “The mother of Jesus in the New Testament”, p. 448.
11 PEDROZO, José M., “The Brothers of Jesus and his Mother’s Virginity”, p. 93-94.
12 MCHUGH, John, “The mother of Jesus in the New Testament”, p. 449.
13 MCHUGH, John, “The mother of Jesus in the New Testament”, p. 362, n. 43.
14 SANTO AGOSTINHO DE HIPONA, In Joh. Evang. x, III. 2. p. 368, ib. xxviii, III. 2. p. 508; Enarr. in Ps. cxxvii, IV. 2. p. 1443; Contr. Faust. xxii. 35, VIII p. 383; comp. Quaest XVII in Matth., III. 2. p. 285.
15 SANTO AGOSTINHO DE HIPONA, Comentário do Evangelho de São João, X, 2.
16 SANTO AGOSTINHO DE HIPONA, Enarrationes in Psalmos 127, 12; CSEL 95,3, PP. 1876.8-13.
17 MCHUGH, John, “The mother of Jesus in the New Testament”, p. 449-450.
18 PEDROZO, José M., “The Brothers of Jesus and his Mother’s Virginity”, p. 94, nota 35.
19 MCHUGH, John, “The mother of Jesus in the New Testament”, p. 449.
20 SANTO AGOSTINHO DE HIPONA, In Joh. Evang. x, III. 2. p. 368, ib. xxviii, III. 2. p. 508; Enarr. in Ps. cxxvii, IV. 2. p. 1443; Contr. Faust. xxii. 35, VIII p. 383; comp. Quaest XVII in Matth., III. 2. p. 285.
21 SANTO AGOSTINHO DE HIPONA, “Enarrationes in Psalmos”, 127, 12; CSEL 95,3, pp. 1876.8-13.
22 PEDROZO, José M., “The Brothers of Jesus and his Mother’s Virginity”, p. 94, nota 35.
23 MCHUGH, John, “The mother of Jesus in the New Testament”, p. 449.
24 PEDROZO, José M. The Brothers of Jesus and his Mother’s Virginity. The Thomist: A Speculative Quarterly Review, Volume 63, n. 1, jan. 1999, pp. 85-86.
O papa São Leão I, o Grande, reinou de 440 d.C a 461 d.C, é considerado por muitos historiadores protestantes e seculares como sendo “primeiro papa”, que é conveniente devido a suas declarações. É reverenciado como santo pelos ortodoxos. Ele falou talvez mais claramente do que qualquer um até então sobre a primazia romana, deveres do papa, prerrogativas e supremacia, no entanto, seus pontos de vista foram apenas o auge e um desenvolvimento mais avançado do que já era uma crença essencial da Igreja universal (isto é, católica) desde o início. Abaixo traremos algumas de suas palavras sobre o assunto.
“I. Ele fica lisonjeado por ter sido consultado pelos bispos (6) da Ilíria sobre questões importantes.
“O amor fraterno de nossos colegas nos faz ler com gratidão as cartas de todos os sacerdotes (7); pois nelas nos abraçamos no espírito como se estivéssemos face a face, e pelo intercâmbio de tais epístolas estamos associados em conversas mútuas (8). Mas nesta presente carta o afeto demonstrado parece-nos maior do que o habitual: pois nos informa sobre o estado das igrejas (9), e nos incita a um exercício vigilante de cuidado por uma consideração de nosso ofício, de modo que, sendo colocado, por assim dizer, em uma torre de vigia, de acordo com a vontade do Senhor, devemos dar nossa aprovação às coisas quando elas correm de acordo com nossos desejos e corrigir, aplicando os remédios da compulsão, no que observamos que deu errado através de qualquer transgressão: esperando que o fruto abundante seja o resultado de nossa semeadura, se não permitirmos que aumentem aquelas coisas que começaram a brotar até estragar a colheita.
- Seguindo os exemplos de seus antecessores, ele nomeia Anastácio Metropolita da Ilíria.
Agora, pois, querido irmão, que o seu pedido nos foi dado a conhecer por meio de nosso filho Nicolau, o sacerdote, para que você também, como seus predecessores, receba de nós, por nossa vez, autoridade sobre a Ilíria para a observância das regras, damos nosso consentimento e sinceramente exortamos que nenhuma ocultação e nenhuma negligência seja permitida na administração das igrejas situadas em toda a Ilíria, as quais entregamos a você em nosso lugar, seguindo o precedente de Sirício de abençoada memória, . . .
- Os pontos que não podem ser resolvidos no sínodo provincial sejam encaminhados a Roma.
“. . . por nossa decisão, nos reivindicamos nosso direito de conhecimento de acordo com a tradição estabelecida e o respeito que é devido à Sé Apostólica: pois, como desejamos que você exerça sua autoridade em nosso lugar, reservamos a nós mesmos pontos que não podem ser decididos no local e as pessoas que nos apelaram.
- Os padres e diáconos não podem ser ordenados por ninguém mais que os bispos.
Você deve assegurar que esta carta chegue ao conhecimento de todos os irmãos, de modo que ninguém encontre ocasião de desculpar-se por ignorância ao observar estas coisas que ordenamos. . . “(Papa Leão I, Carta VI,1-2, 5)
“...o beatíssimo Pedro recebeu a liderança dos apóstolos do SENHOR, e a Igreja de Roma ainda permanece por Suas instituições. . .” (Papa Leão I - Carta IX,1)
“Nosso Senhor Jesus Cristo, Salvador da humanidade, instituiu a observância da religião divina, a qual, pela graça de Deus, quis resplandecer sobre todas as nações e todos os povos, de tal maneira que a Verdade, que antes se limitava aos anúncios da Lei e dos Profetas, saísse pelo toque da trombeta dos Apóstolos para a salvação de todos os homens, como está escrito: O seu som se espalhou por todas as terras, e as suas palavras até os confins do mundo. Mas esta função misteriosa o Senhor quis ser de fato que fosse tarefa de todos os apóstolos, mas de tal maneira que Ele colocou o principal encargo sobre o bem-aventurado Pedro, chefe de todos os apóstolos: e dele, como da Cabeça, deseja que seus dons fluam para todo o corpo: para que quem se atrever a separar-se da rocha sólida de Pedro entenda que não tem parte nem parte no mistério divino. Pois Ele desejou que ele que foi recebido para fazer parte da Sua unidade indivisa fosse nomeado como ele foi, quando disse: Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a Minha Igreja Mateus 16,18: para que a edificação do eterno templo pelo dom maravilhoso da graça de Deus pudesse repousar sobre a rocha sólida de Pedro: fortalecendo Sua Igreja tão seguramente que nem a temeridade humana poderia assaltá-la nem as portas do inferno prevalecerem contra ela. Mas esta santíssima firmeza da rocha, erigida, como dissemos, pela mão edificadora de Deus, um homem pode desejar destruir na maldade quando tenta quebrar seu poder, favorecendo seus próprios desejos e não seguindo o que recebeu dos homens de outrora: porque ele acredita não estar sujeito a nenhuma lei, e não controlado por nenhuma regra das ordenanças de Deus e rompe, em sua ânsia de novidade, de nós e de vocês, adotando práticas ilegais, e deixando o que ele deveria manter cair em desgraça.” (Leão I – Carta X, 1)
“Pois não só o poder de atar e desatar foi dado a Pedro antes dos outros, mas também Pedro, mais especialmente, foi encarregado de cuidar de alimentar as ovelhas. No entanto, quem nega que Pedro deve ser dado a chefia, não pode realmente diminuir sua dignidade: mas fica inchado com o fôlego de seu orgulho e mergulha na mais baixa profundidade.” (Leão I – Carta X, 2)
“De qual modelo surgiu uma distinção também entre os bispos, e por uma importante ordenança foi estabelecido que cada um não deve reivindicar tudo para si mesmo: mas que deve haver em cada província um cuja opinião deve ter a prioridade entre os irmãos: e também aqueles cuja nomeação está nas grandes cidades devem assumir uma responsabilidade mais completa, por meio de quem o cuidado da Igreja universal deve convergir para a sede de Pedro, e nada em nenhum lugar deve ser separado de sua Cabeça”.(Leão I – Carta XIV, 12)
“. . . . aquela solicitude que, por ordem divina, nós concedemos a toda a Igreja. . .” (Leão I - Carta XII:1)
“II. . . . Eu . . . Deleguei minha autoridade a você, amado, para que você, imitando nossa gentileza, possa nos ajudar no cuidado que devemos principalmente a todas as igrejas por instituição divina. . .
XII. . . . Embora tenham uma dignidade comum, ainda assim não têm uma classificação uniforme; visto que mesmo entre os abençoados Apóstolos, não obstante a semelhança de sua honrosa propriedade, havia uma certa distinção de poder, e embora a eleição de todos eles fosse igual, ainda assim foi dado a um tomar a liderança do resto. . . O cuidado da Igreja universal deve convergir para a sede de Pedro, e nada em nenhum lugar deve ser separado de sua Cabeça.” (Leão I - Carta 14,2)
“A fé devota de nosso clemente príncipe, sabendo que lhe interessa especialmente a glória de impedir que qualquer semente de erro brote na Igreja Católica, prestou tanta deferência às instituições divinas que pediu à autoridade da Sé Apostólica uma resolução adequada: como se ele desejasse que fosse declarado pelo próprio bem-aventurado Pedro, o que foi elogiado em sua confissão, quando o Senhor disse: quem os homens dizem que sou, o Filho do homem? E os discípulos mencionaram a opinião de várias pessoas: mas, quando Ele perguntou o que eles próprios acreditavam, o chefe dos apóstolos, abraçando a plenitude da fé em uma curta frase, disse: Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo...” (Leão I - Carta 33,1-13)
“III. A cidade de Constantinopla, por mais real que seja, nunca pode ser elevada à categoria apostólica.
Que a cidade de Constantinopla tenha, como desejamos, sua alta posição e, sob a proteção da mão direita de Deus, desfrute por muito tempo do governo de sua clemência. No entanto, as coisas seculares estão em uma base diferente das coisas divinas: e não pode haver edifício seguro a não ser naquela rocha que o Senhor colocou como fundamento.
Aquele que cobiça o que não lhe é devido, perde o que lhe é próprio. Basta a Anatólio que com a ajuda de sua piedade e por meu favor e aprovação ele tenha obtido o episcopado de uma cidade tão grande. Que ele não despreze uma cidade que é real, embora não possa torná-la uma Sé Apostólica; e que ele não espere de forma alguma que ele possa se levantar causando dano a outros. Pois os privilégios das igrejas determinados pelos cânones dos santos Padres e fixados pelos decretos do Sínodo de Nicéia não podem ser derrubados por nenhum ato inescrupuloso, nem perturbados por qualquer inovação. E na fiel execução desta tarefa com a ajuda de Cristo, devo demonstrar uma devoção inabalável; pois é um encargo confiado a mim, e tende a minha condenação se as regras sancionadas pelos Padres e elaboradas sob a orientação do Espírito de Deus no Sínodo de Nicéia para o governo de toda a Igreja forem violadas com minha conivência (que Deus me livre), e se os desejos de um único irmão têm mais peso para mim do que o bem comum de toda a casa do Senhor.” (Leão I - Carta 104,3)
O CONCÍLIO DE CALDEDÔNIA
Leão Magno lembra e demonstra que os seus representantes presidiram o concílio de Calcedônia e impediram que qualquer nova doutrina fosse introduzida na Igreja.
“III. O Sínodo de Calcedônia, que se reuniu para um propósito, nunca deveria ter sido usado para outro.
Consequentemente, essas coisas que são consideradas contrárias aos cânones mais sagrados são extremamente sem princípios e mal orientadas. Essa arrogância altiva tende a perturbar toda a Igreja. Ela propôs a abusar de um concílio sinodal, como por argumentos perversos para persuadir os demais, ou por intimidação para compelir os irmãos a concordar com ele, quando foram convocados simplesmente em uma questão de fé, e tinham chegado a uma decisão sobre o assunto que deveria envolver seus cuidados. Pois foi por este motivo que nossos irmãos enviados pela Sé Apostólica, que presidiram em nosso lugar ao Sínodo com louvável firmeza, resistiram às suas tentativas ilegais, protestando abertamente contra a introdução de qualquer inovação condenável contrário aos decretos do Concílio de Nicéia...” (Leão I - Carta 106, 3)
E neste concílio não faltam são provas da primazia da Igreja de Roma.
“Está é a fé dos Padres! Está é a fé dos apóstolos! Devemos crê-la! Seja anátema quem não crê! Pedro nos fala por meio de Leão... está é a verdadeira fé!” (Concilio de Calcedônia, Atas do Concilio, Sessão 2)
“Por que o Santíssimo e bem aventurado Leão, Arcebispo da grande e Antiga Roma, através de nós, e através deste presente Sacrossanto Sínodo, junto com os três vezes bem aventurado e glorioso Pedro, o Apóstolo que é a Rocha e fundação da Igreja Católica, e a fundação da fé ortodoxa... ”. (Concilio de Calcedônia, Atas do Concilio, Sessão 3)
Da mesma forma, ao concluir o seu Sínodo, os padres conciliares escreveram ao Papa Leão, dizendo:
“Você está definido como um intérprete para toda a voz de Pedro, e tudo o que você transmitir das bênçãos da fé.” (Calcedônia ao Papa Leão, Ep 98)
“Pois, se onde estiverem dois ou três reunidos em Seu nome, Ele disse que ali Ele está no meio deles, nào foi diferente com os 520 sacerdotes, que preferiam a disseminação de conhecimento sobre Deus [...] De quem você é Chefe, como Cabeça para os membros, mostrando a sua boa vontade.” (Calcedônia ao Papa Leão - Repletum est Gaudio)
“Além de tudo isso, ele (Dióscoro) estendeu sua fúria contra ele mesmo que tinha sido carregado com a custódia da videira pelo Salvador. Referimo-nos a Vossa Santidade.” (Calcedônia ao Papa Leão, Ep 98)
“Você muitas vezes estendeu o seu brilho Apostólico até à Igreja de Constantinopla.” (Calcedônia ao Papa Leão, Ep 98)
“Sabendo que todo o sucesso das crianças repercuti aos pais, nós portanto, pedimos a ti honrar a nossa decisão por seu consentimento, e como nós concordamos com a Cabeça em coisas nobres, por isso pode o Chefe também cumprir o que é apropriado para as crianças.” (Calcedônia ao Papa Leão, Ep 98)
“...Lembrai-vos daquele sistema de doutrina do qual o chefe de todos os apóstolos, o bem-aventurado Pedro, lançou os fundamentos, não apenas por sua pregação uniforme em todo o mundo, mas especialmente por seu ensino nas cidades de Antioquia e Roma: para que você pudesse entender que ele recebe daquele que é colocado sobre a casa de seu próprio renome aquelas instituições que ele transmitiu, como ele as recebeu da própria Verdade, que ele confessou. E nas igrejas do Oriente, e especialmente naquelas que os cânones dos Santos Padres de Nicéia (3) designaram à Sé de Antioquia, você não deve de modo algum permitir que hereges inescrupulosos ataquem o Evangelho, e os dogmas de Nestório ou Eutiques sejam pregados por qualquer um. Uma vez que, como eu disse, a rocha (petra) da fé católica, da qual o abençoado apóstolo Pedro tomou seu nome pelas mãos do Senhor, rejeita qualquer vestígio de qualquer heresia; . . .
- Se os legados de Leão de alguma forma excederam suas instruções, eles o fizeram de forma ineficaz.
É claro que, se algo for alegado por aqueles irmãos que enviei em meu lugar ao santo Sínodo, além do que era pertinente à fé, não terá peso algum: porque eles foram enviados pelo Sé Apostólica apenas com o propósito de extirpar a heresia e defender a Fé Católica.
Pois tudo o que for apresentado aos bispos para investigação além dos assuntos particulares que são apresentados aos concílios sinodais, podemos admitir uma certa discussão livre, se os santos Padres não tiverem estabelecido nada sobre o tema em Nicéia. Pois qualquer coisa que não esteja de acordo com suas regras e constituições nunca poderá obter o consentimento da Sé Apostólica. Mas quão grande deve ser a diligência com que esta regra é mantida, você deduzirá das cópias da carta que enviamos ao bispo de Constantinopla, restringindo sua cobiça; e ordenarás que chegue ao conhecimento de todos os nossos irmãos e co-sacerdotes...” (Leão I - Carta 119, 2-5)
“A Igreja Universal tornou-se uma rocha (petra) através da edificação dessa Rocha original, e o primeiro dos Apóstolos, o bem-aventurado Pedro...” (Leão I - Cartas, 156,2)
“...toda a Igreja, que sempre encontra Pedro na Sé de Pedro, e a afeição por um pastor tão grande não cresce morna, mesmo sobre um sucessor tão inferior como eu. Portanto, amados, para que esta lealdade que vocês unanimemente demonstram em relação à minha humildade possa obter o fruto de seu zelo, de joelhos dobrados implorando a bondade misericordiosa de nosso Deus, que em nossos dias Ele expulsará aqueles que nos atacam, fortaleça a fé aumente o amor, aumente a paz e digne-se a tornar-me Seu pobre escravo, a quem, para mostrar as riquezas de Sua graça, Ele quis colocar no comando da Igreja...” (Leão I – Sermão II, 2)
“II. De Cristo e por meio de S. Pedro o sacerdócio é transmitido para sempre.
Embora, portanto, amados, sejamos achados fracos e preguiçosos no cumprimento dos deveres de nosso ofício, porque, qualquer que seja a ação devotada e vigorosa que desejemos fazer, somos impedidos pela fragilidade de nossa própria condição; mas tendo a propiciação incessante do Todo-Poderoso e perpétuo Sacerdote, que sendo semelhante a nós e ainda igual ao Pai, derrubou Sua Divindade até as coisas humanas, e elevou Sua Humanidade até as coisas Divinas, nós digna e piedosamente nos regozijamos por Sua dispensação, pela qual, embora tenha delegado o cuidado de suas ovelhas a muitos pastores, ele mesmo não abandonou a guarda de seu amado rebanho.
E de Sua suprema e eterna proteção recebemos também o apoio da ajuda dos Apóstolos, que certamente não cessam de sua operação: e a força do fundamento, sobre o qual toda a superestrutura da Igreja é erguida, não é enfraquecida pelo peso do templo que repousa sobre ele. Pois a solidez da fé que foi louvada no chefe dos apóstolos é perpétua; e como permanece o que Pedro acreditou em Cristo, assim permanece o que Cristo instituiu em Pedro. Pois quando, como foi lido na lição do Evangelho, o Senhor perguntou aos discípulos quem eles acreditavam ser Ele em meio às várias opiniões que foram dadas, o bem-aventurado Pedro respondeu: “Tu és o Cristo, Filho do Deus vivo”, diz o Senhor, “Bem-aventurado és tu, Simão Bar-Jonas, porque não foi a carne e o sangue que te revelaram, mas meu Pai, que está nos céus. E eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do Hades não prevalecerão contra ela. E eu te darei as chaves do reino dos céus. E tudo o que ligares na terra será ligado no céu; e tudo o que desligares na terra, será desligado também no céu.”
III. A obra de S. Pedro ainda continua pelos seus sucessores.
A dispensação da Verdade, portanto, permanece, e o bem-aventurado Pedro, perseverando na força da Rocha, que recebeu, não abandonou o leme da Igreja, que assumiu. Pois ele foi ordenado antes dos demais de tal maneira que, por ser chamado de Rocha, por ser pronunciado o Fundamento, por ser constituído o porteiro do reino dos céus, por ser designado como o árbitro para ligar e desligar, cujos julgamentos manterão sua validade no céu, de todos esses títulos místicos podemos conhecer a natureza de sua associação com Cristo. E ainda hoje ele realiza mais completa e eficazmente o que lhe é confiado, e cumpre cada parte de seu dever e encargo nEle e com Ele, por meio de quem foi glorificado. E assim, se algo é bem feito e corretamente decretado por nós, se algo é conquistado da misericórdia de DEUS por nossas súplicas diárias, é de sua obra e méritos cujo poder vive e cuja autoridade prevalece em sua Sé. Pois isso, caríssimo, foi conquistado por aquela confissão que, inspirada no coração do Apóstolo por DEUS Pai, transcendeu toda a incerteza das opiniões humanas, e foi dotada da firmeza de uma rocha, que nenhum assalto poderia abalar.
Pois em toda a Igreja, Pedro diariamente diz: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, e toda língua que confessa o Senhor aceita a instrução que sua voz transmite. Esta Fé vence o diabo e quebra os laços de seus prisioneiros. Ela nos arranca desta terra e nos planta no céu, e as portas do Hades não podem prevalecer contra ela. Pois com tal solidez é dotado por DEUS que a depravação dos hereges não pode marcá-lo nem a incredulidade dos pagãos superá-lo.
- Esta festa é então em honra de S. Pedro, e o progresso do seu rebanho redunda em sua glória.
E assim, caríssimos, com razoável obediência celebramos a festa de hoje por tais métodos, para que em minha humilde pessoa seja reconhecido e honrado, em quem reside o cuidado de todos os pastores, juntamente com o cuidado das ovelhas encomendadas a ele, e cuja dignidade não é diminuída mesmo em um herdeiro tão indigno.
E por isso a presença de meus veneráveis irmãos e companheiros sacerdotes, tão desejados e estimados por mim, será tanto mais sagrada e preciosa, se eles transferirem a principal honra deste serviço em que se dignaram participar daquele a quem eles sabem ser não apenas o patrono desta sé, mas também o primaz de todos os bispos.
Quando, portanto, pronunciamos nossas exortações em seus ouvidos, irmãos santos, creiam que ele está falando de quem somos representantes: porque é sua advertência que damos, nada mais que seu ensinamento que pregamos, suplicando-vos “cingir os lombos de sua mente (4)”, e leve uma vida casta e sóbria no temor de DEUS, e não deixe sua mente esquecer sua supremacia e consentir com as concupiscências da carne.
. . . Pois, embora toda a Igreja, que está em todo o mundo, deva abundar em todas as virtudes, mas vocês especialmente, acima de todas as pessoas, tornam-se excelente em obras de piedade, porque fundada como vocês estão na própria cidadela da Rocha Apostólica , não apenas nosso Senhor Jesus Cristo os redimiu em comum com todos os homens, mas o abençoado apóstolo Pedro os instruiu muito além de todos os homens. Pelo mesmo Cristo nosso Senhor.” (Leão I - Sermão 3, 2-4)
“De todo o mundo, apenas um, Pedro, é escolhido para presidir o chamado de todas as nações, e sobre todos os outros Apóstolos, e sobre os Padres da Igreja. . . Pedro . . . governa todos eles, dos quais, também, é Cristo quem é seu governante principal. A condescendência divina, muito amavelmente, concedeu a este homem de uma maneira maravilhosa e admirável parte de seu poder; e se havia algo que queria que fosse comum entre ele e os outros líderes, nunca dava o que não negava aos outros, exceto por meio dele.” (Sermões, 4:2; FEF, vol. 3, 275)
“...Aos sábados, devemos vigiar na presença do beatíssimo apóstolo Pedro; que, como experimentamos e sabemos, vigia incessantemente como um pastor as ovelhas que lhe foram confiadas pelo Senhor, e que prevalecerá em seus pedidos que a Igreja de Deus, que foi fundada por sua pregação, esteja livre de todo erro, através de Cristo, nosso Senhor. Amém.” (Sermão 16, 6)
NOTAS
“Leo the Great on the Supremacy of the Bishop of Rome” (Denis Kaiser, August 2015)
PARA CITAR
RODRIGUES, Rafael. O Papa Leão I e a Supremacia Do Bispo De Roma. Disponível em <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/patristica/estudos-patristicos/1079-o-papa-leao-i-e-a-supremacia-do-bispo-de-roma>. Desde 31/01/2022
No final do segundo século, podemos observar a formação inicial de grupos metropolitanos entre os bispos da mesma província civil. Os primeiros vestígios disso são os sínodos que Victor de Roma chamou pouco antes de 200 dC, em uma tentativa de resolver a controvérsia sobre a celebração da Páscoa. Nesta ocasião, a futura sé metropolitana se faz aparecer em algumas regiões. No século IV, as províncias eclesiásticas organizadas, como foram chamadas mais tarde, estavam totalmente desenvolvidas.
Estudos históricos que tratam esse desenvolvimento, até a instituição dos patriarcados, invariavelmente levam à conclusão negativa de que a primazia da igreja romana não era um produto desse processo de organização. Não era o caso que a hierarquia da Igreja cresceu como uma pirâmide, com o bispo de Roma no ápice sobre bispos, metropolitanos, primados e patriarcas. Pelo contrário, o superdesenvolvimento do sistema metropolitano fez obscurecer, por um tempo e até certo ponto, as prerrogativas da Sé romana. No entanto, pelo menos a partir do século V ou VI, essas prerrogativas romanas são um fato inegável. Uma vez que eles não surgiram fora das organizações metropolitanas, devemos procurar outro lugar para a sua origem.
Era realmente verdadeiro que a concepção primitiva da ‘communio’ eclesial não deixou nenhum espaço para a primazia romana? Veremos que o antiga ‘communio’ não só tinha um lugar para a primazia romana, mas que tal sistema em si levou à primazia de Roma por necessidade lógica. Para um bispo mostrar que pertencia a ‘communio’ da Igreja, era suficiente para ele estar em comunhão com qualquer outra igreja da ‘communio’. Em uma passagem citada acima, Optao de Milevi disse: "Se você tem um deles, então através desse você está em comunhão com os outros anjos [bispos] e através dos anjos com as igrejas, ... e através das igrejas com a gente" [O Cisma Donatista, II, 6. PL 11.959]. Portanto, era suficiente se alguém estivesse em comunhão com o bispo de Gubbio, ou Calama, ou Cízico; pois se um deles pertencesse à comunhão universal, através dele um estaria em comunhão com toda a Igreja. Mas se tornou duvidoso se o bispo de Cízico pertencia ao comunicado; comunhão com ele não era mais de valor. O bispo de Cízico deve primeiro mostrar que ele realmente pertencia à comunhão de toda a Igreja. A partir disso, vemos a necessidade prática de um critério pelo qual se poderia identificar se um determinado bispo pertencia a ‘communio’ universal ou não.
O critério mais simples foi o de um grande número de bispos. Se alguém estivesse em comunhão com centenas de outros bispos em todo o mundo, a comunhão seria genuína, mesmo que um bispo individual se recusasse a conceder a comunhão. Esse critério impressionante e de fácil compreensão era frequentemente usado, especialmente entre os gregos. Santo Atanásio, São Basílio e outros, geralmente exibem nomes de todo o Império Romano para mostrar que eles estão na verdadeira comunhão da Igreja. Ninguém perguntou precisamente quantos constituíam a maioria, já que não se tratava de contar cabeças, mas simplesmente de mostrar que se possuía uma maioria esmagadora.
Outro critério foi a união com as igrejas antigas fundadas pelos próprios apóstolos. Este critério foi frequentemente aplicado na África contra os donatistas. Como havia centenas de bispos donatistas na África no século V, o critério da esmagadora maioria não era tão impressionante. Agostinho, portanto, desafiou os donatistas a direcionar suas reprovações não apenas contra o bispo de Cartago ou de Roma, “mas também contra as igrejas de Corinto, Galácia, Éfeso, Tessalônica, Colossos e Filipos, a quem, como sabem, o apóstolo Paulo escreveu; ou contra a igreja de Jerusalém, onde o apóstolo Tiago foi o primeiro bispo; ou contra a de Antioquia, onde os discípulos foram chamados cristãos pela primeira vez. ”[Contra Cresconius, II, 37, 46. PL 43, 494]
Esse critério já havia sido empregado por escritores eclesiásticos anteriores contra os gnósticos e outros hereges primitivos, quando a questão era menos a unidade da Igreja do que o caráter inviolável do depósito da fé. Assim, Irineu disse: “Quando surgirem diferenças em qualquer questão, não devemos recorrer às igrejas mais antigas onde os apóstolos moravam e aprender com elas uma resposta certa para a questão em disputa?” [Adversus Hereses, III, 4, 1. PG 7, 855]. E Tertuliano escreveu:
“É claro que todo ensino que concorda com o das igrejas apostólicas, de onde a fé se originou como mãe, deve ser julgado verdadeiro. Pois não há dúvida de que essas igrejas o receberam dos apóstolos, os apóstolos de Cristo e Cristo de Deus. . . Estamos em comunhão com as igrejas apostólicas e nosso ensino não deve diferir dos deles. Esse é o testemunho da verdade”. [Prescrição contra os hereges, 21. PL 2, 38]
Este tipo de critério era facilmente aplicável em situações onde uma boa quantia de informação e concordância era compartilhado por ambos os lados. Nestes casos não havia a necessidade de recorrer a um critério último nem de explicar como que uma Igreja em particular na qual não havia disputado pertencia à communio. Mas quando uma explicação definitiva era dada , inevitavelmente havia-se de falar da comunhão com Roma.
Optatu escreveu sobre o bispado romano: “Siricius sucedeu Damasus e agora é nosso bispo. Através dele, o mundo inteiro é um conosco na mesma comunhão através da troca de cartas de comunhão ”[The Donatist Schism, II, 3. PL 11, 949]. Optatus fala aqui do commercium formatorum ... para deixar claro aos donatistas através desta instituição que a lista decisiva de bispos é a mantida pela igreja romana. Uma igreja em comunhão com Roma está em comunhão com toda a Igreja Católica. Em princípio, é claro, isso seria dito de qualquer igreja legítima como o próprio Optatus disse na passagem que citamos sobre os “anjos” das igrejas. Para provar ser membro da comunhão universal, bastava que uma igreja em particular mostrasse que estava em comunhão com alguma outra igreja que, por sua vez, estava em comunhão com as outras. Isso, é claro, poderia dar ínicio a uma cadeia de demonstrações - mas isso terminou com a comunhão com Roma. Quando Optatu escreveu que, através da igreja de Roma, ele estava em comunhão com o mundo inteiro, ele sabia muito bem que poucas igrejas não estavam em comunhão com Roma. Ainda assim, ele falou do "mundo inteiro". Communio com Roma era simplesmente a comunhão por excelência e uma igreja que não compartilhava essa comunhão simplesmente não era reconhecida.
Santo Agostinho, ao descrever a época de Cipriano, um século e meio antes, escreveu:
“[Cartago] tinha um bispo de pouca autoridade, que não precisava temer ter um grande número de inimigos, porque sabia que estava vinculado por cartas de comunhão tanto à igreja romana, onde a autoridade (principatus) da Sé Apostólica sempre floresceu, e com as outras terras, de onde o evangelho havia chegado à África.” [Carta 42, 3, 7. PL 33, 163]
A mesma noção foi expressa pelo Papa Bonifácio I (418-422), contemporâneo de Agostinho:
“A estrutura (institutio) da Igreja universal teve origem na honra dada a Pedro. Toda regra na Igreja consiste nisso: de Pedro, como fonte, a disciplina de toda a Igreja foi derivada a medida que a igreja cresce e se expande ... É certo que essa igreja está relacionada às igrejas espalhadas por todo o mundo como a cabeça de seus membros. Quem se afasta desta igreja se coloca fora da religião cristã, já que ele não permanece mais parte de sua estrutura. Ouvi dizer que certos bispos querem deixar de lado a constituição apostólica da Igreja e estão tentando introduzir inovações contra os próprios mandamentos de Cristo. Eles procuram se separar da comunhão com a Sé Apostólica, ou, mais precisamente, de sua autoridade!” [Carta 14, 1. PL 20, 777].
O historiador protestante E. Caspar chamou essa passagem de a primeira declaração concisa de uma visão da estrutura e desenvolvimento da igreja, mostrando um característico teor papal. Mas, de fato, a idéia de que a igreja romana era a cabeça da communio era amplamente adotada nessa época e é muito mais antiga que o início do século V. No ano 381, Santo Ambrósio exortou os Imperadores Graciano e Valentiniano a tomarem medidas “para que a igreja romana, a cabeça de todo o mundo romano e a sagrada fé apostólica, não sejam perturbadas, uma vez que daí procede a todas as outras os direitos da estimada comunhão. ” [Carta 11, 4. PL 16, 986].
Depois de uma longa jornada para o leste, São Jerônimo escreveu ao papa Damaso:
“Dirijo-me ao sucessor do pescador e do discípulo da cruz. Não quero seguir ninguém além de Cristo e, portanto, estou unido em comunhão com a vossa Santidade, isto é, com a Sé de Pedro. Eu sei que a Igreja é construída sobre esta rocha. Quem come o Cordeiro fora desta casa comete sacrilégio. [Carta 15, 2. PL 22, 355]
E ele continua,
“ Tendo migrado por causa dos meus pecados para este deserto na fronteira entre a Síria e terras fora da civilização, não sou capaz de receber o corpo santo do Senhor da sua santidade. Me apego aqui aos seus colegas, os confessores egípcios ... Não conheci Vitalis, rejeito Meletius e não sei nada de Paulinus. Quem não se reúne com você, espalha; quem não pertence a Cristo pertence ao anticristo.” [ibid.]
Jerônimo se refere aqui ao cisma que divide o patriarcado de Antioquia, no qual ele estava vivendo. Ele sabia que era obrigado a decidir em favor de um dos três bispos concorrentes, mas não sabia como resolver o problema de suas reivindicações conflitantes. Portanto, ele simplesmente afirma que está em comunhão com Roma, que é o ponto final na questão.
Esses testemunhos são claramente anteriores à época de Bonifácio I, mas ainda pertencem ao século IV. Não precisamos, contudo, supor que essa concepção emergiu durante este século. Ficou igualmente claro para Cipriano no século III, que escreveu ao papa Cornelius logo após a eleição deste último que ele estava se esforçando para "trazer todos os nossos colegas a reconhecer e manter você e sua comunhão, isto é, a unidade e a caridade da Igreja Católica ”[Carta 48, 3. CSEL III / 2, 607]. Aqui, communio com o bispo romano é idêntico ao pertencimento à Igreja Católica. Essa identificação (communicationem tuam id est catholicae ecclesiae unitatem) não poderia ser feita de maneira tão simples em relação a qualquer outra igreja, nem mesmo Alexandria ou Cartago, embora Cipriano estivesse bem ciente do importante lugar que Cartago - e ele próprio como bispo - ocupava na igreja.
Em outra ocasião, Cipriano escreveu para o mesmo Cornélio com referência aos cismáticos africanos: “O pior de tudo é que eles elegeram um pseudo-bispo dentre os hereges e se atrevem a zarpar [em Roma] para se aproximar da cadeira de Pedro e do rei. igreja primária da qual nasce (exorta est) a unidade do sacerdócio. Eles se atrevem a trazer desta igreja cartas de cismáticos e pessoas sacrílegas, sem refletir que até o apóstolo Paulo louvou a fé dos romanos, entre os quais a descrença não pode entrar ”[Carta 59, 14. CSEL III / 2, 683]. Quando Cipriano fala da unitas sacerdotalis, ele se refere à comunidade de bispos, a communio episcoporum, originária de Roma. Ele não pode ter dito isso historicamente, já que Roma não foi o primeiro centro missionário. Historicamente, a Igreja começou em Jerusalém. A exorta est de Cipriano deve, portanto, ser um presente perfeito, referindo-se à origem de Roma de uma vez por todas e sempre renovada da communio que liga os bispos. Roma é, portanto, o ponto focal da communio, não como centro geográfico, mas como centro de seu poder e legitimidade.
A mesma concepção surge do relato de Tertuliano da separação dos montanistas da Igreja. Segundo ele, o momento decisivo ocorreu quando o bispo de Roma, sob a influência de Praxeas, revogou as cartas de comunhão que haviam sido emitidas e talvez já enviadas às igrejas da Ásia e da Frígia [Contra Praxeas, 1. PL 2, 178 ] O relato de Tertuliano pode ter sido historicamente impreciso, mas o principal, o princípio, é claro: ser membro da Igreja permanece ou cai a depender da comunhão com Roma.
Esta é a principalitas da igreja romana mencionada por Irineu antes mesmo de Tertuliano. "Com esta igreja por causa de sua preeminência especial, todas as outras igrejas devem concordar." [Adversus Hereses, III, 3, 2. PG 7, 849]. Obviamente, o texto literal aqui (ad hanc ecclesiam convenire) não significa que todos devam ir a Roma, mas devem estar de acordo com Roma, ou - como diríamos agora - que devem estar em comunhão com Roma. Talvez o texto grego original de Irineu tivesse koinonein onde o latim lê convenha. É verdade que Irineu está falando aqui de um acordo de fé; ainda assim, esse é um aspecto da comunicação eclesial. De qualquer forma, o significado da passagem permanece o mesmo: Roma é a igreja central - ou o centro da igreja.
Também podemos interpretar exatamente no mesmo sentido as palavras muito discutidas escritas por Inácio de Antioquia, o discípulo dos apóstolos, cerca de setenta anos antes de Irineu. Ele chamou a igreja em Roma de “aquela que preside a caridade” [“Prokathemene tes agapes”, Epístola aos Romanos, I. Os Pais Apostólicos 1, 120]. Alguns vêem aqui uma metáfora que compara a igreja romana a um bispo que preside a celebração da festa do amor, o ágape da Igreja primitiva. Outros o traduziriam como "presidente da irmandade do amor". Para nós, parece mais provável que ágape seja simplesmente sinônimo de koinonia ou communio. Vimos como a linguagem do cristianismo primitivo frequentemente se juntava a communio, koinonia, pax, eirene e ágape em combinação ou as usava alternadamente como sinônimos. Assim, Inácio poderia muito bem estar se referindo à mesma preeminência da igreja em Roma que para Irineu era o foco normativo da unidade. Inácio vê a igreja romana presidindo a communio como a cabeça e o centro de sua unidade sacramental.
Até os pagãos sabiam que um verdadeiro cristão era alguém em comunhão com o bispo de Roma. Quando Paulo de Samosata, bispo de Antioquia, foi deposto em um sínodo por heresia, ele recusou a submissão e não entregou a igreja e a casa do bispo ao novo bispo. O caso foi apresentado ao imperador Aureliano (270-273) e, como escreveu Eusébio, “ele decidiu o caso corretamente, decretando que a casa seria entregue àquele que receber cartas do chefe da religião cristã na Itália e o bispo de Roma ”[História Eclesiástica, VII, 30. PG 20, 720].
O fato de Eusébio chamar essa decisão de "bastante correta" é evidência de sua compreensão da Igreja. Este texto tem um valor especial, já que em outras partes de Eusébio praticamente não há indicação de como ele concebeu o primado romano. Ele freqüentemente fala dos bispos de Roma e até registra toda a linha da sucessão episcopal romana, mas a impressão geral é que ele considerava Roma como simplesmente uma das principais igrejas - não é diferente de Antioquia ou Jerusalém. Mas o texto sobre a decisão do imperador levanta a questão do critério final de participação na communio. Embora Antioquia fosse uma igreja apostólica e fosse de fato mais antiga que Roma, Eusébio diz que é "bastante correto" basear a decisão na comunhão com Roma.
Quando Atanásio foi deposto pelo Sínodo de Tiro em 355, ele viajou para Roma para fazer com que o Papa Júlio confirmasse sua comunhão com a igreja romana. O bispo Marcellus de Ancyra fez o mesmo quando foi deposto na mesma época. Atanásio relatou que Júlio e os bispos se uniram a ele "julgando a nosso favor a questão da comunhão e do vínculo da caridade" [Apology Against the Arians, 20. PG 25, 281]. O verbo usado aqui (kuroun) refere-se a uma confirmação autorizada. Pode-se falar da ação de Atanásio como interposição de recurso. Mas não é exatamente como se ele tivesse ido de um tribunal em que havia perdido o caso para um tribunal superior em busca de uma decisão judicial. Em vez disso, ele queria ter declarado perante o mundo inteiro que estava em comunhão com Roma e, portanto, que ninguém poderia condená-lo por crime. O veredicto do Sínodo de Tiro não foi simplesmente anulado, mas mostrou-se impossível e ineficaz desde o início, o que é algo muito mais do que um apelo bem-sucedido a um tribunal superior.
Especialmente os cristãos da parte oriental do Império enfatizaram repetidamente sua comunhão com Roma. Só isso explica a notável convergência de professores orientais de todo tipo em Roma, que é perceptível até no segundo século. A lista começa com Marcion, Cerdon, Valentinus, Heracleon e outros primeiros gnósticos. Depois vieram Hegesipo, Justino e Tatiano, que foram sucedidos pelo ancião e o jovem Teodoto e seus seguidores. Mais tarde, houve Proclus e Praxeas e, finalmente, o próprio Orígenes. Esse ponto foi discutido com frequência e não há necessidade de expandi-lo mais uma vez aqui. Alguns desses professores vieram a Roma para fins de estudo. Como Hegesipo e Orígenes, eles desejavam familiarizar-se com a tradição apostólica da igreja romana. Mas a maioria deles queria ensinar em Roma, mesmo que a comunidade cristã de Roma não fosse particularmente um terreno favorável para palestras complicadas e idéias freqüentemente exóticas propostas por esses visitantes do Oriente. A atração de Roma era simplesmente a do centro do cristianismo. Communio com Roma foi para eles de tão grande valor que alguns, como Marcion e Valentinus, fizeram esforços árduos para mantê-lo, apesar das medidas repetidas tomadas contra eles.
O fato de que a igreja romana tinha, de certa forma, uma posição privilegiada nos primeiros séculos é raramente contestado hoje. De qualquer forma, foi a primeira Sé (prima sedes). Assim, a verdadeira questão é o que essa primazia inegável significava e como ela está relacionada com as formas posteriores de primazia papal. Até agora temos procurado entender essa primazia como o ponto focal da communio. Antes de abordarmos a questão da conexão entre isso e a primazia papal posterior, devemos examinar brevemente outros elementos na Igreja primitiva que poderiam ter levado ao surgimento precoce da preeminência de Roma.
Uma explicação totalmente inadequada é que a primazia romana emergiu de uma cadeia de documentos literários como proposto na obra de Erich Caspar. Em sua reconstrução, o primeiro passo foi a frase de Tertullian "toda igreja que é semelhante a Pedro" (omnem ecclesiam Petri propinquam), [On Purity, 21. PL 2, 1079] pelo qual a igreja de Roma foi pela primeira vez definida em relação a Pedro, o Apóstolo. Cipriano então deu o passo seguinte e foi o primeiro a designar a Sé romana com a cátedra de Pedro [Carta 59, 14. CSEL III/2, 683]. Ele também aplicou o texto de Mateus 16:18 pela primeira vez à igreja de Roma. O Papa Estêvão, num golpe de gênio, assumiu a dedução de Cipriano e na controvérsia de batismo virou a arma de Cipriano contra ele. Caspar afirma encontrar isso documentado na carta de Firmiliano, na qual Firmiliano é supostamente perplexo com a inesperada reviravolta dos acontecimentos [Veja a carta de Firmiliano, dada entre as cartas de São Cipriano, Carta 75, 17. CSEL III/2, 821]. Embora o resto da cristandade não tenha notado essas manobras, Caspar vê esses textos literários como responsáveis por estabelecer firmemente a doutrina da primazia romana na Igreja.
Essa explicação, no entanto, é totalmente implausível. Em uma crítica importante de Caspar, Karl Adam observou:
“A grande questão que surge repetidamente no que diz respeito ao trabalho de Caspar é se o método histórico rigoroso permite o isolamento da não refletida mas muito viva fé no primado romano dos primeiros defensores e testemunhas. Desta forma, a primeira evidência escrita torna-se não apenas a interpretação teológica da fé, mas, na verdade, o único criador da doutrina da Igreja da primazia. Assim, a doutrina em si passa a ser apresentada como um produto meramente literário.”
Na Igreja, como em outros lugares, formulações teóricas geralmente seguem fatos e eventos. A institucionalização não é o resultado da argumentação. Além disso, na Igreja sempre foi extremamente difícil introduzir idéias radicalmente novas sem despertar imediatamente protestos de todos os lados. Outra explicação, historicamente muito mais plausível, é aquela que deriva a posição privilegiada de Roma dentro da Igreja da eminência da cidade como capital do Império. A importância civil de uma cidade foi, desde o início, um fator significativo que contribuiu para o prestígio e a significância de Sé episcopal. Mas o fato de Roma ser a capital imperial só explica por que Roma foi escolhida como o centro da Igreja em vez de Jerusalém, o centro original, ou alguma outra cidade como Antioquia. Quem fez essa escolha, e quem planejou a transferência de Jerusalém para Roma, seja os apóstolos, ou Pedro e Paulo, ou Pedro sozinho, não é importante aqui. A questão seria simplesmente que o centro foi estabelecido em Roma conscientemente e deliberadamente porque Roma era a capital, e não como resultado de uma evolução cega. As instituições normalmente não apenas se desenvolvem, mas são deliberadamente criadas.
No entanto, se a posição especial do bispo de Roma tivesse simplesmente se desenvolvido a partir do fato de que Roma era a capital, sua eminência teria sido de um tipo diferente. Nesta hipótese, o bispo de Roma teria se tornado um imperador em miniatura e o elemento administrativo teria sido proeminente em seu governo da Igreja. Mas na antiguidade cristã não há traços de uma administração central conduzindo assuntos eclesiásticos. Os primeiros papas não eram chefes de uma burocracia, como os imperadores haviam se tornado. Além disso, o prestígio dos bispos de Constantinopla, a partir do século IV, deveu-se, em parte, ao fato de Constantinopla ter se tornado a capital imperial. Mas sua posição na Igreja universal era notavelmente diferente da do bispo de Roma. Em Constantinopla, o bispo era a cabeça e o ápice da pirâmide da hierarquia eclesiástica, assim como o imperador estava sobre a hierarquia civil. Mas o bispo de Constantinopla nunca foi considerado o ponto focal e fonte de vitalidade na unidade sacramental da communio.
Finalmente, o elemento pessoal sempre desempenhou um papel subordinado na história da primazia romana. É preciso traçar a lista dos papas até São Leão, o Grande (morto 461) antes que uma figura realmente imponente surja. Nenhum dos bispos romanos pode realmente ser comparado com seus contemporâneos no episcopado como Inácio de Antioquia, Policarpo, Irineu, Cipriano, Dionísio de Alexandria, Atanásio, Basílio, João Crisóstomo, ou Agostinho. Portanto, se quisermos dar alguma explicação sobre o fenômeno histórico da preeminência de Roma no início da Igreja, não há nada além de afirmar que ela estava enraizada na natureza da própria Igreja. De alguma forma, a posição privilegiada do Apóstolo Pedro, e sua função como rocha, deve ter passado para os bispos de Roma. Esta é a única hipótese que torna inteligível como a igreja de Roma se tornou o ponto focal da communio, a partir do qual "os direitos da preciosa comunhão" (Ambrósio) passam para todas as outras igrejas. Quanto mais os dados históricos nos forçam a reconhecer a preeminência real do bispo de Roma entre os outros bispos da Igreja primitiva, mais surpreendente é que este aspecto fundamental da Igreja foi tão pouco discutido pelos primeiros escritores teológicos. Se consultarmos os textos tradicionais pré-Nicenos testemunhando a primazia romana, encontramos textos falando de Pedro, de sua permanência em Roma, e de seu martírio; a lista dos papas compilados por Irineu; notas históricas sobre a controvérsia da Páscoa; e as palavras de Hipólito sobre Callisto. Em tudo isso, no entanto, não há discussão teórica sobre o primado do bispo romano. A única escrita que trata mesmo da teologia da Igreja é a obra de Cipriano, A Unidade da Igreja Católica.
Este tratado fala extensivamente da primazia de Pedro e a unidade da Igreja é traçada até a função de Pedro como a rocha. Mas o bispo de Roma nunca é mencionado. Inevitavelmente se pergunta como foi possível para um teólogo escrever um tratado tão curto sobre a Igreja Católica sem mencionar o papa. C. A. Kellner há muito tempo apontou que o trabalho de Cipriano é um tratado polêmico que trata principalmente do cisma novaciano. Em um tempo de controvérsia sobre quem era o papa legítimo, Cipriano dificilmente poderia usar a comunhão com o papa como a pedra de toque da legitimidade dos outros bispos. Mesmo que esta fosse uma solução adequada, nossa pergunta permanece sem resposta. Como foi que durante séculos nenhum teólogo fez uma afirmação clara e inconfundível de que o bispo de Roma era o verdadeiro e legítimo chefe de toda a Igreja Católica? O estudioso Nicholas Cardeal Marini fez uma pesquisa exaustiva sobre a doutrina da primazia no pensamento de São João Crisóstomo e chegou à conclusão de que Crisóstomo, sem dúvida, ensinou uma verdadeira primazia do Apóstolo Pedro. Mas em nenhum lugar Crisóstomo afirma que essa primazia passou para sucessores específicos. Crisostomo não nega isso, e de suas premissas pode-se facilmente concluir que este deve ser o caso. O próprio Crisóstomo, no entanto, não chega a essa conclusão. A única passagem que poderia possivelmente se referir à primazia vem em seu tratado sobre o sacerdócio: "Por que Cristo derramou seu sangue? Para redimir o rebanho que ele confiou a Pedro e a seus sucessores" [O Sacerdócio, II, 1. PG 48, 632]. Mas os sucessores ou, como Crisóstomo diz, aqueles "atrás dele", podem ser todos os bispos. Ele não diz que eles são os bispos romanos.
Como tal coisa era possível no final do século IV, quando as reivindicações do bispo romano para uma primazia – e o exercício real de algum tipo de primazia – eram bem conhecidas? Como alguém poderia escrever neste momento e mesmo remotamente lidar com Pedro e a questão da jurisdição na Igreja passar por cima dessa questão fundamental em silêncio? Crisóstomo, ao que parece, dificilmente poderia evitar tomar algum tipo de posição, seja a favor ou contra.
Para resolver esta questão, devemos nos proteger contra o erro em que tantos historiadores caem. Na verdade, aqueles que falam mais do desenvolvimento muitas vezes parecem menos capazes de imaginar qualquer estágio na história teológica aquém do desenvolvimento completo.
O que ocorreu aqui na teologia da primazia pode ser observado também em quase todas as áreas da doutrina católica. Elementos individuais de uma verdade podem ser claramente traçados de volta aos tempos mais remotos, mas vemos que levou longos séculos para que esses elementos fossem reunidos e formulados em proposições e teses abstratas. A elaboração teológica da fé tradicional foi realizada de forma muito desigual. A teologia mais antiga tratava quase exclusivamente da doutrina trinitária e cristológica. No século IV foram levantadas questões sobre o pecado original, a redenção e a graça. Argumento e especulação se seguiram, e o resultado foi uma nova formulação dessas verdades salvadoras. Um tempo ainda maior decorrido antes que uma teologia dos sacramentos se desenvolvesse. Na antiguidade cristã e no início da Idade Média, o batismo, a penitência, a eucaristia e as ordens sagradas desempenharam um papel importante na vida dos cristãos, mas esses ritos nem sequer tinham o nome coletivo de "sacramentos". Podemos traçar a crença na presença real de Cristo na Eucaristia desde os primeiros tempos, mas mil anos se passaram antes que o conceito de transubstanciação fosse forjado. A reflexão teológica sobre a natureza da Igreja, em seu cargo de ensino e organização, desenvolveu-se ainda mais tarde; partes dele veio apenas no Concílio de Trento no século XVI. No entanto, durante toda essa era havia uma Igreja viva que era organizada e realmente ensinava. Esta Igreja, aliás, era um objeto de fé, como sabemos pelos credos que afirmam entre seus artigos fundamentais "a una, santa e apostólica Igreja".
Portanto, não devemos nos surpreender por não possuir um tratado teológico sobre "A Igreja e a Primazia" do terceiro ou mesmo do século sexto ou nono. Também não temos um tratado intitulado "Princípios Sacramentais". Toda a estrutura teológica para tal tratado sobre a Igreja estava faltando. Isso não significa, porém, que os elementos individuais não eram conhecidos ou acreditados. Se possuíssemos uma lista de teses eclesiológicas comumente mantidas do século III ou III, seria algo parecido com o seguinte:
1 - Há apenas uma verdadeira Igreja e fora dela não há salvação
2 - A principal característica pela qual a verdadeira Igreja é reconhecida é a unidade da communio
3 - Por ordem de Cristo, Pedro era o chefe dos apóstolos e a unidade da Igreja se origina dele.
4 - O depósito da fé é em tempos futuros preservado intacto nas igrejas fundadas pelos apóstolos, especialmente na igreja de Roma.
5 - O atual bispo de Roma é o sucessor do apóstolo Pedro.
6 - Comunhão com a igreja de Roma é decisivo para a adesão à Igreja.
Essas teses, no entanto, não teriam sido vinculadas ou mesmo consideradas partes integrantes de um tratado ou sistema teológico. Os dois últimos, especialmente, não teriam sido entendidos como proposições teológicas, mas simplesmente como declarações de fato. A conclusão que os católicos naturalmente tiram dessas premissas – que o bispo romano tem uma primazia de ensino e jurisdição sobre toda a Igreja – não foi discutida como uma questão teológica e por isso nunca foi contestada nesse nível. Nossa conclusão é que os elementos da teologia posterior da primazia e de seu exercício posterior estavam presentes nos primeiros anos da Igreja, mas como fragmentos dispersos sobre os quais simplesmente não se refletia. Portanto, eles não estavam ligados em um sistema teológico – que era exatamente a situação na maioria das outras áreas do ensino teológico da época.
Aqui não há necessidade de nenhum argumento do silêncio. Há silêncio sobre uma estrutura teológica sistemática, mas não sobre os elementos individuais que são a base da estrutura posterior. Também não há silêncio sobre a aplicação desses elementos à vida prática da Igreja.
Qualquer um que tenha lidado com as fontes antigas provavelmente concordaria com nossa descrição da communio e da posição de Roma como seu ponto focal. Mas a verdadeira questão ainda está para ser feita, e é aqui que as opiniões diferem fortemente. Esta posição central dos bispos romanos na Igreja é de fato uma forma anterior da primazia papal como mais tarde entendida no direito canônico e no dogma? Não é no máximo um germe do qual, com o passar do tempo, a primazia posterior poderia crescer? Ou não é como uma árvore sobre a qual tantos ramos alienígenas foram enxertados que vem a dar frutos não previstos na semente original? St. Ambrósio afirma que "os direitos da preciosa communio " fluíram da igreja romana para todas as outras igrejas. Vamos dizer que esta era uma opinião comum. Sabemos que o bispo de Roma, Dâmaso, tinha naquela época uma vívida correspondência com as outras igrejas. Jerônimo relatou que enquanto ele estava em Roma Dâmaso o encomendou para responder a perguntas feitas pelos sínodos orientais e ocidentais. Mas pode-se realmente dizer que Dâmaso estava governando toda a Igreja à maneira de papas posteriores?
Vamos mais uma vez relembrar as premissas. A Igreja primitiva não consistia apenas em uma coleção de bispos compartilhando as mesmas atitudes. Não foi apenas a soma aritmética de todos os crentes, mas uma multidão firmemente unida pelo laço de uma comunhão sacramental-jurídica. Estritamente falando, esta communio é o que constitui o Una Santa, a única e santa Igreja. O ponto focal do communio é a igreja de Roma junto com seu bispo. Mas como a communio é uma estrutura sacramental-jurídica, seu centro e ponto focal tem uma autoridade verdadeiramente sacral. Um excluído da communio pelo bispo romano não é mais um membro da Igreja, e aquele que ele admite para a comunhão torna-se assim um membro da Igreja. Cada bispo local também pode conceder ou recusar comunicado, mas apenas na medida em que ele fala pela Igreja universal. Portanto, ele próprio deve estar em comunhão com a Igreja, em última análise, com a igreja romana no centro da communio. O bispo de Roma, no entanto, não precisa derivar seu poder de sua comunhão com os outros, uma vez que ele próprio é a fonte originária do todo. Isto é precisamente o que se entende pela plenitude do poder papal. É exatamente o que nosso Senhor conferiu a Pedro, quando ele usou a metáfora completamente adequada das chaves do reino dos céus.
Por mais paradoxal que possa parecer, a função básica do papa na Igreja não é sua atuação em certas ações oficiais, mas simplesmente que ele esteja presente. Embora ouçamos muitas vezes da barca guiada por Pedro no leme, a própria imagem de Cristo era de outro tipo, quando ele falou da rocha sobre a qual a Igreja é construída. Aqui está o Papa que dá à Igreja sua unidade e a torna um organismo vivo. Sem ele seria simplesmente uma agregação de pessoas que compartilham uma mentalidade comum. Verdade, esses iguais poderiam criar uma organização e escolher um presidente. Mas isso seria algo bem diferente da Igreja histórica. Não é Pedro que é construído sobre a Igreja, mas a Igreja sobre Pedro. Principalmente, este é um papel estático. Para ser o princípio unificador da Igreja, o Papa não precisa realizar uma ação oficial. Ainda assim, ele não é uma rocha sem vida ou um princípio abstrato de unidade. Pertencer a ele, ser incorporado ao organismo, depende de sua vontade. E isso é o que é indicado pela metáfora das chaves do reino.
A possibilidade de tomar medidas jurídicas é, portanto, uma conseqüência derivada – embora necessária – da autoridade da rocha. Se o Papa detém as chaves do todo, e se depender dele quem deve e quem não deve estar na communio, então ele pode definir condições de comunhão e exclusão. Ele pode até emitir ordens sobre assuntos de menor na Igreja. Mas sua autoridade não é mostrada exclusivamente em dar ordens. Ele não é simplesmente o superior dos bispos e os fiéis na forma como um general está para seus oficiais e soldados.
A posição do papa ainda é melhor descrita – embora ainda imperfeitamente – pela analogia da cabeça e dos membros. A imagem é falha, na forma em que um organismo manifesta interação recíproca, com os membros dependendo da vida na cabeça e da cabeça dependendo dos membros. Mas o centro da communio não deve sua posição focal aos outros membros da communio. Sua posição não foi concedida pelos membros, não depende de sua cooperação, e eles não podem tirá-la dele. Ainda assim, a imagem do organismo está certa em mostrar o tipo de autoridade exercida pela cabeça. Pode-se dizer que no organismo a cabeça dá ordens aos membros, mas a vida do todo é muito mais do que simplesmente a emissão e recebimento de comandos. A cabeça e os membros agem como uma única unidade. Normalmente, as ordens – ordens dadas em face da oposição – não são dadas no organismo. Na verdade, somente no caso extraordinário em que surgem diferenças, pensamos na cabeça e nos membros como fatores distintos no organismo. Da mesma forma, não devemos procurar a autoridade dos bispos romanos apenas nos casos em que ele age contra a oposição. Muitos anos podem passar sem que isso seja necessário, mas ele ainda continua sendo o ponto focal e centro jurídico do qual os direitos da communio fluem para todas as outras igrejas.
Além disso, os bispos romanos dos primeiros séculos não funcionavam simplesmente como princípios estáticos de unidade sem nunca realizar atos de governo. Na verdade, o primeiro evento tangível na história da Igreja após a morte do apóstolo Pedro é a carta na qual Clemente, bispo de Roma, interveio nos assuntos da igreja de Corinto. Possivelmente neste momento o bispo de Esmirna poderia ter interferido em Corinto com igual sucesso; mas, novamente, não pode ser puramente acidental que o bispo de Roma sempre tenha feito coisas que outros bispos, talvez, também poderiam ter feito.
Pelo menos a partir do século II, as pessoas em todos os bairros notaram cuidadosamente a atitude do bispo de Roma em questões de fé e disciplina. Teólogos estrangeiros vieram a Roma para aprender e ganhar discípulos lá. O bispo de Esmirna veio a Roma para ganhar o apoio de seu bispo para a maneira asiática de celebrar a Páscoa. A igreja de Lyon pediu ao bispo de Roma para julgar os montanistas favoravelmente, mas Praxeas veio da Ásia Menor para argumentar por um julgamento negativo. Com relação a todas as pessoas e movimentos, o bispo de Roma não agiu como teólogo ou professor, mas como juiz. Ele excomungou uma série de professores de sistemas e doutrinas heréticas. Para contrariar a tentativa de Marcião de acabar com metade dos livros do cânon das Escrituras, a igreja em Roma elaborou o que provavelmente era um índice oficial dos livros canônicos, preservado no chamado Fragmento Muratoriano. As opiniões do bispo de Esmirna na data da Páscoa foram rejeitadas. É certo que, em nenhum desses casos, não pode ser demonstrado que outros bispos não poderiam ter realizado atos semelhantes. Quando o bispo de Roma dispensou os presbíteros Florino e Blastus de seu presbíterato durante o segundo século por causa da heresia, isso não foi mais do que qualquer outro bispo poderia ter feito. Mas o número total de casos envolvendo ação de Roma é muito maior do que para qualquer outro bispo ou igreja. Nosso estudo histórico deve manter o que de fato aconteceu, e não o que talvez poderia ter acontecido.
Ao lidar com a controvérsia da Páscoa, o Papa Victor ordenou que os sínodos fossem realizados simultaneamente em todo o mundo e ele estava pronto para expulsar uma província inteira da communio por causa de sua oposição – uma medida inédita naqueles tempos. Sua ação provocou descontentamento em muitos lugares, mas ninguém questionou seu direito de agir como agiu. Mesmo este caso pode ser julgado de maneiras diferentes, mas não se pode eventualmente evitar a questão se o expoente de tal autoridade pode ser chamado de qualquer outra coisa, exceto o chefe da Igreja.
Na disputa pela reconciliação dos pecados imperdoáveis, a atitude dos papas Callistus e Cornélio foi, no final, sem qualquer legislação formal, decisiva para a prática e o ensino de toda a Igreja, apesar da resistência vigorosa de muitos lados. O mesmo procedimento se repetiu na controvérsia sobre a validade do batismo herético. Em outras ocasiões, encontramos o bispo de Roma excluindo províncias inteiras da communio por se opor a ele, sem que sua própria posição seja de forma alguma abalada. O Papa Estêvão interveio com autoridade e eficácia quando houve distúrbios na igreja espanhola, enquanto se recusava a intervir em uma situação semelhante na igreja da Gália, embora muita pressão tenha sido exercida sobre ele para fazê-lo. Esses dois casos também estão abertos a interpretações diferentes – com esta única exceção, ou seja, que Estevão estava menos do que certo sobre sua própria autoridade e direitos.
O Papa Dionísio exigiu dionísio de Alexandria, bispo da mais importante cidade episcopal do Leste, para responder às acusações de que ele estava ensinando uma doutrina perigosa. E o bispo de Alexandria mostrou-se muito ansioso para se defender diante do Papa. Mais cedo, o maior teólogo vivo da época, Orígenes de Alexandria, veio diante do Papa Fabiano com a mesma ânsia. Aqui, também, pode-se construir casos hipotéticos em que outros bispos poderiam ter tomado medidas semelhantes. Se Cipriano, bispo de Cartago, tivesse criticado o ensino do bispo de Antioquia, por exemplo, este poderia muito bem ter respondido a ele assim como Dionísio de Alexandria respondeu ao Papa Dionísio, mas isso não teria levado à conclusão de que Cipriano tinha uma primazia sobre toda a Igreja. Não pode ser por acaso que tais atos, que poderiam ter ocorrido em outros lugares, foram realmente repetidos com freqüência em Roma.
Pode-se também inverter a pergunta e perguntar exatamente o que os primeiros bispos de Roma deveriam ter feito para mostrar a futuro historiadores mais claramente que eles eram chefes da Igreja? Disputar mais, comandar mais, emitir regulamentos mais gerais, excomungar mais pessoas, instalar e depor mais bispos? Certamente, a lista de tais ações que os bispos romanos realizaram nos primeiros três séculos fora de sua área local não é muito longa, e alguns desses atos não foram mais do que qualquer outro bispo importante poderia ter empreendido – como o envio de esmolas para a Arábia, Corinto ou Capadócia. Mas deve-se perguntar se a imagem seria diferente se a lista fosse mais longa. Até mesmo o pouco que sabemos é suficiente para mostrar que os bispos de Roma ocuparam uma posição de preeminência real, mesmo na esfera jurídica. Eles estavam bem cientes de sua posição na communio católico e os outros bispos aceitaram isso de maneira natural.
Traduzido por Djonatan Küster
Fonte: Ludwig Hertling, S.J. Communio: Church and Papacy in Early Christianity. (Chicago: Loyola University Press, 1972), p. 70-76.
NOTA
Este texto foi retirado e traduzido do Livro "Early Christian Doctrines" do Autor e Historiador protestante JND Kelly. Ele serve entre outras coisas para o leitor honesto analisar e ter a certeza como uma das principais doutrinas da Igreja era crida desde os primódios do cristianismo.
TEXTO
Um fenômeno de grande significância no período patrístico foi o surgimento e gradual desenvolvimento da veneração dos santos, mais particularmente da Santa virgem Maria. O afloramento completo e definições formais sancionando isso, pertencem a épocas posteriores, mas o seu início necessita de um breve tratamento.
No começo, em campo estava o culto dos mártires, os heróis da fé, os quais os cristãos criam estar na presença de Deus e em sua visão gloriosa.[1] Primeiramente tomou forma na preservação reverenciosa de suas relíquias e a celebração anual de seu ‘nascimento’[2]. A partir de então foi um pequeno passo para, uma vez que eles já estavam com Cristo na glória, pedir sua ajuda e orações, e já no terceiro século a evidência para a crença em seu poder de intercessão se acumulava.[3] Argumentando sobre isso Orígenes apela a comunhão dos santos, antecipando a visão[4] que a Igreja no céu ajuda a Igreja na terra com suas orações. Com a cessação da perseguição no início do século IV, o culto foi estendido para incluir, além dos mártires, outros cristãos (eg. Confessores, ascetas, virgens) que foram exemplos de santidade heroica. Em meados do mesmo século, de acordo com Cirilo de Jerusalém[5], os patriarcas e profetas, apóstolos e mártires eram comemorados na liturgia ‘para que por suas orações e intercessão Deus possa receber nossas suplicas’. Quando Deus castiga os homens, Crisóstomo lembra[6], eles devem apelar aos seus santos uma vez que eles têm acesso eficaz a Ele. – mais eficaz do que quando eles estavam vivos, como Gregório Nazianzeno aponta.[7], porque eles estão mais perto Dele. No século seguinte Leão, O grade, no ocidente exorta[8] a confiança da Igreja nas orações e proteção dos santos, aos quais Deus apontou tanto como exemplo quanto como uma defesa para os cristãos.
Como se estabeleceu constantemente, a devoção prestada aos santos e suas relíquias não poderiam deixa de atrair a censura mordaz das críticas, dos pagãos (e.g Juliano o apostata) e também dos cristãos (Vigilâncio). Em defesa São Jerônimo argumenta[9], como outros cristãos desde Orígenes tinham feito, que se os apóstolos e mártires oraram por seus irmãos cristãos quando ainda estavam vivos, era natural crer que eles fariam isso tudo ainda mais agora que eles estão coroados com a glória celeste. Quando a distinção técnica entre latria devida a Deus e a dulia permitida aos santos estava apenas começando a emergir[10] na época patrística, o consistente ensinamento da Igreja, ecoado tanto pelos devotos de Policarpo[11] quando pelos teólogos como Agostinho[12] e Cirilo de Alexandria[13], era que enquanto os santos e mártires mereciam honra e devoção, somente Deus poderia ser adorado. Como Teodoreto expressava[14] , depois de listar os benefícios comumente obtidos dos martires, os cristãos não os invocavam como deuses, mas como homens de Deus que poderiam ser seus embaixadores e interceder por eles.
NOTAS
[1] 1 Clemente5,4. Hermas 3,2,1; 9,28,3
[2] Mart. Policarpo 18, 2; Cf Cipriano Epistola 12, 2; 39, 3
[3] E.g Origem orat. 31, 5; Cryprian, ep. 60,5; também as escritas funerárias.
[4] Epistola in Iesu Nace homilia 16, 5; 6
[5] Catequeses 23, 9
[6] Adv. Judeus 8, 6
[7] Orat. 18, 4
[8] Serm. 85, 4.
[9] 3 Contra. Vigilancio. 6: cf. Origen, exhert. ad mart. 38.
[10] Para a distinção, veja Agostinho, perguntas em Hept. 2, 94,2 Cf. Cidade de deus 10, 1, 2. Faust. 20, 21
[11] Mart. Policarpo. 17, 3.
[12] Serm. 273. 7; Da verdadeira Religião 108.
[13] C. Iul. imp. 6 (PG 76, 812).
[14] Greer. affect., cur. 8, 63.-
FONTE
Retirado do livro livro Early Christian Douctrine Capitulo XVIII. Maria e os Santos.
Pelágio e Celestio foram condenados por São Inocêncio, porém eles não tinham intenção de ficar em silêncio. O primeiro já tinha se imposto sobre o concílio de Dióspolis com sucesso, e ambos estavam prontos a assegurar ao Papa que nunca haviam ensinado as heresias que haviam sido proscritas.
O momento era propício, apesar deles não conhecê-lo. Apenas quatro dias depois de sua consagração, [1] o novo Papa São Zózimo enviou uma carta aos bispos da Gália, confirmando o “direito antigo” do bispo de Arles, como Primaz da Gália, de consagrar os metropolitas de Viena e dos dois Narbonnenses, e afirmando que ele não iria receber doravante nenhum clérigo próximo da Gália que não fosse condecorado com litterae formatae de Pátroclo, bispo de Arles, “a quem nós concedemos este privilégio na contemplação especial de seus méritos.” [2] Agora, o novo privilégio era tão imerecido como o direito antigo era apócrifo. [3] Pátroclo era um intruso, e o bispo legítimo a quem ele havia desposto não era outro senão Heros, o acusador de Pelágio.
A causa do favor do Papa a Pátroclo é difícil de descobrir. Tem sido dito, mas sem provas, que Pátroclo estava presente em Roma, na época da eleição papal, e tinha trabalhado para Zózimo. Ele era amigo íntimo do poderoso Conde Constâncio, o então governante do império, e por esta razão era um homem a ser favorecido. [4] Mas de qualquer forma, podemos ver que o bispo infame de Arles, que se atreveu, diz Tiro Próspero, [5] a vender o ofício sacerdotal, de alguma forma, convenceu o bem intencionado Papa, que tinha méritos e direitos inexistentes, enquanto tinha caracterizado Heros como uma vergonha para o episcopado. Além disso, o outro acusador de Pelágio, Lázaro, bispo de Aix, também era inimigo de Pátroclo, como foi provado alguns meses mais tarde. Heros e Lázaro estavam, então, em desgraça em Roma, por outro lado, o momento foi feliz para aqueles que receberam a condenação.
Celestio chega a Roma para julgamento.
Foi então que Celestio chegou a Roma. Ele tinha sido ordenado sacerdote, enquanto estava em Éfeso, e dali foi para Constantinopla. O Bispo Atticus o expulsou dessa cidade, escrevendo cartas ao seu respeito aos bispos de Éfeso, Tessalônica e Cartago. [6]
Ele agora apresentou-se ao julgamento do novo Papa, com o fundamento de que ele tinha anteriormente apelado para ele quando condenado em Cartago sete anos antes, um fato que até agora ele tinha achado conveniente ignorar. Nós temos um relato de seu julgamento, escrito pelo próprio São Zózimo aos bispos africanos imediatamente após. Ele começa assim:
“Grandes questões exigem um grande peso de examinação, e o equilíbrio do julgamento não pode ser menos pesado do que os assuntos tratados. Além disso, existe a autoridade da Sé Apostólica, para o qual os decretos dos pais têm sancionado, em honra de São Pedro, uma reverência particular. Devemos orar, portanto, e orar incessantemente, que pela graça continua e assistência incessante de Deus, desta fonte a paz da fé e da fraternidade católica podem ser enviadas a todo o mundo [...]. Celestio, sacerdote, apresentou-se a nós para o exame, pedindo para que ele fosse absolvido das coisas de que ele tinha sido injustamente acusado à Sé Apostólica. E, embora muitas ocupações distraiam nossa atenção e solicitude com maiores casos de negócios eclesiásticos, a expectativa de sua fraternidade como a sua chegada e julgamento não podem ser adiados, nós colocamos todos de lado, e no dia do exame, sentamos na basílica de São Clemente .... a fim de que a autoridade de tão grande um bispo possa ser um exemplo de disciplina salutar para a presente investigação.”
“Por isso, discutimos tudo o que havia sido feito até então, como você vai conhecer dos atos anexos à presente carta. Celéstio sendo admitido, nós colocamos o libelo que ele tinha dado para ser lido; e, não contente com isso, nós repetidamente perguntamos-lhe se ele falou de coração ou com os lábios apenas, as coisas que ele havia escrito.”
O Papa continua a inverter contra Heros e Lázaro por não aparecerem no Sínodo de Diospolis. Eles tinham sido devidamente depostos de suas sés, e Celestio mal viu Heros, e nunca Lázaro; O último, no entanto, ele tinha ficado satisfeito de sua ortodoxia. Os africanos atenderam muito facilmente, continua São Zózimo, no fervor de sua fé, às cartas desses dois bispos, e ele prova a partir das Escrituras que até os sábios podem errar por falta de cautela. Por esse motivo, o Papa não chegou a nenhuma decisão precipitada ou imatura, mas simplesmente escreveu um relato do julgamento. O antigo libellus, que Celestio apresentou em Cartago em 410, deveria ter sido um testemunho a seu favor, contra acusadores de reputação duvidosa. (Parece que Celestio havia enganado o Papa quanto à sua condenação nessa ocasião). Em dois meses, esses acusadores se apresentem, caso contrário Celestio será formalmente absolvido. Além disso, Celestio e seus amigos foram orientados a evitar essas perguntas perigosas para o futuro. [7]
Celestio escreve ao Papa Zózimo
O libelli e as confissões aqui referidas não chegaram até nós. No que diz respeito ao antigo libellus de 411, uma vez que Celestio apelou para Roma, provavelmente concluiu com um humilde ato de submissão ao Papa. Então, certamente, fez o novo libellus, do qual temos o seguinte conto e citação em Santo Agostinho: [8]
“No libellus que ele deu em Roma quando ele havia explicado sua fé da Trindade à Ressurreição (sobre tudo o que ninguém lhe perguntou, e sobre o qual nenhuma pergunta havia sido levantada), quando ele chegou à questão crucial Ele disse: ‘Se surgiram quaisquer questões além daquelas que são de fé, sobre as quais deve haver disputas entre muitos, não decidi esses assuntos com autoridade definitiva como originador de qualquer dogma, mas o que recebi da fonte dos profetas e apóstolos, nós oferecemos para ser aprovado pelo julgamento do seu apostolado; para que, se por acaso o erro de ignorância humana se lançou sobre nós, possa ser corrigido pela sua decisão’. Aqui você vê que, nesta introdução, ele se preocupa que, se algum erro for encontrado, ele pode não ter errado na fé, mas em questões que estão além da fé”. (Do Pecado Original Livro XXIII, 26.)
Não é de admirar que Zósimo tenha absolvido da heresia formal o autor de uma submissão tão completa à autoridade apostólica, e uma apresentação tão aparentemente generosa de um julgamento privado. Sem dúvida, a insinuação de que a questão não era de fé não foi notada no momento, e Santo Agostinho nos assegura que ele foi repetidamente chamado a fazer a mesma apresentação de boca em boca. Pois em um lugar de seu libellus [9] ele negou o pecado original com toda a clareza até as palavras, embora ele tenha explicado isso na presença do Papa. Aqui está a conta de Santo Agostinho:
“Esta opinião de Pelágio estava com medo ou vergonha de trazer para você; mas seu discípulo sem qualquer dissimulação não teve medo nem vergonha de publicá-la abertamente diante da Sé Apostólica. Mas o próprio misericordioso prelado da Sé, quando o viu elevar de cabeça com tal presunção como um louco, até que ele pudesse caísse em si, se fosse possível, preferia analisar pouco a pouco a questão e responder para golpeá-lo com uma sentença severa, impelindo o para aquele precipício que ele aparentemente já estava pendurado. Não digo “caído”, mas “parecia estar pendurado"; Pois mais cedo no mesmo libellus que ele havia prometido antes de falar de tais perguntas: ‘se por acaso o erro de ignorância humana se lançou sobre nós, possa ser corrigido pela sua decisão’. Assim, o venerável Papa Zózimo que mantém esta declaração preparatória, pediu ao homem inflado com falsa doutrina, para condenar o que ele foi acusado pelo diácono Paulino e dar o seu consentimento às cartas da Sé Apostólica que emanaram de seu antecessor de Santa memória. Ele se recusou a condenar o que o diácono objetou, mas não ousou resistir às cartas do Abençoado Papa Inocêncio, e prometeu ‘condenar o que quer que Sé condenasse". Assim, tratou suavemente, como se fosse um louco, para que ele pudesse ser absolvido, ele ainda não era considerado apto para ser libertado dos laços da excomunhão. Mas um prazo de dois meses foi dado, para que uma resposta pudesse ser recebida da África, e então uma oportunidade de chegar a seus sentidos lhe foi dada por uma gentileza medicinal em sua sentença. Pois, de fato, ele seria curado, se ele deixasse de lado sua vaidade obstinada, e cumprisse o que ele prometeu, e lesse as cartas, às quais ele professava consentir.” (Santo Agostinho - Do Pecado Original Livro II, VI-VII, 6-8)
Anglicanos erram ao dizer que o papa Zózimo aprovou o Pelagianismo
Santo Agostinho, com as atas em sua frente, está fazendo aqui uma defesa ao Papa, que havia sido acusado pelos Pelagianos de aprovar a doutrina de Celestio sobre o pecado original. O que esses hereges poderiam ter dito não poderias ser de modo algum o que os escritores protestantes modernos (como o Dr. Pusey, o Dr. Bright e o Dicionário de Eccl Biography, art. “Zosimus”) assumiram sobre a mesma tensão. Não se pode sentir dor cada vez que se encontra historiadores estimáveis e bem-intencionados que tomam o lado dos hereges antigos contra a Igreja. Neste caso, o Dr. Bright admite que esta aprovação da heresia de Celestio não era ex cathedra, de modo que seu argumento é inútil contra os católicos. Mas ele acusa Santo Agostinho de fazer uma defesa a o Papa que ele sabia era falsa (comumente chamada de mentira), inteiramente na evidência da carta de São Zózimo, que fala bastante vagamente. Se ele estiver certo, São Zósimo também deve ter mentido, quando em sua terceira carta ele nega que aprovou todas as palavras do libellus. Mercator e Paulinus devem estar mentindo, pois estão exatamente de acordo com Santo Agostinho. [11]
Santo Agostinho diz:
"Quidquid interea lenius actum est cum Caelestio, seruata dumtaxat antiquissimae et robustissimae fidei firmitate, correctionis fuit clementissima suasio, non approbatio exitiosissimae prauitatis" [12]
“se havia alguma indulgência na maneira de tratar Celestio, tal clemência era, sempre segura, nos princípios de uma fé antiga e muito firme, uma exortação benigna à emenda, não a aprovação perniciosa do mal.” [12]
Ele nega absolutamente que qualquer aprovação da negação do pecado original pode ser encontrada nos atos do julgamento de Celestio ou nas cartas do Papa à África. [13]
Na teoria do Dr. Bright, isso é definitivamente uma falsidade; mas uma grande falsidade tola, já que poderia ser refutada a partir dos próprios documentos aos quais ela apela. Santo Agostinho deve ter sido não apenas um mentiroso (igual a São Leão e o Padre Rivington), mas um tolo. Como os Pelagianos e o Dr. Bright são acusadores interessados, podemos defender o santo em ambos os casos. Voluntas emendationis, non falsitas dogmatis approbata est; isto é para dizer que sua profissão de submissão (como a de São Bernardo em sua famosa carta sobre a Imaculada Conceição), tornou todo o documento católico; e a isso se juntou sua aceitação das cartas do Papa Inocêncio, as quais, incidentalmente e por implicação, [14] condenaram seu erro quanto ao pecado original. Mas ele foi ainda obrigado a condenar as doutrinas condenadas em Cartago em 411. Isso ele se recusou a fazer imediatamente, mas deu esperanças de submissão. Nestes casos de acusação, foi certamente incluída a negação do pecado original, uma vez que Santo Agostinho cita as atas do concílio. [15]
Portanto, não há dúvida de que o Dr. Bright está errado e Tillemont também, ao dizer que Zózimo aprovou o erro; enquanto Mercator, Santo Agostinho, Paulino e, mais tarde, Facundus de Hermiane, [16] estão certos. O erro do papa Zózimo, e foi grave o suficiente, foi acreditar que Celestio estava sendo sincero em sua submissão.
A carta do Papa acima foi escrita em algum momento em setembro de 417, [17] e logo foi seguida por outra escrita no dia 21 daquele mês. [18]
“Depois que o padre Celestio foi ouvido por nós e professou claramente seus sentimentos quanto à fé, e confirmou as declarações de seu libellus com repetidos protestos, nós escrevemos tudo sobre ele para sua caridade. E agora, eis que recebemos uma carta de Praylius, bispo de Jerusalém (que foi nomeado na sala do falecido Beato João), que intervém fervorosamente na causa de Pelágio, que também enviou uma carta própria, contendo sua completa defesa, e anexou uma profissão de fé - o que ele crê e o que ele condena - sem qualquer engano, para que todas as dificuldades de interpretação possam cessar. Elas foram publicamente lidas; todos os seus conteúdos correspondiam ao que Celestio havia produzido anteriormente e no mesmo sentido e teor. Que qualquer um de vocês, amados irmãos, pudesse ter estado presente na leitura dessas cartas! Que alegria havia ali da parte dos homens santos presentes! Como eles perguntavam! Quase não se pode conter nem mesmo de lágrimas!”
O Papa acusa então Lázaro de ter sido condenado pelo Concílio de Turim por proferir falso testemunho contra São Brito de Tours, e declara que tanto ele como Heros eram bispos ilegais estabelecidos pelo usurpador Constantino. Sobre a verdade dessas afirmações, não precisamos tratar aqui. [19] Ele continua:
“Veja, Pelágio e Celestio se apresentam diante da Sé Apostólica por suas cartas e confissões. Mas onde está Heros? Onde está Lázaro? Nomes vergonhosos. Onde estão aqueles jovens, Timasius e Jacobus, que produziram escritos, como foi dito, de Pelágio? Quando estes acusados fazem tais confissões católicas perante a Sé Apostólica, julgueis vós mesmos se as coisas relatadas deles por homens de caráter perverso e sem peso, e por vagos rumores, devem ser acreditados. Amem a paz, amem a caridade, amem a concórdia. Pois está escrito: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’. Quem são mais próximos um do outro do que nós, que devemos todos ser um em Cristo? Nem todo vento que entra em seus ouvidos é um mensageiro da verdade.”
Pelágio se submete ao Papa Zózimo
Com os textos das Escrituras, São Zózimo insiste no perigo de receber falso testemunho e o dever de cautela. Ele incluiu a carta de Pelágio, dirigida por ele ao Papa Inocêncio, de cuja morte ele ainda não estava ciente, [20] e seu libellus. A carta está perdida, salvo algumas citações em Santo Agostinho. O libellus foi preservado, e é completamente livre de heresia até onde existe. [21] Mas o papa não tinha diante dele as detalhadas acusações das opiniões heréticas de Pelágio, e foi mais facilmente imposto pela rejeição de toda heresia, exceto o pelagianismo, que Pelágio, como Celestio, haviam estabelecido. [22] Ele conclui, novamente como Celestio, com a submissão sem reservas à decisão infalível da Santa Sé:
“Esta é a fé, abençoadíssimo Papa, que nós aprendemos na Igreja Católica, que nós sempre cremos e mantemos. Se nós por acaso colocamos algo nelas inábeis ou sem a devida cautela, nós desejamos ser corrigidos por vocês., que detêm tanto a fé como a Sé de Pedro, [emendari cupimus a te qui Petri et fidem et sedem tenes], se, no entanto, esta nossa confissão for aprovada pelo julgamento do seu apostolado, então, quem desejar me enegrecer, não provará que eu sou um herege, mas que ele próprio não é hábil, ou então é mal-intencionado, ou mesmo não é católico ”.
A falsa submissão de Pelágio e Celestio
Os bispos africanos podem ter ficado perturbados com o recebimento dessas duas cartas. Eles puderam ver imediatamente que a submissão de Celestio era insincera, e que Pelágio havia cuidadosamente omitido em seu libellus a condenação das heresias particulares das quais ele era acusado. Foi no dia 24 de setembro que Santo Agostinho pregou em Cartago, dizendo: (Roma locuta est); causa finita est. A carta anterior não havia chegado, e Paulino recebeu sua intimação a Roma como acusador, do portador Basiliscus apenas em 2 de novembro. Isso é por volta da data em que a segunda carta, escrita em 21 de setembro, teria chegado; então pode-se presumir que ambos vieram pelo mesmo mensageiro. [23] Uma resposta parece ter sido enviada imediatamente por Aurelius, provavelmente com a ajuda de alguns bispos vizinhos. Santo Agostinho deveria ainda estar em Cartago. A carta pedia ao papa que prolongasse o prazo insuficiente de dois meses, que já haviam se esgotado, a fim de que um relatório completo fosse enviado. [24]
O concílio dos 214 Bispos Africanos
O concílio que se reuniu em dezembro ou janeiro consistiu em não menos que 214 bispos, e é chamado por Santo Agostinho de Africanum concilium, [25] como sendo representativo de toda a África. Mas aparentemente não incluía um número suficiente de deputados regularmente eleitos de cada província para merecer o título de plenarium ou universale. Foi enviado, pelo subdiácono Marcelino, uma carta ao Papa, que continha ou era acompanhada de certas constituições ou decretos, do tamanho da qual o papa parece reclamar. Um dos decretos é citado duas vezes por São Prospero:
“Estabelecemos que a sentença contra Pelágio e Celestio publicada pelo venerável Bispo Inocêncio a partir da Sé do Beato Pedro, permanece firme, até que confessem isso pela graça de Deus”, etc. [26]
Isso não era nada mais do que o próprio São Zózimo havia decidido, já que ele insistira que Celestio declarasse sua concordância com as cartas de Santo Inocêncio, e mesmo assim não o libertara da excomunhão, para que ele também negasse as doutrinas que Paulino havia acusado-o, e encontrasse quaisquer outras objeções que os africanos pudessem trazer.
Eles ainda explicaram ao papa que não era suficiente para os menos instruídos que Celestio dissesse em geral que ele consentia com as cartas do papa Inocêncio, mas que ele deveria abertamente anatematizar tais ensinamentos falsos contidos em seu próprio libelo, uma vez que, se ele não o fizesse, pareceria aos ignorantes que o veneno foi aprovado pela Sé Apostólica, porque o próprio libelo foi declarado católico, em vez de ser expiado por seu consentimento às cartas de Santo Inocêncio. [27] Eles lembraram Zósimo de como seu antecessor havia julgado que Pelágio escapara da condenação em Diospolis por subterfúgio do que havia sido absolvido, [28] e eles tentaram mostrar-lhe a natureza enganosa e evasiva da profissão de fé que Pelágio enviara para Roma. [29] Eles também enviaram os atos do concílio que havia condenado Celestio em 411, e sugeriram ao papa que talvez tenha sido mais apressado em absolvição do que em julgamento. A perda deste importante documento é para ser lamentada.
Bispos africanos apelam ao papa Zózimo
Na mesma época Paulino enviou o seguinte libellus:
“Suplico a justiça de sua bem-aventurança, Senhor Zózimo, Venerável Papa. A verdadeira fé nunca é perturbada, e acima de tudo na Igreja Apostólica [Roma], na qual os mestres da falsa fé são tão verdadeiramente punidos quanto são facilmente descobertos, que eles morram nos males que cometeram, a menos que os corrijam, de modo que eles possam voltar a verdadeira fé que os Apóstolos ensinaram, e que a Igreja Romana assegura com todos os doutores da fé católica. E se como os outros heresiarcas (que, há muito temposão julgados pela Sé Apostólica ou pelos Padres, e expulsos do seio da Igreja Católica, são entregues à morte eterna), estes também, que são ou serão descobertos, se permanecerem em sua perfídia, sejam entregue à espada espiritual para serem destruídos, assim como agora Pelágio e Celestio, que foram condenados pelo predecessor de sua bem-aventurança, o papa Inocêncio, de abençoada memória, se rejeitarem a verdadeira fé, e permanecerem em sua doutrina perversa”.
Aqui está um discípulo de Ambrósio e amigo de Agostinho, diácono de Milão e morador da África, declarando com a decisão de um cipriota que “a verdadeira fé nunca é perturbada na Igreja Apostólica”, pela qual ele se refere a Roma, caso contrário “especialmente”, maxime, não tem sentido. Ele atribui a essa Igreja o direito e o dever de cortar hereges com a “espada espiritual”, da qual São Prospero falou, viz. excomunhão. Ele continua:
“Após sua sentença, sua bem-aventurança deu a Celestio o seguinte comando, entre outros, quando foi ouvido pela Sé Apostólica: ‘Você então condena todas as coisas que estão contidas no libellus de Paulino?’ E em outro lugar: ‘Você conhece as cartas que a Sé Apostólica enviou aos nossos irmãos e colegas bispos da província africana?’ E então: ‘Você condena tudo o que condenamos e retém tudo o que retemos?’ E, novamente: ‘Você condena todas as doutrinas às quais seu nome é dado?’ E, novamente, ‘Ou aquelas coisas que Paulino expôs em seu libellus?’ E quando ele disse que eu poderia ser um herege pelas minhas acusações contra ele, você, cheio do Espírito Santo, pela sua autoridade Apostólica, rejeitou suas palavras selvagens e caluniosas, e deu um julgamento pelo qual eu fui declarado católico, e ele poderia ser perdoado se quisesse. ‘Eu não quero que você fique dando voltas; você condena tudo o que foi contestado por Paulino, ou espalhado por boato?’ Para quem esta decisão não é suficiente? Quem rejeitaria tão saudável, tão acolhedora, tão piedosa decisão, a não ser aquele que se desviou da fé? E ele que tinha acima confessado que iria condenar o que foi objetado contra ele, se você julgou ser contrário à fé, ouvisse a palavra ‘condenar’, e não apenas ‘não condena’, mas ao insulto de tão grande Sé (ler injuriam tantae, para tantam, sedis), ele contesta o seu julgamento. Daí a Igreja Romana não mais ignora o caráter do acusado, que ousou em espírito audacioso contradizer, e não condenar o que sua santidade decretou que ele deveria condenar”.
Assim, Paulino prova que o papa realmente instigou Celestio a condenar explicitamente sua negação do pecado original, como estava no antigo libellus do diácono. Ainda melhor para o nosso propósito é o seu comentário sobre a recusa de Celestio. Foi um insulto à Sé Apostólica duvidar de seu julgamento; contradizê-lo por mera hesitação era mostrar-se um herege; unde non ignorat jam Ecclesia Romana reum suum. [30]
Paulino passa a agradecer a Deus que as doutrinas que ele havia acusado Celestio de proferir, deveriam ter sido assim condenadas pela Sé Apostólica, “pela qual esta heresia seria condenada, pela boca de dois Pontífices” [Papas Inocenci e Zózimo]". Pelágio também mantém essas doutrinas, e ambas são refutadas pelo Conselho de Diospolis, por muitos médicos do leste e oeste, sul e norte, Cipriano, Ambrósio, Gregório, Inocente, e também por muitos ainda vivos,
“ou melhor, desde que ele deveria segui-lo, se ele prefere aprender a verdade em detrimento do ensino da falsidade, ele tem, antes de mais nada, quod primum est, sua bem-aventurança, cuja sentença ele deveria ter obedecido, quando o ouviu você dizer ‘condenar’. .... Portanto, eu oro que seu Apostolado recebea este meu libellus, para que eu possa ser capaz de dar graças a sua grande Sé (tantae sedi), e às suas mais justas decisões dadas em meu favor. Eu escrevo isto porque o subdiácono Basilisco me convocou, embora apenas de boca em boca, em Cartago, em nome da vossa santidade, com os atos da Sé Apostólica dirigida a mim, no dia 2 de novembro, para estar presente diante da Sé Apostólica e do juízo da sua santidade, ao qual estava implícito que eu tinha apelado. Eu deveria prometer (leitura promitterem) não estar querendo, se a sentença tivesse sido dada contra mim, e não a meu favor. Na primeira ocasião (em 411) eu não pude fazer nada, pois depois ele tinha apelado para a Sé Apostólica, ele não viria...”
A insinceridade de Celestio fica clara para o papa Zózimo
Paulino continua, que pela ordem que Zózimo deu para ele condenar, e a recusa de Celestio, a insinceridade deste é clara:
“Que aquilo que não pode mais ser escondido, mas foi publicamente trazido à luz, seja agora cortado por sua santidade com a espada espiritual, para que o rebanho do Senhor, que você governa como um bom Pastor com ansiosa solicitude, não mais seja rasgado pelos dentes desta besta selvagem”. [31]
O “rebanho do Senhor” é aqui claramente toda a Igreja. Sem dúvida, este documento foi visto por alguns dos Padres do concílio Africano, cuja carta foi enviada a Roma, e sua doutrina quanto à prerrogativa papal não pode razoavelmente ser considerada diferente de sua crença. O libellus é esperto, justificando seu autor pelas ordens dadas pelo próprio Zózimo. Aparentemente, Celestio não se recusou absolutamente a obedecer, mas havia demorado, e era esperado que condenasse esses pontos no próximo julgamento. [32]
Sumário da Situação
Vamos agora resumir onde a situação chegou. Em Roma, o papa tem certeza de que Pelágio e Celestio são ortodoxos; mas ele não os declarará isentos de sua excomunhão sem ouvir da África, e depois de um julgamento solene. Os dois hereges pareciam provar sua inocência pela submissão completa e sem hesitação que haviam feito na forma usual de um libellus, [33] diretamente eles tinham sido excomungados por Santo Inocêncio. Pelágio foi ainda recomendado pelo bispo de Jerusalém e um concílio da Palestina, e pelo suposto mau caráter de Heros e Lázaro, seus acusadores, Celestio, por sua aceitação das cartas que o haviam condenado, e sua promessa de condenar todas as doutrinas ele havia sido acusado de professar. O que mais o Papa poderia pedir?
Em sua alegria paterna, ele escreve as duas cartas imensas, acima citadas para a África, e espera por uma resposta sintonizada em um pensamento semelhante. Em vez disso, ele recebe uma resposta branda, alerta e incrédula, pedindo mais tempo. Ele espera seis meses e depois vêm as cartas e os longos decretos do concílio e o libellus de Paulino. São Zózimo fica desapontado. Ele está zangado com os africanos por sugerir que sua linguagem pode parecer a alguns como aprovando cada palavra do libelo de Celestio, e ele entende que eles querem dizer que eles acham que ele realmente fez isso. Ele acha que suas cartas não mostram reconhecimento suficiente dessa grande condescendência, e ele demonstrou isso ao consultá-los sobre esse assunto. Ele retoma, portanto, em sua réplica o estilo estatal oficial da corte romana, e evidentemente se sente envergonhado de sua antiga explosão de sentimentos, que teve tão pouca resposta na África. No entanto, as evidências contemporâneas nos asseguram que foi a explicação enviada pelo concílio que o fez mudar de ideia; e, de fato, lendo nas entrelinhas, fica claro que a mudança já havia chegado. Ele parece meio que se desculpar com a sua bondade a Celestio e está evidentemente a ponto de retomar a questão, agora que não há mais nada a esperar. O texto da carta é muito corrompido:
Papa Zózimo responde aos bispos africanos
“Embora as tradições dos Padres atribuíssem à Sé Apostólica uma autoridade tão grande que ninguém ousaria contestar seu julgamento, e preservou isso sempre em seus cânones e regras, e a atual disciplina eclesiástica em suas leis ainda dá a reverência que deveria ao nome de Pedro, do qual tem sua própria origem, para a antiguidade canônica (canonica antiquitas) quis que este apóstolo tivesse tal poder pelas decisões de todos (per, ou super sententias omnium), e pela promessa de Cristo nosso Deus, que ele deveria ligar e desligar, e uma condição igual de poder foi dada àqueles que com o seu consentimento receberam a herança de sua Sé. Pois ele mesmo tem cuidado de todas as Igrejas, e acima de tudo aquela em que ele se sentou, ele não sofre nada com seus privilégios ou decisões para ser abalado por qualquer vento, desde que ele estabeleceu isto no fundamento, firme e imóvel, de seu próprio nome, que ninguém correrá o risco de atacar precipitadamente.
“Desde então, Pedro é o chefe de tão grande autoridade, e confirmou os sufrágios de nossos antepassados desde sua época, de modo que a Igreja Romana é confirmada por todas as leis e disciplinas, divinas ou humanas; cujo lugar nós governamos, e o Poder de cujo nome nós herdamos, como vocês não desconhece, meus irmãos, mas vocês o conhecem bem, e como bispos vocês são obrigados a conhecê-lo; mas, embora tal fosse a nossa autoridade que ninguém poderia reconsiderar nossa decisão, ainda não fizemos nada além do que nós próprios referimos para o seu conhecimento por carta, dando valor à nossa irmandade, a fim de que, tivessem pensamentos em comum, não porque não soubéssemos o que deveria ser feito, ou porque poderíamos fazer algo o que poderia desagradá-los como sendo contrário ao bem da Igreja, mas nós desejamos tratar junto com você, um homem que foi acusado diante de você (como você mesmo escreveu), e que veio à nossa Sé afirmando que era inocente, não recusando o juízo sobre o seu recurso inicial; por sua própria conta chamando seus acusadores, e condenando as coisas de que ele disse que foi falsamente acusado por boato.
“Nós pensamos, e de fato sabemos, que toda a petição foi explicada em nossa carta anterior, e acreditamos que respondemos suficientemente às cartas que você escreveu em resposta. Mas nós desdobramos o rolo inteiro de sua carta que foi enviada mais tarde pelo diácono Marcelino. Você entendeu todo o texto de nossa carta como se tivéssemos acreditado tudo que Celestio falou e tivéssemos dado nosso assentimento, por assim dizer, a todas as sílabas sem discutir as palavras. Casos que precisam de um longo tratamento nunca são imprudentemente adiados, nem sem grande deliberação devem ser decididos qual julgamento final deve ser dado. Portanto, que sua irmandade saiba que nada mudamos desde que escrevemos para você ou você nos escreveu; [34] mas que deixamos tudo no mesmo estado em que foi quando informamos a sua santidade do assunto em nossa carta, a fim de que seu pedido sincero seja aceito. Adeus.”
Papa Zózimo condena os hereges pelagianos no Tractoria
Não demorou muito para São Zózimo escrever uma carta muito diferente, a famosa tractoria ou tractatoria, que finalmente condenou os hereges. Que Mario Mercator conte a história:
“Quando os bispos da África escreveram uma resposta expondo toda a causa que havia sido esmiuçada lá, enviando os atos de seus concílios que tinham sido realizados sobre ele, presente ou ausente, ele foi então chamado para uma audiência mais completa, para que ele pudesse acelerar e cumprir sua promessa de condenar os capítulos citados [de Paulino], e assim ser absolvido da excomunhão que ele havia recebido dos bispos africanos. [35] Mas não só ele não apareceu, mas fugiu de Roma, e por isso foi condenado pelo dito bispo Zózimo, de abençoada memória, num documento muito longo e completo, no qual estão contidos os capítulos de que foi acusado, e todo o caso do próprio Celestio e seu mestre, ainda mais depravado, Pelágio está claramente relacionado. Nestes escritos, notamos que exemplares semelhantes foram enviados aos bispos, às Igrejas do Oriente, à província do Egito, a Constantinopla, Tessalônica e Jerusalém.”
Depois de citar passagens dos escritos de Pelágio, Mercator continua:
“Todos esses capítulos estão contidos naquela carta do bispo Zózimo, de abençoada memória, que é chamada de tractoria, pela qual Celestio e Pelágio são condenados.” [36]
Aqui está o relato de Santo Agostinho a respeito de Celestio:
“Quando depois que as esperadas cartas da África chegaram a Roma... então quando sua presença foi exigida, que por certas e claras respostas poderia ser trazido à luz se era enganosa ou ortodoxa, ele fugiu e recusou o exame. Se a decisão fosse adiada por mais tempo, não seria proveitosa para o bem dos outros, se não para sua própria obstinação e loucura”. [37]
E de Pelágio ele escreve:
“Ele enganou o julgamento dos palestinos; portanto, ele foi absolvido lá. Mas a Igreja de Roma, onde você sabe que ele é bem conhecido, ele não poderia de forma alguma enganar, embora ele tenha tentado o seu melhor; mas, como eu disse, ele não poderia ter sucesso. Pois o bem-aventurado Papa Zózimo recordou o que seu antecessor, digno de imitação, tinha pensado de seus atos. Ele teve igualmente à opinião em conformidade com fé romana que merece ser proclamada no Senhor (praedicanda in Domino Romanorum fides); ele [Pelágio] viu o zelo comum inflamado em concordância contra o seu erro em nome da verdade católica. Pelágio viveu muito tempo entre eles, e suas doutrinas não podiam ser desconhecidas; e eles conheciam suficientemente bem Celestio para ser seu discípulo, a fim de serem capazes de dar um testemunho mais fantástico e firme do fato.” [38]
Mais adiante ele fala novamente da maneira pela qual Pelágio tentou enganar o “julgamento episcopal da Sé Apostólica” (ibid xvii. 19):
“Ele pareceu por um tempo dizer o que estava de acordo com a fé católica [em sua carta e libellus], mas ele foi incapaz de enganar aquela Sé até o fim. Pois depois dos rescritos do Concílio Africano, província na qual suas doutrinas pestilentas haviam se infiltrado, mas que não haviam sido tão amplamente difundidas, outros escritos seus foram tornados públicos pelo cuidado de irmãos fiéis na cidade de Roma, onde ele havia vivido por um longo tempo, e se ocupado primeiramente com estes conversas e disputas. Estas foram anexadas pelo Papa Zózimo, para serem anatematizadas, as suas cartas que ele escreveu para serem difundidas em todo o mundo católico” (ibid xxi. 24).
O tractoria de Zózimo foi perdido e não sabemos sua data. O julgamento de Celestio seria naturalmente o mais breve possível depois de 18 ou 21 de março, quando o papa escreveu para a África. Isto está implícito nas passagens de Mercator e Santo Agostinho que acabamos de citar. Na verdade, o papa só esperava a resposta do concílio, e ele já havia esperado seis meses em vez de dois. Em todo caso, ocorreu antes de 30 de abril, pois naquela data um rescrito do imperador Honório expulsou Celestio, Pelágio e seus partidários de Roma; qualquer convocação a comparecer e qualquer condenação por falta de comparecimento deve ter sido anterior a isto, a menos que fosse uma mera farsa; enquanto Celestio poderia ser expulso depois que ele fugisse, como Pelágio, que não estava lá há anos.
Os irmãos Ballerini pensam que a convocação ocorreu dentro de uma semana depois da carta do papa, pois a Páscoa caiu em 7 de abril, e o Domingo de Ramos, 31 de março, seria o dia apropriado para absolver Celestio, para que ele pudesse comungar na Páscoa. Em si, isso parece mais provável. Só se pergunta por que o papa deveria ter escrito para a África sem esperar pelo resultado do julgamento alguns dias depois. Talvez, por prever que os africanos estivessem certos, preferiu enviá-los de imediato uma repreensão e uma desculpa, antes de ser obrigado a reconhecer o seu próprio erro. [39]
A decisão final do papa Zózimo será assinada por todos os bispos
De fato, nada poderia ser mais generoso do que a maneira como ele consertou o erro de seu bondoso coração, pois ele anexou as constituições do concílio africano, para serem assinadas por todos os bispos do mundo. Esta assinatura foi feita duplamente obrigatória por um segundo decreto do imperador Honório no ano seguinte; já obrigada como demanda papal. Ninguém vai supor que o Papa Zózimo considerasse que as assinaturas dos bispos dariam à sua decisão uma força ecumênica que de outra forma não teria. Era para ser uma notificação de um decreto, e a assinatura seria uma submissão, assim como um julgamento episcopal aumentando o peso moral do documento. A visão galicana não é mais aceita por outros contemporâneos do que por Santo Agostinho. Todos saúdam a decisão como final, [40] e nenhum coloca qualquer contestação no consentimento da cristandade como dando-lhe validade.
Pelo contrário, São Prospero diz que o papa “armou todos os bispos com a espada de Pedro”:
“Africanorum conciliorum decretis beatae recordationis Papa Zosimus sententiae suae robur annexuit, et ad impiorum destruncationem gladio Petri dexteras omnium armament antistitum”. [41]
Mais uma vez, ele diz que a aprovação do concílio Africano foi uma condenação do Pelagianismo em todo o mundo:
“Concilio apud Carthaginem habito ccxiv episcoporum, ad Papam Zosimum synodi decreta perlata sunt, quibus probatis, por totum mundum haeresis Pelagiana damnata est.” [42]
Assim, ele introduz uma citação da tractoria: “Sacrosancta beati Petri sedes ad uniuersum orbem sic loquitur”. [43] (A visão sagrada de Pedro, portanto, aborda o mundo inteiro.)
Marius Mercator escreve:
“(A tractoria) foi enviada a Constantinopla e para todo o mundo, e foi fortalecida (roborata) pelas assinaturas dos Santos Padres. Juliano e seus cúmplices recusando-se a assiná-la, e consentir (consentaneos se facere) àqueles Padres, foram depostos não só por leis imperiais, mas também por decretos eclesiásticos, e banidos de toda a Itália. Muitos deles voltaram a si e, sendo corrigidos de seus erros, voltaram como suplicantes à Sé Apostólica, e sendo aceitos, receberam de volta suas Sés” [44]
A última parte da passagem é indicação suficiente de que “roborata” na primeira parte não significa um fortalecimento do fraco, mas um reforço para o forte. São Possídio, que foi um dos cinco bispos que enviaram a Santo Inocêncio uma carta comum, escreve em sua vida de Santo Agostinho:
“E como esses hereges estavam tentando levar a Sé Apostólica à sua visão, os concílios africanos dos santos bispos também fizeram o possível para persuadir o santo Papa da Cidade (primeiro o venerável Inocente e depois seu sucessor, São Zózimo), que esta heresia devia ser abominada e condenada pela fé católica. E esses bispos de uma grande Sé (tantae sedis) condenaram sucessivamente, e os separaram dos membros da Igreja, dando cartas às Igrejas africanas no Ocidente, e às Igrejas do Oriente declararam que eles deveriam ser anatematizados e evitados por todos os católicos (eos anathemandos et deuitandos ab omnibus Catholicis censuerunt). O julgamento pronunciado sobre eles pela Igreja Católica de Deus foi ouvido e seguido também pelo piedosíssimo Imperador Honório, que os condenou por suas leis, e ordenou que fossem tratados como hereges. Portanto, muitos deles retornaram ao seio da Santa Madre Igreja, de onde haviam perambulado, e ainda estão retornando, enquanto verdade da fé correta se torna conhecida e prevalece contra o detestável erro”. [45]
Claramente, São Possídio considera que os papas tinham o direito que reivindicavam, de decidir a fé para todos os católicos.
No último mês deste ano, 418, São Zózimo morreu, depois de uma doença prolongada. Ele está contado entre os santos, e a generosidade de seu caráter brilha sobre os desafortunados erros que preenchem seu curto pontificado, e cuja história não é pode ser ignorada. Seus contemporâneos, com exceção daqueles hereges aos quais ele era gentil demais, não têm nada além de elogios por sua memória.
Os Bispos Africanos escrevem ao Papa Zózimo
Enquanto isso, na África, outro grande concílio, desta vez plenário, estava sendo realizado. Foi aberta no dia primeiro de maio, a terceira carta de São Zózimo, repreendendo os africanos, chegando dois dias antes. Se é verdade que Celestio foi condenado antes do Domingo de Ramos, a notícia disso já poderia ter chegado. Em todo caso, sabemos que os primeiros cânones do concílio foram nove cânones contra os pelagianos, que Santo Agostinho descreve como um resumo das constituições do concílio anterior. Mais dez cânones sobre a disciplina foram redigidos, e finalmente foi aprovada uma resolução de que de cada província três delegados deveriam ser escolhidos para continuar o concílio, para que o restante dos bispos pudesse estar livres para retornar. É pouco provável que a tractoria tenha chegado neste momento, de modo que a carta em resposta foi sem dúvida enviada ao Papa por esses quinze deputados, [46] que incluíam os Primazes da África e Numídia, Aurelius e Donatian, com Agostinho e Alípio. Um fragmento da carta é preservado por São Prospero: Os bispos africanos, escrevendo em resposta ao mesmo papa Zózimo, e louvando-o pela salubridade desta sentença, dizem:
“Como você colocou em suas cartas que ordenastes serem enviadas a todos, dizendo: ‘Pela assistência (instinctu) de Deus (pois todas as coisas boas devem ser encaminhadas ao seu Autor de quem elas sua origem), nós trouxemos todas essas coisas ao conhecimento de nossos irmãos e companheiros bispos. Isto nós entendemos assim: que você cortou, como se fosse de passagem, com a espada da verdade, aqueles que exaltam a liberdade do livre-arbítrio humano contra a assistência de Deus. Por que mais liberdade do que trazer todos esses assuntos ao conhecimento de nossa humildade? No entanto, você tem fiel e sabiamente visto que foi com a ajuda de Deus, e você verdadeiramente e com confiança disse isso...”
Ainda em Cartago, Santo Agostinho dirigiu a Albina, Piniano e Melania os dois livros “De gratia Christi” e “De peccato originali”, dos quais tivemos ocasião de citar. Ele explica no primeiro as falácias na teoria da graça de Pelágio, e no último ele relaciona a recente condenação dos dois hereges, e explica o dogma do pecado original. Especialmente notável é a maneira em que Santo Agostinho defende a Santa Sé da acusação de ter aprovado o erro antes de condená-lo. Celestio “não poderia enganar aquela Sé”; Pelágio “não poderia enganar essa Sé até o fim”. Santo Agostinho se esforça para refutar Pelágio com as palavras de Santo Ambrósio, porque Pelágio lhe fez os maiores elogios em seu livro sobre o livre-arbítrio. As palavras são:
“Beatus, inquit, Ambrosius, in cujus praecipue libris Romana elucet fides, qui scriptorum inter Latinos flos quidam speciosus enituit, cujus fidem et purissimum in Scripturis sensum, ne inimicus quidem ausus est reprehendere.” [47]
“O bem-aventurado bispo Ambrósio, em cujos livros, principalmente, resplandece a fé romana, brilhou como formosa flor entre os escritores latinos; e sua fé e legítima interpretação das Escrituras nenhum inimigo ousou censurar” [47]
Santo Agostinho continua: Ecce qualibus e quantis praedicat laudibus, e no próximo livro: Quem tanto praeconio laudauit. [48] Ele cita toda a passagem novamente em duas ocasiões distintas, [49] e refere-se a ela pelo menos dez vezes. [50] A inferência é que Santo Agostinho concordou com Pelágio que Romana fides [a fé de Roma] e integerrima fides [a fé de toda a Igreja] são sinônimos.
Santo Agostinho Elogia os Papas Santo Inocêncio, São Zózimo e São Bonifácio
O concílio acabou, Santo Agostinho foi por ordem do Papa Zósimo para Cesaréia, na Mauritânia, em uma missão desconhecida. [51] Ele também teve uma conferência com o Bispo Donatista Emérito, e estava muito ocupado. Ele se sentiu obrigado, no entanto, a responder a carta de um bispo Optatus, que o consultou se “criacionismo” poderia ser crido por um católico. Ele fala para ele de Pelágio e Celestio:
“Pela vigilância dos concílios episcopais, com a ajuda do Salvador que guarda Sua Igreja, foram condenados em todo o mundo cristão por dois venerados bispos da Sé Apostólica, papa Inocêncio e o papa Zózimo, a menos que se arrependam e façam penitência” [ 52]
Ele cita uma passagem da tractoria e comenta:
“Nestas palavras da Sé Apostólica, tão antiga e fundada, tão certa e clara é a fé católica, que seria um pecado para o cristão duvidar dela.” [53]
Não podemos ignorar a expressão “palavras da Sé Apostólica"; elas significam “as palavras autorizadas do sucessor de Pedro”, não meramente a doutrina de um eminente bispo.
Retornando a Hipona, Santo Agostinho encontrou aguardando o uma carta de Marius Mercator, junto com um livro dele contra o pelagianismo. Ele responde calorosamente, elogiando o zelo de seu querido filho por sua conversão. [54] Sem dúvida é por causa deste encorajamento que devemos os escritos de Marius, tantas vezes citados acima.
A inocência de Pelágio tinha sido defendida em Roma pelo padre Sisto, depois tornado papa São Sisto III, que confirmaria o Concílio de Éfeso. Ele agora renunciou publicamente sua defesa, e Santo Agostinho escreveu-lhe uma carta de felicitações (Ep 191). Sisto respondeu, e Santo Agostinho escreveu uma longa resposta, na qual ele diz:
“Devemos reconhecer à sua caridade que ficamos muito tristes quando haviam rumores de que você favorecia os inimigos da graça de Cristo. Mas que essa tristeza seja apagada de nossos corações, da mesma forma rumor semelhante declarou, primeiro, que você tinha sido o primeiro a pronunciar anátema contra eles em um aglomerado de pessoas. Agora, quando as cartas da Sé Apostólica sobre a condenação deles foram enviadas para a África, a sua carta ao venerável Aurélio também foi; e, embora curta, indicou suficientemente o seu vigor contra Mas agora, quando você escreve mais clara e totalmente a sua opinião sobre esse dogma, é a fé da própria Igreja Romana que fala - aquela Igreja à qual o Apóstolo Paulo falou em tal extensão da graça de Deus através de Jesus Cristo nosso Senhor”.
Por volta do início ou meio do ano de 419, duas cartas de autoria pelagiana (a atribuída a Juliano, bispo de Eclanum, e endereçada ao novo papa Bonifácio, a outra, por dezoito outros bispos desapropriados) foram muito lidas. A vigilância dos fiéis romanos levou-os ao conhecimento do Papa e enviou-os a Santo Agostinho por São Alípio de Tagaste, o famoso companheiro da conversão daquele santo, que estivera em viagem à corte de Ravenna e ficou um tempo curto em Roma. Santo Agostinho imediatamente escreveu os quatro livros Contra duas Epistolas Pelagianorum, e dedicou-os ao Papa nas seguintes palavras: [55]
“Eu já o conhecia, ó beatíssimo e venerável papa Bonifácio, pela fama universal que proclamou o seu nome, e por muitas e muitas verdadeiras notícias eu sabia o quanto você estava cheio da graça de Deus. Mas depois que meu irmão Alipio te visitou. e você deu tantas amostras de carinho sincero, ele desfrutou do doce tratamento que inspira a caridade mútua, e, no pouco tempo que ele ficou na sua companhia, ele se juntou a você com muito carinho, juntando você e eu também em seu coração e trazendo você no dele, depois disso, eu digo, a fama de sua santidade cresceu em mim na mesma medida em que os laços de amizade foram confirmados. Porque você, que não é arrogante, embora tenha maior dignidade, não desdenha ser amigo dos humildes e sabe corresponder ao amor que eles professam. Pois o que é essa amizade, cujo nome é derivado do amor (amicitia, do amor), e que nunca é frutífero salvo em Cristo, somente em quem pode-se ser eterno e feliz?
Portanto, tomando maior confiança através de meu irmão, por meio do qual aprendi a conhecê-lo mais familiarmente, atrevo-me a escrever algo à sua beatitude sobre os assuntos que agora despertam todo o nosso cuidado episcopal para a vigilância em nome do rebanho do Senhor. ...
Uma vez que os hereges não cessam de atacar o curral do rebanho do Senhor, e procuram por toda parte à entrada, para que eles possam rasgar em pedaços as ovelhas compradas a um preço tão grande, e já que a torre de vigilância pastoral é comum a todos nós que ocupamos o ofício episcopal (no qual você, no entanto, é levantado em um pináculo mais alto), eu faço o que posso, na pequena porção daquele dever que me cabe, na medida em que o Senhor me dá poder, com a ajuda de suas orações, para fornecer antídotos e remédios para os escritos venenosos e insidiosos deles.
Esta resposta que estou enviando a eles às suas duas epístolas, uma das quais é dito ter sido enviada por Juliano a Roma, para, digamos, descobrir ou fazer partidários; a outra, que dezoito outros auto-intitulados bispos, que compartilham seus erros, ousaram escrever para Tessalônica, para tentar ganhar por seus artifícios não menos que o bispo daquela cidade, [56] esta resposta, então, eu decidi enviar a sua santidade, não que você possa aprenda com isso, mas que você possa examiná-la e, em qualquer coisa que possa lhe desagradar, corrija-a, pois meu irmão Alípio mencionou para mim que você se dignou a lhe dar as cartas que não poderiam ter chegado em suas mãos, mas a grande vigilância de nossos irmãos, vossos filhos. Eu agradeço a vossa cordial bondade, porque não desejastes que estas cartas dos inimigos da graça de Deus permanecessem desconhecidas a mim, quando encontrou meu nome abertamente caluniado.”
Essa longa passagem, que não precisa de comentários, pode encerrar nossa série de extratos de Santo Agostinho, embora seus trabalhos contra essa heresia continuassem por mais dez anos, até a época de sua última doença.
História remanescente do pelagianismo após Agostinho
A história remanescente das lutas do pelagianismo com a Santa Sé exige apenas um breve resumo. Juliano de Eclanum, que se recusou a assinar o tratado, enviou um libelo ao papa na forma usual. Depois de uma confissão de fé, concluí com submissão:
“Nós escrevemos e enviamos isto para sua Santidade, como lhe parece de acordo com a regra católica. Se você acha que deveríamos professar de outra forma, nos escreva uma resposta. Mas se é impossível nos contradizer, e ainda que alguns desejem suscitar escândalo contra nós, declaramos a vossa Santidade que apelamos ao plenário do concílio”.
Assim, ele não pensa em apelar para um concílio geral da decisão do papa, mas apenas para impor a hipotética aprovação do papa à sua doutrina. Santo Agostinho reduz a fala ao desejo de notoriedade. [57] Juliano prossegue explicando que sua razão para não assinar a carta do papa é sua relutância em condenar os inocentes não ouvidos, que haviam se purificado por libellus, e se declararam católicos. Nunca renunciará ao seu zelo pela justiça! [58]
O restante da vida de Pelágio, Celestio e Juliano é obscuro e sem importância. Daí em diante, o interesse se fixa na história dos semi-pelagianos, e isso não entra em nosso plano atual. Celestio foi novamente banido de Roma, por outra edição, [59] sob o papa Bonifácio. O Papa São Celestino também baniu os pelagianos e confirmou os decretos de seus predecessores. Ele enviou São Germano para a Grã-Bretanha como seu legado (vice sua mittit), [60] que havia sido escolhido, com Lupus de Troyes, para esta missão por um concílio na Gália. Assim, nossa ilha foi libertada da heresia à qual ela deu à luz e, pela aceitação de um representante papal, sua catolicidade é testemunhada.
Sob o mesmo Papa Celestino, o pelagianismo foi condenado pelo Concílio Ecumênico de Éfeso (431), que declarou em sua carta ao Papa que havia confirmado todas as suas decisões sobre o assunto. [61] Além disso, S. Prospero foi feito seu legado na Gália contra os semi-Pelagians, [62] e escreveu uma famosa carta aos bispos daquele país, aprovando os escritos de Santo Agostinho, que S. Prospero trata como um juízo final que deve calar para sempre a boca daqueles que lutaram contra eles: maleloquentiae est adempta libertas. [63]
Escrevendo seu livro conira Collatorem contra Cassiano, no tempo de Sisto III, o próximo Papa, S. Prospero afirma sua confiança:
“que o que Deus tem trabalhado em Inocêncio, Zózimo, Bonifácio, Celestino, ele também trabalhe em Sisto, que possui a tutela do rebanho do Senhor, e está reservado a este pastor a glória especial de expulsar lobos escondidos, como eles fizeram aos descobertos.”
À carta de São Celestino à Gália está anexado em todos os MSS e edições uma curta coleção de citações de decisões recentes da Sé Apostólica. Parece mais provável que este apêndice tenha sido composto por S. Prospero. [64] Ele testifica não apenas a crença de seu autor na infalibilidade da Sé Romana, mas também a profissão dessa mesma crença na Gália, e declara que qualquer um que desobedece é herege. O trabalho é uma defesa da doutrina de Santo Agostinho, apelando para a autoridade superior; e ninguém pode supor que o autor não acreditasse que o santo, recentemente morto, tivesse tido a mesma visão que ele da autoridade da Santa Sé em questões de fé, uma visão na qual ele supõe que todos os católicos concordem. A introdução começa assim:
“Como muitos que ostentam o nome de católico permanecem nas opiniões condenadas de hereges, seja por maldade ou por falta de sabedoria, e pretendem disputar com devotos defensores da fé; e desde que, enquanto não hesitam em anatematizar Pelágio e Celestio, eles ainda acusam nossos médicos de exceder a medida certa, e porque eles professam seguir e aprovar somente o que a mais sagrada Sé do bendito Apóstolo Pedro sancionou e ensinou contra os inimigos da graça de Deus pelo ministério de seus prelados, [ 65] tornou-se necessário investigar diligentemente o que os governantes da Igreja Romana julgaram sobre a heresia que surgiu em seu tempo, e o que eles decidiram que deveria ser considerado quanto à graça de Deus contra os perigosos defensores do livre-arbítrio. Ao mesmo tempo, acrescentaremos algumas decisões dos concílios africanos, que os prelados apostólicos, de fato, fizeram quando decidiram aprová-los. Portanto, para que aqueles que duvidam de qualquer ponto possam ser instruídos, trazemos as constituições dos santos padres em uma tabela comparativa, para que qualquer um que não seja excessivamente contencioso possa reconhecer que toda a disputa é resumida na citações curtas conjugadas, e que nenhuma razão para contradição permanece para ele, se ele acredita e professa como católicos.”
O autor dá quatro pequenos trechos das cartas de Santo Inocêncio aos concílios de Cartago e Milevis, e os próximos dois da carta de São Zózimo “aos bispos do mundo inteiro”. Ele acrescenta a um deles o comentário dado pela resposta do concílio africano (que citamos acima de S. Prospero, contra Collatorem). Em seguida, ele faz uma citação do concílio cartaginês de 214 bispos, dizendo: “Quasi proprium Apostolicae Sedis amplectimur”. Depois destas “sanções invioláveis da abençoadíssima Sé Apostólica” (beatissimae et Apostolicae Sedis inviolabiles sanctiones), ele se refere à intercessão costumeira na Missa, e à lei do batismo infantil como testemunhando o mesmo efeito, e conclui, que ele deixa de lado questões mais sutis, pois:
“Acreditamos ser amplamente suficiente em tudo que os escritos da Sé Apostólica nos ensinaram, de acordo com as regras acima mencionadas; de modo que nós absolutamente consideramos como não católico qualquer coisa que seja vista como contrária à decisão que acabamos de citar.” (satis sufficere credimus quicquid secundum praedictas regulas apostolicae sedis nos scripta docuerunt; ut prorsus non opinemur catholicum, quod apparuerit praefixis sententiis esse contrarium)
Com essa estimativa da autoridade do papa Santo Inocêncio e do papa São Bonifácio, podemos concluir. Aqueles que se importam em ler os documentos (dados no apêndice de Santo Agostinho, volume x) sobre os semipelagianos, encontrarão mais uma vez toda a questão referida ao sucessor de Pedro por um bispo africano, Possessor; enquanto o famoso segundo concílio de Orange, cujos decretos são geralmente aceitos pelos anglicanos da Igreja Suprema, foi confirmado pelo papa Bonifácio II a pedido de seu presidente São Cesário de Arles, e assim o último fantasma do pelagianismo foi deposto, até que o moderno o racionalismo negasse novamente a necessidade da graça de Deus.
NOTAS
[1] De Acordo com o reconhecimento de Coustant
[2] Zózimo, Epistola I, Migné, vol XX, p. 462
[3] São Leão (Ep x, 4) declara que nenhum bispo de Arles antes de Pátroclo exerceu o direito.
[4] Assim, S. Prospero, Chron PL II, p. 578
[5] PL II, p. 86
[6] M. Mercator, Commonitorium, c. 3
[7] Zózimo, Ep 2 (em App Aug vol x, p. 1719).
[8] Do Pecado Original XXIII, 26.
[9] Do Pecado Original VI, 6.
[10] Do Pecado Original VI-VII, 6-8, p. 388-9.
[11] O libelo de Paulino é dado adiante. Conta de Mercator encontrada em Common PL vol XLVIII, p. 75 e App Aug vol x, p. 1687. Refutação ao Dr. Bright e Tillemont omitido.
[12] Conta as Duas Epistolas dos Pelagianos II, 3, 5, p. 575
[13] l.c. p. 575. Muito omitido.
[14] Nas cartas para ambos os concílios, ver Conta as Duas Epistolas dos Pelagianos 1. para citar
[15] De pecc orig i-iv, p. 385-7.
[16] Veja a passagem citada App Aug vol x, p. 1723
[17] Então os Ballerini mostraram, Opp St. Leon vol iii, p. 853 (1012).
[18] Aug vol x, p. 1721
[19] Ver artigo de Chapman "Papa Zósimo e o C. de Turim" em Dublin Rev Oct 1904, e Duchesne em Rev Hist 1905, p. 278
[20] De gratia Christi xxx, 32; Do pecado original XVII, 19.
[21] Em agosto vol x, p. 1716
[22] veja Aug De gr Christi xxxii, 35.
[23] A seqüência de eventos é difícil de seguir com certeza. Muito omitido.
[24] O fato desta carta é reunido a partir da resposta de Zósimo de 18 ou 21 de março.
[25] Do pecado original vii, 8; viii, 9; xx, 24; Ep 215,2; etc.
[26] C. Coll v, 15 PL vol li, p. 319 (227), ou em Aug vol x, p. 1724 e 1808.
[27] C. duas Ep Pel II, iii, 5.
[28] Do pecado original VIII, 9.
[29] ibid xxi, 24.
[30] Compare a sentença final de Pelagius libellus, citada acima.
[31] Libellus Paulini diaconi, em agosto vol x, p. 1724
[32] Então Mercator, id uehementius expectabatur. Commonit cap I.
[33] Outros exemplos são Rufinus mais cedo, e Bachiarius mais tarde, ambos existentes.
[34] Leia com o Ballerini, l.c. iv, p. 585 (1015): Nihil nos post illa qua uobis scripsimus uel litteras uestras quas accepimus.
[35] Em 411. Isso nunca havia sido removido, embora Celestius o tenha ignorado até ser confirmado por St. Innocent.
[36] Commonit c. Eu, PL vol xlviii, p. 78; e em agosto vol x, p. 1687
[37] Contra duas Epistolas de Pelágio II, 3,5 p. 574
[38] Do pecado original VIII, 9 p. 389
[39] Nota técnica longa sobre a data omitida.
[40] Ag. Retirar ii, 50 vol i, p. 650
[41] C. Collat xxi (xli), 57 p. 362 (271) ou App vol x, p. 1831
[42] Chron ad an 418, p. 740 (591); Aug ibid p. 1724
[43] C. Collat xv e cf. Carmen de Ingratis, i. Muito omitido.
[44] Commonit vi, 10 e ib PL 48 p. 107 e Aug vol x, p. 1689
[45] Possidius, Vita Aug xviii (vol i, p. 48).
[46] As palavras de Aurelius em latim omitiram.
[47] De gr Chr XLIII, 47 p. 381
[48] Do pecado original XLI, 47-8 p. 409-10.
[49] De nupt e conc I xxxv, 40 p. 436 e C. Jul I vii, 30 p. 661
[50] De nupt e II xxix, 51 p. 466; C. duas Ep Pel IV xi, 29; C. Jul I vii, 35, p. 666 e 44 p. 671. Ibid II v, 2 p. 681 etc. O orgulho de São Jerônimo na fé romana é contínuo.
[51] Epistola 190,1; cf. Epistola 193,1 e Retratações II, 51; Possidius Vida de Santo Agostinho 14.
[52] Epistola 190,22.
[53] Epistola 190, 23. vol ii, p. 866.
[54] Epistola 193
[55] Contra os Pelagianos Livro I, 1
[56] Legado Metropolitano e Papal.
[57] Contra os Pelagianos IV xii, 33 p. 638
[58] App vol x, p. 1732-6.
[59] S. Prospero, em Chron e 429.
[60] ibid, p. 1755
[61] S. Prospero (c. Coll xxi 58; l.c. p. 1831) somas da ação de São Celestino. Latino omitido.
[62] Prospero, Resp cap ad Cap (ibid, p. 1843), e Celestino Ep XXI ad Gallos, PL 50, p. 528
[63] A continuação da passagem já citada. O todo deve ser lido.
[64] Então, Coustant. omitido.
[65] Cf. Aug Op Imperf VI, XI p. 1520
PARA CITAR
CHAPMAN, Dom Jhon. O Papa Zózimo e o Pelagianismo. Retirado do Livro "Studies On Early Papacy". Disponível em: <>. Desde: 06/05/2019. Traduzido Por Rafael Rodrigues.
Todos os que escreveram sobre «Maria, mãe dos homens» ficaram contentes por terem encontrado doutrina a respeito dela em Santo Ireneu. Mas todos eles, tanto quanto eu me dei conta, se omitiram de assinalar as duas passagens onde o bispo de Lião enuncia da maneira mais formal o pensamento que lhe é mais caro[1]. A mãe de Cristo é aí apresentada em termos próprios como a Virgem que «regenera os homens». Será que esta afirmação, ainda para mais duas vezes repetida, parece ultrapassar as marcas? Para os autores destes últimos tempos, é pouco provável. A causa da omissão está sobretudo, parece, numa nota de Massuet, em que ele se convenceu de que apenas se referia à Igreja aquilo que era dito, de facto, da Virgem Maria. A sua interpretação, em todo o caso, parece inadmissível.
As duas passagens estão no Livro IV do Adversus Haereses, capítulo 33, parágrafos 4 e 11. No Migne, col. 1074 C e 1080 B. A nota de Massuet, nº 29 está localizada no parágrafo 4 no Migne, col 1074 C-D.
A primeira destas passagens apresenta-se no decorrer de uma argumentação contra os Ebionitas, que só viam em Cristo um homem comum, recusando-se a reconhecê-lo como Deus. Como podiam eles ser salvos, pergunta santo Ireneu, se o autor da sua salvação não é o próprio Deus? Como é que o homem – prossegue ele – poderá chegar até Deus, se Deus não veio até ao homem? Como é que poderá ele escapar à geração que leva à morte, se não toma parte da geração nova que leva à vida? E é este último pensamento que Santo Ireneu exprime nestes termos:
«Quemadomodum [id est, quomodo] autem relinquet [homo] mortis generationem, si non in novam [transierit] generationem mire et inopinate a Deo, in signum autem salutis datam, quae est ex virgine, per fidem, regenerationem?».
[N.T.: Porém, de que maneira [isto é, como] deixará [o homem] a geração da morte, se não passar para a nova geração, dada maravilhosa e inesperadamente por Deus como sinal de salvação: uma regeneração que procede da virgem por meio da fé?]
A frase parece complicada. Mas Massuet manteve-lhe, felizmente, a construção regular, contra Grabe. Uma só palavra aí está subentendida, que é fácil de suprir: é a palavra transierit [passar] ou um sinónimo, subentendida de forma semelhante na segunda parte da frase precedente e paralela, como estando já expressa na sua primeira parte[2]. O sentido literal não é, portanto, duvidoso: quando somos gerados na morte, é preciso nascer de novo para ter parte na vida. E é esta geração nova que, pela fé, é a «generatio ex virgine» [geração que procede da virgem]. Ora o acrescento final não é senão um aposto ao que precede, e Massuet construiu muito bem: «… si non transeat in novam generationem mire et inopinate a Deo, in signum autem salutis datam, eam videlicet regenerationem quae est ex virgine per fidem» [N.T.: … se não passar para a nova geração, dada por Deus maravilhosa e inesperadamente, em sinal de salvação, isto é, aquela regeneração que procede da virgem por meio da fé]. A identidade da «generatio nova» [nova geração] e da «regeneratio ex virgine» [regeneração procedente da virgem] é assim reconhecida[3] e é preciso partir daí para determinar o sentido real das palavras «ex virgine» [procedente da virgem].
A segunda passagem é mais curta e mais nítida. A propósito da geração virginal do Emanuel, Santo Ireneu insere este parêntesis:
«Purus pure puram aperiens vulvam, eam quae regenerant homines in Deum, quam ipse puram fecit».
[N.T.: Aquele que é puro abre de maneira pura o puro seio que regenera os homens para Deus e que Ele fez puro].
O sentido gramatical aqui é límpido. Trata-se do nascimento do Verbo Incarnado, anunciado pelos Profetas e pelo qual «o Filho de Deus se tornou o filho do homem e fez-se o que nós somos». Aquela de quem ele nasceu e que regenera os homens é, portanto, a sua mãe: temos aí a afirmação mais expressiva talvez que se encontra nos três primeiros séculos da virginal maternidade de Maria.
Para Massuet é, no entanto, a Igreja – como já o dissemos – que em cada uma destas frases é designada como a virgem que nos regenera.
Não deixa de ser verdade que esta atribuição à Igreja da geração nova que, pela fé, faz passar os homens da morte à vida, não teria em si nada de anormal. Santo Ireneu poderia muito bem ter querido exprimir esta ideia. Na carta dos mártires de Lião, a expressão τῇ παρθένῳ μητρί [da virgem mãe] encontra-se aplicada à Igreja[4] e ele mesmo (III, 24, 1: M. 966 C) fala da Igreja como a mãe que alimenta os homens com o leite da verdade[5].
Mas agora trata-se destas duas passagens e do que Ireneu quis aqui dizer. Ora parece evidente que ele não falou da Igreja, mas unicamente de Maria.
Para a segunda passagem, o contexto – já o vimos – não permite nenhuma dúvida. Aquela que regenera os homens é aquela de quem nasceu o próprio Cristo. Massuet, por outro lado, argumenta apenas com uma pretendida impossibilidade de atribuir a uma outra que não seja a Igreja a regeneração dos homens: «Nec enim haec appositio, “eam quae regenerat homines in Deum”, ulli alteri quam Ecclesiae convenire potest» [N.T.: Com efeito, este aposto: “aquela que regenera os homens para Deus”, não pode referir-se a mais nenhuma outra senão à Igreja]. Veremos imediatamente o que é preciso pensar acerca disto: o ilustre editor poderia muito bem ter sido aqui vítima de alguma ideia preconcebida.
Vamos à primeira passagem. O seu contexto parece, antes de mais, muito menos decisivo. Tão pouco o é, aliás, no entender de Massuet, pois, para fazer reconhecer a Igreja sob o nome de «a virgem», recorre à segunda passagem: «Per virginem hic intellegit auctor, non B. Mariam Christi matrem, sed Ecclesiam, uti constat ex loco parallelo infra n. 11» [N.T.: Por virgem o autor entende aqui não a Bem Aventurada Maria, mãe de Cristo, mas a Igreja, como consta do lugar paralelo abaixo no nº 11]. Mas, na realidade, o contexto aqui também obriga a entender toda a passagem como referindo-se á Virgem Maria.
Como já vimos, há identidade entre a «regeneratio ex virgine per fidem» [regeneração procedente da virgem por meio da fé] e a «generatio nova, mire et inopinate a Deo, in signum salutis, data» [nova geração, data por Deus maravilhosa e inesperadamente, em sinal de salvação]. Ora esta geração nova, maravilhosa etc… é, sem dúvida nenhuma, a geração virginal do Verbo incarnado. Ela é, com efeito, segundo o paralelismo com as frases que precedem, a via pela qual Deus veio ao encontro do homem e é ela que coloca os Ebionitas fora da capacidade de explicar a obra da salvação, porque a negam. Mas ela é também, não menos evidentemente, segundo o que se diz aqui mesmo e na frase que vem a seguir[6], a geração que apõe a «geração da morte» à «geração segundo o homem» e na qual é preciso participar para sair desta. Ora esta é a regeneração necessária à salvação e a argumentação de Santo Ireneu acaba por identificar a virgem, de quem se renasce para a fé, com a virgem de quem nasceu o próprio Cristo.
De resto, esta «geração nova, maravilhosa e inesperadamente dada por Deus em sinal de salvação» e que, sob o ponto de vista de Massuet, – lembremo-nos da construção da frase: eam videlicet regenerationem [isto é, aquela regeneração] – é identificada aqui com a nossa geração «ex virgine» [procedente da virgem], Santo Ireneu identifica-a sempre com a geração virginal do Emanuel e com as mesmas palavras significativas, sublinhemo-lo. O Profeta, ao dizer «ipse Dominus DABIT SIGNUM, id quod erat INOPINATUM GENERATIONIS eius significavit, quod nec factum esset aliter, nisi Deus… ipse DEDISSET SIGNUM… Quoniam INOPINATA SALUS hominibus inciperet fieri, Deo adjuvante, INOPINATUS ET PARTUS VIRGINIS fiebat, DEO DANTE SIGNUM HOC» [N.T.: o próprio Senhor DARÁ UM SINAL, sinal esse que significou o carácter INESPERADO DA GERAÇÃO dele e que não teria sido realizado se o próprio Deus não TIVESSE DADO UM SINAL. Porque INESPERADA era a SALVAÇÃO que começaria a realizar-se para os homens, vindo Deus em seu auxílio, e também INESPERADO se tornava o PARTO DA VIRGEM, sendo DEUS A DAR ESTE SINAL] (III, 21, 6; M. 953 e cf. 1, M. 946: «Deus igitur homo factus est et ipse Dominus salvavit nos, ipse DANS VIRGINIS SIGNUM» [Portanto Deus fez-se homem e o mesmo Senhor nos salvou, sendo o próprio Deus a DAR O SINAL DA
VIRGEM]; 19, 3: «Filius Dei… factus est filius hominis. Propter hoc et ipse Dominus DEDIT nobis SIGNUM in profundum… quod non postulavit homo, quia NEC SPERAVIT VIRGINEM PRAEGNANTEM fieri posse» [O Filho de Deus fez-se filho do homem. Por isso também o próprio Senhor nos DEU UM SINAL na profundidade, que o homem não solicitou, porque NUNCA ESPEROU QUE UMA VIRGEM pudesse FICAR GRÁVIDA], M. 941 B).
Prestando só atenção à construção gramatical e ao contexto das duas passagens examinadas, ao seu paralelismo recíproco e ao paralelismo do primeiro com os que acabamos de citar, não parece duvidoso que a mãe de Cristo não seja a virgem à qual Santo Ireneu atribui a nossa regeneração.
Mas como é que isto pode entender-se? Massuet considerou-o inadmissível. A doutrina de Santo Ireneu comportará semelhante correspondência da nossa regeneração com a geração virginal de Cristo? Claro que sim! E nada pode provar melhor a justeza da nossa interpretação do que a sua concordância com o ensinamento, aliás muito conhecido e muito firme, de Santo Ireneu sobre a maneira como se cumpre a nossa restauração em Cristo.
Sabemos que o que domina neste ensinamento é a ideia da solidariedade estreita, estabelecida pela Incarnação, entre Cristo e a humanidade pecadora. No Redentor é a própria raça de Adão que toma vantagem sobre o demónio e o pecado e que, pela sua união com Deus, passa da morte à vida[7]. O Verbo, tomando a carne da descendência daquele que pecou, une-se e incorpora-se em todos os que participam da mesma carne. Ele «recapitulou», isto é, tomou em si para o refazer, não somente Adão, mas com Adão todos os povos que dele derivam[8]. Também os passos de Cristo são os passos da própria humanidade. Tal como nós próprios desobedecemos todos em Adão, tal como nós nos tornamos nele os devedores de Deus, e tal como – numa palavra que diz tudo – nos tornamos mortos em Adão, assim também nós obedecemos, quitamos nossa dívida e recobramos a vida em Cristo[9]. Esta participação na sua vida e nas suas obras tem, sem dúvida, como condição, para se tornar actual, a nossa união com ele pela fé; porém, se fizermos a nossa ligação voluntária a este irmão mais velho da família humana providencialmente reconstituída, o que ele próprio faz somos nós já que o fazemos nele.
Ora a obra da nossa restauração, da nossa recuperação, da nossa «regeneração», se ela se consumou na morte[10] e ressurreição de Cristo, começou no entanto precisamente na hora da sua concepção virginal: esta relação da reabilitação dos homens com o acontecimento da Incarnação é também uma das ideias dominantes de Santo Ireneu. A união no Filho de Deus das duas naturezas inimigas é já reconciliação[11]. A carne, a nossa carne em nós, a nossa carne mortal e corruptível, pelo facto de nela estar presente Deus, que é o princípio da vida, encontra-se já vivificada e tornada incorruptível12. Daí que, quando Deus cumpriu este prodígio incrível da Virgem Mãe, a salvação começou já a cumprir-se para os homens[12]; já quando o Filho de Deus incarnou, fazendo-se homem… ele deu-nos a salvação imediatamente e como que em síntese[13], isto é, que desde então nós recuperamos o que tínhamos perdido em Adão, a saber: o ser à imagem e semelhança de Deus.
Desde a Incarnação – numa palavra – a nossa regeneração pode ser considerada como cumprida, porque, no Cristo que nasce de Maria, está toda a humanidade que renasce para a vida. «O nascimento do Senhor, com efeito, é o nascimento do primogénito dos mortos; todos os antigos patriarcas, ele os recolheu em seu seio e eis que os regenerou a todos para a vida de Deus: tal como Adão foi o primeiro dos mortos, assim Ele é o primeiro dos vivos»[14].
Ora aqui está onde, nesta doutrina geral, se insere o ponto particular que nos ocupa: se é verdade que, de acordo com a solidariedade estabelecida entre Cristo e os homens, o que para Cristo foi a sua concepção e o seu nascimento é já para os homens a regeneração deles; também é verdade, na sequência disso, que a mãe, que o dá à luz, os regenera a eles também.
E esta conclusão está tão realmente conforme com o pensamento de Santo Ireneu que ela se encontra expressa por ele no próprio capítulo donde nós a deduzimos. O paralelismo de Maria com Eva acompanha aí, com efeito, o de Cristo com Adão. Eva, diz ele aí em resumo, era ainda virgem, quando pela sua desobediência se torna para todo o género humano uma causa de morte; mas Maria o era também, quando pela sua obediência se torna para ela mesma e para todo o género humano a causa da salvação. Este acto de obediência libertador é, com efeito, aquele que lhe faz responder à palavra do anjo com o Ecce ancilla Domini [eis a escrava do Senhor]. É desde essa altura que o nó da desobediência de Eva se desfaz pela obediência de Maria; o que Eva, ainda virgem, tinha ligado pela sua incredulidade, a virgem Maria o desliga pela sua fé[15]. Eva é causa da nossa morte e autora do nosso cativeiro; Maria é causa da nossa salvação e autora da nossa libertação: eis a mãe que nos gera para a morte e a mãe que nos regenera para a vida de Deus. Também é quase neste termos que a mesma ideia se encontra num outro capítulo. Trata-se sempre da obediência de Maria à palavra do anjo; Santo Ireneu a opõe à desobediência de Eva causada pela serpente: «Como o género humano foi forçado a morrer por uma virgem, é por uma virgem que ele é salvo. Assim a balança mantém o equilíbrio: a desobediência virginal contrabalança com a obediência virginal…; a astúcia da serpente é vencida pela simplicidade da pomba e os laços que nos tinham amarrado à morte são desfeitos»17.
Nesta palavra ‘regeneração’ está o pensamento expresso nas duas passagens: a aceitação por parte de Maria de ser a mãe de Cristo livra-nos da morte e, portanto, faznos renascer para a vida.
Por outro lado, esta relação entre a nossa regeneração e a geração virginal é lançada por Santo Ireneu contra todos os que negam a união em Cristo de uma divindade e de uma humanidade reais. Ele insiste nisso particularmente nas duas passagens seguintes, que nós justapomos à primeira das que nos ocupam, para conseguirmos mostrar como a menção da Igreja, como autora da nossa regeneração, lhe é estranha.
III, 19, 1 | IV, 33, 4 | V, 1, 3 |
«Qui nude tantum eum dicunt ex Joseph generatum, perseverantes in servitute pristinae inobedientiae, moriuntur; nondum commisisti Verbo Dei Patris… Ignorantes eum qui ex Virgine est Emmanuel, privantur munere ejus, quod est vita æterna: non recipientes autem Verbum incorruptionis, perseverant in carne mortali, et sunt debitores mortis, antidotum vitae non accipientes. Ad quos Verbum ait: “…ὑμεῖς ὡς ἄνθρωπου ἀποθνήσκετε”. Ταῦτα λέγει πρὸς τοὺς μὴδεξαμένους τὴν δωρεὰν τῆς υἱοθεσίας, ἀλλ’ ἀτιμάζοντας τὴν σάρκωσιν τῆς καθαρᾶς γεννήσεως τοῦ Λόγου τοῦ Θεοῦ, καὶ ἀποστεροῦντας τὸν ἄνθρωπον τῆς εἰς Θεὸν ἀνόδου» (M. 938-939). |
«Quemadmodum relinquet mortis generationem, si non in novam [transeat] generationem mire et inopinate a Deo, in signum salutis, datam, quae est ex virgine per fidem, regenerationem. Vel quam adoptionem accipient a Deo, permanetes in hac genesi quae est secundum hominem in hoc mundo?» (M. 1074-1075). | «Vani autem Ebionaei, unitionem Dei et hominis per fidem non recipientes in suam animam, sed in veteri generationis fermento perseverantes, neque intelligere volentes quoniam… [Deus] operatus est incarnationem eius [id est, Filii], et novam ostendit generationem, uti quemadmodum per priorem generationem mortem haereditavimus, sic per generationem hanc haereditaremus vitam. Reprobant itaque hi commistionem vini coelestis et solum aquam saecularem volunt esse, non recipientes Deum ad comistionem suam» (M. 1122-1123). |
[N.T.: Os que simplesmente dizem que ele nasceu de José, perseverando na escravidão da antiga desobediência, morrem; tu ainda não te misturaste ao Verbo de Deus Pai… Ignorando que aquele que procede da Virgem é o Emanuel, privam-se do seu dom, que é a vida eterna. Porém, não recebendo o Verbo da incorruptibilidade, perseveram na carne mortal e são devedores da morte, não recebendo o antídoto da vida. A estes o Verbo diz: “… vós como homens morrereis”. Ele dirige estas palavras aos que, recusando receber o dom da adopção, desprezam esta geração sem mancha, que foi a Incarnação do Verbo de Deus, privando o homem da sua ligação a Deus.] |
[N.T.: Como é que deixará [o homem] a geração da morte, se não passar para a nova geração dada maravilhosa e inesperadamente por Deus como sinal de salvação: uma regeneração que procede da virgem por meio da fé? Ou receberão de Deus a adopção, se eles permanecem neste nascimento que é segundo o homem neste mundo?] | [N.T.: Ineptos são os Ebionitas, que não aceitam na sua alma a união de Deus e do homem pela fé, mas perseveram no velho fermento da sua geração, não querendo entender porque Deus operou a sua Incarnação, ou seja, a Incarnação do Filho, e mostrou a nova geração, para que, tal como nós herdamos a morte na anterior geração, assim herdássemos a vida nesta geração. Estes reprovam assim a mistura do vinho celeste e só querem ser a água deste mundo, não aceitando a sua mistura com Deus] |
As três passagens são tiradas duma argumentação contra os Ebionitas e, em cada uma, a «geração virginal», que estes hereges rejeitam, apresenta-se como a «geração nova» da qual eles se excluem pela mesma razão. Negá-la, com efeito, é «morrer» ou sobretudo é «perseverar na sua carne mortal», permanecer «devedor da morte», «escravo da primeira desobediência»; mas tudo isto acontece, porque há uma privação do «antídoto da vida» que é o Verbo, há um «não aceitar a sua mistura com Deus» – «ad commistionem suam» – há, por outras palavras, um «permanecer com o fermento da morte da geração primitiva», um «nascer apenas segundo os homens e não tomar parte na adopção divina». A geração virginal ou nova opõe-se, portanto, è «primeira geração», «à geração segundo os homens» e é «por ela que nós herdamos a vida, tal como foi pela outra que nós herdámos a morte». Sem dúvida, a fé é necessária; ela é para cada um de nós a condição colocada à nossa apropriação actual e pessoal do benefício concedido em Cristo e por Cristo a toda a humanidade; mas ela é apenas isso; porque a «geração nova» consiste numa «ligação» (εἰς Θεὸν ἄνοδος), numa «união» (unitio), e numa «mistura» (commistio) do homem e de Deus. Ora esta «mistura do vinho celeste e da água terrestre» cumpriu-se no momento em que se deu esta «pura geração carnal do Verbo de Deus, cuja grandeza os Ebionitas desconheciam». Deus realizou-a no momento da Incarnação e foi então que ele mostrou a geração nova». A Igreja não interveio nisso e o seu papel só pode ser considerado como uma cooperação na realidade da qual vem o homem novo que é o seu termo.
Cá está, por consequência, o que Santo Ireneu quis dizer ao falar da Virgem que nos regenera: tornando-se a mãe do novo Adão, Maria, gerou para a vida todos os que se revestem dele e se identificam com ele.
Para nos convencermos, de resto, que tal é o seu pensamento, basta reportarmonos uma vez mais à sua concepção da nossa restauração em Cristo.
De facto, a união que tem lugar na Incarnação, entre o Verbo de Deus e o homem que a morte detém em seu poder[16], é já «a reforma do género humano»[17]. É então que é produzido, para além de toda a vontade carnal ou humana, o homem vivo e perfeito, o Adão feito – ou refeito – à imagem e semelhança de Deus[18]. Fazendo-se homem o Filho de Deus, o homem «transporta, contém e abraça o Filho de Deus»[19], «o homem é misturado ao Verbo de Deus»[20]. Como a sua participação na filiação divina consiste precisamente na sua semelhança com o Filho, nesta comunhão mútua da divindade com a humanidade e da humanidade com a divindade que se cumpre em Cristo[21], e como a vida lhe é devolvida da mesma maneira que lhe tinha sido comunicada antes[22], pela união do próprio Deus com a substância humana saída do primeiro Adão[23], a mulher de quem foi tirada esta substância humana, pelo facto de ela ter assim concebido e dado à luz o homem novo, é apresentada como tendo regenerado todos os que nela reencontram a vida, perdida no homem velho.
As expressões de Santo Ireneu, por conseguinte, que nós não ousamos aplicar à maternidade espiritual de Maria, devem ser tomadas no sentido que o seu contexto imediato impõe: «a virgem, de quem renascemos pela fé», aquela que «regenera os homens em Deus», é a Virgem Mãe de Cristo. O bispo de Lião, no fim do século II, não diz dela nem nada mais, nem nada menos do que o que dela escreveu o Papa de Roma, no início do século XX: «In uno eodemque alvo castissimae Matris et carnem Christus sibi assumpsit et spiritale simul corpus adjunxit, ex iis nempe coagmentatum qui credituri erant in eum. Ita ut Salvatorem habens Maria in utero, illos etiam dici queat gessisse omnes, quorum vitam continebat vita Salvatoris»[24] [N.T.: Num só e mesmo seio da castíssima Mãe, Cristo não só assumiu para si a carne, mas também uniu a si ao mesmo tempo um corpo espiritual formado por todos os que haviam de crer nele. De tal modo que pode dizer-se que Maria, tendo no seu ventre o Salvador, levava também todos aqueles cuja vida estava contida na vida do Salvador].
REFERÊNCIAS
[1] Não os encontrei nem no P. Terrien: La mère de Dieu et la mère des hommes; nem em Neubert: Marie dans l´´Eglise anténicéenne; nem em Largent: La maternité adiptive de la très Sainte Vierge; nem em Newman: Du culte de la Sainte Vierge dans l’Église Catholique.
O Dr. Klebba, na sua tradução do Adv. Haereses (Bibliothek der Kirchenvater. Kempten et Munich, 1012), apenas dá o sentido literal, sem nada precisar.
[2] «Quomodo homo transierit in Deum si non Deus in hominem?» [N.T.: Como passará o homem para Deus, se Deus não passar para o homem?]. O grego repete o verbo subentendido na tradução: «Πῶς ἄννθρωπος χωρήσει εἰς θεὸν εἰ μὴ ὁ θεὸς ἐχωρήθη εἰς ἄνθρωπον» (M. 1074 C).
[3] O Dr. Klebba (op. cit. p. 107) traduz assim: «Wie aber wird er die Gerburt des Todes verlassen, wenn er nicht wiedergeboren wird zu der neuen Geburt, die da von Gott wunder bar und unbegreiflich zum Zeichen des Heils aus der Jungfrau durch den Glauben geschenkt wurde».
[4] Eusébio, H.E. V, 1, 45.
[5] Desde o século II, esta concepção da Igreja cossa mãe é clássica e universal. Cf. a nota de M. Lebreton: Mater Ecclesia, in Recherches de science religieuse, II (1911), p. 572-573.
[6] «Quam [alias: quemadmodum, no sentido de quomodo] adoptionem accipient a Deo, permanentes in hac genesi quae est secundum hominem, in hoc mundo?» [N.T.: Como receberão de Deus a adopção, se eles permanecem neste nascimento que é segundo o homem neste mundo?] (M. 1075 A).
[7] III, 18, 7 (M. 938 A); V, 21, 1 (M. 1179 C), etc.
[8] «Ipse est qui omnes gentes exinde ab Adam despersas, et universas línguas, et generationem hominum cum ipso Adam in semetipso recapitulatus est» [N.T.: Ele é aquele que recapitulou em si mesmo todos os povos dispersos desde Adão, bem como todas as línguas e a geração dos homens com o próprio Adão] (III, 22, 3).
[9] V, 16, 3; V, 21, 1, etc., etc.
[10] «Per passionem reconciliavit nos Deo» [N.T.: Pela sua paixão reconciliou-nos com Deus] (III, 16, 9; M. 929 A). «Secundam plasmationem, eam quae est a morte, per suam passionem donans» [N.T.: dando-nos pela sua paixão aquela segunda modelagem que se faz a partir da morte] (V, 23, 3; M. 1185
C), etc., etc.
[11] «In amicitiam restituit nos Dominus per suam incarnationem» [N.T.: O senhor restituiu-nos à amizade pela sua incarnação] (V, 17, 1; M. 1169 A; Cf. III, 18, 7; M. 937 B). 12 III, 18, 7; 19, 1 (M. 939-940).
[12] «Quoniam inopinata salus hominibus inciperet fieri…, inopinatus et partus Virginis fiebat» [N.T.: Porque inesperada era a Salvação que começaria a realizar-se para os homens …, e também inesperado se tornava o parto da Virgem] (III, 21, 6: M. 953 A).
[13] «Quando incarnatus est, et homo factus, longam hominum expositionem in se ipso recapitulavit, in compendio nobis salutem praestans, ut quod perdideramus in Adam, id est secundum imaginem et similitudinem esse Dei, hoc in Christo Jesu reciperemus» [N.T.: Quando incarnou e se fez homem, recapitulou em si mesmo a longa história dos homens, concedendo-nos a salvação em síntese, para que, o que tínhamos perdido em Adão, ou seja, o sermos à imagem e semelhança de Deus, o recebêssemos em Jesus Cristo] (III, 18, 1; cf. V, 1, 3 e 16, 2).
[14] III, 22, 4 (M. 959 B).
[15] III, 23, 4. Cf. Erweis der apostolischen Verkundigung, 33. 17 V, 19, 1.
[16] «Id ipsum [ factus est] quod erat ille, id est homo [redimendus], qui a morte tenebatur» [N.T.:
Ele fez-se aquilo que este era, ou seja, homem necessitado de redenção que a morte tinha sem seu poder] (III, 18, 7: M. 938 A)
[17] «Verbum… in novíssimo tempore, hominem in hominibus factum, reformasse quidem humanum genus…» [N.T.: O Verbo nos últimos tempos fez-se homem entre os homens e reformou na verdade o género humano] (IV, 24, 1: M. 1049 C. Cf. abaixo).
[18] «In fine non ex voluntate carnis, neque ex voluntate viri, sed ex placito Patris, manus eius vivum perfecerunt hominem, uti fiat Adam secundum imaginem et similitudinem Dei» [N.T.: No fim, não pela vontade da carne, nem pela vontade do homem, mas por beneplácito de Deus, as suas mãos fizeram com perfeição o homem vivo, para que o Adão se torne à imagem e semelhança de Deus] (V, 1, 3: M. 1123 B). «Quando homo Verbum Dei factum est, semetipsum homini, et hominem sibimetipsi assimilans, ut per eam quae est ad Filium similitudinem, pretiosus homo fiat Patri» [N.T.: Quando o Verbo de Deus se fez homem, assemelhando-se a si mesmo ao homem e o homem a si mesmo, para que o homem se tornasse precioso aos olhos do Pai, por meio daquela semelhança que tem com o Filho] (V, 16, 2).
[19] «Filius Dei, hominis filius factus est, ut per eum adoptionem percipiamus, portante homine, et capiente, et amplectente Filium Dei» [N.T.: O Filho de Deus fez-se filho do homem, para recebermos por Ele a adopção, levando, contendo e abraçando o homem em si o Filho de Deus] (III, 16, 3: M. 922 C).
[20] «Propter hoc enim Verbum Dei homo, et qui Filius Dei est filius hominis factus est, ut homo, commistus Verbo Dei et adoptionem percipiens, fiat filius Dei» [N.T.: Por isso, o Verbo de Deus fez-se homem, e quem é Filho de Deus fez-se filho do homem, para que o homem, misturado ao Verbo de Deus e recebendo a adopção, se torne filho de Deus] (III, 19, 1: M 939 B). Eu cito a versão latina tal como a estabelece Massuet, segundo o grego: ver as suas notas 55 e 56 a este propósito.
[21] «Qua enim ratione filiorum adoptionis eius participes esse possemus, nisi per Filium eam, quae est ad ipsum, recepissemus ab eo communionem; nisi Verbum eius communicasset nobis, caro factum? Quapropter et per omnem venit aetatem, omnibus restituens eam, quae est ad Deum, communionem» [N.T.: Como é que poderíamos ser participantes da sua adopção filial, se não recebêssemos dele por meio do Filho aquela comunhão existe com ele, e se o seu Verbo feito carne não entrasse em comunhão connosco?] (III, 18, 7: M. 937 C).
[22] «Quemadmodum ab initio plasmationis nostrae in Adam, ea quae fuit a Deo aspiratio vitae, unita plasmati, animavit hominem…, sic in fine, Verbum Patris… adunitus antiquae substantiae plasmationis Adae, viventem et perfectum efficit hominem… ut quemadmodum in animali omnes mortui sumus, sic in spiritali omnes vivificemur» [N.T.: Tal como desde o início da nossa modelagem na pessoa de Adão, aquele sopro de vida que veio de Deus, unido ao barro moldado, animou o homem…, assim também no fim o Verbo do Pai… unido à antiga substância do barro moldado de Adão, se tornou homem vivo e perfeito… para que, assim como na dimensão animal todos morremos, assim também na dimensão espiritual todos seremos vivificados] (V, 1, 3: M. 1123).
[23] «Christus erat… Deus, hominis antiquam plasmationem in se recapitulans» [N. T.: Cristo era o Deus que recapitula em si a antiga modelagem do homem] (III, 18, 7: M. 938 B). Cf. Erweis der apostolischen Verkundigung, 33 e seguintes.
[24] Encíclica de Pio X «Ad diem illum», para o jubileu da Imaculada Conceição: 2 de Fevereiro de 1904 (Edition des Questions actuelles du 20 féverier 1904, p. 200).
PARA CITAR
A. Galtier, La Vierge qui nous régénère, in Recherches de Science Religieuse, 5 (1914), p. 136-145. Disponível em: <>. Desde 13/03/2019. Traduzido por: Pe. Ze.
BREVE ENSAIO SOBRE A LIBERDADE RELIGIOSA E O CONCÍLIO VATICANO II
Padre Bernard Lucien
Publicação em Sedes Sapientiae, n° 97
Dentre os inúmeros problemas levantados pela declaração do Concílio Vaticano II, existem estes: seu ensinamento central é infalível ou somente proposto de maneira direta pelo magistério autêntico? Poderia um fiel católico não consentir com esse ensinamento, ou até mesmo o recusar, e sob quais condições? Alguns teólogos, mesmo os tradicionais, divergem sobre a resposta da primeira questão. A controvérsia entre os padres Christophe Héry (1) e Bernard Lucien nos permite refletir sobre a segunda questão, cujo desafio é importante para a atitude do fiel diante de um texto do magistério em geral, e diante do status do Vaticano II em particular.
Vale ressaltar que a questão evocada nessa controvérsia está longe de exaurir o problema. Um texto magisterial comporta aquilo que é ensinado "primeiramente e por si mesmo", mas também todo o conjunto de considerações e explicações (2). A qualidade destas influencia a justa interpretação do ensinamento cental, podendo facilitá-la ou comprometê-la. A Dignitatis Humanae apresenta deficiências graves sobre essa conexão, deficiências essas assinaladas desde o início pelos membros do Coetus Internationalis Patrum (que reagrupava, durante o Vaticano II, os padres conciliares de tendência tradicional), e que são hoje cada vez mais reconhecidas nos diversos horizontes teológicos e eclesiásticos.
Não podemos, pois, ter uma leitura simplista e dialética do debate. Afirmar que o ensinamento central do Dignitatis Humanae não está em contradicão com o magistério anterior não é "justificar a todo custo o concílio", nem cair num "fundamentalismo" magisterial. Assim, o padre Victor-Alain Berto, perito do Monsenhor Marcel Lefebvre durante o concílio, afirmando claramente que "nenhum erro é formalmente ensinado" na DH, não hesita em criticar públicamente "a consistência e a densidade doutrinal" do texto, que "está fortemente abaixo daquilo que se espera de uma assembléia tão solene e dos quatro bilhões (de liras italianas) que ela custou. Foi um preço alto a se pagar por uma montanha de discursos, resultando em textos em que o inchaço de superlativos esbanjados não consegue esconder seu fundo de mediocridade" (3).
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Em um artigo recente (4), o padre Christophe Héry ecoa nosso estudo sobre a liberdade religiosa, apresentada no Sedes Sapientiae (5).
Deixando de lado tudo o que, nesse texto, sem dúvidas por conta da paixão oratória, derroga um pouco à cortesia, examinaremos os elementos que podem servir de base a uma reflexão útil à maioria. Tentaremos nos ater, assim, ao plano de uma controvérsia construtiva.
Pressupomos que falamos a católicos: isso requer a questão de método, do qual nos recordaremos na primeira parte. Mas sabemos que, mesmo nos meios "ligados à Tradição", os conhecimentos de base estão, por vezes, ausentes. Eis por que voltaremos, na segunda parte, após as difuculdades encontradas pelo pe. Héry diante do nosso exposto sobre a liberdade religiosa no Vaticano II, aos vários pontos essenciais de doutrina, dos quais os leitores serão esclarecidos por uma síntese. Infelizmente, seremos obrigados a ser um pouco mais severos em uma terceira parte, devido ao tratamento infligido pelo pe. Héry às palavras de Sua Santidade, o papa Bento XVI.
AS EXIGÊNCIAS GERAIS DA FÉ CATÓLICA DIANTE DE UM TEXTO DO MAGISTÉRIO
Diante dos autores católicos que defendem que não há contradição entre o ensinamento central da Dignitatis Humanae (6) e a doutrina da Igreja anteriormente fixada de maneira infalível (7), o pe. Héry exprime uma procupação de metodologia (8):
"Motivados pela preocupação de salvar a infalibilidade magisterial do Concílio, e respeitando a Tradição, quatro teólogos (...) analisaram o problema de interpretação levantada pela declaração conciliar Dignitatis Humanae (...), pressupondo a conclusão a que chegaram: que não se pode ter, a priori, descontinuidade entre o magistério conciliar e a Tradição".
Tudo isso é falso.
Entre os teólogos enumerados, todos estavam inicialmente (a títulos diversos) convencidos da contradição entre a DH (ensinamento central) e a doutrina anterior infalivelmente fixada. Isto é notório a nós mesmos e aos padres de Blignières e de Saint Laumer; e foi também o caso dos dois outros, assim como seria ao pe. Héry se verificasse e se se dirigisse a eles.
A questão da infalibilidade do concílio não entra, para todos, em questão, uma vez que ao menos o pe. Valuet não o afirma (e inclina-se a negar), e nem o pe. Harrison (9).
O pe. Héry, por sua vez, ignora, por seu silêncio e sua atitude, as exigências da fé católica diante de um texto do magistério.
Com efeito, todo católico está habitado, em virtude da fé sobrenatural, por uma atitude geral de adesão no que diz respeito ao ensinamento do magistério autêntico. Essa atitude geral de adesão consiste precisamente em receber o ensinamento do magistério autêntico assim como nos é dado.
O "como nos é dado" comporta todas as variedades, desde o compromisso infalível até à simples ajuda pedagógica, passando pelo compromisso tão somente relativo: é por isso que essa atitude geral de adesão não elimina a possibilidade concreta de não adesão em um caso particular (em que a infalibilidade não está em questão). No entanto, essa circunstância particular se situa verdadeiramente, para um católico, no interior do pressuposto geral de aceitação.
A razão é muito simples, e toca um aspecto fundamental do catolicismo. A fé divina e católica supõe (para um adulto) um julgamento de credibilidade (mais ou menos explícito). Esse julgamento de credibilidade apoia-se no conhecimento histórico de Nosso Senhor: sua vida, seu ensinamento e seus milagres, e sobretudo sua morte e ressureição. E, conjuntamente, esse julgamento de credibilidade diz respeito à fundação da Igreja por Nosso Senhor para prolongar sua missão, o que é atestado historicamente. Mas o julgamento de credibilidade não pode penetrar nos detalhes da realidade e da natureza da Igreja: isso só a fé mesma o permite. Segue-se que a fé sobrenatural, apoiada materialmente no julgamento de credibilidade, adere de início e necessariamente ao Deus que se revela, ao Nosso Senhor e, portanto, à Igreja considerada globalmente, que prolonga a missão do Verbo incarnado (missão de ensinamento, de santificação, de governar).
As diferenciações em nossa adesão concreta a tal ato da Igreja não pode, à luz da fé, encontrar-se senão ligadas às diferenciações enunciadas pela própria Igreja. É isso o que implica o fato teologal da adesão global à Igreja.
Eis agora a aplicação "metodológica", desconhecida pelo pe. Héry. Diante de um texto do magistério -- infalível ou não, mas verdadeiramente autêntico --, todo fiel coloca primeiro em ato, espontaneamente (da espontaneidade própria da vida da fé), a tendência habitual e global de adesão (10). A essa atitude do fiel corresponde, por parte de um enunciado magisterial autêntico, um aspecto essencial do seu significado: o contexto mais pertinente de um texto magisterial autêntico, precisamente enquanto autêntico, é o conjunto do dado revelado e, mais precisamente, o conjunto das determinações já elaboradas pelo magistério.
É por isso que, mesmo diante de um texto simplesmente autêntico (11), a atitude a priori do fiel é uma atitude de recepção e de compreensão dos enunciados em um sentido conforme ao conjunto de ensinamentos anteriores.
E, se um texto novo traz em si, em sua literalidade, várias (digamos duas, para simplificar) interpretações possíveis: uma compatível com o ensinamento anterior e a outra contraditória com o mesmo ensinamento, é a interpretação compatível que tem o sentido verdadeiro, o sentido magisterial e autêntico, do novo documento.
Tal é a atitude requisitada a todo fiel católico, teólogo ou não, clérico ou laico, adotada pelos teólogos citados pelo pe. Héry. Tal é a atitude por este esquecida, impedindo-o de avançar corretamente, católicamente, no debate sobre a DH.
Com efeito, e esta é nossa última conclusão sobre a questão do método, segue-se a situação teologal descrita que, se -- como admitimos a possibilidade, junto com um grande número de teólogos -- um fiel preza por discernir uma genuína contradição de um texto novo do magistério autêntico (supostamente falível), é a ele que incumbe o ônus da prova. Esse fiel deve poder apresentar uma evidência imediata ou uma argumentação pertinente para poder afirmar (12) a contradição.
Foi o que fizemos -- ou o que ao menos acreditamos ter feito -- com nossa obra sobre Gregório XVI, Pio IX e Vaticano II. Mas esse trabalho só seria conclusivo se pretendesse estabelecer que nenhuma interpretação seria possível em favor da não contradição.
Mas, precisamente, com a graça de Deus, nós agora fornecemos uma interpretação possível para a não contradição, isenta da barragem operada pelos trabalhos anteriores de que temos conhecimento.
É por isso que devemos aderir (seja absolutamente, seja relativamente, independente se a infabilidade está comprometida ou não) ao texto central da DH, mesmo se não pudermos justificar positivamente o novo pronunciamento doutrinal com bons argumentos, mesmo se não formos capazes de estabelecer positivamente a continuidade entre o novo enunciado e os enunciados anteriores.
Assim entendido, o que vale nesse caso para nós vale parecidamente para todo católico, bem como ao pe. Héry. Mas não teria este, justamente, enunciado a impossibilidade de nossa interpretação conciliar? É isso que iremos examinar na segunda parte. Mas pedimos ao leitor guardar bem na memória a conclusão metodológica: dada a situação, cabe ao pe. Héry estabelecer rigorosamente a impossibilidade de nossa interpretação, enquanto que nos cabe manifestar a não impossibilidade (13).
ALGUNS ESCLARECIMENTOS SOBRE NOSSA INTERPRETAÇÃO DA DIGNITATIS HUMANAE
*Retorno à distinção principal que introduzimos*
Lembremo-nos de que, segundo nós (14), a diferença essencial entre o direito afirmado pela Dignitatis Humanae e aquele condenado por Gregório XVI e Pio IX consiste nisto:
- Dignitatis Humanae afirma o direito natural à liberdade (externa) de agir, em matéria religiosa, segundo sua consciência;- A análise dos textos dos dois papas citados mostram que eles negam a existência de um direito natural à liberdade externa de agir, em matéria religiosa, como quisermos (15).
Essa distinção entre "agir como quisermos" e "agir segundo sua consciência" é elementar e conhecida por todos os autores desde o Antigo Testamente, ainda que expressa de diversas maneiras.
Independente do ato humano, o homem age como quer: pois o homem é livre, e todo ato verdadeiramente humano é posto sob o império da vontade dirigida pela razão.
O julgamento de consciência, por sua vez, sendo a aplicação dos princípios gerais (naturais ou sobrenaturais) da ação em um caso singular, permite ao homem:
- Seja seguir sua consciência: sei que roubar é um mal, sei que tal ação será um roubo, e não a faço;- Seja agir contra sua consciência: sei que roubar é um mal, e sei que esses bolos deliciosos não são para mim; impulsionado pela gula, ainda assim os devoro; - Seja agir sem consciência: habituado de tal modo a viver segundo suas paixões, o homem não formula mais um julgamento de consciência. As Escrituras falam, neste sentido, daqueles que "bebem iniquidade como água" (Jó 15, 16), e os moralistas usam sempre a expressão de "consciência cauterizada" (cf. 1 Tm 4, 2).
A distinção que utilizamos é uma distinção entre o todo (o conjunto dos atos humanos) e suas partes realmente distintas (três categorias entre os atos humanos junto ao julgamento de consicência). Distinção tão elementar que as crianças a percebem (ao menos a "segundo sua consciência"/"contra sua consciência") antes dos sete anos.
Agora, a utilização dessa distinção para esclarecer o problema do direito à liberdade civil em matéria religiosa é, talvez, nova (16), mas isso não é de maneira alguma uma dificuldade, ou uma objeção. Exceto aqueles que têm uma falsa concepção da Tradição, segundo a qual todo aquele que não repete material e literalmente as expressões do passado é suspeito. Há, ao contrário, evidentemente, com o Vaticano II, o reconhecimento de um desenvolvimento da doutrina sobre a questão da liberdade religiosa. É, pois, normal, legítimo e católico que o teólogo se esforce a esclarecer esse desenvolvimento por argumentos ou distinções que não foram ainda formuladas: caso contrário, o desenvolvimento já teria ocorrido. Tudo isso é elementar, e mostra que os dois a priori desfavoráveis postos pelo pe. Héry (17) -- "essa distinção (...) não há nada de tradicional" e "não se funda em nenhuma autoridade do magistério" -- estão fora da matéria e ainda desviam a atenção de um leitor menos experiente do estado da questão.
Uma abordagem católica da situação nos faz dizer, ao contrário: se essa distinção é necessária para manifestar a conciliação entre diversos textos do magistério, então ela é, pelo próprio fato, fundado sobre a autoridade magisterial, e substancialmente tradicional.
Assim entendido, a última afirmação requer que a adiante seja intrinsecamente apta a levar à contradição. O pe. Héry apresenta diversas objeções, e iremos examinar o que pode contribuir para esclarecer o centro da questão.
*A interpretação proposta pelo pe. Lucien não confunde as instâncias internas e externas?*
Essa é a principal (e, a bem dizer, a única) objeção de ordem especulativa que o pe. Héry coloca em sequência (18).
É perdoável que o nosso confrade, formulando essa objeção clássica contra aqueles que outrora quiseram fundar uma liberdade civil de agir segundo sua sinceridade de consciência, não se deu ao trabalho de ler atentamente nossas explicações sobre o assunto. Elas constituem o centro do nosso artigo (19) e, se ele as tivesse lido, não teria, sem sequer considerar nossos argumentos, retomado as dificuldades que nosso trabalho descarta.
Comecemos, então, por lembrar que o Vaticano II não funda o direito à liberdade civil de agir em matéria religiosa segundo a sinceridade da consciência: e nossa interpretação se funda, evidentemente, nisso. A determinação "segundo sua consciência" concerne o objeto do direito, e não seu fundamento (20).
Sendo assim, a questão que se põe (isto é, a objeção do pe. Héry) é a seguinte: a autoridade legítima pode discernir os atos que são "segundo a consciência" daqueles que não são? Se respondermos positivamente, não seria atribuir à autoridade o poder de "ler as consciências" e abrir o caminho à "polícia do pensamento" e ao totalitarismo? Se respondermos negativamente, não seria reconhecer que a distinção proposta é inoperante em direito e, portanto, adulterada?
Tais questões são muito legítimas: eram também as nossas quando tínhamos a tese da contradição entre a DH e a doutrina anterior. O estranho é que, formulando (em outros termos) essas velhas questões, o pe. Héry não analisa o artigo que lhe dá a resposta.
Agindo assim o nosso opositor foge da atitude normal do teólogo católico diante de um texto do magistério (21). Com efeito, para manter sua posição de recusa do texto do Vaticano II, o pe. Héry deveria estabelecer não somente que nossa distinção está mal fundada, mas também que ela é estritamente impossível. Mas não o faz, pois não examina os argumentos que apresentamos a seu favor e escreve como se nada tivéssemos dito.
Lembremo-nos de que, segundo nossa interpretação, não é atribuido à autoridade legítima nenhum poder de ler as consciências. Nosso estudo mostra precisamente que, a despeito dessa necessária limitação de autoridade, existem casos (22) em que a autoridade pode legitimamente presumir (23) que se membros da comunidade fazem tal categoria de atos, eles não agem segundo sua consciência. E isso, repitamo-lo, sem ler as consciências, mas por conclusão indireta a partir dos elementos objetivos observáveis do exterior.
Essa solução supõe, evidentemente, vários pontos de doutrina filosófico-teológico que poderíamos discutir infinitamente, pois nem todos eles são admitidos por todos os autores católicos. Mas, para a presente discussão (eventual atitude de rejeição diante de um texto do magistério), essa cláusula não intervem. Pois, como já explicado, não é necessário que todos os elementos da nossa solução sejam positivamente estabelecidos para que se imponham àquele que não possui outra maneira para aceitar o texto magisterial. Já é suficiente que esses elementos não sejam rigorosamente refutados. Com o pe. Héry, ainda não chegamos lá, porque ele nem sequer começou a examiná-las.
Eis os elementos principais:
1°) A objetividade da inteligência humana, capaz de inserir-se no ser, no verdadeiro, no bem e nos princípios gerais (teóricos e práticos). É, simplesmente, o realismo metafísico da consciência. E, dizendo "objetividade da inteligência", queremos ressaltar o isso: quando ela está, seriamente, na presença de seu objeto, a inteligência não pode não o agarrar.
2°) Ademais, a objetividade dos motivos de credibilidade em favor da religião revelada. Precisa-se no seguinte: é a fé católica que nos faz sustentar que há motivos de credibilidade acessíveis a todas as inteligências. De sorte que o homem, diante desses motivos, e levando em conta a graça que Deus a ninguém nega, não pode deixar de aderir a eles sem se opor à sua consciência.
3°) A natureza da consciência. Não se trata de uma faculdade misteriosa, desligada da inteligência objetiva do homem. Ela é um ato, uma aplicação num caso singular dos princípios gerais mantidos pela inteligência (ou pela fé de ordem sobrenatural). Tal concepção de consciência não é plenamente aceita por todos os autores católicos. Mas ela é a de Santo Tomás e, além disso, como já o dissemos anteriormente, ela foi integrada, por meio da encíclica Veritatis Splendor (24), no magistério autêntico.
4°) O fato de que, de acordo com sua natureza sociável e educável, o ser humano, pela sociedade na qual ele nasce e cresce, está posto diante dos princípios primeiros do ser e do agir moral. Por isso, podemos reconhecer objetivamente um estado de sociedade (que podemos chamar de "sociedade cristã") no qual os princípios gerais da religião, tanto natural quanto revelada, são efetivamente colocados diante da inteligência de todos (ut in pluribus, certamente). E a inteligência, tomando posse de sua objetividade, não pode deixar de os compreender (25).
5°) Enfim, quando tal estado de sociedade existe (o que é objetivamente observável), a autoridade pode legitimamente presumir (26) que aqueles que agem sem levar em conta os princípios gerais religiosos não agem segundo sua consciência.
Notemos que a autoridade não lê, de maneira alguma, as consciências. Mas ela discerne indiretamente, em tal situação objetiva, que tais categorias de atos não podem defluir da consciência: porque 1°) a consciência é a aplicação dos princípios gerais possuídos; 2°) que tais princípios gerais estão verdadeiramente em posse (dado o estado da sociedade) dos homens considerados (27); 3°) que os atos considerados constituam por eles mesmos uma negação dos princípios gerais (28).
São esses, em suma, os elementos que dão consistência à nossa distinção, manifestando a não contradição entre a DH e a doutrina anterior. O pe. Héry não as examinou. Ele falou de outra coisa, manifestando uma propensão perigosa a receber ideias bem modernas. Sem insistir, iremos ressaltar duas.
Por um lado, em sua maneira de opor radicalmente "para interno" e "para externo", nosso opositor parece indicar que é influenciado pelo pensamento moderno, que faz da consicência um mundo absolutamente independente da vida da inteligência. Por outro lado, com sua crítica de nosso exemplo sobre a guerra justa (29), ele manifesta que abandonou o pensamento de Santo Tomás para adotar o dos autores do século XVI em diante.
Evidentemente, e ao contrário do que afirma o pe. Héry, o pe. Lucien não "extrai uma generalidade de um caso particular, aquilo da guerra justa". O pe. Lucien, tendo exposto por uma análise de princípio uma verdade geral, ilustra-o por um suposto exemplo amplamente conhecido. Se o exemplo não apraz, a análise de princípio permanece. O pe. Héry adota a teoria moderna da guerra justa... é seu direito. Fazíamos referência em nosso exemplo ao pensamento de Santo Tomás, bem diferente daquele que se desenvolveu a partir do século XVI, sobre esse assunto e sobre outros concernentes ao direito e à moral (30).
Nosso opositor nos deu a ocasião de expor, de uma forma um pouco diferente, os elementos constitutivos de uma interpretação da DH em continuidade com a doutrina anterior (também com um desenvolvimento, ao qual será profícuo voltar mais tarde).
Gostaríamos de parar por aqui. Infelizmente, o resto e o fim do discurso do Abbé Héry incluem uma distorção tão grave, não só do pensamento, mas do próprio texto (31) do Santo Padre, e isto sobre as questões cruciais da atualidade, que somos levados a introduzir uma terceira parte: teria Bento XVI condenado a afirmação da DH sobre a liberdade religiosa?
*Bento XVI e a declaração central da Dignitatis Humanae*
Vamos, então, examinar as palavras que o pe. Héry atribui a Bento XVI. No nosso artigo sobre Sedes Sapientiae (32), já havíamos destacado -- sem citar o autor (33) -- uma falsa citação importante. Trata-se de uma suposta afirmação de Paulo VI, apresentada pelo pe. Héry, conjuntamente com outros confrades, em um texto suficientemente solene para não ser esquecido em alguns meses (34). Em seu comunicado, lemos (35):
"Só o que já era considerado ou definido como infalível na Igreja é infalível no Concílio: essa cláusula de não infalibilidade foi juntada à Constituição Lumen Gentium nas Notificações do dia 16 de novembro de 1964. Ela será repetida em 7 de dezembro de 1965 pelo papa Paulo VI, e depois novamente por ele em 12 de janeiro de 1966: 'sendo dado seu caráter pastoral, o concílio evitou pronunciar dogmas infalíveis (36)'".
A isso nós objetamos, não com uma discussão sobre a afirmação contida na primeira frase, mas simplesmente com um fato material, verificável por qualquer um: a citação atribuída a Paulo VI é falsa. E citamos o texto completo da passagem de Paulo VI que melhor "corresponde" a esta falsa citação. Nós o lembramos:
"Dado o caráter pastoral do concílio, ele evitou pronunciar de uma maneira extraordinária dogmas infalíveis, mas ele muniu seus ensinamentos de autoridade do magistério ordinário supremo: esse magistério ordinário e manifestadamente autêntico deve ser acolhido dócil e sinceramente por todos os fiéis, segundo o espírito do concílio correspondente à natureza e aos objetivos de cada documento (37)".
O que quer que seja, é preciso reconhecer que o erro que revelamos sobre a qualificação do concílio aparece como menor em relação àquela que vamos agora examinar. Desta vez, o pe. Héry prentende que Bento XVI reconheceu e até mesmo ressaltou, referente ao direito à liberdade religiosa proclamado pela Dignitatis Humanae, a presença de um erro doutrinal a ser corrigido. Eis as palavras do pe. Héry:
4 - "Enfim, e sobretudo, o pe. Lucien defende a infalibilidade da definição conciliar 'do direito natural da pessoa à liberdade religiosa' (BL, p. 17) e de seu fundamento metafísico situado "na dignidade mesma da pessoa" (DH, par. 2°), o que constitue um dos erros doutrinais mais grosseiros do concílio, como nota o papa Bento XVI" (38).
Em seguida, depois de introduzir como subtítulo "O papa Bento XVI contradiz o pe. Lucien?", o pe. Héry continua:
"Querendo corrigir este erro em seu discurso do dia 22 de dezembro de 2005, o Santo Padre fustiga esta teoria: 'a liberdade de religião (...) é elevada de maneira imprópia ao nível metafísico e é, assim, privada de seu verdadeiro sentido'".
Nosso autor se lança em diversos outros comentários, que deixaremos, por ora, de lado. Pois é mais urgente ir à fonte, isto é, ler o texto do papa citado por nosso opositor (39):
"Assim, as decisões de fundo podem permanecer válidas, enquanto que as formas de sua aplicação a novos contextos podem mudar. Assim, por exemplo, se a liberdade de religião é considerada como uma expressão da incapacidade do homem de encontrar a verdade, tornando-se consequentemente uma canonização do relativismo, então ela é elevada de uma maneira imprópria ao nível metafísico e ela está assim privada de seu sentido verdadeiro, tendo como consequência que ela não pode ser aceitada por aquele que crê que o homem é capaz de conhecer a verdade de Deus e que, na base da dignidade interior da verdade, ele é ligado a esse conhecimento.
O Santo Padre explica claramente que, se a liberdade de religião é considerada como "expressão da incapacidade do homem de encontrar a verdade", "então (...) ela é elevada de uma maneira imprópria ao nível metafísico e está, assim, privada de seu verdadeiro sentido", e pretende em outro que essa afirmação absoluta vise, no próprio texto do papa, o ensinamento central da DH: o Santo Padre deveria (segundo o Abbé Héry) assinalar que este é um dos erros mais grosseiros do Vaticano II, e castigar este erro grosseiro!
Ao contrário, evidentemente, Bento XVI explica logo em seguida de seu texto, que o erro que ele vem ressaltar ("se a liberdade...") está bem diferente do ensinamento do concílio:
"O que é completamente diferente é considerar a liberdade religiosa como uma necessidade decorrente da necessidade de convivência humana, e até mesmo como uma consequência da verdade que não pode ser imposta do exterior, mas que deve se tornar o fato próprio do homem somente por um processo de convicção. O Concílio Vaticano II, ao reconhecer e fazer seu, através do decreto sobre a liberdade religiosa, um princípio essencial do Estado moderno, retomou de uma nova maneira o patrimônio mais profundo da Igreja" (41).
Sem entrar em uma análise detalhada dos propósitos do Santo Padre, observamos facilmente que Bento XVI afirma seu pleno assentimento com a definição do Vaticano II. por outro lado, a interpretação que demos ao texto do Vaticano II está em plena consonância com o esclarecimento do Santo Padre. A saber:
1°) O erro fundamental, depois de Bento XVI, seria negar a capacidade do homem de atingir a verdade em matéria religiosa. Contrariamente, nossa interpretação comporta como elemento fundamental e plenamente explícito a afirmação dessa capacidade (42).
2°) Nossa interpretação traz à luiz como a liberdade, em matéria de religião, é, às vezes, uma "necessidade social", uma "necessidade histórica" e até uma consequência da "dignidade interior da verdade" (43), verdade essa "que deve se tornar o fato próprio do homem somente por um processo de convicção". Temos insistido que o direito à liberdade religiosa não implica o direito de não ser impedido de combater a verdade religiosa efetivamente possuída de maneira geral pelos membros da sociedade (eis o que corresponde à dignidade da verdade). Enquanto que uma verdade religiosa, não mais socialmente possuída não pode (pelo aspecto de "necessidade social") ser diretamente oposto ao direito de não ser impedido de agir segundo sua consciência. Enfim, ressaltamos que junto com essa possessão da verdade religiosa, os estados da sociedade são evidentemente muito diversos, de acordo com os tempos e lugares (aspecto de "necessidade histórica").
Assim, longe de apresentar uma contradição, a intervenção de Bento XVI apresenta-se como um encorajamento profundo à interpretação que propusemos sobre a Dignitatis Humanae. Resta ainda que a citação, feita pelo pe. Héry, ao texto do Santo Padre está gravemente equivocada, e seu comentário ao pensamento do papa, fundada nessa base inexata, o faz dizer o contrário do que ele afirma. Vemos que o desafio é importante e chama, naturalmente, a uma retificação. Sob este ponto, bem como à proposta da qualificação dos textos do concílio, é necessária uma análise rigorosa dos textos para tornar crível uma "crítica séria e construtiva" do Concílio Vaticano II, que é que é certamente atual.
Pe. Bernard Lucien
NOTAS
1- Abbé Christophe Héry é membro do Instituto Bom Pastor. Não podemos deixar de nos regozijar com o fato de a Santa Sé da recente ereção canônica deste instituto como sociedade de vida apostólica de direito pontifício, e o facto de lhe ter sido concedido o uso exclusivo dos livros litúrgicos em 1962, que constituem o seu rito próprio.
2- Esta distinção, longe de ser uma subtileza escolástica, tem muitas aplicações na história da teologia do magistério. É com base nisso que podemos fazer da polêmica bula Unam Sanctam de Bonifácio VIII uma interpretação que não cai na teocracia pontifícia e salvaguarda a continuidade substancial do ensinamento da Igreja sobre a relação entre Igreja e Estado. Cf. Charles Journet, La juridiction de l’Eglise sur la cité, Paris, DDB, 1931.
3- Tirado à parte da revista Itinéraires, n° 132, abril de 1969, p. 141.
4- "Vrai tolérance et fausse liberté religieuse. Le problème crucial de l'abbé B. Lucien", em Mascaret, n° 281, julho-agosto de 2006, pp. 6-7.
5- N° 96, 2006, pp 3-22.
6) Declaração do Vaticano II sobre o direito à liberdade civil em matéria religiosa. Esse ensinamento central, o único pelo qual alguns teólogos (dos quais fazemos parte) afirmam o compromisso infalível da Igreja, encontra-se no parágrafo 1 do n°2 da declaração.
7) Aparece nas declarações de Gregório XVI (Mirari Vos) e de Pio IX (Quanta Cura).
8) Héry, p. 6, 1, parágrafo 3.
9) Para o Padre Basile Valuet, o.s.b., cf. sua tese La liberté religieuse et la tradition catholique, Le Barroux, Abbaye Sainte-Madeleine, 2.ed. 1998, pp. 38-47; para o Padre Harrison, ver Brian W. Harrison, Le développement de la doctrine catholique sur la liberté religieuse, co-editado por Chémeré-le-Roi, Société Saint-Thomas-d'Aquin / Bouère, Dominique Martin Morin, 1988, p. 10.
10) A palavra "adesão" refere-se corretamente ao que é ensinado "em primeiro lugar" pelo magistério. A atitude a priori dos fiéis perante os considerandos e as explicações, que podem incluir elementos duvidosos, é o resultado de um esforço leal de compreensão. Esta docilidade não exclui, por parte do teólogo, mas a pressupõe. Em alguns casos, pode levar à descoberta de deficiências mais ou menos graves, ou mesmo a propostas construtivas para retificar o que ao teólogo parece como mal fundamentado ou cheio de erros (cf. cân. 212, § 3).
11- Lembremo-nos de que qualificamos de "simplesmente" autênticos aqueles enunciados do magistério autêntico que não são infalíveis.
12- Nós dizemos "afirmar". Deixamos aqui de lado, como irrelevante, a questão do instinto de fé, que impede o fiel de aderir a um erro contra a fé, mesmo que não saiba explicá-lo.
13- Dada a importância do assunto, ousamos esperar que ninguém se ponha a ironizar em torno destas distinções (ônus da prova, impossível, não impossível). São indispensáveis em teologia, absolutamente clássicos e, além disso, universalmente aceitos na ciência, na lógica e na filosofia. Se alguém tentasse esquivar-se à situação epistemológica com a arma do escárnio, teríamos razões suficientes para duvidar que ele está buscando a verdade.
14- Cf. Sedes Sapientiae, n° 96, pp. 7-8.
15) Nossa obra Grégoire XVI, Pie IX et Vatican II. Etudes sur la liberté religieuse dans la doctrine catholique, Tours, Ed. Forts dans la Foi, 1990, ch. 1 et 2. 16- Dizemos talvez, não tendo feito nenhuma investigação especial sobre este ponto, que não tem importância, como explicamos no texto.
17- Héry, p. 7, col. 1, § 3. O pe. Héry descreve também a nossa distinção como "sofisticada". Se ele Se ele quiser dizer "complicada", responderemos que só precisa de um pouco... e se quiser dizer "adulterada", pedir-lhe-emos que o prove. Porque uma distinção entre um todo e uma das suas partes é uma boa distinção. E dizer que, de um conjunto de realidades, um direito diz respeito apenas a uma parte é também uma boa distinção.
18- Recusando-a de diversas maneiras: cf. Héry, p. 7, col. 1, §§ 4-5.
19- Publicado no n.º 96 de Sedes Sapientiæ, contra o qual o Abade Héry expõe as suas dificuldades.
20- O Concílio Vaticano II sublinhou vigorosamente esta distinção entre objeto e fundamento, numa frase que pode ter causado alguma dificuldade: "O direito à liberdade religiosa não se funda, portanto, numa disposição subjetiva da pessoa, mas na sua própria natureza. É por isso que o direito a esta imunidade persiste naqueles que não cumprem a obrigação de procurar a verdade e de aderir a ela" (DH, n°2). O significado desta clarificação é considerável. Se o direito à liberdade religiosa se baseasse na sinceridade de consciência, este direito não existiria para aqueles que "não cumprem a obrigação, etc". Assim, o concílio, ao proferir esta frase, rejeita vigorosamente um erro generalizado com base no direito. Mas, ao dizer que o direito "persiste" naqueles que "não satisfazem, etc.", o concílio não pretende alterar o objeto do direito, um objeto definido anteriormente como a liberdade de agir (em matéria religiosa) de acordo com a própria consciência (e não contra a própria consciência ou sem consciência). Nosso estudo mostra que existem situações gerais da sociedade nas quais, sem "procuras", a inteligência de todos os homens é confrontada com verdades religiosas fundamentais, de sorte que aqueles que não levam em conta não podem pretender agir segundo sua própria consciência. Tornamos isso claro no decorrer do artigo.
21- Atitude de que nos recordamos na primeira seção epistemológica.
22- O Abbé Héry considera que esta restrição "arruína o alcance e o fundamento" da nossa teoria (p. 7, col. 1, § 5). Mas não é assim. Para que a nossa distinção seja operativa (e a nossa "teoria" não exige mais nada), é suficiente que haja casos em que a autoridade possa discernir que não há "agir de acordo com a consciência". Então a aparente contradição entre a DH e os decretos anteriores desaparece. Dada a A situação epistemológica recordada na primeira parte deste trabalho (e que é óbvia para qualquer pessoa que se aproxime da questão no catolicismo), não precisamos de estabelecer mais nada.
23- No sentido de que a presunção legítima permite a uma autoridade humana fazer leis que dizem respeito a toda a comunidade, de acordo com o que acontece ut in pluribus ("na maioria dos casos").
24- Cf. Sedes Sapientiæ, n° 96, p. 10, nota 18.
25- É claro que pode haver muitas situações intermediárias: conhecimento da religião natural simples, do cristianismo em geral, etc. Não nos vamos debruçar sobre elas aqui, pois estamos apenas enunciando os princípios.
26- Esta é a simples afirmação que confunde o Abbé Héry (p. 7, col. 1, § 5).
27- Podemos tomar como exemplo o reconhecimento da existência de Deus e a necessidade de honrá-Lo. Em outras palavras, estamos supondo uma sociedade em que estas verdades são socialmente possuídas, colocadas à disposição de todas as inteligências pelo ambiente social geral, educação comum, etc.
28- Continuação do exemplo: a distribuição de brochuras de propaganda do ateísmo.
29- Héry, p. 7, col. 1, § 6 ; ver nosso artigo em Sedes Sapientiæ, n° 96, p. 9.
30- Poderemos consultar J-A. Robiliard, o.p., Bulletin Thomiste, t. IV, n° 6, abril-junho de 1935, pp. 433-436, e Y. de La Brière, s. j., « Les trois conditions thomistes de la juste guerre et le droit des gens d’aujourd’hui », em Revue thomiste, 1937, pp. 276-300 ; em seguida, ainda Robilliard, Bulletin thomiste, t. V, n° 7, julho-setembro. 1938, pp. 449-453. Demos as referências ao Bulletin Thomiste no artigo precedente. Não seria muito trabalhoso consultá-los.
31- Evidentemente, é mais grave deformar o pensamento que o texto. Apresentamos a gradação em outro sentido, porque a deformação textual é a menos discutível.
32- N° 96, p. 20, último § - p. 21, §§1-2.
33- Isto para não parecer que estamos lançando ataques pessoais numa altura em que todos deveriam estar trabalhando, na verdade, à união dos corações e das forças.
34- Texto intitulado "Communiqué des prêtres de l’église Saint-Eloi à tous les fidèles", redigido em 19 de fevereiro de 2006, ou posteriormente. Os demais signatários são os padres Philippe Laguérie, Henri Forestier e Claude Prieur (diácono).
35- Sob o título III, n°2.
36- O texto que temos diante de nós traz aqui "noção", o que é explicitamente um lapsus.
37- Paulo VI, Audiência geral, 12 de janeiro de 1966. Texto completo em italiano (e tradução francesa) em Basile Valuet, op. cit., t. II, fasc. A, p. 1313. Este texto já tinha sido citado e comentado pelo pe. Guérard des Lauriers, o. p., em Cahiers de Cassiciacum, n.º 1, maio de 1979, pp. 15-16, nota 8. Para evitar subterfúgios, especificamos que o texto que estamos citando é o de Paulo VI de 12 de janeiro de 1966, o texto a que os nossos autores se referem imediatamente. Este texto é diferente do de 16 de novembro de 1964 (também citado em Basile Valuet, op. cit., t. I, fasc. A, p. 30). Mas o texto de 16 de novembro não inclui a frase "citada" pelos nossos autores. Quanto ao texto de 7 de dezembro de 1965, ele afirma (cf. Basile Valuet, op. cit., t. II, fasc. A, p. 1294): "Mas é bom notar uma coisa aqui: o magistério da Igreja, embora não quisesse pronunciar-se sob a forma de sentenças dogmáticas extraordinárias, estendeu seu ensinamento autorizado a uma quantidade de questões que engajam hoje a consciência e a atividade do homem". Existe também uma declaração da Comissão Doutrinal, de 29 de novembro de 1963, e outra de 6 de março de 1964. As três declarações tendem a afirmar que não haverá nenhuma definição infalível que não seja claramente declarada como tal. As duas intervenções ulteriores de Paulo VI deixam claro que o que se evitou foram as sentenças pronunciadas em modo extraordinário. Isto é muito diferente do que afirmam os nossos autores.
38- Héry, p.7, última linha da col. 1 e 2.
39- Citamos depois La Documentation Catholique, n° 2350, em 15 de janeiro de 2006, p. 61, col. 2. Os itálicos são nossos.
40- De nossa parte, seríamos mais cautelosos em relação a esta última afirmação
41- Ibid., em seguida do texto de Bento XVI.
42- Enquanto que o texto do Vaticano II, sem negar essa capacidade, e até a pressupondo, não insiste nela: esta é precisamente uma elucubração construtiva que fizemos, e que está de acordo com a posição atual do Santo Padre.
43- É aqui que podemos descobrir o fundamento metafísico do direito à liberdade em matéria religiosa afirmado pelo Vaticano II.
- - Hoje é necessário um cuidadoso exame do curso e evolução adequados dos eventos, bem como dos princípios e das mentes.
Na verdade, há um fato novo que brilha diante dos olhos de todos, ou seja, a progressiva instauração dos organismos internacionais através da aplicação da Carta ou Declaração Fundamental dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, que proclama no artigo 17 a liberdade de exercício da própria religião para todos[1].
Neste contexto, dois perigos devem ser cuidadosamente evitados: em primeiro lugar, o chamado "irenismo", que, sob a aparência de paz e concórdia, poderia desprezar os princípios e a autoridade da Igreja e, na prática, cair no perigo do indiferentismo; por outro lado, uma mentalidade que talvez, especialmente por razões de preservação, parecesse mais empenhada em reivindicar direitos do que em expressar a vontade de servir, de acordo com a missão confiada à Igreja por Cristo. O autêntico "sentido da Igreja" deve unir não apenas uma firme profissão de princípios, mas também a diligente, sábia e perseverante aplicação deles para a salvação das almas.
As instituições jurídicas costumam ser julgadas não apenas com base nas palavras utilizadas, mas principalmente a partir dos princípios que inspiram as Constituições dos Estados e dos frutos da vida que amadurecem ou se tornam corruptos, seja na moral pública, na proteção da família, na formação da juventude, ou na justiça social que deve ser estabelecida entre os membros da sociedade ou entre as nações.
Estas são pelo menos três exigências aparentes da doutrina católica:
1. A Igreja nunca pode ser vinculada a nenhum regime político, mas reconhece e defende os direitos do Estado que promove o bem comum.
2. A Igreja deve ser considerada acima de qualquer autoridade humana por todos os católicos e deve ser independente do Estado ao cumprir sua missão espiritual.
3. Em todos os lugares e sempre, grupos que não prevalecem em número em uma nação devem ser protegidos e desfrutar da liberdade religiosa, desde que observem o direito natural e o direito das nações e não ajam contra a ordem pública.
Em um Estado que é denominado como confessional, como, por exemplo, na Espanha ou na Itália, a religião católica pode legítima e legalmente desfrutar de um status privilegiado.
Mesmo em regiões onde existe uma pluralidade de religiões, o Estado deve, pelo menos de acordo com as normas do direito natural e do direito das nações, reconhecer a Deus como princípio e fonte de direito. É irracional e até mesmo abominável proclamar o agnosticismo ou o indiferentismo como fundamentos da Constituição.
Se for decidido, em prol da paz, pela separação jurídica entre o Estado e a Igreja, uma decisão desse tipo parecerá mais adequada às necessidades e à prática em certas circunstâncias como a única solução prudente[2].
Neste caso, os católicos, mesmo que sejam numericamente inferiores a outros grupos, devem receber a proteção das leis e não sofrer qualquer discriminação devido à sua fé, seja em assumir cargos de direito público ou na possibilidade de educar seus filhos de acordo com os princípios da Santa Igreja.
Sob o termo "separação", muitas vezes estão ocultas realidades completamente discrepantes. Assim, a separação jurídica entre a Igreja e o Estado pode ser concebida às vezes de maneira relativamente favorável[3], às vezes de maneira agnóstica e prejudicial, e, por fim, de maneira materialista e ateísta. Evidentemente, em ambos os últimos casos, a separação não é nada além de uma perseguição dissimulada ou aberta.
A condição da Igreja nas atuais repúblicas é claramente e abrangentemente explicada pelo Eminente Cardeal A. Ottaviani em "Institutiones Juris Publici", volume II, 4ª edição (1960), nos números 405-429.
Enquanto em algumas nações a perseguição cruel prevalece, em muitas outras, a liberdade floresce e frequentemente novas constituições invocam a Deus e estabelecem acordos com a Santa Sé ou, pelo menos, mantêm relações diplomáticas, mesmo por parte de Estados não católicos, sendo valorizadas e incentivadas[4].
[1] La Doc. Cath. 1948, col. 408.
[2] Sobre isso, veja alocução do Papa Pio XII aos juristas católicos, d. 6 dec. 1953, A445, 1953, 794-802.
[3] Nos Estados Unidos da América do Norte, foi estabelecido que nunca seria feita uma união entre a Igreja e o Estado ou que qualquer denominação religiosa seria preferida às outras, e que a livre prática da religião não seria diminuída: « No religious test shall ever be required as a qualification to any office or public Trust under the United States», Const. of USA., art. VI. Isso é adicionado nos suplementos da mesma constituição: « Art. 1 Congress shall make no law respecting an establishment of religion or prohibiting the free exercice thereof » (first ten amendments to the Constitution), Vide etiam VALENTINUS ScuAAr, O.F.M., De libertate cultus in Statibus foederatis Americae, Acta Congr. lur. Intern., 1934, vol. V, 321-361. — PouLroT, JEAN-PL., La liberté des cultes au Canada, Ibid., 363-378.
[4] YVES DE LA BRIERE, S. L, La renaissance contemporaine du Droit canonique dans plusieurs législations séculiéres gráce aux divers concordats du Pontificat de Pie XI, Acta Cong. Iur. intern., 1934, vol. V, 57-96. — MEYSZTOWICZ, La religion dans les constitutions des Etats Modernes, Rome, 1938. — FLony, CH., Les problémes religieux dans les nouvelles constitutions, La Doc. Cath., 1948, col. 609-618, 665-672, 815-820; 1949, col. 1175-1179; 1950, col. 303-304, 551.552, 721-722, 799-800. — Les Constitutions des divers Etats de la Communauté, cfr Journal Officiel de la Communauté, 1959, n. 5. — Mgr MojJArsKY-PERELLI, Les relations entre l'Eglise et l'Etat en Afrique, La Doc. Cath., 1961, col. 1305-1312. — CHECCHINI, A., Qualificazione giuridica ed evoluzione storica dei rapporti fra Stato e Chiesa (Valutazioni critiche e principi costruttivi) in 77 Dir. eccl., 1961, 189-283.
J. Vermeersch, S. I, e J. Creusen, S. I., Epitome iuris canonici: cum commentariis ad scholas et ad usum privatum, tomus I, 1963, pp. 8-10.
A Igreja e o Corpo Místico de Cristo.
ÚLTIMAS ENCÍCLICAS E DOUTRINA DE SANTO TOMÁS.
A encíclica Humani Generis afirma categoricamente que "o Corpo Místico de Cristo e a Igreja Católica Romana são uma e a mesma coisa"[1]. Essa doutrina já havia sido extensamente explicada na encíclica Mystici Corporis, à qual o texto acima faz referência explícita[2]. Esse é, portanto, o ensinamento pontifício; não há hesitação a respeito disso[3].
Para entender exatamente o significado e a importância da equação "Igreja Católica = Corpo Místico", é necessário compreender os dois termos no sentido em que seu autor os utiliza e os entende. Um dos termos não apresenta dificuldades. Todos sabem o que significa, na boca de um papa do século XX, a "Igreja Católica Romana", uma sociedade divina, mas humana e visível, reunida em torno do pontífice romano, conforme a definição bellarminiana[4]. Quanto ao segundo termo da equação, "Corpo Místico de Cristo", nos deparamos com uma expressão que evoluiu ao longo dos séculos e cuja interpretação pode ser múltipla. No entanto, uma vez que o Papa Pio XII se referiu "às brilhantes e luminosas exposições da teologia escolástica, em particular do doutor angélico e universal"[5], será útil recordar brevemente o ensinamento de Santo Tomás sobre a Igreja como Corpo Místico de Cristo. Isso será ainda mais útil, uma vez que Santo Tomás e o Papa Pio XII falam do Corpo Místico de pontos de vista diferentes[6]. Embora possa haver diferenças entre as duas abordagens, alguns autores chegaram a perceber uma verdadeira oposição entre elas[7]. Embora se possa presumir um acordo substancial entre as duas maneiras de ver, uma vez que Pio XII invocou a autoridade de Santo Tomás em Mystici Corporis, é possível que o Magistério tenha corrigido posições anteriormente sustentadas, assim como aconteceu com o dogma da Imaculada Conceição. No entanto, não é desprovido de interesse examinar de perto se a diferença é tão grande quanto parece à primeira vista. O novo ensinamento pontifício visa corrigir o ensinamento dos escolásticos ou busca esclarecê-lo na linha de sua intuição fundamental?
I. A IGREJA, CORPO MÍSTICO DE CRISTO, EM SANTO TOMÁS.
A doutrina do Corpo Místico é um dos fios condutores, uma das ideias mestras subjacentes a toda a teologia de Santo Tomás de Aquino. "A Suma Teológica está como impregnada disso", diz-se[8]. Portanto, ele não achou necessário - talvez intencionalmente[9] - compor um tratado especial sobre o Corpo Místico, assim como não escreveu sobre a Igreja.
1. O Cristo-Chefe.- O ponto de partida para um ensinamento mais explícito e abrangente sobre esse mistério é sempre, para nosso Doutor (Santo Tomás), a doutrina da graça capital de Cristo[10].
De fato, sempre que Santo Tomás considera a graça de Cristo, ele a divide em graça de união, graça habitual "singular" e graça capital[11]. De acordo com as palavras de São João (1, 16), Cristo recebeu a graça com tal plenitude que Ele pode derramá-la sobre os outros. Por isso Ele é chamado de "chefe" ou "cabeça" (caput) de um corpo chamado "místico"[12], porque Ele desempenha em relação a ele o papel da cabeça em relação ao restante de um corpo físico humano[13].
Em que consiste exatamente essa prerrogativa de cabeça? Quais são os elementos essenciais dela? A essa pergunta, Santo Tomás responde em diversos escritos e, a cada vez, um pouco de forma diferente. Às vezes, ele fala de três elementos necessários, outras vezes, de quatro elementos.
Entre a cabeça e os membros, primeiro é necessária a conformidade de natureza, e é assim que eles são semelhantes[14]. No entanto, eles se distinguem[15] pelo fato de que a cabeça desfruta de uma tripla superioridade. Superioridade de ordem ou de honra, uma vez que ela está no topo do corpo e é a parte mais digna; superioridade de perfeição, uma vez que ela contém todos os sentidos internos e externos, enquanto o resto do corpo conhece apenas o tato; superioridade de governo e, principalmente, de influência vital, uma vez que é da cabeça que partem todas as determinações da vontade, todos os movimentos e sensações de todo o corpo[16].
Assim é com Cristo em relação à Igreja, ou seja, ao seu Corpo Místico. A aplicação é fácil e óbvia. Mas o que deve ser observado é que, entre esses vários elementos, há um que se revela verdadeiramente essencial e específico para a "razão de cabeça" - poderíamos chamá-lo de seu constitutivo formal - que é o influxo vital. Santo Tomás repete incansavelmente: é principalmente e formalmente por influenciar a vida ou o movimento nos membros que alguém pode ser chamado de "cabeça"[17].
Para Cristo, esse poder de influência (cf. ST III q. 8 a. 2 co) consiste no poder que Ele tem de derramar, comunicar efetiva e fisicamente[18] a vida sobrenatural em outros que, pelo simples fato de receberem essa influência, esse movimento vital da Cabeça, devem ser considerados como seus membros. Esses membros juntos constituem um corpo sobrenatural ou "místico", do qual Cristo é a fonte de toda vitalidade, ou seja, a Cabeça. Essa derivação não deve ser entendida de forma antropomórfica e material, mas consiste no fato de que Cristo produz diretamente, conserva e aumenta neles uma graça especificamente idêntica àquela que adorna sua santa[19] alma.
2. Os membros de Cristo. - Quanto a determinar quem são esses membros, será fácil fazê-lo agora: serão todos aqueles que, de fato ou de direito, recebem de Cristo essa influência sobrenatural, todos aqueles sobre os quais se aplicam, de alguma forma, os benefícios da Redenção, em suma, todos os homens, de várias maneiras[20], no entanto. Primeiramente, como título perfeito (principaliter), aqueles que compartilham Sua glória e, secundariamente (secundario), aqueles que na terra ou no purgatório estão unidos a Ele pelo amor fraterno. Como título imperfeito (tertio), como membros paralisados ou mortos[21], estão aqueles que mantêm a fé, mas perderam a vida da graça. Por fim, ainda são membros de Cristo, mas apenas em potencial[22], todos os outros homens, seja em quarto lugar (quarto), aqueles que estão destinados a se tornarem, um dia, membros efetivos deste corpo, como é o caso dos predestinados, ou mesmo em quinto lugar (quinto), aqueles que nunca terão essa felicidade, mas que ainda estão nesta vida.
Em resumo, mesmo que haja diferentes graus de participação, todos os homens são membros de Cristo, desde que não estejam condenados[23], porque todos são afetados, de alguma forma, pelo sangue de Cristo e pelo influxo vital que dele decorre: «quia Christus in omnes creaturas quodammodo effectus gratiarum influit»[24].
Mesmo que estejam em estado de pecado, mesmo que tenham perdido a fé ou nunca a tenham recebido, Cristo morreu por eles[25], adquirindo-lhes a possibilidade de serem seus membros e filhos de seu Pai, e Ele ora incessantemente por isso no Céu. Todos, portanto, recebem Dele alguma graça sobrenatural, pelo menos suficiente e atual[26], pois todos são amados pelo Deus Salvador, e do seu Sagrado Coração fluem riquezas inesgotáveis de vida e Redenção, das quais nenhum homem está totalmente privado ou excluído. Portanto, todos os homens pertencem a Cristo, não apenas como súditos de seu reinado universal e beneficiários de seu sacerdócio eterno, mas também como membros, pelo menos de forma incipiente e em estado embrionário, de seu Corpo Místico: o rio de graça que flui da Cabeça infiltra-se, embora de maneira diferente, em todas as almas humanas, e só para nas portas do inferno.
Além disso, Ele se espalha também no céu, e com ainda mais abundância do que aqui na Terra. Não apenas os bem-aventurados[27] são vivificados por Ele, mas também os anjos: de eius influentia non solum homines recipiunt sed etram angeli. Portanto, Cristo é a Cabeça, devido à Sua superioridade e ao aumento acidental de glória que deles emana[28]. Certamente não há conformidade de natureza na espécie, mas, no entanto, Cristo e os anjos se comunicam in natura generis[29] e compartilham uma mesma bem-aventurança sobrenatural.
3. Uma Pessoa Mística. - Os membros de Cristo, pelo simples fato de sofrerem essa influência do seu chefe, estão assim ligados a Ele, seja de maneira vital se possuem a graça, seja por um poder "físico" ordenado ao seu ato, de recebê-la, se são pecadores ou infiéis. Mas, unidos à Cabeça, eles também estão unidos entre si. Por isso, todos juntos, anjos, bem-aventurados e viatores, formam uma única pessoa mística, cujo corpo é a Igreja e Cristo é a Cabeça[30].
Já uma conformidade de natureza fundamenta essa unidade; no entanto, o vínculo que a estabelece é ainda mais íntimo e profundo; a fé (ou a visão) e a caridade ligam os membros ao mesmo e único objeto, a graça é neles fonte de uma vida idêntica; e, acima de tudo, o mesmo Espírito Santo, como a alma no corpo, habita e permanece numericamente o mesmo em cada membro e na Cabeça[31].
Pode-se dizer, portanto, que, para Santo Tomás, um membro de Cristo é, antes de tudo, um homem transformado, impulsionado e vivificado pelo Espírito Santo, ligado e unido a Cristo e ao seu Corpo principalmente por essa animação sobrenatural e por essa presença divina[32]. A atividade pessoal de Cristo, Deus e Homem, em seus membros, está intimamente ligada à habitação ou, pelo menos, à operação do Espírito Santo na alma.
Não esqueçamos, no entanto, que aqui na terra, essa unidade interna se manifesta externamente e "é fabricada[33]" instrumentalmente, desde a Encarnação, pelos sacramentos da fé e pela hierarquia instituída por Cristo[34], ou seja, pelo que o Pe. Congar chama de "Igreja-instituição". Essa unidade visível e externa não é essencial para o Corpo Místico em si; ela é, embora secundariamente, essencial para o Corpo Místico terrestre, a Igreja militante[35].
Assim, transbordando o tempo e o espaço[36], uma "continuação" espiritual, na qual o Espírito Santo, unus et idem numero totam Ecclesiam replens et uniens, é o principal artífice[37], e os sacramentos são os instrumentos normais, une interiormente todos os membros de Cristo. Um mesmo fluxo de vida deriva disso para vivificar todos os homens e os bem-aventurados, divinizá-los e, rompendo as limitações do eu, interiorizá-los ao mesmo tempo em que os tira de si mesmos para reunir todos em uma comunhão viva, uma Ecclesia, Esposa e Corpo Místico de Jesus Cristo.
4. A Igreja. - Quando Santo Tomás dá à Igreja a designação equivalente de "Corpo Místico" - pois os dois termos são identificados -, ele entende o termo Ecclesia em seu sentido mais universal, abrangendo o céu e a terra e estendendo-se ao longo do tempo, desde a justo Abel usque ad finem saeculi[38]. Para ele, como podemos ver, a Igreja como Corpo Místico não se limita apenas aos membros visíveis da Igreja terrestre católica e romana. Isso não significa que ele reconheça ao lado dela outra Igreja terrestre com propriedades diferentes: "ele desconhece totalmente a tese da dupla Igreja"[39]; mas ele inclui na única Igreja católica os Anjos, os bem-aventurados e até toda a humanidade[40]. Além disso, aos seus olhos, a Igreja só é verdadeiramente ela mesma em seu estado celestial: "quia ibi est vera Ecclesia quae est mater nostra et ad quem tendimus et a qua nostra Ecclesia militans est exemplata[41]".
Isso ocorre porque, para nosso Doutor, o conceito de "corpo" - seja o Corpo Místico ou o Corpo da Igreja - não implica, por si só, e diretamente a visibilidade, como será o caso para Leão XIII na encíclica Satis Cognitum[42] e para Pio XII, como veremos. Se o "Corpo da Igreja" deve ser visível, é porque sua condição terrena o exige, e não porque a Igreja é um corpo. O que, então, implica o conceito de "corpo", segundo Santo Tomás? Essencialmente, dois elementos: a multiplicidade e, sobretudo, a unidade: multitudo ordinata in unum[43]. O corpo do qual Cristo é a cabeça é, portanto, essa comunhão orgânica e íntima de todos os membros de Cristo, unidos a Ele pela graça ou, pelo menos, pela fé, se se trata dos membros atuais, ou pelas graças atuais se se trata dos membros potenciais, enfim, de todos aqueles que são vivificados ou movidos de alguma forma pelo influxo vital que emana Dele, fonte de toda vida sobrenatural[44].
Finalmente, o termo "Ecclesia" às vezes assume, sob a pena do santo Doutor, um sentido ainda mais amplo. Assim como para ele a palavra "Cristo" pode designar tanto a Cabeça, Jesus, quanto seu Corpo, a Igreja, tomados juntos[45], assim também a palavra "Igreja" pode significar conjuntamente a Cabeça e os membros[46]. Com base no texto da Vulgata: "vos estis Corpus Christi et membra de membro"[47], ele pode considerar Cristo como um membro da Igreja, não porque Ele seja imperfeito, mas porque Ele desempenha no corpo uma função distinta dos outros, a de infundir vida neles[48].
Conclusão. – Quando Santo Tomás identifica a Igreja e o Corpo Místico de Cristo, ele usa ambos os termos em seu sentido mais universal: ambos se referem à humanidade como um todo, na medida em que está sobrenaturalmente unida a Cristo como Cabeça, ou melhor ainda: o conjunto daqueles que, no céu ou na terra, antes ou depois da Encarnação do Verbo, recebem de Cristo, sua Cabeça, algum influxo de vida sobrenatural. Todos de alguma forma fazem parte do Corpo Místico de Cristo e, portanto, da Igreja.
A Encíclica Mystici Corporis dará o mesmo significado à identificação Igreja-Corpo Místico? Ela irá corrigir ou esclarecer esse sentido? É isso que precisa ser examinado agora.
II. O CORPO MÍSTICO A PARTIR DA ENCÍCLICA MYSTICI CORPORIS
À primeira leitura, o documento pontifício parece, em certos pontos - especialmente em relação à questão dos membros da Igreja - estar bastante distante da doutrina tomista. No entanto, veremos que essas divergências, embora não se resolvam completamente, são consideravelmente reduzidas à medida que os textos que abordam essas questões são lidos em seu contexto e de acordo com a intenção de seu autor.
1. O Cristo Chefe. - Referindo-se ao Doutor Angélico, o Papa Pio XII nos lembra que Cristo deve ser verdadeiramente considerado por todos como o Chefe ou a Cabeça do Corpo Místico, que é a Igreja[49], devido à sua excelência, ao governo invisível e visível que ele exerce sobre ela; devido também à ajuda que ele requer dela para completar a aplicação do Reino e da conformidade mútua que o une à sua Igreja militante[50]; e, finalmente, e acima de tudo, devido à plenitude de graça e vida que do Cristo se derrama sobre seus membros para iluminá-los e santificá-los[51].
2. O Chefe de um Corpo Místico. - O conjunto desses membros, movidos por Cristo, forma um Corpo que, pelo simples fato de ser corpo, é uno, indivisível e visível: «Quodsi corpus sit Ecclesia..., esse debet... aliquid etiam concretum et perspicibile, ut Decessor Noster fel. rec. Leo XIII in Encyclicis Litteris Satis Cognitum affirmat : « Propter eam rem quod corpus est, oculis cernitur Ecclesia"[52]. Com essas palavras, o Papa Pio XII se afasta do pensamento tomista, para o qual a visibilidade não está diretamente implicada no conceito de "corpo". Essa talvez seja a única oposição real entre as duas exposições, mas é de grande importância, pois determinará os elementos necessários para ser membro desse Corpo.
Por fim, continua o Sumo Pontífice, esse Corpo é organicamente constituído e dotado de todos os meios vitais de santificação[53]. Qual é a sua natureza? Não se trata de um corpo físico, uma vez que cada membro mantém sua própria personalidade e responsabilidade[54], nem é apenas um corpo moral, pois um princípio identicamente o mesmo - o Espírito Santo - habita em cada um dos membros vivos, assim como na Cabeça, e os une de forma ainda mais profunda do que qualquer outro corpo moral ou mesmo físico[55]. Por isso, é chamado de "Corpo Místico".
3. Esse Corpo é a Igreja. - Quando Santo Tomás nos dizia que esse Corpo Místico era a Igreja, ele estava usando essa última noção em sua amplitude mais universal. Desde a primeira linha de sua Encíclica e muitas vezes ao longo dela, o Papa Pio XII estabelece, por assim dizer, a mesma equação: Mystici Corporis Christi, quod est Ecclesia, doctrina..[56].: esse é o tema central de todo o documento. Mas logo algumas páginas adiante, após ter explicado essa afirmação fundamental, ele parece se afastar claramente do sentido que o Doutor Angélico atribuía ao termo "Igreja": para nossa Encíclica, essa Igreja que é chamada de Corpo Místico de Cristo é a Igreja santa, católica, apostólica e romana. Eis o texto crucial: Iamvero ad definiendam describendamque hanc veracem Christi Ecclesiam — quae sancta, catholica, apostolica, Romana Ecclesia est — nihil nobilius, nihit praestantius, nihil denique divinius invenitur sententia illa, qua cadem nuncupatur mysticum Iesu Christi Corpus[57].
Devemos concluir, então, que para nosso documento o Corpo Místico de Cristo é adequadamente e exclusivamente a Igreja Romana? Parece-nos que não, pelas seguintes razões.
a) Vamos analisar de perto o texto fundamental que acabamos de citar. Pio XII busca nele a fórmula "a mais nobre, a mais excelente, a mais divina" para definir e descrever a verdadeira Igreja de Cristo, ou seja, a Igreja Católica Romana, e encontra essa expressão em "Corpo Místico de Jesus Cristo". No entanto, dizer que a Igreja é um Corpo Místico é usar uma imagem, uma metáfora[58], para expressar da melhor forma uma verdade inefável e uma realidade misteriosa. O próprio Papa afirma isso, repreendendo severamente aqueles que veem mais do que uma metáfora nisso. Para ele, embora compare mais de uma vez[59] o Corpo Místico ao corpo físico, ele os distingue cuidadosamente[60]. Além disso, especialmente quando a imagem do corpo pode levar a algum equívoco, ele não hesita em recorrer a outras metáforas, como a da Esposa[61], a da Cidade[62], do edifício ou da casa[63], do rebanho[64], da vinha[65], do reino[66]... Uma imagem, por mais perfeita que seja, nunca é uma definição rigorosa; aliás, essa não era sua intenção[67]. O que ele quer nos dar é uma definição descritiva: ad definiendam describendamque[68]; aquela do Corpo Místico é a mais bela e excelente - mas ainda não adequada - no que diz respeito à Igreja militante (vamos explicar imediatamente porquê). E deve-se dizer que a Igreja Católica Romana realiza o mais perfeitamente possível, nesta vida terrena, tudo o que implica a noção de Corpo Místico.
b) "Tanto quanto possível neste mundo", deve-se acrescentar. De fato, o Santo Padre, em sua introdução, nos diz claramente que ele se limitará em sua exposição ao que diz respeito apenas à Igreja militante[69]. Com isso, afirma-se também que o Corpo Místico diz respeito, no mínimo, à Igreja triunfante[70].
c) E também a Igreja padecente. De fato, outra passagem do documento pontifício inclui explicitamente as almas do Purgatório entre os membros do Corpo Místico: "nullus autem membra huius venerandi Corporis haec communis supplicatio obliviscatur; eosque praeseriim reminiscatur qui vel terrestris huius incolatus angustiisque premuntur, vel vita functi praculari igne purificantur"[71]. O "eosque praesertim" indica claramente que aqueles que serão enumerados são sempre membros do Corpo Místico, aqueles que mais necessitam de nossas orações. O ponto e vírgula que precede o "eosque" não constitui uma interrupção no pensamento equivalente a dizer: "oremos pelos membros do Corpo Místico; além disso, não nos esqueçamos...". Traduzir dessa forma seria distorcer o texto.
d) Devemos ir ainda mais longe. No mesmo trecho em que o Soberano Pontífice inclui as almas do Purgatório entre os membros do Corpo Místico, ele também conta, aparentemente, os catecúmenos. Após o texto que acabamos de citar, ele acrescenta imediatamente: "Neque eos praetermittat qui christianis pracceptis instruuntur, ut quam primum lustralis aquae lavacro expiari queant"[72].
e) É correto enfatizar, juntamente com o Papa, a necessidade de sinais visíveis de pertencimento ao Corpo Místico. Mas será que o Papa Pio XII está se opondo ao pensamento de Santo Tomás, para quem alguém se torna membro atual de Cristo pela graça santificante ou, pelo menos, pela fé sobrenatural, e para quem um membro atual de Cristo é, antes de tudo, uma pessoa vivificada e unida ao seu Chefe pelo Espírito Santo, a alma da Igreja? Certamente não. Para o Soberano Pontífice também, o Espírito Santo é o princípio de toda a unidade do Corpo Místico, da união do cristão com Cristo e de todos os fiéis entre si, assim como é a fonte de todos os dons divinos que lhes são comunicados[73]. É numericamente o mesmo Espírito que habita inteiramente em Cristo e que está presente, igualmente e de forma real, em cada um dos membros de seu Corpo Místico, tam in universa compage (corporis), quam in singulis partibus[74] totus in Capite cum sit, totus in corpore, totus in singulis membris[75]. Em poucas palavras, o Espírito Santo é a alma desse Corpo que ele "imbui", preenche, vivifica e unifica[76].
Cada pessoa em quem habita o Espírito Santo torna-se assim progressivamente semelhante a Cristo para a glória do Pai[77], de tal forma que se pode dizer que Cristo vive nele[78] e que, unido à Cabeça, ele está unido a todos os outros membros do Corpo.
De tal forma que, de acordo com o Papa Pio XII também, o cristão é constituído membro de Cristo, ou membro do seu Corpo - é a mesma coisa[79] - porque e na medida em que o Espírito Santo o move, o santifica e finalmente habita nele "de maneira impenetrável" como objeto de conhecimento e amor[80]. "Não seria trair seu pensamento (de Pio XII) afirmar que é nela (a habitação do Espírito Santo) que reside o mistério eclesiológico por excelência; tudo o mais, no Corpo Místico, está ordenado a isso, com o objetivo final, é claro, da glorificação da Trindade"[81].
Assim, sem esquecer a necessidade dos Sacramentos, especialmente do batismo de água, para se tornar normalmente membro integral do Corpo Místico, não se pode negar que a presença do Espírito Santo na alma é muito mais importante e primordial. Não se pode deixar de mencioná-la ao buscar determinar a extensão do Corpo Místico.
Portanto, se além dos limites visíveis da Igreja Romana, um homem é agraciado com a presença do Espírito Santo - produzida sem dúvida nele por meio da intervenção, seja sacramental, seja mesmo extra-sacramental, da Igreja Romana, e de qualquer forma orientando-o em direção a ela - por que não reconhecer-lhe, de acordo com os próprios dados da Encíclica, a qualidade de membro, real e verdadeiro[82], embora incompleto e invisível, do Corpo Místico e, portanto, da única Igreja de Cristo? Os dissidentes não pertencem[83] ao "tecido visível da Igreja Católica" (ad adspectabilem Catholicae Ecclesia compagem), mas não necessariamente à Igreja que é visível (ad adspectabilem Ecclesiam)[84].
As considerações que acabamos de fazer nos permitem concluir que, de acordo com a Encíclica Mystici Corporis, é possível pertencer atualmente ao Corpo Místico sem ser membro atual ou membro visível da Igreja Romana: os bem-aventurados e as almas do purgatório não são membros atuais dela, mas sim do Corpo Místico. Quanto aos catecúmenos e a todos aqueles que, fora dos limites visíveis da Igreja, possuem a graça e a habitação do Espírito Santo neles, alma da Igreja, eles são de maneira espiritual e real membros do Corpo Místico e, portanto, da única Igreja, mesmo sem serem membros visíveis.
O Pe. Morel foi fiel à Encíclica quando escreveu: "No plano real, o Corpo Místico terrestre transborda a Igreja Católica Romana"[85]? Parece-nos que não. Ele teria sido mais fiel ao afirmar: "transborda, em suas incoações latentes, os limites visíveis (adspectabilis compago) da Igreja Romana". De fato, o Corpo Místico terrestre e a Igreja Romana se identificam, "sunt idem et unum". No entanto, a manifestação visível integral ou completa dessa realidade única é mais restrita, mais estreita do que sua zona de influência, seus esboços ou seus prolongamentos anormais.
4. Precisões.- Nessas condições, poderiam dizer, os catecúmenos, os cristãos dissidentes ou até mesmo os pagãos justificados poderiam ser membros verdadeiros do Corpo Místico e da Igreja Romana? Certamente. Mas, insiste-se, o Santo Padre não lembra que para pertencer à Igreja Católica é necessário ter recebido o batismo de água, professar a verdadeira fé e não ter se separado, por sua própria culpa, da comunhão eclesiástica[86]? E ele não diz, com muito mais precisão, que eles estão antes "ordenados por um voto (pelo menos) inconsciente"[87] ao Corpo Místico? Portanto, eles não podem pertencer[88] a ele!
Essas dificuldades estão longe de serem insolúveis e já mostramos como resolvê-las. Para melhor esclarecer nosso pensamento, vamos adicionar as seguintes considerações.
Sem nos estendermos sobre a questão dos membros da Igreja, o que nos levaria longe, basta lembrar que a enumeração das condições necessárias para ser membro da Igreja se refere àqueles que reapse pertencem a ela. O uso dessa partícula pelo Papa não deixou de chamar a atenção dos comentaristas[89]. Ela expressa uma pertença plena[90], normal, integral e completamente visível, que deixa espaço para uma pertença diminuída, incoativa, parcialmente ou completamente invisível, certamente anormal, mas verdadeira e não ilusória. Muitos teólogos, mesmo e especialmente após a Encíclica, em vez de falar de membros da alma da Igreja, como se dizia no passado, ou, o que é pior, de membros da Igreja invisível, reconhecem a existência de membros invisíveis da única Igreja que, aqui na terra, é e deve ser visível[91].
Inspirando-nos nas precisões de Mons. Journet, dos padres Lialine e Congar e de A. Chavasse[92], propomos a seguinte classificação das diversas formas possíveis de pertença à única Igreja Católica e Romana:
1. Pertencimento (ou incorporação) pleno, integral, "confessado" e completamente visível: aqueles que possuem os três sinais visíveis exigidos pela Encíclica. Este é o único pertencimento normal. Pode ser:
a. Espiritual ou vivo, se esses membros possuírem a graça.
b. Material ou enfermo, se eles perderam a graça, mas ainda mantêm a fé e a comunhão com a hierarquia.
2. Pertencimento parcialmente visível, mas virtual ou "em ato esboçado" (Journet): aqueles em quem falta um ou outro dos três sinais. É (assim como as seguintes) uma pertença anormal e não confessada. Essa pertença pode ser:
a. Espiritual e vivo: por exemplo, o herege material ou o catecúmeno, se estiverem em estado de graça. Eles pertencem invisivelmente à Igreja visível, pela graça que neles constitui um "voto ou desejo", seja consciente, inconsciente ou "paradoxal" (caso daquele que, de boa fé, por ignorância invencível, rejeita positivamente a Igreja católica).
b. Material ou enfermo: os mesmos sem a graça.
c. Material e renegada: aqueles que, após o batismo, querem conscientemente e de má fé se separar da Igreja.
3. Pertencimento completamente invisível ou latente, mas espiritual e, portanto, virtual, incoativo ou ordenado: aqueles aos quais faltam os três sinais visíveis, mas que estão unidos a Cristo pela graça que necessariamente os orienta em direção à Igreja visível, pela intervenção da qual eles receberam (ministério extra-sacramental da Igreja). Esse é o caso do muçulmano ou do pagão justificado ("os justos de fora", como diz Mons. Journet).
4. Pertencimento completamente invisível e puramente potencial: os não-cristãos em estado de pecado. Mal se pode falar aqui de pertencimento. No entanto, podemos manter essa palavra, pois Cristo não apenas vê e ama em sua Esposa toda a humanidade: "Divini Sponsi amor tam late patet ut neminem excludens, universum humanum genus in sua sponsa amplectatur"[93], mas também concede a todos pelo menos algumas graças atuais que, por si mesmas, os orientam em direção à Igreja[94]. Essa também é a vontade desta última, que deseja incorporar a todos de maneira real[95].
Essa classificação nos permite responder à dificuldade levantada pela afirmação do Santo Padre, ao afirmar que aqueles que estão unidos a Cristo pela graça, mas não pelos três sinais visíveis, são "ordenados" ao Corpo Místico; e, portanto, se há ordenação, argumenta-se, não pode haver pertencimento. A isso, deve-se responder: o que os "ordena" à Igreja é (para as categorias 2a e 3) o "votum" saltem inscium. No entanto, "esse votum, o ensinamento tradicional sempre entendeu no sentido de uma disposição real, fruto na alma de uma graça autêntica de Deus. Sempre significou algo muito diferente - como também é lembrado na Encíclica (Humani Generis) - do que 'uma fórmula vazia'[96]". Portanto, se essa ordenação constitui um vínculo real, por que não falar de uma verdadeira pertença[97], embora imperfeita e incompleta? Observações semelhantes podem ser feitas em relação aos sacramentos que alguns dissidentes conservam, mesmo em estado de pecado (categoria 2 b. e c.), ou ao catecúmeno que professa a verdadeira fé, mas ainda não é justificado: esses sinais visíveis os conectam de forma muito real à Igreja de Cristo, à qual eles pertencem, embora de forma incompleta.
Por que não conceder a ambos, uns e outros, a designação de "membros" da Igreja, se é verdade que merecem esse nome todos aqueles que possuem «aliquam saltem cohaesionem cum corpore et aliguam saltem participationem vitae corporis»[98], e se usamos essa palavra aqui em um sentido mais amplo? A Encíclica Mystici Corporis, não só não defende "um uso mais amplo e menos rigoroso dessa expressão, do qual... encontramos um exemplo em Bento XIV"[99], mas nos convida a fazê-lo, visto que inclui, como vimos, os catecúmenos entre os membros da Igreja e até mesmo usa o termo "membros" para aqueles que estão totalmente separados da Igreja por sua própria culpa: «membra a Corpore omnino abscissa»[100].
Aqueles, ao contrário, que estão incluídos nessa categoria merecem apenas de forma muito inadequada o título de membros, pois nenhuma realidade habitual e inerente os une de forma sobrenatural a Cristo, o que era o caso daqueles que possuíam a graça santificante (ou pelo menos a virtude infusa da fé) ou o caráter indelével do batismo. É por isso que Santo Tomás os chamava de "membros potenciais". O Papa Pio XII evita chamá-los assim, mas mantém a certeza de que, sendo todos chamados a se tornarem membros actu da Igreja, todos o são, portanto, in potentia.
O Pe. Lialine, seguido pelo Pe. Holstein, prefere reservar a expressão "membros da Igreja ou do Corpo Místico" para aqueles que possuem os três sinais visíveis, mesmo que dê o nome de "membros de Cristo"[101] àqueles que estão unidos a Cristo pela graça. Mons. Journet, em sua última obra, rejeita resolutamente, e com razão, essa distinção[102], mas propunha antigamente uma distinção similar entre "Corpo de Cristo" e "Corpo da Igreja"[103]. Com o Pe. Gribomont, encontramos essa distinção pouco oportuna[104]. O Pe. Morel fala do Corpo Místico no sentido amplo, incluindo todos aqueles que vivem da graça de Cristo, e do Corpo Místico no sentido eminente, coincidindo com a Igreja Católica Romana[105]. Preferiríamos nos expressar de forma um pouco diferente e reconhecer dentro do total Corpo Místico de Cristo, coincidindo com a Ecclesia da qual falava Santo Tomás, ao lado do Corpo Místico triunfante, o do Céu, e do Corpo Místico padecente, o do Purgatório, um único Corpo Místico terrestre, que se realiza como um esboço onde quer que a graça exista (no plano da "res", conforme as sugestões do Pe. Gribomont)[106], e onde os caracteres sacramentais ou a profissão da verdadeira fé se vinculam visivelmente à Igreja (no plano do "sacramentum tantum", mas de forma incompleta), e esse mesmo Corpo Místico terrestre se realiza de forma completa e normal apenas na Igreja Católica Romana (no plano do sacramentum, completamente).
A partir daí, podemos compreender como a declaração enfática da Encíclica Humani Generis deve ser interpretada e quais são as nuances que devem ser consideradas. Entendemos da seguinte forma: "O Corpo Místico de Cristo, ou seja, o Corpo Místico em seu estado completo e perfeito, e a Igreja Católica Romana são uma única e mesma coisa"; ou: "O Corpo Místico de Cristo, em seu estado completo de condição terrena (um estado transitório e imperfeito em comparação com seu estado definitivo que alcançará no Céu, especialmente após a Ressurreição), coincide exatamente com a Igreja Una, Santa, Católica, Apostólica e Romana, a única Igreja terrena fundada por Cristo".
III. CONCLUSÃO.
As duas formulações de Santo Tomás e de Pio XII identificando a Igreja e o Corpo Místico de Cristo estão em dois níveis superpostos, mas sem se contradizerem de forma alguma. Embora reconheçamos que seus termos contenham, na mente de seus respectivos autores, um sentido mais amplo ou mais restrito, seria errado querer opô-los.
Santo Tomás entende essa identificação da seguinte maneira: A Igreja, no sentido mais amplo, incluindo os anjos e os homens na medida em que estão unidos a Cristo pela graça (ou pela fé), é adequadamente e "atualmente" (actu) o Corpo Místico de Cristo. Pio XII entende dessa maneira: o Corpo Místico de Cristo, tanto na sua forma terrena quanto no seu estado completo e plenamente manifestado, perfeitamente constituído tanto quanto possível nesta terra, de acordo com as exigências da sua vida "peregrina", é adequadamente a Igreja Católica Romana.
Resumindo: Por um lado, Igreja e Corpo Místico de Cristo são unum et idem. Por outro lado, a Igreja Católica Romana e o Corpo Místico terrestre em seu estado completo são unum et idem. Esses dois aspectos, um relacionado à res e o outro ao sacramentum[107], se complementam, se harmonizam e se nuanciam mutuamente. Ambas as formulações são rigorosamente precisas em suas respectivas escalas. Portanto, para aceitá-las sem restrições, é necessário esclarecer o sentido atribuído por cada uma à expressão "Corpo Místico de Cristo" e também mostrar que o outro termo de identificação - o conceito de "Igreja" - pode ser entendido de forma mais ampla em ambos os casos. Somente com o benefício desses esclarecimentos pode-se evitar qualquer acusação de oposição real entre as encíclicas Humani Generis e Mystici Corporis, de um lado, e a doutrina tomista, de outro.
Ao concluir, reconhecemos que talvez tenhamos dado a impressão de teorizar demais em alguns pontos. Ao aprofundar a análise, não tivemos a intenção de conceitualizar, esgotar ou eliminar o mistério. No entanto, essa abordagem era legítima, necessária e benéfica. Era legítima porque a análise e os conceitos utilizados estavam cientes de sua própria limitação e subordinados à realidade da fé, que os transcende. Era necessária e benéfica porque revelou, sobre o assunto estudado, apesar das diferentes preocupações, uma problemática e, por vezes, uma formulação: a profunda concordância entre o ensinamento do Magistério atual e uma doutrina tradicional cristalizada pelo Doutor Angélico, da qual o Sumo Pontífice não pede que se renuncie. Isso significa que a voz dessa tradição teológica continua sendo convidada, como no passado, a ecoar na síntese eclesiológica que está sendo construída nos dias de hoje.
Heverlee.
D. M. NOTHOMB, P.B.
[1] AAS, 42, 571.
[2] AAS, 35, 193. Referimos a este último documento pelo sinal A. Tr., que significa a edição comentada do Pe. Tromp.
[3] Consulte J. VADORIVEC, Ecclesia Catholica Corpus Christi mysticum em Euntes Docete, 1951, p. 76-98; Mons. JOURNET, L'Église du Verbe Incarné, T. II 1952, passim, por exemplo, p. 53-55 nas notas.
[4] « Ecclesia est coetus hominum viatorum eiusdem fidei christianae professione, et eorumdem sacramentorum participatione adunatus, sub regimine legitimorum pastorum ac praecipue Romani Pontificis » S. BEŁLARMIN, Controv. de Concil. et Eccl., 1. III, c. 1-2.
[5] À, 208; Tr. n. 34.
[6] Santo Tomás estuda o Corpo Místico a partir de Cristo como chefe, cujos membros formam um corpo que é a Igreja. Pio XII o considera a partir da Igreja Católica Romana, observando que ela é o Corpo Místico cuja cabeça é Cristo.
[7] Especificamente, A. MITTERER, Geheimnisvoller Leib Christi nach S. Thomas v. À, und nach Papst Pius XII, Viena, 1950. Consulte também Y. CONGAR, em RSPT, 1951, p. 633-635.
[8] P. GARRIGOU-LAGRANGE, Préf. à E. Mura Le Corps mystique du Christ, Paris, 1934.
[9] Este é o ponto de vista do Pe. Congar em "Esquisses du Mystère de l'Église". Paris, 1941, p. 60, 90, 91.
[10] Cfr III Sent. D. 13, q. 2 ; Ver. q. 29, a. 4-5 ; S. T., III, q. 8 ; Comp. Th. c. 214 ; Exp. in Symb. art. 9 ; In I ad Cor., c. XI, l. 1; In Eph, c. I, 1. 8; in Col, c. I, 1. 5. — Há muitos obiter dicta presentes. Nas notas que se seguem, faremos referência apenas ao texto principal para evitar sobrecargas.
[11] Comp. Th. c. 214, in fine.
[12] Ver. q. 29 a. 5 sed c., 2. Mas na maioria das vezes, Santo Tomás diz 'caput Ecclesiae', por exemplo, ST II q. 8 a. r co. et ad 2 etc.
[13] S. T. III, q. 8, I, co. ; III Sent. D. 13, q. 2 a. I in resp. ; In Rom., c. 12, 1. 2 ; do mesmo In Cor., c. XI, L. r, etc.
[14] III Sent. l. c.
[15] Ver. q. 29, a. 4, co.
[16] S. T. III, q. 8, a. 1, co.
[17] « Ex hoc, Christus dicitur esse caput Ecclesiae quod gratiam influit Ecclesiae membris », S. T. III, q. 8, a. 6 obj. 2; cfr III Sent. D. 13 q. 2 a. r in resp. etc.
[18] S. T. III, q. 49, a. 6; q. 64, a. 3.
[19] CHAVASSE demonstrou corretamente, contra o Padre MERSCH (Le Corps mystique du Christ, Lovaina, 1933, vol. II, p. 182-183), que os termos "influxus, influentia, influere, derivare" não denotam um modo de causalidade totalmente original e misterioso, mas simplesmente a dependência ontológica da causalidade eficiente do agente sobre o efeito. Curso poligrafado sobre a Igreja (pro manuscripto), p. 156.
[20] S. T. lIl, q. 8, a. 3, co ; cfr III Sent., D. 13, q. 2, a. 2, sol. 2 ; S. T. III, q. 19, a 4, ad 1m.
[21] « Membrum mortificatum », S. T. ITI, q. 8, a. 3, ad 2m ; « Membrum mortuum... vel aridum », III Sent. D. r3, q. 2, a. 2, sol. 2.
[22] S. T. III, q. 8, a. 3, ad 1 m.
[23] S. T. III, q. 8, a. 3, co.
[24] Ver. q. 29, a. 5 co. ; cfr. III Sent. D. 13 q. 2a. 2 qu, sed c.
[25] III Sent., D. I, q. 2, a. 1, ad 3 m.
[26] Cfr ibid., a. 2, sol. 2, ad 5 m ; S. T. IIT, q. 79, a.
[27] “Non solum fidelium sed etiam comprehendentium est caput”. S. T. III, q. 8, a. 4, ad 2 m.
[28] Ibid., co.
[29] Ibid., ad I m.
[30] Uma vez que são membros de Cristo, os anjos fazem parte do Corpo místico. « Corpus Ecclesiae mysticum non solum constitit ex hominibus sed etiam ex angelis ». S. T. HI, q. 8, a. 4 co.
[31] III Sent. D. 13 q.2 a. 2 sol. 2. — Le P. DARQUENNES (La Définition de l'Église d'après saint Thomas d'Aquin dans Recueil de Trav. d'Hist. et de Phil., Louvain, 1943, P. 1-53). Aqueles que buscam a estrutura jurídica da Igreja segundo Santo Tomás chegam a afirmar que, de acordo com ele, o único princípio de união dos membros do Corpo Místico é a graça (p. 37, 39, 47, etc.), o que não exclui os sinais exteriores dessa unidade; no entanto, "nem Santo Tomás nem os outros teólogos de sua época deram atenção a esses sinais visíveis" (p. 43). Essa última afirmação requer certa reserva.
[32] « Per Spiritum Sanctum efficimur unum cum Christo ». In Ephes., c.l, l. 5.
[33] S. T. III, q. 64, a. 2, ad 3m.
[34] O Padre Congar resume essa relação entre a unidade interna e os elementos da unidade externa nas duas seguintes proposições: 19. A Igreja-Instituição é a própria forma de existência do Corpo Místico e da nova vida em Cristo; 20. Ela é o sacramento e o ministério, ou seja, o instrumento de realização do Corpo Místico. (Op. cit., p. 80-90).
[35] No mesmo sentido, Mons. JOURNET, L'Église du Verbe incarné, t. II, 1952, P- 45-40.
[36] Cfr S. T. III, qu. 8, a. 4, 3 co, in resp. ; III Sent., D. 13, q. 2, a. 2.
[37] Ver. q. 29, a. 4 in resp.; III Sent., D. 13, q. 2, a. 2.
[38] III Sent., D. 13, q. 2, a. 3 q 2 ad 4m. Cfr DARQUENNES, op. cit., P. 7; CONGAR, op. cit., p. 78.
[39] DARQUENNES, op. cit., p. 4.
[40] Ibid., p. 6.
[41] In Eph., c. 3, l. 3 in fine.
[42] A. V., 28, 710.
[43] S. T. III, q. 8, a. I, ad 2m.
[44] O Padre Darquennes, estudando a Igreja em Santo Tomás de um ponto de vista completamente diferente, chega às mesmas conclusões (op. cit., pp. 30, 39-41, 44, 49).
[45] In Col., c. 1, L 6, referente à Col. I, 24
[46] Suppl. q. 95 (97), a. 3 ad 4 m.
[47] Em I Coríntios 12:27. Sabe-se que a tradução da Vulgata, ao ler "μέλη ἐκ μέλους" em vez de "μέλη ἐκ μέρους", é exegeticamente incorreta.
[48] Suppl. q. 95 (97), a. 3 ad 4 m.
[49] A. 208 ; Tr. n. 34.
[50] A. 208-215, Tr. n. 35-46.
[51] À. 215-227; Tr. n. 47-50. «Qua (ratione) peculiari quodam modo evincitur Christum Dominum mystici sui Corporis Caput esse asseverandum ». Lembremos que, para Santo Tomás, o influxo era também essencial para a «ratio capitis».
[52] A, 199-200, Tr. n. 14-15. Por Leão XIII, AAS, 28, 710.
[53] À, 200-202, Tr. n. 16-20.
[54] A, 221-222, Tr. n. 59; cf. também A, 234, Tr. n. 85.
[55] A, 222-223. Tr. n. 60-61.
[56] A, 194; Tr n. I.
[57] A 199; Tr. n. 13.
[58] « Non enim desunt qui haud satis considerantes Paulum Apostolum translata taniummodo verborum significatione hac in re fuisse locutum... perversum alioquod inducunt unitatis commentum ». A, 234 ; Tr. n. 85.
[59] Por ex.: A, 200-202, Tr. n. 16, 17, 18 etc.; trata-se claramente de uma comparação "(unio) nostri... corporis compagine comparatur", A, 226, Tr. 67.
[60] A, 221-221, Tr. n. 59.
[61] A. 207, Tr. n. 32 et passim.
[62] A., 237, Tr. n. 90.
[63] A., 205, Tr. n. 27; A, 243, Tr. n. 101, 102.
[64] A. 243, Tr. n. 102.
[65] A. 226, Tr. n. 67.
[66] A. 224, Tr. n. 63. - Foi observado que a expressão "povo de Deus", embora presente nas Escrituras, não é encontrada nem na Encíclica nem no livro do Pe. Tromp.
[67] Embora em parte dogmática, "a Encíclica não tem a aparência de uma exposição teológica técnica" (V. MOREL, Le Corps mystique du Christ et l'Église catholique romaine, em N. R. T., 1948, p. 724, n. 50). O objetivo do Santo Padre é mais prático: refutar teorias falsas, exortar à união dos cristãos e dos povos (1943 estava no meio da guerra). "É natural, então, que a parte doutrinal da Encíclica assuma o caráter de um panegírico do Corpo Místico de Cristo, cuja grandeza e beleza são celebradas em termos que, de outra forma, poderiam parecer carentes de rigor" (D. LIALINE, Une étape en ecclésiologie, Irénikon, 1947, p. 48-49).
[68] Dentro desse sentido, MOREL, art. cit., p. 718.
[69] «ea praesertim enucleando edisserendoque quae ad militantem pertinent Ecclesiam » A, p. 193, Tr. n. r. Ver a glosa do Pe. Tromp em sua edição da Encíclica, p. 74.
[70] No mesmo sentido, LIALINE, art. cit., 1946, p. 317 e 1947, p. 52; MOREL, art. cit., p. 701.
[71] A, 242, Tr. n. 99
[72] Ibidem. - M. A. CHAVASSE, perturbado com a posição dessa frase, considera que "os subtítulos da tradução em francês: 'Para os membros da Igreja' - 'Para aqueles que ainda não são seus membros' - estão muito mal colocados no texto" (Ordonnés au Corps Mystique, N. Rev. Théol., juillet-août, 1948, p. 605, n. 20) e que se deve colocar o último subtítulo antes da menção dos catecúmenos. Não podemos concordar com essa opinião; observe-se, de fato: 1. que essas divisões e subtítulos são os da tradução oficial da Tipografia Poliglota Vaticana; 2. que são retomados e adotados pelo Pe. Tromp, a quem não se pode suspeitar de ser demasiadamente amplo na enumeração dos membros do Corpo Místico; que o texto autêntico da Encíclica, publicado em Acta Apostolicae Sedis, p. 242, não permite a inclusão desse subtítulo: "Para aqueles que ainda não são seus membros", antes da menção dos catecúmenos, pois essa frase faz parte integrante do parágrafo em que são citados os membros da Igreja, enquanto aqueles que não são seus membros são enumerados no parágrafo seguinte.
[73] «Ule est, qui coelesti vitae halitu in omnibus corporis partibus. cuiusvis est habendus actionis vitalis ac reapse salutaris principium », A., 219, Tr. n. 55. Cfr A., 218-2r9, Tr. n. 54 ; A., 234, Tr. n. 86 ; A., 226, Tr. n. 68.
[74] A, 222, Tr. n. 60; À. 230, Tr. n. 78.
[75] A, 219, Tr. n. 55.
[76] A, 219-220, Tr. n. 55 ; « permeat », À, 218, Tr. n. 52 ; «replet» A, 223, Tr. n. 6r ; « animi Spiritu Christi imbuitur », A, 238, Tr. n. 91.
[77] «...ut ipsa (Ecclesia) eiusque singula membra magis in dies magisque servatori nostro adsimilentur », A, 219, Tr. n. 54.
[78] Cristo vive no homem justificado: A, p. 220, Tr. n. 56; À, 218, Tr. n. 52; A, 239, Tr. n. 92; A, 230, Tr. n. 77; A, 228, Tr. n. 71, etc. Como isso acontece? "Est nempe Christus in nobis... per Spiritum suum quem nobiscum communicat", A, 230, Tr. n. 77.
[79] Cfr nota 2, p. 246.
[80] A, 231, Tr. n. 80.
[81] LIALINE, art. cit., 1946, p. 301. Encontramos pelo menos 53 vezes na Encíclica a menção explícita do Espírito Santo. Isso demonstra a importância que o Papa Pio XII atribui à sua presença e ação na constituição do Corpo Místico.
[82] Nesse sentido, JOURNET, op. cit., vol. II, p. 1065-1066: a pertença latente, invisível, não manifestada à Igreja, no entanto, é real, ontológica.
[83] A, 243, Tr. 101; cfr Encíc. « Summi Pontificatus » AAS., 1939, p. 418-419.
[84] A, 199, Tr. 12
[85] Art. cit., p. 719 e seg. É nesse mesmo sentido que devemos julgar e modificar a expressão do Padre Holstein, que, após a Encíclica, retomou a fórmula adotada pelo Padre de Eubec em 1938: "Sem ser em todos os aspectos coextensiva ao Corpo Místico, a Igreja visível não está adequadamente distinta dele". Église et Corps du Christ. Études, nov. 1950, p. 244. A fórmula seria rigorosamente correta se estivéssemos nos referindo ao Corpo Místico total, que se estende até a glória; quanto ao Corpo Místico terrestre, devemos dizer que, em seu estado completo, é em todos os aspectos coextensivo à Igreja visível, e vice-versa, mas nem um nem o outro é totalmente coextensivo aos seus limites visíveis: é possível pertencer realmente a esta única Igreja Romana - o Corpo terrestre de Cristo - de maneira invisível e incompleta. O mesmo autor parece cair em um excesso oposto quando escreveu recentemente: "devemos estar convencidos de que não pode haver uma verdadeira pertença ao Corpo de Cristo sem uma pertença normal e visível à Igreja hierárquica". (Le peuple de Dieu dans «L'Union», février 1952, p. 13). Veremos em um momento que uma pertença real ao Corpo de Cristo ou à Igreja hierárquica - é a mesma coisa aqui na terra - é possível sem estar normalmente e visivelmente ligado a ela.
[86] A, p. 202, Tr. n. 21.
[87] A, p. 243, Tr. n. 101.
[88] H. HOLSTEIN, Études, art. cit., p. 248-249. Ele acrescenta, no entanto, na página seguinte, que o batismo do cismático o incorpora à verdadeira Igreja. A incorporação não implica uma pertença real?
[89] Especialmente CHAVASSE, art. cit, p. 690 et ss. ; igualmente LIALINE, art. cit, 1947, p. 43: JOURNET, Nature du Corps de l'Église, Rev. Thom., 1949, I-Il, p. 200, n. 2 ; A. LIÉGÉ, L'appartenance à l'Église et l'Encyclique Mystici Corporis Christi, Rev. des Sc. Phil. et Théol. Oct. 1948, p. 351, n. 2 ; HORSTEIN, « Le Christ Téte de tous les hommes », Année Théol., 1950, p. 18, n. 2. L. RICHARD, Le baptême, incorporation visible à l'Église, N. Rev. Théol., Mai, 1952, p. 491, pelo que reapse significa «em toda verdade e sem restrição».
[90] Sic CHAVASSE, loc. cit. - A palavra "reapse" é encontrada 9 vezes na encíclica Mystici Corporis. Em dois trechos (A. 236, Tr. n. 88; A. 239, Tr. 92), ela claramente inclui uma nuance de perfeição e plenitude, que explicitamente deixa espaço para um modo de realização incompleto, mas não ilusório. Por sua vez, a encíclica Mediaior Dei et hominum, de 20 de novembro de 1947, "segundo capítulo de um livro iniciado em 1943 por Mystici Corporis" (Osservatore Romano, 30 de novembro de 1947), usa o termo "reapse" 14 vezes e aqui, quase sempre, se opõe a um modo de realização espiritual ou incompleto, mas não imaginário e não desprovido de valor. (A. A. S. 1947, especialmente pp. 560, 563, 565-566, 593).
[91] Admitem uma pertença invisível à Igreja visível, por exemplo: A. LIÉGÉ, art. cit., p. 355; LIALINE, art. cit., 1947, p. 44; LABOURDETTE, O.P., Rev. Thom., 1950, 1, p. 51-52 e II, p. 403; Mons. JOURNET, L'Église du Verbe Incarné, 1941, T. 1, p. 46, 47; T. II, 1952, p. 953, 1065, etc. e art. cit., p. 200; TAYMANS, S.J., L'Encyclique Humani Generis et la Théologie, art. cit. Nouv. Rev. Théol., Janv. 1951, p. 19; DE MONTCHEUIL, Aspects de l’Église, Paris, 1949 (mas escrito em 1942-43), p. 138; MARCHAL, P.B., L'invisible présence de l'Église, Alger, 1950, p. 10, 11, 14, 45-49; L. RICHARD, art. cit., p. 491; A. LÉONARD, O.P., Simone Weil et l'appartenance invisible à l’Église, dans La Vie spir., supplément, 15 Mai 1952, p. 137-167; sobretudo p. 155-159; P. MICHALON, P.S.S., L'Église, Corps Mystique du Christ glorieux dans N. Rev. Théol., juillet-août, 1952, p. 687; Dr. W. VAN DE POL em Extra Ecclesia nulla salus, in Jaarboek 1951, Werkgenootschap v. Katb. Theol. in Nederland, gedachtwisseling, bl. 26.
[92] Estamos nos baseando no curso poligrafado sobre a Igreja de A. CHAVASSE, IIe P., 2° Sect., ch. X, p. 85-88.
[93] A, p. 239-240, Tr. n. 95.
[94] Cfr A, 240, Tr. n. 95 ; À, 220, Tr. n. 57 ; A, 206, Tr. n. 30.
[95] A, 243, Tr. n. 101, 102. Na Encíclica Evangelii Praecones Igreja católica é dito «a mãe amorosa de homens loucos » (Doc. Cath., 1 juillet, 1951, col. 789).
[96] TAYMANS, art. cit., p. 19. O Dr. L. Smit afirma, aparentemente sem fundamento, que se o Papa Pio XII fala de "votum inscium", é para rejeitar o "votum implicitum" dos teólogos. Extra Ecclesia nulla Salus no Jaarbock, 1951, p. 15, 22. Não estaria ele apenas brincando com as palavras?
[97] Este é também o ponto de vista de D. J. GRIBOMONT, em Irénikon, no art. cit., p. 347; o mesmo ocorre com Mons. JOURNET, cf. nota 2, p. 240. Da mesma forma, A. CHAVASSE, que em seu curso, no loc. cit, p. 85 e 87, explica em duas ocasiões que a pertença não declarada, anormal, incoativa, no entanto, é ontologicamente real e objetiva.
[98] FRAGHI, De membris Ecclesiae, Romae, 1937, D. 35.
[99] CHAVASSE, em art. cit, na página 700, que cita anteriormente, em sua nota 32, o texto de Bento XIV que atribui ao herege validamente batizado o título de membro da Igreja Católica.
[100] A, p. 220, Tr. n. 55. Para estar completamente separado da Igreja, é necessário um grave erro pessoal: A, p. 202, Tr. n. 21.
[101] LIALINE, art. cit., 1947, p. 44; HOLSTEIN, Année Théol, 1950, art. cit., p. 25. Da mesma forma Dr L. Suit, Extra Ecclesia nulla salus, Jaarbock, 1951, bl. 21
[102] Op. cit., vol. II, p. 1058, 1075, etc. Da mesma forma, em oposição a L. Smit, D. L. CORNELISSEN, O.P., Anuário, 1951, p. 30. E com razão. A Encíclica Mediator Dei et hominum declara explicitamente que aqueles que não receberam o "baptismatis lavracrum", assim como não são (novamente, no sentido explicado acima) membros do Corpo Místico, também "neque membra (sunt) Christi" (A.A.S. 1947, p. 539). É na mesma medida que se é membro do Corpo e membro da Cabeça.
[103] Rev. Thom., 1949, art. cit., p. 128.
[104] GRIBOMONT, Irénikon, 1949, art.. cit., p. 346.
[105] Art. cit., p. 708.
[106] Art. cit, p. 331-354.
[107] Ibidem., p. 353.
FONTE: Irénikon, Tome XXV, 1952, pp. 225-248.
Do sacramento da Igreja e de suas realizações imperfeitas.
ENSAIO DE TEOLOGIA DO CISMA
A teologia das "desordens" da graça, das riquezas abundantes da ação divina, é particularmente difícil de expressar em fórmulas, isso é óbvio. Somente em Cristo está toda a salvação e toda a graça, e o corpo de Cristo é a sociedade visível que Ele instituiu através dos seus apóstolos. Como então explicar que a graça e a salvação operam além dos limites visíveis da Igreja, o que também é assegurado? Os teólogos estão se aproximando de um consenso de fato, mas com vocabulários que continuam a variar, o que obviamente prejudica a precisão. A comparação de alguns dos ensaios mais recentes revelará, na própria natureza da Igreja, a causa dessa divergência na classificação e talvez permitirá posicionar melhor, em relação à Igreja, as almas, os homens e as sociedades que são animados de alguma forma pelo Espírito de Cristo.
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Durante muito tempo, pareceu haver um certo consenso, distinguindo a alma e o corpo da Igreja. A autoridade desfrutada por essa solução mostra que ela respondia a certos elementos do problema: sugere-se, felizmente, que a comunhão de graça com Cristo não seja diretamente perceptível aos sentidos, que ela se realiza nas almas e, ao mesmo tempo, está intimamente relacionada com o organismo visível da Igreja. No entanto, a analogia entre alma e corpo só descreve de forma muito deficiente as relações estabelecidas aqui. Por esse motivo, de várias maneiras, busca-se ir além dessa fórmula[1], assim como toda a eclesiologia de Bellarmino. E, de forma mais clara do que qualquer texto anterior, a encíclica Mystici Corporis identificou o corpo da Igreja com o corpo místico de Cristo.
O Padre Valentin Morel[2] busca matizar essa identificação: a Igreja seria o Corpo de Cristo em um sentido eminente; mas, no sentido próprio e simples, qualquer pessoa que viva autenticamente a vida de Cristo (pela graça) será membro do Corpo místico[3], sem necessariamente ser membro da Igreja. Na teologia paulina, de fato, é a própria comunicação das graças da Redenção que torna alguém membro de Cristo. E, nesse sentido, não é o sentido próprio de uma expressão teológica o seu sentido revelado?
A terminologia de Dom Lialine[4] é um pouco diferente; ele distingue os membros de Cristo dos membros do Corpo de Cristo (Igreja visível). É um pouco surpreendente que membros não façam parte do corpo! Isso parece ser devido à influência do Padre Koster[5], uma reação exagerada contra a identificação extrema da Eclesiologia com a Cristologia[6].
O Padre Congar identifica sem reservas a Igreja e o Corpo de Cristo, mas observa que a pertença à Igreja pode ser verificada de maneiras diferentes e em graus diversos[7], de modo que alguns dissidentes serão, à sua maneira, parte da Igreja, o Corpo de Cristo. É nessa direção que gostaríamos de avançar.
Entre as várias opiniões teológicas, a Encíclica Mystici Corporis não quis tomar partido. Para evitar o choque de formulações, ela reserva o nome de membros aos católicos em comunhão visível com a Igreja, ao mesmo tempo em que ensina que outros estão "ordenados ao Corpo de Cristo"[8]. Se essa ordenação vai além de uma simples predestinação e já se baseia em uma comunicação de graça e vida sobrenatural, é difícil entender, assim que se ultrapassa o plano das formulações, como isso não constitui uma "ligação" que justificaria o termo "membro", mesmo que de forma deficiente. Em todo caso, é importante estudar as semelhanças e diferenças entre essa relação com Cristo e aquela dos católicos, santos ou pecadores.
***
O Padre Morel[9] destacou muito bem a causa da oscilação no vocabulário: ao longo dos séculos, a expressão "Corpo (místico) de Cristo" foi entendida em diferentes sentidos[10]; e seria importante esclarecer primeiro a qual momento histórico estamos nos referindo ao falar de membro. Alguns, como o Padre Tromp, desejam, para definir a expressão, bloquear os dois termos extremos da evolução, além de uma exigência de "lógica": o sentido primário seria aquele definido tanto pela linguagem de São Paulo, pelas precisões da teologia moderna e pela realização, tão perfeita quanto possível, da metáfora do corpo humano; é fácil perceber as confusões que surgirão se houver pouca margem para conciliar esses três planos.
O Padre Morel acredita que deve-se reconhecer dois níveis de realização do Corpo místico. O uso paulino daria o sentido próprio simples; a tradição mais recente, que identifica formalmente o Corpo à Igreja Católica, não o contradiria, mas se restringiria a um "sentido eminente". Essa distinção marca um progresso real; no entanto, parece-nos que ainda podemos melhorá-la. Por que, de fato, existem dois níveis? Existem apenas dois níveis? A expressão "sentido eminente" orienta felizmente a reflexão, mas será que ela marca com precisão suficiente as relações com o "sentido próprio"? Ela realmente reflete a rigorosidade das definições modernas, que parecem mais restritas? Além disso, a identificação do Corpo místico com a Igreja não é já pressuposta por São Paulo[11]? E por que o sentido bíblico de uma expressão, como um sentido "revelado", necessariamente daria seu sentido próprio e primário? O que acontecerá se o sentido evoluir nas próprias Escrituras[12]? Com base em que inspiração se pretende que Deus tenha revelado, sempre e em todos os lugares, sentidos próprios e primários? De acordo com as leis gerais da linguagem, uma palavra começa a ser carregada de um valor concreto, colorido por elementos afetivos e vividos; tempo, uso e reflexão são necessários para gradualmente precisar o conceito.
Na verdade, cada etapa da tradição tem seu interesse e merece ser ouvida; é somente em um acordo de todas as testemunhas, onde cada uma mantém sua nota própria, que uma doutrina verdadeiramente católica e equilibrada será estabelecida.
No nosso caso, a multiplicidade de sentidos próprios era particularmente inevitável. De fato, Cristo é o Chefe de todos os homens, mas em graus diferentes. Primeiro e principalmente, ele é a cabeça daqueles que estão unidos a ele em ato pela glória[13]; em segundo lugar, daqueles que estão unidos a ele em ato pela caridade; em terceiro lugar, daqueles que estão unidos a ele em ato pela fé; e finalmente, daqueles que estão unidos a ele apenas em potência[14]. Esses são planos fundamentalmente distintos: graus crescentes de caridade se enquadram no mesmo gênero, mas entre a glória, a graça, a fé morta ou apenas a potencialidade de conversão de um infiel, há apenas uma analogia de proporção própria para fornecer a precisão técnica. Essa riqueza de significados deve se manifestar na história do termo antes de se encaixar em um sistema tão bem organizado em uma Suma.
No entanto, essa primeira escala não é suficiente. Se afirmamos que todo homem dotado de fé ou caridade é membro de Cristo em um determinado nível, onde vamos situar o "sentido eminente" do Padre Morel, o católico "batizado, professando a verdadeira fé, em comunhão visível com todo o Corpo"[15], conforme definido na encíclica? Esses critérios de natureza externa não se somam aos precedentes.
Portanto, aqui é necessário reconhecer uma segunda escala, paralela à anterior. Um primeiro vínculo visível com a Igreja seria a profissão (externa) da verdadeira fé, como se encontra no catecúmeno; em seguida, a recepção do batismo e, em seu devido tempo, da confirmação; mais adiante, a participação nos sacramentos da penitência e da Eucaristia que (re)integram na comunidade; a excomunhão, seja formalmente declarada ou realizada de fato, não permite mais estreitar o vínculo do "pão único, corpo único", sem, no entanto, reduzir à situação de não-batizado. - Isso não é tudo; essa escala visível, que alguns vão considerar estranha ao espírito do Novo Testamento, é prolongada por São Paulo: "Et quosdam quidem posuit Deus in Ecclesia, primum Apostolos"; o sacramento da ordem, especialmente o episcopado, e finalmente o Soberano Pontificado estão no topo dessa hierarquia: essa é a doutrina firmemente exposta na encíclica[16], onde serão encontrados os textos bíblicos que sustentam nossos primeiros graus: profissão de fé, batismo, comunhão eclesiástica[17].
***
Antes de prosseguir, é necessário esclarecer as relações entre essas duas escalas. Pois se percebe o perigo de se ater às primeiras aparências e isolar a primeira escala, rotulando-a apenas como "interior, invisível, espiritual".
Essa dualidade, conforme se apresenta, decorre da natureza muito peculiar da sociedade que é a Igreja, com seus membros visivelmente organizados e diversos em suas funções (escala II), mas também com sua vida sobrenatural e divina, que escapa à apreciação humana. Uma leitura atenta das duas séries de características nos mostra, em I, uma ordem de graça, e em II, de forma notável, uma ordem de sacramentos, que são causas e expressões da graça[18].
A visão teológica que melhor compreenderá as relações entre nossas duas escalas não seria aquela que considera a Igreja em seu aspecto de Sacramento maior? Como sabemos, somente no século XII a sistematização ocidental restringiu o estudo dos sacramentos aos sete ritos principais. Hoje em dia, estamos voltando de bom grado à tradição anterior, que enquadrava esses atos em um mundo de estrutura semelhante, o organismo de salvação que eles tornam presente aqui e que prolonga o Cristo encarnado[19]. No Novo Testamento, a noção de sacramento, sinal eficaz da graça, é encontrada igualmente na ideia da presença e da ação, nas humildes aparências do novo culto do Senhor glorificado; ou, em um estágio mais arcaico, na consciência de uma participação velada e antecipada, graças à vinda do Filho do Homem, nas realidades escatológicas prometidas a Israel[20]. Em ambos os pontos de vista, a Igreja é evidentemente, juntamente com Cristo, o sacramento por excelência.
A teologia dos sacramentos desenvolveu um vocabulário muito preciso e sólido para descrever a relação entre a res (realidade) e o sacramentum (sinal sacramental). Novamente, há uma analogia, uma "analogia de atribuição": o batismo é santo, assim como a graça, embora em diferentes aspectos. Por natureza, a graça-res busca se manifestar na ordem visível; e, vice-versa, os ritos externos são realizados de forma sincera e eficaz para realizar o que eles significam. Para compreender o quão estreita é essa relação, é importante notar que, nesse caso, o aspecto interior invisível não se encontra no plano mental, no qual as ideias podem se manifestar ou se ocultar à vontade, sendo livres em relação à sua manifestação sensível. A graça-res pertence às realidades ontológicas mais profundas, aquelas que estão na raiz de todo o nosso comportamento, seja intelectual ou corporal, mas cuja própria realidade escapa ao nosso controle direto: ninguém pode afirmar que está em estado de graça! Nossos atos conscientes, que são a manifestação fenomênica dessa realidade, estão inteiramente relacionados ao sacramentum, sejam eles de foro interno ou externo; pensemos na confissão. Essa manifestação espontânea e incoercível é uma quase identidade.
A Igreja está encarnada em um mundo de ignorância e pecado, e somente sua plena revelação identificará a realidade e o sacramento visível; enquanto isso, uma tensão pode surgir entre esses dois elementos, seja a realidade ignorando a manifestação que a expandiria, seja o sacramento sendo privado, pelo pecado, de seu efeito santificador. No âmbito natural, uma tensão análoga pode surgir entre a intuição intelectual e, externamente, o jogo dos conceitos que deveriam traduzi-la, e às vezes resistem ao peso do hábito de um sistema obsoleto. Com base nessa tensão, a teologia desenvolveu a doutrina das suplências do desejo (mesmo que implícito) quando um obstáculo importante impede ou retarda a recepção do sacramento; e, inversamente, a doutrina do "caráter", res e sacramentum, que explica a eficácia sobrenatural objetiva e certa do sacramento em um sujeito mal disposto[21]. Esses dois pontos não são sutilezas escolásticas, mas consequências imediatas das relações que devem existir entre res e sacramentum através das tensões transitórias. E tudo isso se aplica com muita precisão ao sacramento da Igreja.
A escala de São Tomás (I) se coloca do ponto de vista da res da Igreja, da comunicação de glória, graça ou fé que difunde a vida de Cristo: ela classifica os membros reais do Corpo de Cristo; enquanto a segunda, baseada em graus visíveis, estabelece a hierarquia dos membros sacramentais. É claro que o sacramentum da Igreja é a expressão, não apenas obrigatória por preceito, mas orgânica e espontânea, da realidade da graça, devido à condição do homem como ser material e social, e devido à instituição divina da Encarnação. Isso, como acabamos de ver, é uma quase-identidade. Mas sacramento e realidade só se identificarão plenamente na Igreja celestial; enquanto isso, alguém que não seja membro no plano sacramental, por não cumprir as condições visíveis indicadas na encíclica, ainda pode sê-lo no plano real, de forma analógica[22]: e essa realidade de graça criada pelo próprio fato gera um desejo, uma necessidade, pelo menos implícita, da expressão sacramental visível, comunitária e completa.
É evidente que, em tudo isso, a terminologia permanece livre; é possível recusar dizer que a Igreja é um sacramento, que o indivíduo é um membro real dela; pois é possível aderir ao vocabulário moderno e restringir estritamente o uso dos termos. O que importa é compreender a profunda analogia entre a estrutura da Igreja e a dos sacramentos, entre a comunicação da vida sobrenatural e a comunicação da vida sacramental. A analogia dos conceitos normalmente leva à analogia do vocabulário; no entanto, em questões desse tipo, o uso comum é um fato que talvez seja melhor não forçar.
Não haveria nenhum inconveniente, do ponto de vista apologético, em reconhecer que um "não-católico" pode ser, de forma analógica e imperfeita, membro da Igreja, pois a escala I é, por definição, incontrolável, donde securi esse non possunt[23] e, acima de tudo, uma vez que a vida tende a se expressar plenamente no sacramento, pelo qual, aliás, normalmente é adquirida e intensificada, ninguém pode rejeitá-la como base para sua recusa: isso seria estritamente contraditório.
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A escala dos sacramentos exige agora um estudo mais aprofundado. No próprio plano visível, há de fato não-católicos que participam de um ou outro dos seus graus: profissão de fé, sacramentos, hierarquia. Em que aspecto sua situação difere da dos infiéis e dos católicos? Os batizados, mesmo excomungados, mantêm uma ligação visível com a Igreja, especialmente se ainda preservam alguns símbolos cristãos.
Mons. Journet[24] gostaria que eles também fossem da Igreja apenas de voto, mas que sua pertença por desejo se realizasse de maneira análoga, de forma mais perfeita do que para os infiéis. No entanto, é difícil ver em que o desejo interno, geralmente implícito, do catolicismo difere de uns para os outros; é, ao contrário, no plano visível que ocorre a separação. Dom Lialine[25] prefere a expressão: "membro visível e potencial". Pode-se tratar da pura potencialidade, que não é visível e, aliás, também é encontrada entre os pagãos? Se a fórmula visa destacar a visibilidade em ato imperfeito, com uma grande margem de potencialidade, ela parece ser excelente.
Com base no que foi adquirido até agora, no entanto, ainda pode ser esclarecido.
Ao qualificar nossa escala II como hierarquia sacramental, simplificamos demais. Certamente, os sacramentos formam a estrutura básica, mas, ao nos inspirarmos na encíclica, expressão de uma longa tradição, tivemos que adicionar duas etapas extremas: por um lado, a profissão de fé, por outro, o pontificado supremo, caracterizado pela jurisdição. Além disso, se analisarmos na íntegra os textos de São Paulo, dos quais citamos fragmentos, encontramos listas de diversos carismas a serviço da comunidade[26], entre os quais apenas a autoridade apostólica desempenha um papel de destaque.
Sem nos determos muito, notemos que, para São Paulo, os carismas não são tanto fenômenos extraordinários e miraculosos, mas manifestações do Espírito na edificação da comunidade; portanto, eles se encaixam perfeitamente nessa "ordem sacramental", manifestação na terra da operação divina, da qual falamos anteriormente[27]; a Tradição, com o tempo, reflexão e experiência, gradualmente marcará seu respectivo lugar; mas, o destaque dado entre eles ao poder pastoral, à jurisdição, é firmemente apoiado na doutrina do Apóstolo, que não via na anarquia um fruto do Espírito[28].
Essa progressão visível é, portanto, totalmente sacramental, no sentido amplo. Uma vez estabelecido isso, é importante notar que os sinais que a compõem não são degraus isolados que se sustentam por si mesmos, uma soma de elementos heterogêneos e independentes. É dito, sem dúvida: "Ore confessio fit ad salutem”; mas em outros lugares acrescenta-se: "Qui crediderit et baptizatus fuerit" e ainda: "Nisi manducaveritis carnem"; e por fim: "Qui vos spernit, me spernit". Cada ponto é, portanto, necessário para a salvação. Em vez de ser uma soma, trata-se de um produto que é anulado pela anulação de um único fator. E isso não é suficiente para dizer, pois os fatores são interdependentes: qualquer ruptura da unidade coloca em perigo a integridade da fé, que deve ser coberta pelo magistério vivo; mais cedo ou mais tarde, as perturbações na fé repercutirão no significado atribuído aos sacramentos e na liturgia... Às vezes, é necessário muito pouco tempo para realizar esse processo de desintegração e tornar evidente a interdependência dos diversos graus sacramentais[29]; isso ocorre porque eles também são membros de um corpo orgânico e, mesmo que pareçam intatos, não sobrevivem a uma ruptura. "Quem não está comigo está contra mim".
Felizmente, essa interdependência atua nos dois sentidos, como é dito em outro lugar, a respeito daquele que invoca o nome de Cristo fora do grupo dos Apóstolos: "Quem não é contra nós é a nosso favor". A mesma relação orgânica dos sacramentos entre si, que anula, para todos, o valor sacramental assim que um deles é anulado, preserva em troca algo do caráter visível da Igreja entre os dissidentes. Os graus inferiores que eles pretendem ter preservado implicam, de fato, o mais alto. A criança batizada "vive" sem ainda ter comido a carne de Cristo, porque seu batismo manifesta que ela aguarda e deseja a Eucaristia; o sacerdócio universal dos fiéis é necessário para eles e lhes basta, porque está correlacionado com o sacerdócio do padre; a ordem em si tem múltiplas relações com a jurisdição... Os dissidentes quiseram rejeitar este ou aquele elemento, mas pelo simples fato de afirmarem seriamente guardar outro, eles manifestam inconscientemente que não compreendem e não querem o cisma; sua profissão de fidelidade a Cristo e à sua vontade objetivamente implica uma vontade de unidade e apostolicidade; e isso, independentemente de qualquer suposição caritativa quanto às suas disposições secretas. Se eles têm o amor de Cristo, eles são seus membros no plano real, assim como pagãos ou católicos em caridade: é outra questão. De qualquer forma, eles têm um vínculo visível, porém imperfeito, com a Igreja; essa é a característica de sua posição.
No entanto, essas observações não podem se limitar aos indivíduos em seu isolamento; assim que encontramos sinais externos e visíveis do Corpo de Cristo, o problema se torna social. A profissão de fé, ou pelo menos a Bíblia, que fornece a esses dissidentes alguma doutrina "cristã", é de uma comunidade que eles a receberam, é em uma comunidade que eles a professam, mesmo que não queiram admitir; e essa comunidade a recebeu da própria Igreja. A fortiori, no caso do batismo. Todo batismo, sem dúvida, é católico, e o pastor que tivesse a intenção formal apenas de introduzir em sua seita não batizaria; ainda assim, ele significa a entrada na Igreja através da entrada em uma "família" local dessa Igreja: padrinho, ministro, comunidade; é essencial para o sacramento significar hic et nunc, se não apenas a cruz de Cristo seria suficiente.
A situação é clara, especialmente em relação à Eucaristia: um único pão, um único corpo, através da terra e do céu, evidentemente; mas, antes e concretamente, para aqueles que se sentam à mesma mesa e partilham a mesma hóstia. Em suma, os mesmos elementos que constituem os dissidentes como membros imperfeitos do Corpo também os constituem como comunidades[30]. Quanto à situação dessas comunidades, a que pertencem como corpo? Pertencem à Igreja?
Não pode ser uma teoria dos "ramos", onde a Igreja Católica e as comunidades cismáticas seriam colocadas no mesmo nível, ou quase. Uma eclesiologia desse tipo pode ser adequada a uma teologia liberal, onde Cristo não previu, instituiu ou preservou nada; ou a uma teologia puramente escatológica, onde o Reino de Deus ainda não é realizado de forma alguma. Para nós, isso é inaceitável, pois pressupõe a ruína da obra de Cristo.
No contexto das reflexões propostas anteriormente, poderíamos considerar as comunidades dissidentes como membros de Cristo em um sentido analógico, na medida em que não estão separadas da Igreja, permanecem cristãs e católicas; não como ramos paralelos e rivais, apesar das aparências. Não se trata de opor as duas Igrejas independentes de Antioquia e Roma, mas de comparar a Igreja de Antioquia antes e depois do cisma, ou a Igreja de Antioquia e a Igreja de Milão, para identificar os elementos comuns que ainda demonstram um parentesco, senão uma fraternidade.
No caso de sociedades puramente jurídicas, a questão não se colocaria; se alguém não preenche as condições estabelecidas nos estatutos, permanece estranho a elas. No entanto, mesmo em termos humanos, algumas sociedades não são meramente convencionais, mas expressão, de forma mais ou menos artificializada, de uma comunidade natural. Pode acontecer que um indivíduo ou grupo, por circunstâncias, seja privado do que o deveria unir aos outros membros ou às autoridades constituídas, mas ainda mantenha algo em comum com eles. Por exemplo, uma província separada involuntariamente de sua pátria, um ducado em rebelião, mesmo culpado, contra o rei, dois sindicatos que dividem a classe trabalhadora... Através das lutas e oposições, a consciência de um bem comum pode persistir clara e, às vezes, efetiva, como por exemplo contra um terceiro. No entanto, a unidade do Corpo de Cristo é muito mais sólida e bem definida do que essas comunidades nacionais ou de classe. É verdade, por outro lado, que encontramos um primado de instituição divina nessa unidade, e essa é uma diferença fundamental. No entanto, isso não é suficiente para romper toda analogia, porque essa diferença se refere à ilegitimidade do cisma, que não questionamos, e não à possibilidade, que ele permite, de uma pertença imperfeita à comunidade, fora dos laços normais e societários.
***
O Pe. Congar levanta aqui uma objeção. "Se pudéssemos dizer que os dissidentes, considerados individualmente, podem ser membros da Igreja Católica, isso seria devido à sua boa fé, ou seja, a uma realidade da ordem moral. Mas não se pode falar de boa fé ou de ato moral, pelo menos em termos estritos, para um grupo, uma instituição, um corpo sociológico considerados como tais, que não são pessoas[31]".
A observação é pertinente, não podemos falar da boa fé de uma sociedade; mas isso era necessário? Já precisamos distinguir entre a pertença totalmente invisível à realidade da Igreja, que depende da boa fé e da graça, e a pertença imperfeitamente visível, que é o caso do dissidente como tal; nesse sentido, por exemplo, um grego ortodoxo está mais próximo da Igreja do que um protestante, independentemente de suas virtudes e caridade. É nesse aspecto que devemos considerar os títulos, sociais e visíveis, das comunidades.
Qual a dificuldade do Pe. Congar? A comunidade que cometeu um ato de cisma; seria necessário "algo como boa fé" para compensar os efeitos destrutivos desse ato, torná-lo imperfeito. No entanto, uma comunidade não tem consciência secreta na qual se possa basear probabilidades caridosas para esse propósito; uma comunidade se compromete e deve ser julgada por seus atos oficiais.
Sim, é verdade. Mas e se os atos oficiais da comunidade se contradizem e não podem ser objetivamente realizados ao mesmo tempo? Aqui encontramos novamente a interdependência dos sacramentos, mencionada anteriormente em relação aos indivíduos[32]. Na verdade, é a comunidade como um todo que professa querer manter um elemento católico e rejeitar outro, rejeitando este último na esperança de melhor manter o primeiro, sem perceber que eles estão interligados.
Nesse caso, o que acontece? Poderíamos dizer que um aspecto dos documentos oficiais é puramente fictício, uma máscara destinada a melhor introduzir a heresia. No entanto, é muito raro que a história possa demonstrar isso de forma positiva. Uma vez que as duas pretensões não puderam ser realizadas juntas, resta supor que a abolição de certos elementos prejudicou o que parecia estar sendo preservado, como aliás a história geralmente se apressa em mostrar. Por outro lado, aquilo que religiosamente se desejava preservar conservou implicitamente algo daquilo que se pensava estar eliminando, e em particular, um vínculo imperfeito com a Igreja visível e sua hierarquia, o que também a história acabou por manifestar posteriormente. Pense nos movimentos de Oxford! Essa vontade mal expressa evolui, escapando de todo esforço de apreciação humana; e, correlativamente, evolui o "valor eclesial" da comunidade, elevando-se, sob a ação do Espírito, na medida em que se delineia explicitamente um movimento em direção à unidade, a fim de recuperar, se for da vontade de Deus, seus cem por cento, sua vida e sua saúde, no próprio ato de reunificação. Essa situação, enquanto isso, é essencialmente fluida, sobre a qual seria em vão tentar fazer um julgamento teológico definitivo in individuo.
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As comunidades separadas ainda podem pertencer à Igreja de maneira imperfeita, porque o vínculo orgânico e objetivo dos "sacramentos" entre eles impede a objeção que se poderia levantar a respeito da aparente destruição dos graus superiores da escala sacramental.
Elas podem pertencer, mas, de fato, elas mantiveram algum caráter eclesial?
Elas devem tê-lo mantido. Isso decorre da mesma interdependência dos sacramentos, que, mais do que nos sacramentos entre si, se aplica à sua relação com o sacramento principal, a Igreja. Aqueles que mantiveram todos os graus também mantiveram, de maneira mais ou menos perfeita, a escala.
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De fato, dos sacramentos que indiscutivelmente eles mantiveram, não preservaram apenas a aparência exterior, mas algo de seu valor sagrado: profanado, se quiserem, desfigurado, violado, mas não abolido. Essa doutrina foi mencionada anteriormente: na ordem do mundo terreno, uma tensão pode ocorrer entre res e sacramentum, e a objetividade e a necessidade dos sacramentos resultam em duas consequências: as substituições provisórias do desejo e, por outro lado, a existência de um efeito sobrenatural, independente de qualquer obstáculo eventual, que é vestido com o peso do nome de sacramentum e res, ou, em certos casos, de caráter. Embora a opinião comum dos teólogos estenda ao sacramento da Igreja a doutrina das substituições do desejo, pouca atenção foi dada ao estudo da aplicação do segundo ponto, que é correlato a isso.
Quando uma comunidade rompe com a unidade católica, enquanto mantém as formas exteriores[33] (sacramentum tantum), ela estabelece um obstáculo, um pecado comunitário, que a impede de ser, como deveria ser, membro do corpo de Cristo no nível da res tantum. No entanto, não se pode negar que ela mantém um valor sobrenatural, um efeito dos sacramentos que a constituem; uma consagração invisível que a separa das sociedades profanas, exige seu retorno à unidade e produz seus efeitos de graça em cada membro de boa vontade, onde o desejo implícito de unidade suprime o obstáculo. Uma sociedade formalmente composta por batizados, dirigida pelo poder da ordem, até mesmo possuindo certa jurisdição[34], não teria nada de sagrado, nada de cristão, nenhuma responsabilidade particular diante de uma vocação divina, nenhum papel nas graças que seus membros recebem, ou no pecado ao qual eles se obstinam?
Sem estar acima de qualquer discussão, esse caráter eclesial das comunidades cristãs aparentemente merece ser considerado no julgamento teológico. Vamos tentar fortalecer o argumento, mostrando que as comunidades de fato mantiveram esse caráter.
Isso fica especialmente evidente na atitude da Igreja em relação aos cismáticos. Diante das "ortodoxias" orientais, Roma não age como em terras de missão, onde é necessário estabelecer a Igreja e converter individualmente um punhado de pessoas.
O Pe. Congar reuniu diversos textos oficiais recentes que se esforçam para manter, com toda a reflexão necessária, a denominação de Igrejas separadas[35]. Além disso, ao examinarmos a história cristã, encontramos muitos exemplos de cismas locais que foram superados por meio de reuniões em comunhão. Muitas outras tentativas fracassadas também testemunham essa atitude prática da Igreja, que reconhece a existência de corpos eclesiasticamente organizados, embora de forma irregular e contrária aos cânones. Pouco foi feito para compreender teologicamente esse fato importante, relacionando-o com os princípios consolidados da doutrina da Igreja e esclarecendo suas condições. Isso implica que o magistério tome uma posição em relação aos separados, considerando sua valorização positiva e visível como cristãos, que é um complemento indispensável às advertências sobre os perigos, que só podem abordar o aspecto formal dos cismáticos e rebeldes.
Outro fato, de autoridade menor, certamente não pode ser totalmente negligenciado e também pesa na mesma direção: é a experiência dos cristãos separados mais fervorosos, que demonstram um grande apego às suas igrejas, nas quais e por meio das quais eles acreditam ter recebido a vida sobrenatural. Sua postura no movimento ecumênico é muito significativa nesse sentido. Lá, pede-se a cada um que cresça em sua própria tradição, sem desviar ninguém da sua; o que seria considerado um proselitismo desleal. Espera-se que as diferentes tradições se enriqueçam tanto pela fidelidade às suas fontes quanto pelo estímulo resultante dos contatos e da simpatia recíproca, para se unirem um dia, pela graça de Deus, em uma comunhão máxima. A doutrina subjacente é o reconhecimento de cada confissão de sua própria imperfeição essencial, ao mesmo tempo em que afirma seu valor como Igreja. Um católico obviamente não pode compartilhar pessoalmente dessa postura, porque sua situação eclesiológica é diferente. No entanto, nada o obriga a rotular como erro, nos seus irmãos separados, essa consciência paradoxal, por vezes trágica, por vezes heróica, quase sempre generosa. Ele pode considerá-la não apenas sincera, mas fundamentada em sua situação e, longe de contradizer, apesar das aparências, o testemunho de catolicidade da Única Igreja.
***
Em resumo, a Igreja, realidade escatológica já presente por antecipação, apresenta uma dualidade de aspectos que são explicados muito melhor pelos conhecidos esquemas da teologia sacramental: como sacramento, só se participa dela evidentemente em certas condições visíveis; como plenitude de vida sobrenatural, ela é realizada em qualquer lugar onde a graça de Cristo está em ação. Encarnada em um mundo de ignorância e pecado, ela sofre uma tensão entre seu sacramento e sua "realidade", tensão que só será reduzida quando os véus caírem.
Essa tensão pode ser tão intensa que, às vezes, o sacramento subsiste de forma visível, porém imperfeito, em comunidades que afirmam reter apenas parte dos elementos constitutivos da Igreja. É impossível compartilhar apenas alguns elementos, pois todos os elementos subsistem correlativamente, mesmo que estejam afetados e corroídos. A ausência total de um deles, como a comunhão eclesiástica, dissolveria obviamente todo valor eclesial. No entanto, essa ausência não é total, e o cisma permanece imperfeito onde se professa sinceramente o desejo de preservar outros elementos que objetivamente implicam nos anteriores. Portanto, não há, apesar das aparências, um cristianismo não católico; as duas definições se sobrepõem. Um perece na medida em que o outro é rejeitado, mas o outro subsiste na medida em que o primeiro é salvo. E o movimento que impulsiona os membros separados em direção à unidade é o sinal mais claro da vida real que ainda os anima e da santa vocação que lhes é dirigida de completar Cristo.
***
Ainda resta confessar o inesperado de uma conclusão: a ideia de um sacramento realizado analogicamente, de forma imperfeita. No entanto, os problemas levantados por essa hipótese só poderiam ser abordados de forma útil no final de um estudo muito delicado de teologia positiva, sobre as relações entre os sacramentos, a Igreja e a jurisdição.
A teologia medieval fez grandes progressos no estudo de cada sacramento isolado, de suas relações com o sujeito, a forma e a matéria. Ela se baseia principalmente em uma evolução, das quais as duas crises mais graves foram a controvérsia batismal do século III e a reforma gregoriana do século XI, e que resultaram nas duas categorias jurídicas ocidentais de validade e licitude. Mas a ilicitude dos sacramentos fora da Igreja é apenas a consequência moral de uma deficiência estrutural? O sacramento é essencialmente um sinal, um sinal da incorporação a Cristo e da unidade de todos os membros; nenhum sacramento escapa a essa lei: símbolo de fé, batismo, eucaristia, ordem, jurisdição... até mesmo os ritos extremos que introduzem na Igreja celestial! No entanto, esse sinal, embora não seja aniquilado, é evidentemente distorcido e desviado no cisma. Assim, a própria teologia latina, com sua categoria de ilicitude, atesta uma realização imperfeita do sacramento, abstendo-se de examinar seu modo e nuances. As próprias hesitações da antiga tradição são sintomáticas[36]; e, com as distinções que estabelecemos, poderíamos concordar muito com a teologia arcaica de São Cipriano, segundo a qual a Catholica é o lugar de todos os sacramentos.
A disciplina oriental, por sua vez, conservou o princípio da economia[37]. Para a teologia ortodoxa, os sacramentos só são administrados dentro da Igreja; fora dela, sua validade não é reconhecida. No entanto, nessas condições deficientes, algo é potencialmente estabelecido, de modo que, ao se concretizar no ato eventual de uma reunião e ao ser reintegrado à Igreja, dispensa a necessidade de uma reiteração do sacramento. Isso foi claramente declarado, por exemplo, em relação às ordenações anglicanas, em Atenas em 1939[38], e em 1948[39], na Conferência de Moscou: verifica-se que seu significado não é garantido por uma fé sacramental firme, que pressuporia uma doutrina bem definida e ortodoxa, enquanto os formulários oficiais são voluntariamente imprecisos ou contraditórios; ninguém está qualificado para sair dessa situação senão por meio de declarações privadas.
Essa é, em essência, a principal objeção dos católicos, a dúvida invencível sobre a intenção da Igreja Anglicana[40], não apenas em suas origens, mas até os dias de hoje, independentemente das convicções pessoais de qualquer consagrador. No entanto, a resolução de Moscou termina assegurando que, de acordo com o princípio da economia, a hierarquia anglicana pode receber o reconhecimento de suas ordens por parte da Igreja Ortodoxa, desde que seja estabelecida previamente uma unidade formal de fé e confissão. O que há de tradicional nisso, que obviamente não poderia ser introduzido em nossas categorias sem uma análise rigorosa, abriria espaço para hipóteses imprevistas na época da Apostolicae Curae e, ao mesmo tempo, mantendo as constatações de Leão XIII, facilitaria o trabalho de reunificação.
Isso é apenas um exemplo dos problemas que surgem quando percebemos que, de forma misteriosa, o Corpo de Cristo se estende ativamente por todo o universo. É um mistério no qual Deus deseja confirmar todos aqueles que O invocam em Jesus Cristo. É importante reconhecer a grandeza e a complexidade desse mistério e buscar compreendê-lo e vivê-lo plenamente em nossa relação com Deus e com os outros.
Clervaux
(G.D. Luxemburgo)
J. GRIBOMONT. O. S. B.
[1] Uma excelente crítica é feita por M. J. Congar em seu livro "Chrétiens désunis", Paris, 1937, página 281. O autor conclui: "Não estamos criticando o vocabulário, pois está claro que é necessário, de uma maneira ou de outra, fazer a distinção que ele abrange". Ver também Ch. Journet, L'Église du Verbe incarné, I, Paris, 1941, páginas 43-47.
[2] V. Morel, "Le Corps mystique du Christ et l'Église Catholique Romaine", dans la Nouvelle Revue Théologique, LXX (1948), pp. 703-729.
[3] Ibid., p. 709.
[4] Cl. LIALINE, Une étape en ecclésiologie (Extrait d'Irénikon, XIX-XX), p. 73-74.
[5] M. D. KOSTER, Ekklesiologie im Werden, Paderborn, 1940, p. 93 sv
[6] Cf. N. OEHMEN, L'ecclésiologie dans la crise,dans Questions sur l'Église et son Unité, Gembloux, 1943, p. I-II.
[7] Chrétiens désunis, p. 282.
[8] Acta Apost. Sedis, XXXV (1943), p. 243. A. CHAVASSE desenvolveu o seu ponto de vista na Nouvelle Revue Théologique, LXX (1948), p. 690-702.
[9] L. l, p. 703.
[10] A evolução da expressão foi estudada por E. MERSCH em "Le Corps Mystique du Christ", Paris, 1936, e também por S. TROMP em "Corpus Christi quod est Ecclesia, I, Introductio generalis", Roma, 1947. Este último, por estar muito ligado a uma tese específica, infelizmente se fecha para a compreensão simpática daqueles Padres que complementariam seu ponto de vista.
[11] O Padre Morel não percebe que, em suas análises teológicas, ele relaciona sua noção "paulina" do Corpo Místico com as noções de fé, caridade e Igreja, com toda a precisão que elas adquiriram por meio da evolução da teologia; resultando em uma síntese bastante heterogênea. Na verdade, onde ele vê o Apóstolo reconhecendo que pagãos de boa fé têm caridade ou a qualidade de membros de Cristo?
[12] Cf. L. CERFAUX, La Théologie de l'Église suivant saint Paul, Paris, 1942, p. 213-228 e 260-268.
[13] Este ponto, negligenciado na teologia pós-tridentina, foi enfatizado por Cl. LIALINE, na obra citada, página 59.
[14] Santo TOMÁS, Suma Teológica, III, VIII, 3.
[15] A. A. S., l. c., p. 202.
[16] Ibid., p. 211.
[17] Ibid., p. 202-203.
[18] Cf. M. D. KOSTER, o. l, e A. HAGEN, Die kirchliche Mitgliedschaft. Rottenburg, 1938.
[19] M. J. SCHEEBEN, Die Mysteriu des Christentums, trad. A. KERKVOORDE, Le Mystère de l'Église, Paris, 1940, Introduction, p. 50-54; § 5, p. 99-109; Appendice X, p. 171-172; "e sobretudo A. STOLZ, Scheeben und das Mysterium der Kirche, em Der katholische Gedanke, 1935, p. 116-124; o mesmo, Manuale theologiae dogmatique, VII, De Ecclesia, Fribourg, 1939, p. 14-16; M. J. Congar, Esquisses du mystêre de l'Église, Paris, 1941, p. 30-35, 85-89, 108. H. DE LUBAC, Catholicisme, Paris, 1938, p. 51-57, oferece insights muito sugestivos sobre o pensamento patrístico. E. MERSCH, La théologie du Corps mystique, II, Paris, 1946, ch. XIX, sobretudo p. 270-281, apresenta a síntese especulativa.
[20] Cf. L. CERFAUX, o.l., p. 292-293, 304. - Este não é o lugar para fazer mais do que mencionar essas fontes autênticas da corrente tradicional.
[21] O teólogo que melhor demonstrou essa necessidade é, sem dúvida, L. Billot em sua obra "De Ecclesia Sacramentis", volume II, Roma 1896, páginas 95-105.
[22] Infelizmente, a formulação: membre re ou sacramento usa o mesmo termo que a distinção inversa de "voto" e "re". A autoridade teológica do primeiro termo e a precisão que ele estabelece na análise parecem justificar uma preferência a seu favor, desde que seja especificado o suficiente para evitar qualquer mal-entendido. Os dois vocabulários coexistem pacificamente há muito tempo na teologia sacramental.
[23] Encíclica Mystici Corporis, A. A. S., l.c., p. 243
[24] O. L, I, p. 50-51. De méme P. A. LIÉGM,, L'Appartenance à l'Église et l'encyclique Mystici Corporis Christi, Revue des sciences philosophiques ei théologiques, XX XII (1948), p. 355: pertença invisível à única Igreja espiritual e visível.
[25] O. l, p. 74.
[26] Esses carismas, todos eles, pressupõem a recepção do batismo e da Eucaristia.
[27] No mesmo sentido, a profissão de fé pode ser considerada como o sacramento que expressa, transmite e provoca no discípulo a adesão da fé interior.
[28] Para obter informações detalhadas sobre os carismas em relação à Igreja, recomenda-se consultar as excelentes observações de Cl. Lialine em "The Holy Ghost and the Mystical Body of Christ" no Eastern Churches Quarterly, 1948, páginas 69-94.
[29] O Padre CONGAR, em "Chrétiens désunis", página 302, negligenciou essa interdependência. Pelo contrário, consulte Ch. JOURNET, na obra citada, página 52.
[30] O papel da comunidade local como célula visível da Igreja tem sido negligenciado aos poucos, devido às lutas necessárias para a defesa da unidade universal. Sobre seu lugar na Igreja antiga, consulte, por exemplo, L. CERFAUX, o. l, página 92; G. BARDY, La théologie de l'Église de saint Clément de Rome à saint Irénée, Paris, 1945, página 55. Pela Encarnação, a vida divina penetrou até mesmo no tempo e no espaço, hic et nunc.
[31] M. J. CONGAR, Chrétiens désunis, p. 301
[32] Cf. p. 352.
[33] Na medida, relativa, mas real (para todos os elementos) indicada anteriormente, p. 361.
[34] Cf. Ch. JOURNET, o. l., p. 617-621.
[35] Chrétiens désunis, Appendice VI, p. 381-382.
[36] Muitos fatos sugestivos são agrupados pelo Mons. E. AMANN em seu artigo "Réordinations" no Dictionnaire de Théologie Catholique, edição de 1937, nas colunas 2385-2431, com uma boa bibliografia.
[37] Essa doutrina não é especificamente cismática, mas foi esboçada desde a antiguidade, especialmente em relação ao batismo dos hereges. Consulte C. H. Turner, "Apostolic Succession: The Problem of Non-Catholic Orders", em Essays on the Early History of the Church and the Ministry, Londres 1915, p. 143-196. Uma antiga coletânea parece já ter reunido textos patrísticos favoráveis a essa atitude: E. Schwartz, "Codex Vaticanus gr. 1431: Eine antichalcedonische Sammlung aus der Zeit Kaiser Zenos" (Abhandlungen der Bayerischen Akademie der Wissenschaften, Philologisch-historische Klasse, XXXII, 2), Munique, 1927, especialmente consulte a página 94.
[38] Consulte P. Dumont, "Anglicans et Orthodoxes", em Pères de l'Église, Nouvelle série, Vol. 1940, p. 59-62, 69-74, 76-77. Esta é, pelo que sabemos, o estudo mais acessível sobre essa questão da economia.
[39] Consulte, por exemplo, o Church Times de 3 de setembro de 1948, páginas 493 e 494.
[40] Independentemente da imprecisão dogmática do anglicanismo, ele sempre teve a intenção mínima de transmitir uma hierarquia tradicional, diferente do ministério presbiteriano. Essa intenção pode ser suficiente para transmitir aquilo que se pretende transmitir, nem mais, nem menos. Além disso, de forma indireta, o "aperfeiçoamento" da fé em uma comunidade pode remediar dificuldades que pareciam irremediáveis. Por exemplo, o movimento da Alta Igreja levando o anglicanismo à intercomunhão com os Velhos Católicos ou os Orientais, o que pode resultar em um enriquecimento das ordenações.
FONTE: J. GRIBOMONT., O.S.B., Du sacrament de l'Église et de ses réalisations imparfaites. Essai de théologie du Schisme. IRÉNIKON, Tome XXII. 4 trimestre 1949, pp. 345-367.
Capítulo V
Igreja e Estado
I. Observações Preliminares
A relação entre Igreja e Estado é um problema delicado, prático e complexo. Delicado porque toca duas das mais profundas lealdades do homem: o patriotismo e a religião. É um problema prático: não se restringe à esfera silenciosa e erudita da especulação teológica ou filosófica. É um problema complexo: sua solução adequada envolve três ou quatro ciências distintas – teologia, direito canônico, ciência política e história. Nenhuma dessas ciências pode se dar ao luxo de negligenciar as outras ao escrutinar este problema [Nota: Embora cada uma dessas ciências tenha algo a contribuir para uma adequada compreensão e solução desse problema, o teólogo terá em mente que a teologia, além de ciência, é uma sabedoria. Funcionando precisamente como uma ciência, só poderia contribuir com sua própria visão especial do assunto; mas funcionando como uma sabedoria, pode lançar luz sobre as outras ciências. Tem um ponto de vista superior e pode discernir quando outra ciência está ultrapassando seus próprios limites. Para um artigo recente e interessante sobre o funcionamento da teologia como uma sabedoria, veja William O'Connor, "The Grandeur and Mistery of Theology", CTSA (1955). págs. 285-94]. Finalmente, é um problema explosivo porque envolve pessoas vivas que se sentem fortemente sobre o assunto e muitas vezes partem de princípios diametralmente opostos. A devoção à verdade não nos dá o direito de pisotear impiedosamente os sentimentos alheios; mas a caridade para com o próximo não justifica qualquer adulteração da verdade. De fato, um problema delicado.
Para evitar confusões e discussões desnecessárias, deve-se deixar claro o que será tratado aqui e o que não será.
O primeiro ponto a ser notado é que estamos aqui preocupados principalmente em afirmar os princípios teológicos envolvidos. Assuntos principalmente históricos, políticos ou canônicos serão mencionados apenas na medida em que estejam necessariamente interligados com uma apresentação teológica adequada. [Nota: Para um tratamento desse assunto do ponto de vista da filosofia política, ver Jacques Maritain, Man and the State; para uma excelente apresentação canônica do problema, ver L. Bender, Jus publicum ecclesiasticum (1948); para alguns antecedentes históricos sobre o problema Igreja-Estado do século XIX, ver E. E. Y. Hales, Pio Nono].
Em segundo lugar, estamos preocupados com os princípios que regem o relacionamento entre o Estado e a Igreja Católica Romana; não a relação entre o Estado e as Igrejas não católicas. A doutrina católica não discute este último ponto. [Nota: Bender, op. cit., pág. 200].
Em terceiro lugar, não estamos exclusivamente nem principalmente preocupados com o problema Igreja-Estado nos Estados Unidos da América. Este problema existiu por 1400 anos antes da América ser descoberta e provavelmente continuará por séculos depois que a civilização americana desaparecer como outras antes dela. Nossa preocupação é delinear os princípios imutáveis pertinentes a qualquer época e que admitem aplicação analógica [Nota: Sobre este ponto ver Maritain, op. cit., pp. 156-57] às mais diversas situações. Devemos, no entanto, dedicar algum espaço à situação americana para o bem de nossos leitores americanos. Nosso objetivo nesta seção será duplo: (1) acalmar os medos honestos, mas equivocados, de muitos americanos não católicos - medos gerados em grande parte por uma caricatura da doutrina da Igreja conforme apresentada nos escritos de fanáticos; (2) para mostrar que não há incompatibilidade entre os princípios católicos e as tradições queridas desta terra, e nenhuma inconsistência entre o pensamento e a prática católica, desde que os princípios católicos sejam entendidos em todo o seu delicado equilíbrio. Este assunto aparecerá em duas scholia intitulados respectivamente: A posição dos não-católicos em um estado católico, e, Onde o "ideal" é inatingível.
Divisão de tratamento. Como se trata de uma discussão teológica, vamos primeiro considerar o magistério da Igreja para ver seu ensinamento positivo sobre esse problema. Em segundo lugar, daremos uma avaliação da força vinculante desse ensinamento.
Bibliografia Especial para Igreja e Estado
Livros e Documentos
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PIUS XII. Encyclical: On the Function of the State in the Modern World, (Summi pontificatus, October 20, 1939); Christmas Message, Dec. 24, 1944; allocution to the Sacred College: Catholics and World Reconstruction, (Ancora Una Volta, June 1, 1946); Address to Catholic Lawyers of Italy, (Ci Riesci, Dec. 6, 1953); Address to Historians, (Sept. 7, 1955).
RUNCIMAN, S. The Medieval Manichee. Cambridge, 1955.
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Artigo I
ENSINO DA IGREJA
I. Ensinamento Positivo da Igreja conforme encontrado no Magistério Ordinário
Ensinamento de Leão XIII
II. Princípios teológicos baseados nos ensinamentos de Leão
III. Princípio 1:
Deus é o autor de toda autoridade verdadeira, tanto civil quanto religiosa.
IV. Princípio 2:
Igreja e Estado são sociedades realmente distintas. Cada um é uma sociedade completa e independente em sua própria esfera.
V. Princípio 3:
Igreja e Estado não devem ser hermeticamente isolados um do outro. Eles devem cooperar pacificamente para benefício mútuo.
Scholion: O "Poder Indireto" da Igreja
VI. Princípio 4:
A Igreja transcende o Estado pela nobreza de sua natureza e de sua finalidade.
VII. Princípio 5:
Um estado realmente católico é per se obrigado a fazer profissão pública de catolicismo.
Significado do Princípio
Scholion 1: A posição dos não-católicos em um estado católico
Scholion 2: Onde o relacionamento "ideal" não é obtido
Artigo I
ENSINO DA IGREJA
I. Ensinamento Positivo da Igreja conforme encontrado no Magistério Ordinário
O Concílio Vaticano pretendia discutir o problema da Igreja e do Estado, mas foi interrompido antes que tivesse tempo de considerar o assunto. O ensinamento da Igreja encontra-se, portanto, no magistério ordinário do Papa. Os lugares clássicos são principalmente, embora não exclusivamente, as encíclicas de Leão XIII. Pio XI e Pio XII precisaram ainda mais alguns pontos do ensinamento de Leão, reiterando-o em substância.
Ensinamento de Leão XIII
Antes de resumir os pontos ensinados por Leão, é importante notar que Leão se preocupa principalmente em afirmar qual é a relação ideal que deve existir entre a Igreja Católica e um Estado Católico [Nota: O termo inglês "estado" é, no mínimo, ambíguo. Pode significar qualquer coisa, desde uma massa amorfa de pessoas em uma determinada localização geográfica até o alto escalão do governo. Ao contrário, a língua latina tem quatro ou cinco palavras diferentes para designar as várias noções incluídas no significado de "Estado". Segundo Etienne Gilson: "do ponto de vista do uso do inglês, a palavra Estado é empregada corretamente na maioria das passagens das encíclicas. A palavra significa tanto o corpo político" quanto o que Jacques Maritain descreve como "aquela parte do corpo política especialmente preocupada com a manutenção da lei, a promoção do bem comum.'" Veja Gilson, tarifa e ordem pública e a administração de assuntos públicos." The Church Speaks to the Modern World (New York, 1954), p. 28. Gilson tem o cuidado de apresentar as nuances exatas dos vários termos latinos, "res publica", "civitas", "civilis potestas" etc. Pela delineação cuidadosa de Maritain das diferenças entre "nação", "estado", "corpo político”, etc., ver Man and the State (Chicago, 1951) pp. 1-12. Embora alguns filósofos políticos possam contestar o uso deste ou daquele termo para cobrir o mesmo conteúdo conceitual, não se pode negar a necessidade de distinções nesta questão de vocabulário político, nem a clareza de Maritain em precisar e justificar sua terminologia. Quanto ao termo "um estado católico", não é preciso cair na armadilha de reduzi-lo a um conceito puramente estatístico. Não é apenas uma questão de contagem: 90% faz um estado católico; menos de 90% um estado "pluralista". Analogamente, ninguém seria tentado a negar que existe uma Inglaterra apenas porque um grande grupo de irlandeses imigrou para Manchester; nem que exista uma realidade chamada América apenas porque várias centenas de milhares de americanos já foram companheiros de viagem do partido comunista. Sem discutir sobre o assunto, pode-se simplesmente descrever um estado católico como um país onde o povo como um todo - permitindo dissidentes individuais ou em grandes grupos - subscreve a filosofia de vida católica, historicamente se juntou à Igreja Católica e a aceita como o reino de Cristo na terra e aceita todas as verdades reveladas ensinadas por ela. É mais ou menos assim que aceitamos o conceito de estado americano como um grupo de pessoas comprometidas com um modo de vida americano, que historicamente aceitaram a Constituição e as tradições desta terra, sem se preocupar em contar cabeças para ver quais podem, em seus corações, ser anarquistas, ou podem ser amargurados por certos artigos da Constituição. Todos, católicos e não católicos, parecem ter uma visão tão saudável e ampla do assunto e, sem mais rodeios, classificam imediatamente como "países católicos" Itália, Irlanda, Polônia, Portugal etc. Pio XII ao se dirigir aos italianos (ver Ci Riesci) dá como certo que a Itália pode ser classificada como um estado católico, sem se preocupar com o fato de que existem grandes grupos de italianos que atualmente são comunistas. Para uma justificativa mais técnica desse uso da terminologia tradicional, veja George W. Shea, "Orientations on Church and State", AER, 125 (1951), 405-416.- Uma advertência final: dizer que um estado ou um país ser um "estado católico" não significa que seja necessariamente admirável em todos os seus aspectos. Assim como os indivíduos podem ser católicos, mas homens maus (porque falham em viver de acordo com os princípios católicos), também os "estados católicos" podem, de tempos em tempos em sua história, se comportar de forma vergonhosa ao trair os princípios católicos que deveriam seguir]. O papa está preocupado com a relação entre a Igreja e os Estados com um pano de fundo religioso pluralista apenas secundariamente e incidentalmente. Ainda assim, ao lidar com a última questão, o papa - em alguns parágrafos memoráveis que citaremos mais adiante - mostra claramente como os governos católicos podem conceder plena liberdade religiosa a seus cidadãos não católicos sem ser inconsistentes com os princípios católicos.
Com este pano de fundo, podemos afirmar que a Immortale Dei (A Constituição Cristã dos Estados) de Leão XIII é uma espécie de Carta Magna que estabelece um projeto para uma sociedade católica ideal organizada de acordo com os princípios católicos. Nela se encontra seu ensinamento mais claro e completo sobre as relações entre Igreja e Estado em tal sociedade. [Nota: A encíclica Immortale Dei, datada de 1º de novembro de 1885, pode ser considerada a mais perfeita exposição e esclarecimento do problema da Igreja e do Estado contida nas cartas do Papa Leão XIII. Ela pressupõe uma concepção do Estado conforme aos princípios da filosofia cristã, isto é, aos princípios de São Tomás. O fundamento para tal doutrina é fornecido pelos ensinamentos do evangelho" (Gilson, op. cit., p. 157)].
Os principais ensinamentos da encíclica podem ser resumidos nos seguintes pontos:[Nota: Os números dados ao final de cada proposição são os números dos parágrafos usados na edição de Gilson da encíclica].
1. Deus é o autor de toda verdadeira autoridade, tanto civil quanto religiosa (3).
2. A autoridade de Deus respalda qualquer forma legítima de governo (4).
3. A Igreja não tem preferência por nenhum tipo de governo. Opõe-se apenas aos governos que pisoteiam os direitos de Deus ou os direitos do homem (4 e 36).
4. Em sua própria esfera, os governos civis devem se comportar como agentes da autoridade de Deus e, em sua preocupação com o bem-estar público, devem imitar o cuidado paterno e a justiça de Deus (5).
5. A sociedade civil, uma vez que deriva seus poderes de Deus, é, na ordem objetiva das coisas, obrigada a fazer profissão pública da religião estabelecida por Deus (7, 25, 26, 34, 35).
6. Igreja e Estado são duas sociedades distintas, completas e independentes (13).
7. O objetivo da Igreja é a eterna felicidade sobrenatural da humanidade; só ela possui autoridade sobre assuntos puramente espirituais (14).
8. O objetivo da sociedade civil é o bem-estar terreno do homem; só ela tem autoridade sobre assuntos puramente seculares (14).
9. Igreja e Estado devem cooperar entre si em benefício de seus cidadãos comuns (14).
10. A ideia de que a autoridade civil tem origem última na multidão dos cidadãos e não em Deus é um erro filosófico e conduz a más consequências para a sociedade civil (25 e 31).
11. A liberdade é necessária à Igreja para o cumprimento da sua missão (34).
12. Em assuntos de jurisdição mista, a Igreja e o Estado podem chegar a um acordo harmonioso por meio de uma concordata (35).
13. Os católicos devem ter espírito público e fazer o possível, por todos os meios honrosos, para ajudar a restaurar a sociedade moderna aos ideais cristãos (44-46).
14. Nenhum método fixo pode ser prescrito para ajudar a cristianizar a sociedade moderna: os métodos variarão de acordo com o tempo, o lugar, as circunstâncias (46).
15. A doutrina exposta nesta encíclica é o ensinamento católico sobre a configuração ideal para uma sociedade organizada segundo os princípios cristãos (16, 35, 36, 40, 50).
II. Princípios Teológicos Baseados no Ensino de Leão
O ensinamento do pontífice contido nesses pontos pode ser resumido nos seguintes cinco princípios teológicos:
1. Deus é o autor de toda verdadeira autoridade, civil e religiosa.
2. Igreja e Estado são sociedades realmente distintas. Cada um é uma sociedade completa e independente em sua própria esfera.
3. Igreja e Estado não devem ser hermeticamente fechados um do outro. Eles devem cooperar pacificamente para benefício mútuo.
4. A Igreja transcende o Estado pela nobreza da sua natureza e da sua finalidade.
5. Um Estado realmente católico é obrigado per se a fazer profissão pública de catolicismo. [Nota: Acrescenta-se o adjectivo "realmente" porque é possível que um Estado outrora católico se torne pluralista ou mesmo não-católico, digamos, por exemplo, pela apostasia da fé de metade dos seus cidadãos. (Veja Bender, Jus publicum ecclesiasticum, op. cit., p. 199, onde ele prevê e discute tal possibilidade.)]
III. Princípio 1
Deus é o autor de toda verdadeira autoridade, civil e religiosa.
Este princípio é uma verdade tanto da razão natural como da revelação. A razão indica que nenhum homem é uma ilha: ele precisa da companhia de seus semelhantes para viver uma vida plenamente humana. Nenhum homem pode ser simultaneamente agricultor, médico, advogado, engenheiro, físico, pedreiro, alfaiate, agente funerário e padre. Consequentemente, é um instinto da natureza do homem que o move a viver em sociedade: doméstica, civil ou religiosa. Uma vez que é impossível para uma multidão de homens viverem juntos harmoniosamente, a menos que haja ordem entre eles e alguma autoridade governante legítima para salvaguardar os direitos individuais de cada um e o bem comum de todos, a autoridade governante, como a própria sociedade, tem sua base última na natureza. Uma vez que Deus é o criador supremo de todas as coisas e todas as coisas dependem continuamente Dele, também toda sociedade genuína e natural tem Deus como seu autor último. Consequentemente, toda autoridade genuína sobre as sociedades é, em última análise, o resultado do desígnio de Deus, pretendido por Ele e delegado aos homens por meio de vários modos legítimos de organização de diferentes sociedades. Leão coloca o assunto apropriadamente desta maneira:
O instinto natural do homem o leva a viver na sociedade civil, pois ele não pode, se morar separado, fornecer a si mesmo os requisitos necessários à vida, nem obter os meios de desenvolver suas faculdades mentais e morais. Portanto, é divinamente ordenado que ele leve sua vida - seja familiar ou civil - com seus semelhantes, somente entre os quais suas várias necessidades podem ser adequadamente supridas. Mas, como nenhuma sociedade pode se manter unida a menos que alguém esteja acima de tudo, orientando todos a lutar sinceramente pelo bem comum, todo corpo político deve ter uma autoridade governante, e essa autoridade, não menos que a própria sociedade, tem sua fonte na natureza, e tem, consequentemente, Deus como seu autor. -Immortale Dei, Gilson ed., No. 3.
Esta mesma verdade que é alcançável pela razão natural também foi proclamada pela revelação de Deus. São Paulo lembra aos cristãos romanos em termos contundentes que eles devem respeitar e obedecer à autoridade civil, pois seu autor supremo é Deus:
Que cada um se submeta às autoridades governantes, pois não existe autoridade que não seja ordenada por Deus. E aquilo que existe foi constituído por Deus. Portanto, aquele que se opõe a tal autoridade resiste à ordenança de Deus, e os que resistem trazem condenação sobre si mesmos. . Assim, devemos nos submeter, não apenas por medo de punição, mas também por uma questão de consciência. (Rom. 13:1-6.)
Este princípio é tão sólido que alguém poderia se perguntar por que Leão XIII deveria enfatizá-lo tão longamente. A razão é que no liberalismo desenfreado do século XIX, várias teorias políticas estranhas sobre a origem do poder civil estavam em voga. Uma teoria – não menos aberrante pelo fato de ser extremamente popular – era a chamada “teoria do motorista de táxi” do governo. [Nota: Esta teoria está historicamente ligada à Revolução Francesa. Seu nome é encontrado explicitamente nas obras de Paul-Louis Courier (1773-1825). Sua formulação mais rica e menos elaborada encontra-se na filosofia de Rousseau. Para uma análise clara e breve dessa teoria e sua oposição radical a um conceito cristão de democracia, veja Yves R. Simon, "The Doctrinal Issue Between the Church and Democracy" em The Catholic Church in World Affairs, pp. 87114, editado por Gurian e Fitzsimons (Notre Dame, 1954)].
De acordo com esta teoria, os governantes são pura e simplesmente o instrumento da multidão. Nenhuma autoridade civil real, capaz de obrigar em consciência, existe e, consequentemente, nenhum dever de obediência correspondente.
Que se dissipem os últimos efeitos dos mitos tradicionais sobre a dignidade do governante: os homens do governo ficam reduzidos à condição de agentes, gerentes, secretários, instrumentos atravessados pelo poder, mas sem poder próprio. Eles recebem ordens, mas, apesar das aparências, não têm o direito de dar nenhuma ordem... Eles são líderes por ordem dos liderados. Sua liderança não envolve nenhuma autoridade. Embora seja permitido ao governante proferir sentenças gramaticalmente indistinguíveis de comandos, o governo, como empregados contratados e pagos, recebe as ordens dos governados e os conduz aonde eles querem ir. - Yves R. Simon, art. cit., pág. 91.
De forma extrema, essa teoria toma um rumo místico e a "vontade do povo" é glorificada como uma força impessoal e infalível que regula automaticamente todas as coisas para o bem comum.
Em suma, a origem e fonte última da autoridade civil não é Deus, mas o povo. O erro óbvio aqui é confundir um duto com um reservatório, uma linha telefônica com um dínamo. Porque a autoridade civil é canalizada através dos votos do povo, isso não significa que ela se origina do povo. Esta é precisamente a essência do protesto de Leão XIII contra uma falsa concepção de autoridade civil em voga em sua época:
A soberania do povo, no entanto, e isso sem qualquer referência a Deus, é considerada residir na multidão; que é sem dúvida uma doutrina extremamente bem calculada para lisonjear e inflamar muitas paixões, mas que carece de todas as provas razoáveis e de todo o poder de garantir a segurança pública e preservar a ordem. De fato, a partir da prevalência desse ensino, as coisas chegaram a tal ponto que muitos sustentam como um axioma da jurisprudência civil que as sedições podem ser legitimamente fomentadas. Pois prevalece a opinião de que os governantes nada mais são do que delegados escolhidos para realizar a vontade do povo; daí decorre necessariamente que todas as coisas são tão mutáveis quanto a vontade do povo, de modo que o risco de perturbação pública está sempre pairando sobre nossas cabeças. ID 31.
IV. Princípio 2
Igreja e Estado são sociedades realmente distintas. Cada um é uma sociedade completa e independente em sua própria esfera.
a. São sociedades realmente distintas. Mesmo que os mesmos homens possam ser membros da Igreja e cidadãos de um determinado país, isso não significa que a Igreja e o Estado de alguma forma se amalgamem em uma sociedade híbrida. Os homens podem pertencer tanto a um clube de xadrez quanto a um clube de golfe, mas isso não faz do xadrez um golfe, nem do golfe um xadrez. A prova mais simples para esta parte da proposição é que as sociedades são mais facilmente distinguidas pelos diferentes objetivos para os quais cada uma foi instituída. O objetivo da Igreja é a felicidade sobrenatural [Nota: Bender objeta que não é muito preciso distinguir Igreja e Estado como sociedade "religiosa x secular", como fazem Ottaviani e outros juristas. Em outra economia de coisas poderia ter havido uma religião puramente natural e então a base da divisão seria aceitável. Na verdade, porém, Deus instituiu uma ordem sobrenatural, uma religião sobrenatural e uma sociedade sobrenatural, a Igreja. Veja seu Jus publicum ecclesiasticum, pp. 26 e 43, onde ele escreve: "O objetivo de um é o bem natural supremo; o objetivo do outro é o bem supremo sobrenatural. Segue-se que agora temos duas sociedades, cada uma das quais tem como seu próprio fim algum bem completo ou um bem que é um fim último da vida humana. naquela ordem." Resumidamente, pela ordenança de Deus existem duas ordens. A Igreja está a cargo de um, a sociedade civil do outro. Cada um é supremo em sua própria esfera. A sociedade sobrenatural não pretende engolir a natural, nem vice-versa; eles são mutuamente complementares.] e eterna da humanidade; o objetivo da sociedade civil é o bem-estar temporal e, de fato, diretamente (per se), o bem-estar externo de seus cidadãos.
b. Tanto a Igreja quanto o Estado são sociedades completas. Uma sociedade completa ou perfeita é aquela cujo objetivo é supremo em sua própria esfera e que possui, pelo menos teoricamente, todos os meios necessários para atingir esse objetivo [Nota: O termo "sociedade perfeita", neste uso, não carrega nenhuma conotação de beleza ou imaculação. Significa simplesmente (perficere-perfectus) algo acabado ou completo. Perfeito, então, refere-se não à perfeição moral, nem à perfeição econômica, mas à perfeição estrutural.]. Qualquer sociedade que não possua um desses dois requisitos é necessariamente uma sociedade incompleta e imperfeita, destinada por sua própria natureza a fazer parte de alguma organização maior. A família, por exemplo, ainda que dotada de certos direitos inalienáveis, é uma sociedade incompleta, imperfeita. Ela precisa dos recursos da sociedade civil para ajudá-la a alcançar seus próprios objetivos.
Dificilmente alguém, exceto um anarquista, negaria que o Estado é uma sociedade completa ou perfeita. O mesmo não é verdade, no entanto, da Igreja. Um grande número de não-católicos falha em ver ou nega veementemente que a Igreja Católica Romana é uma sociedade completa ou perfeita. Eles a veem apenas como uma das muitas sociedades privadas e subordinadas contidas na estrutura do Estado. Apesar de seus protestos, devemos manter a verdade: a Igreja é uma sociedade completa ou perfeita e preenche todos os requisitos para tal. Na verdade, o objetivo da Igreja não é apenas supremo em sua própria esfera, é supremo sem reservas. Consequentemente, a Igreja possui em si mesma o poder pleno e supremo para ensinar, governar e santificar. Estes são os meios normais proporcionais ao seu objetivo. A rigor, também a Igreja pode, por direito próprio, exigir [Nota: Veja I Cor. 9:4-14] de seus súditos os bens temporais de que necessita para perseguir seu objetivo; na verdade, porém, prefere que eles cumpram tais obrigações voluntariamente. Observe a frase, por seu próprio direito. Assim como a Igreja não recebeu seu poder universal nem do próprio Estado, nem mesmo através da mediação do Estado, também possui o direito mencionado diretamente de Cristo e independentemente do Estado. Como disse Leão XIII:
O Filho unigênito de Deus estabeleceu na terra uma sociedade que é chamada de Igreja, e a ela entregou o sublime e divino ofício que havia recebido de Seu Pai, para ser continuado através dos tempos vindouros. -ID 8. [A Igreja] é uma sociedade constituída por direito divino, perfeita em sua natureza e em seu título, para possuir em si e por si mesma, por meio da vontade e bondade de seu Fundador, todas as provisões necessárias para sua manutenção e ação. -ID 10; itálico nosso.
c. Tanto a Igreja quanto o Estado são independentes em suas próprias esferas. Isso decorre do que já foi dito: uma sociedade completa ou perfeita, por ser autossuficiente tanto do ponto de vista de seu fim quanto dos meios para o fim, é, por isso mesmo, em sua própria esfera, independente de qualquer outra sociedade. O Estado, consequentemente, é independente dentro de seus próprios limites, isto é, em todas as questões puramente civis [Nota: Observe o modificador puramente: assuntos puramente civis, assuntos puramente religiosos. Alguns assuntos (geralmente descritos por teólogos e canonistas como assuntos mistos) como casamento e educação não são nem exclusivamente civis nem exclusivamente religiosos. Eles têm um aspecto sagrado e civil para eles: o aspecto sagrado pertence à província da Igreja; o aspecto civil à província do Estado. Para uma discussão completa deste assunto, consulte os canonistas. A apresentação de L. Bender sobre esse assunto é bastante original, provocativa e penetrante. Ver op. cit., cap. 6, pp. 201-16]. Por exemplo, estabelecer leis tributárias, promulgar códigos penais, fazer experimentos nucleares, salvaguardar a saúde pública, celebrar tratados com outras nações, erguer ou fazer barreiras tarifárias, salvaguardar a defesa da nação – essas várias e centenas de itens semelhantes pertencem, por sua própria natureza, à sociedade civil. Sobre tais assuntos, a Igreja não tem poder.
O que quer que seja feito em assuntos temporais com referência ao objetivo temporal está fora do objetivo da Igreja. Agora, a norma geral é que as sociedades não têm poder sobre assuntos que estão fora de seu próprio objetivo. -Tarquini, Juris ecclesiastici publici Institutiones, 16ª ed., p. 49.
Mas a Igreja não é menos independente em sua própria esfera. Consequentemente, pode por direito inalienável ensinar sua doutrina em todo o mundo, exercer sua jurisdição e poderes sacerdotais em todos os lugares, e assim por diante, sem necessitar de qualquer autorização ou permissão da sociedade civil. O Estado não tem poder sobre questões puramente religiosas. É por isso que os apóstolos nunca procuraram governantes civis para pedir permissão para pregar o evangelho, fundar igrejas ou realizar atos de adoração. Aliás, quando necessário, os apóstolos rejeitaram abertamente a intervenção dos poderes seculares, apelando para a sua própria autoridade – uma autoridade concedida por Deus. Veja Atos 4:18-20; 5:29, 40-42. A Igreja sempre reivindicou sua independência por suas palavras, ações e muito sangue.
A independência de cada sociedade em sua própria esfera é claramente destacada por Leão XIII nestas palavras:
O Todo-Poderoso, portanto, deu a responsabilidade da raça humana a dois poderes, o eclesiástico e o civil, sendo um colocado sobre as coisas divinas e o outro sobre as coisas humanas. Cada um em sua espécie é supremo, cada um tem limites fixos dentro dos quais está contido, limites que são definidos pela natureza e objeto especial da província de cada um, de modo que há, podemos dizer, uma órbita traçada dentro da qual a ação de cada um é colocada em jogo por seu próprio direito nativo. -ID 13.
Alguns objetam que a Igreja não pode ser considerada uma sociedade completa e independente porque não possui seu próprio território. Esta é uma rejeição ingênua. A terra inteira é o território da Igreja em assuntos espirituais:
Jesus então aproximou-se deles e disse-lhes as seguintes palavras: "Foi-me conferida autoridade absoluta no céu e na terra. Ide, portanto, e iniciai todas as nações no discipulado: batizai-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, e ensina-os a observar todos os mandamentos que te dei. E assinala: estou contigo todos os tempos enquanto durar o mundo." - Mateus, 28: 18-20.
Não há nada de contraditório na ideia de um mesmo território e os mesmos homens estarem simultaneamente sujeitos a dois poderes, cada um deles independente em sua própria esfera; a razão é que cada sociedade tem seu próprio campo de atividade: uma se encarrega dos assuntos espirituais, a outra se encarrega dos assuntos civis. Conflitos podem, é claro, surgir e historicamente surgiram. Tais conflitos surgem acidentalmente: isto é, não pelo simples fato de haver duas sociedades, mas pelo fato de que indivíduos, laicos ou eclesiásticos, podem ultrapassar seus próprios limites, e invadir o território do outro. Meios legítimos de resolver tais disputas pacificamente estão sempre à mão. Leão XIII previu esta objeção e respondeu-lhe com a sua sabedoria habitual. Tais disputas sempre podem ser resolvidas pela revisão das esferas respectivas das duas sociedades em relação ao assunto em questão, ou por acordo contratual explícito, "concordats", entre Igreja e Estado traçando linhas rígidas de demarcação em áreas onde as disputas são passíveis originar:
Tudo o que, portanto, nas coisas humanas é de caráter sagrado, tudo o que pertence por sua própria natureza ou em razão do fim a que se refere, à salvação das almas ou ao culto de Deus, está sujeito ao poder e julgamento da Igreja. Tudo o que deve ser enquadrado na ordem civil e política está devidamente sujeito à autoridade civil. O próprio Jesus Cristo ordenou que o que é de César seja dado a César, e que o que pertence a Deus seja dado a Deus. -ID 14.
Há, no entanto, ocasiões em que outro método de concórdia está disponível em prol da paz e da liberdade: queremos dizer quando os governantes do Estado e o Romano Pontífice chegam a um entendimento sobre algum assunto especial. Em tais ocasiões, a Igreja dá prova notável de seu amor maternal, mostrando a maior bondade e indulgência possíveis. -ID 15.
V. Princípio 3
Igreja e Estado não devem ser hermeticamente isolados um do outro. Eles devem cooperar pacificamente para benefício mútuo.
Este princípio deve ser mantido contra aqueles que proclamam como um dogma auto evidente que deve haver "um muro de separação" entre a Igreja e o Estado. Esses autodenominados "liberais", embora concedam teoricamente a liberdade da Igreja, pelo menos afirmam o seguinte: pela própria natureza do caso (per se), a melhor relação e a devotamente desejada em todas as circunstâncias é que o A Igreja não deve dar atenção ao Estado, e o Estado deve ignorar a Igreja. Observe as palavras: "pela própria natureza do caso" o melhor e desejável "sob todas as circunstâncias". Uma coisa é aceitar uma separação completa (no sentido de não-cooperação) entre Igreja e Estado em uma determinada situação, e acolher esse estado de coisas como o único sensato nas circunstâncias dadas. É um cavalo de uma cor totalmente diferente considerar tal estado de coisas como ideal per se.
Aqui estamos apenas discutindo princípios. Não estamos perguntando o que pode, pode ou deve ser bem-vindo neste ou naquele conjunto de circunstâncias ("hipótese"). Estamos simplesmente perguntando o que deveria ser estabelecido como um princípio positivo ("tese"), prescindindo de qualquer contexto histórico dado, para uma relação ideal entre Igreja e Estado em um país católico. Em outras palavras, qual relação é per se ideal - mesmo que em um determinado contexto histórico alguma outra relação possa ser bastante boa - e, consequentemente, o que todo homem católico deveria honestamente e sinceramente gostar de ver onde e em qualquer medida que um determinado conjunto de circunstâncias justifique isto? Pois a doutrina liberal, no sentido acima descrito e em nenhum outro sentido, foi condenada no Sílabo de Erros: "A Igreja deve ser separada do Estado, e o Estado da Igreja" (DB 1755). Leão XIII repetidamente condenou esta doutrina liberal do século XIX como perniciosa. Veja as encíclicas, Arcanum (10 de fevereiro de 1880); Immortale Dei (novembro de 1885); Libertas (20 de junho de 1888); Longinqua (6 de janeiro de 1895).
E era pernicioso. O tipo de liberalismo que Leão XIII estava protestando é óbvio pela lista detalhada de reclamações que ele levanta. O liberalismo do século XIX usou a "separação entre Igreja e Estado" como um grito de guerra. Com isso, o liberal do século XIX não significava a separação das duas sociedades, mas a subjugação da Igreja ao Estado; negação de seus direitos mesmo em sua própria esfera:
Eles reivindicam jurisdição sobre os casamentos dos católicos, mesmo sobre o vínculo, bem como sobre a unidade e a indissolubilidade do matrimônio. Eles se apoderam dos bens do clero, alegando que a Igreja não pode possuir propriedade. Por fim, eles tratam a Igreja com tal arrogância que, rejeitando inteiramente seu título à natureza e aos direitos de uma sociedade perfeita, eles sustentam que ela não difere em nada das outras sociedades do Estado e, por isso, não possui nenhum direito nem nenhum poder legal de ação, exceto o que ela detém pela concessão e favores do governo. Se em qualquer Estado a Igreja mantém seu próprio acordo publicamente firmado pelos dois poderes, os homens imediatamente começam a clamar que os assuntos que afetam a Igreja devem ser separados dos do Estado. . .. Consequentemente, tornou-se prática e determinação sob esta condição de política pública (agora tão admirada por muitos) proibir totalmente a ação da Igreja ou mantê-la sob controle e escravidão ao Estado. As promulgações públicas são em grande parte enquadradas com esse design. A elaboração de leis, a administração dos assuntos do Estado, a educação ímpia da juventude, a espoliação e supressão das ordens religiosas, a derrubada do poder temporal do Romano Pontífice, todos visam igualmente a esse fim - paralisar a ação de instituições cristãs, restringir ao máximo a liberdade da Igreja Católica e restringir todas as suas prerrogativas. -ID 27-29. [Nota: A condenação do pontífice não é uma condenação do genuíno liberalismo (ver ibid., n. 38-39 e também a encíclica Libertas); é simplesmente um engano de uma filosofia anti-religiosa mascarada sob um nome nobre].
Quão sensato e razoável é que a Igreja e o Estado em um país católico devam cooperar harmoniosamente ficará claro a partir dos seguintes pontos:
a. A Igreja e o Estado possuem os mesmos súditos. A menos que eles resolvam em acordo amigável questões que são de interesse mútuo (assuntos mistos), facilmente surgirão brigas. Essas brigas prejudicam tanto a Igreja quanto a sociedade civil. O cidadão perplexo pego no meio de tal conflito ou se afastará de seus deveres religiosos; ou deixará de exibir o respeito e a obediência que deve à autoridade civil. A cooperação harmoniosa, portanto, é algo a ser buscado por ambos os lados.
b. Ainda que os objetivos do Estado e da Igreja sejam distintos e pertençam a esferas distintas, Deus não os instituiu de maneira que não haja relação entre eles, ou de maneira que o Estado e a Igreja não tenham a menor necessidade de um outro. Leão afirma que o Deus Onisciente não age dessa maneira (veja ID 13-14). A prática sincera da religião e a busca da santidade muito contribuem, ainda que indiretamente, para a felicidade temporal. Inversamente, a tranqüilidade na sociedade e a distribuição equitativa dos bens materiais são uma grande ajuda, ainda que indiretamente, para a santificação das almas e a salvação eterna (cf. ID 20). Se, então, cada sociedade pode ser muito beneficiada na busca de seu próprio objetivo pela ajuda indireta da outra, a própria razão sugere que elas não devem ignorar uma à outra, mas devem cooperar pacificamente. Tal cooperação deve ser especialmente bem-vinda pelo Estado porque a Igreja pode continuar a existir e funcionar sem qualquer ajuda do Estado (desde que não seja perseguida pelo Estado), enquanto a sociedade civil tem uma necessidade tão grande de religião que sem religião todas as coisas ficariam de pernas para o ar e a própria sociedade civil desmoronaria.
c. Finalmente, assim como os cidadãos individuais são obrigados a adorar a Deus, também a sociedade como um todo é obrigada a adorá-Lo. [Nota: Veja o primeiro volume desta série, The True Religion, no. 7, pág. 17]. Na verdade, é obrigado a adorá-Lo através da religião que Ele mesmo instituiu, a única religião verdadeira, o Catolicismo. Ora, se a sociedade civil, precisamente como sociedade, é obrigada a professar a religião católica não pode, sem violar a sua obrigação (para com Deus), comportar-se com total indiferença para com aquela Igreja na qual está incorporada a verdadeira religião [Nota: Observe que este terceiro argumento para a cooperação pacífica entre a Igreja e o Estado (derivado da obrigação da sociedade enquanto sociedade de adorar a Deus) refere-se a um Estado católico. Obviamente, ninguém - nem papa nem teólogo - espera que um país maometano ou Israel faça profissão pública de catolicismo: o catolicismo é a única, a verdadeira religião, mas eles não estão cientes do fato. A obrigação objetiva de todos os homens de abraçar livremente o catolicismo é para eles, subjetivamente, inexistente].
Scholion: O "poder indireto" da Igreja.
Embora a Igreja e o Estado tenham esferas diretas próprias, nas quais cada um exerce seu poder diretamente sobre os assuntos que lhe são confiados, seria um pouco ingênuo pensar que eles não se afetam indiretamente. A própria vida humana não é tão bem compartimentalizada que se possa dizer: "aqui está a esfera política, aqui está a esfera religiosa, aqui está a esfera médica, aqui está a esfera educacional". Pode-se raciocinar abstratamente dessa maneira, mas na vida concreta, real, a unidade dos sujeitos vivos que entram na política, na medicina, na educação ou na religião impede essa feliz vivissecção mental. [Nota: Assim, encontramos estadistas tendo que redigir leis protegendo a sociedade da venda muito fácil de drogas perigosas; encontramos médicos fazendo lobby político para impedir a medicina socializada; educadores entrando na política para garantir salários adequados aos professores e clérigos fazendo sermões contra ideias políticas ou práticas sociais que ameaçam minar a moralidade pública].
Se a Igreja tem leis sobre jejum e abstinência, isso afeta indiretamente o mercado econômico: menos carne é vendida na sexta-feira. Se a Igreja prescreve o descanso do trabalho servil no domingo, isso novamente afeta indiretamente a vida econômica: pois um grande número de pessoas não trabalhará em fazendas ou fábricas um dia da semana. Da mesma forma, se o Estado recruta homens para o exército, isso afeta indiretamente a vida da Igreja: a frequência masculina à missa nas paróquias diminui e o número de curas em uma paróquia diminui à medida que muitos deles se tornam capelães. Novamente, se o estado tem leis de incêndio que restringem o número de pessoas em um determinado espaço, as pequenas igrejas podem ter que manter metade de sua congregação em pé nos degraus da frente. As leis estaduais contra o bingo diminuem os retornos para caridade, etc.
Além desses efeitos quase fortuitos um sobre o outro, que são triviais demais para uma discussão séria, a Igreja e o Estado necessariamente têm um efeito indireto um sobre o outro em áreas que são de interesse mútuo. Estes são apelidados por teólogos e canonistas de assuntos mistos. As mesmas coisas ou ações concretas podem ter vários aspectos simultaneamente. Sob um aspecto, eles podem ser espirituais e pertencer diretamente à província da Igreja; sob outro aspecto, são seculares e pertencem à província do Estado. O exemplo mais óbvio e mais conhecido nesta área é um casamento entre pessoas batizadas, (Bender op. cit., "Potestas Indirecta," p. 119). Tal casamento é simultaneamente um sacramento e um contrato. Um e o mesmo ato de consentimento produz tanto efeitos sobrenaturais (graça santificante) como efeitos naturais (obrigação de viver juntos, sustentar e educar os filhos, direitos de herança, etc.; ibid.). A mesma realidade concreta, portanto, cai diretamente no âmbito da Igreja e do Estado: a Igreja tem poder direto sobre o aspecto sobrenatural do casamento (tudo o que diz respeito ao casamento como sacramento: sua forma correta, sua indissolubilidade, etc.): o Estado tem poder direto sobre o aspecto natural do casamento (os efeitos contratuais como obrigação de alimentos, leis de herança, etc.).
Este não é o único caso em que a mesma realidade concreta pode estar diretamente sujeita ao poder da Igreja sob um aspecto e diretamente sujeita ao poder do Estado sob outros aspectos. Por exemplo, os assuntos econômicos e políticos parecem pertencer exclusivamente ao Estado, mas freqüentemente têm aspectos morais. Ao julgar esse aspecto moral de um assunto econômico ou político, a Igreja não estará saindo de sua própria esfera; o aspecto moral está sob o poder direto da Igreja. O comunismo, por exemplo, não é simplesmente um fenômeno político; é também uma filosofia de vida ateísta. Como tal, a Igreja tem todo o direito de condená-la e proibir seus membros de se juntarem a ela. Se eles obedecerem em um determinado país católico, o partido comunista deixará de existir lá. Embora esteja perfeitamente dentro de seu direito de condenar o aspecto moral do comunismo - seu propósito é conduzir os homens à vida eterna e um dos principais meios é apontar o que leva a esse objetivo e o que o afasta - ele afeta indiretamente a vida do Partido Comunista. Da mesma forma, na esfera econômica, realidades concretas como os sindicatos colocam problemas que não são de interesse exclusivo do economista ou do político. Algumas questões são morais: um homem tem direito a um salário digno? O sindicato tem direito de greve? Quais são as condições para uma greve justa? etc. Nestas e outras questões semelhantes, um aspecto de uma realidade concreta cai diretamente sob o poder da Igreja; e outro ou vários aspectos estão diretamente sob o poder do Estado.
Que a Igreja tem algum poder sobre os assuntos temporais, tem o direito de intervir neles e julgá-los, nenhum teólogo negaria. A proposição oposta foi explicitamente condenada: "A Igreja não tem o poder de usar a força, nem tem ela qualquer poder temporal, direto ou indireto" (carta apostólica, Ad apostolicae, 22 de agosto de 1851). Quando os teólogos defendem o poder da Igreja sobre assuntos temporais, eles estão afirmando apenas este ponto: a Igreja pode julgar sobre assuntos temporais quando e na medida em que esses assuntos tenham uma conexão definida com o bem-estar espiritual, isto é, na medida em que tal controle seja necessário se a Igreja deve ser capaz de prover seu próprio objetivo especial, a salvação das almas.
Como descrever esse poder da Igreja de intervir em assuntos temporais? Embora, como foi dito acima, todos os teólogos admitam o direito da Igreja de intervir nos assuntos temporais na medida em que tenham uma conexão com seu objetivo espiritual, sua terminologia teológica para descrever o mesmo fenômeno não foi a mesma em todas as épocas, nem igualmente preciso. Como Bender afirma sabiamente:
Sabemos que o que vale para as outras ciências, também vale para o ensino e a ciência dos teólogos: eles não são e nem sempre foram perfeitos. Mesmo ao explicar uma verdade conhecida por eles a partir de assuntos que estão contidos na doutrina da fé e na prática tradicional, os homens geralmente progridem gradualmente. -Op. cit., pág. 118.
Ele então passa a aplicar essa norma geral ao assunto que estamos discutindo aqui. Ele aponta que São Roberto Belarmino, ao descrever a intervenção da Igreja nos assuntos temporais, a descreveu sob a fórmula: o poder indireto da Igreja. Embora ele afirme que São Roberto estava ensinando exatamente a mesma doutrina que descrevemos acima, Bender acha que uma terminologia mais precisa deve ser usada porque teólogos não profissionais podem entender mal a frase, tanto quanto muitas pessoas entendem mal a frase extra ecclesiam nulla salus. Embora não rejeite a terminologia de Belarmino - é tradicional e suficientemente clara para os teólogos - ele prefere uma terminologia mais exata. Vários outros teólogos modernos pensam da mesma maneira.
No século XVII, o famoso teólogo São Roberto Belarmino, ao explicar e justificar como a Igreja poderia usar seu poder para intervir em muitos assuntos temporais e naturais, propôs seu ensinamento sobre o poder indireto da Igreja.
...
Parece-nos que Belarmino, com sua teoria, fez muito para explicar e justificar as extensões do poder eclesiástico a muitos assuntos seculares. Mas o uso da expressão que se tornou habitual - "poder indireto" não parece louvável em todos os aspectos. Se a realidade designada por esta frase não for explicada com lucidez, podem surgir confusões com bastante facilidade. Pois se alguém lê que a Igreja tem um poder direto sobre os assuntos espirituais e um poder indireto sobre os assuntos temporais, é facilmente levado a pensar que a Igreja possui um duplo poder, um direto e outro indireto. Em nosso julgamento, isso é um erro. Mantemos a mesma doutrina de Belarmino sobre o poder da Igreja, seu objeto e sua extensão, porque em todos esses assuntos somos todos obrigados a manter a doutrina contida na tradição da Igreja. Ainda assim, parece-nos que a mesma doutrina deveria ser proposta de outra maneira. -Loc. cit., pág. 118.
O ilustre autor passa então a descrever com alguma extensão o assunto que já resumimos anteriormente: ou seja, a razão pela qual o poder espiritual da Igreja pode chegar até mesmo em questões temporais é que uma e a mesma realidade concreta pode ter vários aspectos. A Igreja toca diretamente o aspecto espiritual da questão e indiretamente afeta o Estado apenas na medida em que a mesma realidade concreta pertence ao Estado sob outro aspecto. O mesmo vale no sentido inverso. O que fazer caso surja um conflito entre Igreja e Estado sobre a mesma realidade concreta que pertence a ambos sob aspectos distintos, traz à discussão o quarto princípio.
VI. Princípio 4
A Igreja transcende o Estado pela nobreza de sua natureza e de sua finalidade. Num Estado católico, portanto, prevalecem os direitos da Igreja.
Sempre que Deus estabelece algo, Ele o estabelece de maneira ordenada. Consequentemente, se Deus deseja que existam duas sociedades perfeitas que simultaneamente se esforcem para prover o bem-estar completo dos mesmos cidadãos, deve existir alguma relação ordenada entre essas sociedades: alguma norma pela qual possíveis conflitos no campo de assuntos mistos possam ser resolvidos. . Uma vez que nenhuma dessas sociedades está sujeita à outra (cada uma é suprema e independente em sua própria esfera), obviamente nenhuma pode simplesmente comandar a outra sociedade. A norma para resolver os direitos conflitantes deve ser encontrada, não na esfera do poder, mas da dignidade. Se uma sociedade é mais nobre tanto em sua natureza quanto em seu objetivo do que a outra, então a própria razão sugere que a sociedade mais nobre deve prevalecer. Isso não significa que a outra sociedade fique sujeita ou subordinada à sociedade mais nobre; significa simplesmente que cede ou adia livremente seus direitos em uma dada situação em prol do bem-estar comum. Que a Igreja supera eminentemente o Estado em dignidade por causa da dignidade transcendente de seu objetivo e de sua natureza (como o Corpo Místico de Cristo) dificilmente precisa ser declarado. Deus, então, como Bender coloca, não teve que promulgar instruções explícitas dando precedência à Igreja sobre o Estado: esse fato está implícito nos próprios objetivos que Ele estabeleceu para cada um:
Deus, a única Autoridade Suprema que está acima dessas duas sociedades perfeitas que Ele instituiu, não estabeleceu explicitamente uma norma para lidar com este caso [conflitos em "assuntos mistos"]. Não havia necessidade de fazê-lo. Pois o próprio estabelecimento da Igreja e do Estado, tais como são com sua própria natureza e objetivos próprios, afirma implicitamente a norma. A única solução razoável, e consequentemente querida por Deus e a ser observada por nós, é a que aplica esta norma: se duas sociedades, não subordinadas uma à outra, sob diversos aspectos têm domínio sobre a mesma matéria e num dado caso concreto os regulamentos de ambos os poderes não podem ser observados, um poder deve ter precedência e o outro deve ceder. Se um poder é obviamente muito mais nobre e muito mais digno do que o outro, esse é o poder que deve prevalecer...
Segue-se que, se surgir oposição entre um ato de autoridade eclesiástica e um ato de autoridade civil, é direito da Igreja que sua ordenação seja mantida e prevaleça; e a autoridade civil tem a obrigação jurídica, fundada na lei divina, de acatar as questões que a Igreja ordena, deixando de lado sua própria ordenação - Ibid., p. 124.
Muitos teólogos descrevem essa precedência dos direitos da Igreja pela fórmula: "a subordinação indireta do Estado à Igreja" ou "o Estado está indiretamente sujeito à Igreja". Embora o ensinamento que eles dão seja o mesmo que acabamos de esboçar, as fórmulas usadas são, em nossa opinião, menos precisas para expressar a realidade. Eles poderiam facilmente ser mal interpretados para soar como se o Estado não fosse uma sociedade independente. Como uma sociedade pode ser simultaneamente "sujeita" ou "subordinada" e ainda assim "independente"? O adjetivo indireto esclarece um pouco as coisas, mas não completamente. Sentimos com Bender que:
Seria doutrinariamente mais correto falar não da sujeição, por mais indireta que seja, mas da precedência da outra sociedade. Normalmente usamos a palavra [precedência] em casos desse tipo. Por exemplo, quando dois homens que não estão sujeitos um ao outro se aproximam da mesma casa. Se o espaço permitir, ambos procedem juntos e não há necessidade de uma norma de ação. Mas se eles têm que passar por uma porta tão estreita que não podem passar por ela simultaneamente, algum tipo de norma de ação torna-se imperativo. Se alguém diz que é mais adequado que Tito entre primeiro, não quer dizer com isso que o outro homem seja "sujeito" a Tito, ou "subordinado" a ele, nem mesmo indiretamente. Ele simplesmente reconhece que as duas pessoas não são iguais em dignidade, e dessa mesma desigualdade ele deduz que é correto que Tito preceda o outro. -Ibid., pp. 125-6.
Duas consequências decorrem imediatamente deste princípio: (a) O Estado não pode, apenas por sua própria fantasia e com absoluto desrespeito pela Igreja, estabelecer leis sobre assuntos mistos. Assuntos mistos, como mencionado anteriormente, são assuntos que são, embora sob diferentes aspectos, simultaneamente espirituais e civis [Nota: Sobre a dificuldade de definir "assuntos mistos", ver Bender, op. cit., pág. 201]. Por exemplo, assuntos relacionados com casamento, instituições públicas para crianças, educação e coisas semelhantes, são assuntos mistos. Em tais assuntos, o Estado deveria obedecer às leis da Igreja, ou então o Estado deveria entrar em alguma concordata com a Igreja [Nota: Para uma discussão sobre a natureza e extensão das concordatas, ver Bender, op. cit., pp. 217-232. O mesmo autor trata dos direitos da Igreja e do Estado relativos ao matrimônio e à educação não sob o título de "Assuntos mistos", mas em um capítulo especial intitulado: Questões especiais sobre a cooperação da Igreja e do Estado (pp. 201-216). Suas críticas contra um Estado católico que obrigaria todos os seus cidadãos a passar por uma cerimônia de casamento civil são extremamente lógicas (ibid, pp. 206-209)], eliminando precisamente a jurisdição de cada sociedade. A Igreja, como a própria história o atesta, respeitará sempre as necessidades e os direitos do Estado nestas questões. Ele percebe melhor do que ninguém que não há autoridade senão de Deus, e a injunção de sua Cabeça: "Dai a César o que é de César".
(b) A Igreja não deve se envolver na política; nem nos assuntos administrativos de qualquer governo. Mas se, em questões mistas, os governantes civis infligirem danos à religião ou ferirem os direitos naturais do homem por leis injustas, a Igreja pode declarar que tal lei não obriga a consciência, ou mesmo que os cidadãos não devem obedecer a tais leis. Pode, finalmente, quando os governantes são católicos, como é o caso da hipótese que estamos discutindo, advertir, repreender e até aplicar punições espirituais como a excomunhão, a tais governantes tirânicos. [Nota: Este último ponto mencionado, de sanções espirituais, parecia horrível para o liberal do século XIX. Após as sérias experiências com os Estados totalitários do século XX, mesmo os não-católicos puderam avaliar melhor como é saudável ter algum poder que possa pelo menos colocar um freio moral no Estado quando ele beira a tirania. Veja, por exemplo, o escritor não católico E. E. Y. Hales: Ele morreu como um herói para seus seguidores; para o mundo, aparentemente, um fracasso. Poucos homens ponderados, em 1900, pensaram que ele estava certo. Era preciso encontrar desculpas para o Syllabus - melhor, até, esquecê-lo. Mas nós, hoje, que conhecemos os filhos e netos do liberalismo europeu e da revolução, que vimos Mazzini transformar-se em Mussolini, Herder em Hitler e os primeiros socialistas idealistas em comunistas intransigentes, podemos, a partir de uma nova perspectiva, considerar mais uma vez se Pio Nono, ou os crentes otimistas em um progresso infalível, como seu amigo culto Pasolini, terão, aos olhos da eternidade, o melhor do argumento.-Pio Nono (New York, 1954), p. 331].
Objeções: Alguns estadistas acham que esse ensinamento sobre a primazia dos direitos da Igreja, em um conflito sobre assuntos mistos, representa um perigo real para o Estado, já que a Igreja poderia ultrapassar seus limites legais. Quão infundado é esse medo deve ficar claro a partir deste único fato: a força física está sempre do lado do Estado, enquanto a Igreja tem apenas a força moral do seu lado. É por isso que, mesmo na Idade Média, as querelas que surgiam entre o poder secular e o poder espiritual eram quase sempre causadas pela usurpação dos direitos da Igreja pelo Estado e não vice-versa. Até mesmo Augusto Comte (o fundador do Positivismo e nenhum amante da Igreja) admitiu este fato candidamente:
Quando se examina hoje, com uma imparcialidade verdadeiramente filosófica, o conjunto dessas grandes lutas que tantas vezes ocorreram entre as duas potências durante a Idade Média, rapidamente se reconhece que elas foram quase sempre essencialmente defensivas por parte do poder espiritual, que mesmo quando recorria às suas próprias armas poderosas, muitas vezes não fazia mais do que lutar nobremente pela razoável manutenção de uma justa independência, que o real cumprimento da sua missão lhe exigia, mas sem poder, na maioria dos casos, fazê-lo com sucesso. -Cours de Philosophie Positive, 2ª ed., V, 234.
A objeção é levantada: ninguém deve atuar como juiz em seu próprio caso. Mas se se trata de decidir, em assuntos mistos, se o aspecto sobrenatural da questão é mais importante do que o aspecto natural ou civil, só a Igreja pode tomar essa decisão, pois só a Igreja é a autoridade competente na esfera sobrenatural. E, nesse caso, estaria atuando como juiz em causa própria.
Resposta: O axioma de que ninguém deve agir como juiz em seu próprio caso é um axioma sólido e geral; mas não possui validade absoluta e universal. Se for impossível, pela natureza do caso, ter outro juiz – se não houver autoridade superior disponível – pode-se atuar como juiz em seu próprio caso. Se, por exemplo, a Suprema Corte quisesse reverter uma de suas próprias decisões anteriores, à luz de novas evidências, ela teria que julgar seu próprio caso porque legalmente não há um tribunal superior de apelação. A autoridade máxima em qualquer esfera, em outras palavras, é necessariamente o juiz de todos os casos nessa esfera, inclusive os seus próprios. Se a Igreja não julgasse e estabelecesse a extensão de sua autoridade, esta tarefa – na opinião dos que propõem a objeção – caberia à autoridade civil; mas nesta alternativa, o Estado estaria atuando como juiz em seu próprio caso. Pois o que estamos discutindo é justamente a marcação de linhas de demarcação para as esferas próprias dessas duas sociedades, Igreja e Estado. O significado do axioma, então, não é: agir como juiz em seu próprio caso é sempre e em toda parte errado. O verdadeiro significado é que atuar como juiz em causa própria é normalmente perigoso e, portanto, na medida do possível, tal procedimento deve ser evitado e proibido por lei. No caso em questão – julgando a extensão do poder do sobrenatural – é impossível ter outro juiz senão aquela sociedade à qual o próprio Deus confiou o cuidado da realidade sobrenatural, a Sua Igreja. (Bender, op. cit., p. 94).
Objeção: Uma objeção final é levantada de que mesmo que a posição da Igreja seja teoricamente sólida, ela ainda é perigosa na prática. Homens sendo homens, mesmo os eclesiásticos podem abusar da autoridade legítima.
Resposta: É preciso admitir francamente que há perigo. Mas o perigo de abuso necessariamente acompanha o uso. E o axioma geral: abusus non tollit usum é válido aqui também. A única maneira de evitar a possibilidade de abuso de autoridade, civil ou eclesiástica, seria eliminar completamente a autoridade. Isso, por sua vez, apenas induziria um perigo ainda maior à anarquia da sociedade; não dizemos nada sobre tal abolição ser contra a instituição da autoridade de Deus. Nenhum homem razoável esperaria que a sociedade pudesse existir sem alguma autoridade. A resposta de Bender a esta objeção parece bastante sensata:
Objeção: Não há perigo de abuso, quando a decisão é deixada para as pessoas que são participantes diretos do caso? Parece que devemos responder que há algum perigo. Mas o perigo de abuso está sempre presente sempre que você usa [uma coisa boa]. Se alguém deseja suprimir todo o perigo de abuso de poder e autoridade, ele deve remover completamente o poder e a autoridade dos homens. Não diríamos que um homem está fazendo um julgamento selvagem se ele fosse da opinião de que nada na história da humanidade jamais foi objeto de tantos abusos e abusos tão terríveis quanto a autoridade civil suprema. No entanto, ninguém jamais propõe, ou pelo menos propõe sabiamente, que devamos acabar com essa autoridade suprema. Nesta vida não esperamos ser capazes de eliminar todo perigo de abuso, pois isso é algo impossível. Nossa obrigação é ordenar a vida social de tal maneira que o perigo de abuso seja reduzido ao mínimo possível sem, entretanto, causar ou introduzir maiores perigos ou males definidos. Ainda que o fato de a autoridade eclesiástica ter o direito de decidir os próprios limites de seu próprio poder implique a possibilidade de algum abuso dessa competência, seria errôneo concluir que a concessão, em tais matérias, dessa competência não foi feita de acordo com plano de Deus e para a utilidade da raça humana. Alguém deveria ter competência em tais assuntos. Na prática, essa competência teria de ser conferida aos governantes supremos da Igreja ou aos governantes civis. Dificilmente alguém negaria que a última alternativa não apenas não diminuiria o perigo de abuso, mas o aumentaria enormemente. -Ibid., pp. 97-98.
É perfeitamente verdade que os princípios explicados acima não podem, na maioria das vezes, receber sua plena aplicação, porque a unidade religiosa foi dilacerada em quase todas as nações anteriormente católicas. Apesar disso, não é justo que os membros da Igreja se calem – aliás, não são livres para o fazer – sobre os direitos da Igreja que os seus adversários atribuem ao Estado como fonte de todos os direitos.
Obviamente, não esperamos, nem podemos razoavelmente exigir que os não-católicos, sejam eles protestantes, judeus, agnósticos ou ateus, reconheçam plenamente os direitos da Igreja enquanto não reconhecerem a Igreja pelo que ela é: o Corpo Místico de Cristo e do Reino de Deus na terra. Os fatos de que Deus instituiu uma ordem sobrenatural e uma sociedade sobrenatural são conhecidos apenas pela revelação e pela fé. De fato, todo o cerne do problema Igreja-Estado para os não-católicos reside não nas consequências lógicas que a Igreja deduz de suas premissas, mas nessas próprias premissas. Hipoteticamente, eles podem ver a lógica de concluir que deve haver uma cooperação harmoniosa entre o Estado e a Igreja Católica Romana se: (1) Jesus Cristo é realmente o Filho de Deus; (2) Jesus Cristo instituiu uma igreja real destinada a toda a humanidade; (3) aquela igreja estabelecida por Cristo não é outra senão a Igreja Católica Romana. Se os não-católicos negam qualquer uma dessas três premissas, eles necessariamente e logicamente negam as conclusões da Igreja sobre a relação Igreja-Estado. Essas premissas são tratadas antes do problema Igreja-Estado. É claro que se um não-católico desconhece totalmente essas premissas anteriores, é impossível fazer com ele uma discussão inteligente do problema Igreja-Estado, mesmo em termos hipotéticos.
Mesmo que os não católicos ainda não os reconheçam ou reconheçam, nossa amada Mãe a Igreja ainda possui aqueles direitos e prerrogativas que ela recebeu, não dos governantes deste mundo, mas de Jesus Cristo, o Rei dos séculos, para a salvação de tanto indivíduos quanto nações.
VII. Princípio 5
Um Estado realmente católico é per se obrigado a professar o catolicismo publicamente.
Terminologia. O termo "estado" usado aqui significa principalmente o "corpo político" (os cidadãos individuais vistos como uma entidade coletiva) e, secundariamente, governantes governamentais funcionando precisamente como representantes do corpo político. O termo "Estado Católico" foi descrito anteriormente (ver p. 349 nota).
Significado do princípio. A proposição afirma simplesmente que o povo de um Estado católico deve proclamar abertamente sua lealdade a Jesus Cristo e à Sua Igreja e deve realizar atos públicos de culto católico. Esta proposição baseia-se na proposição anterior, já estabelecida (ver A Verdadeira Religião, n. 7), de que o homem como ser social, ou que a sociedade enquanto sociedade tem a obrigação de prestar culto público a Deus porque Deus é o seu autor último.
Uma vez que a sociedade depende continuamente de seu Criador, ela deve reconhecer essa dependência por meio de atos apropriados de adoração. Esta obrigação decorre diretamente da lei natural. Num país católico, esta obrigação de oferecer culto público é simplesmente precisa. Resumidamente, se o homem como ser social é obrigado a adorar a Deus não apenas em particular, mas também publicamente, qualquer sociedade que saiba que Deus revelou a religião católica é obrigada a honrar a Deus por meio do culto católico. Falando, como o contexto claramente mostra [Nota: "Não é difícil determinar qual seria a forma e o caráter do Estado se ele fosse governado de acordo com os princípios da filosofia cristã." -ID 3. E ainda: "Tal, então, como apontamos brevemente, é a organização cristã da sociedade civil; não moldada de forma imprudente ou fantasiosa, mas derivada dos princípios mais elevados e verdadeiros, confirmados pela própria razão natural." -ID 16], de um Estado Católico (e de um Estado Católico em sua relação ideal com a Igreja), Leão XIII coloca a questão de forma muito clara:
Em consequência, o Estado [civitas - corpo político], constituído como é, está claramente obrigado a cumprir os múltiplos e pesados deveres que o vinculam a Deus, pela profissão pública da religião. A natureza e a razão, que ordenam a cada indivíduo que adore devotamente a Deus em santidade, porque pertencemos a Ele e a Ele devemos retornar, visto que dEle viemos, vinculam também a comunidade civil por uma lei semelhante. Pois os homens que vivem juntos em sociedade estão sob o poder de Deus não menos do que os indivíduos, e a sociedade, não menos do que os indivíduos, deve gratidão a Deus que a criou e a mantém e cuja bondade sempre generosa a enriquece com inúmeras bênçãos. Uma vez que, então, ninguém pode ser negligente no serviço devido a Deus, e uma vez que o principal dever de todos os homens é se apegar à religião tanto em seu ensino quanto em sua prática - não a religião pela qual eles possam ter preferência, mas a religião que Deus ordena e que certas e mais claras marcas mostram ser a única religião verdadeira - é um crime público agir como se Deus não existisse. Da mesma forma, é pecado o Estado não se importar com a religião, como algo além de seu escopo ou sem benefício prático; ou de muitas formas de religião para adotar aquela que combina com a fantasia; pois somos absolutamente obrigados a adorar a Deus da maneira que Ele mostrou ser Sua vontade. Todos os que governam, portanto, devem honrar o santo nome de Deus, e um de seus principais deveres deve ser favorecer a religião, protegê-la, defendê-la sob o crédito e a sanção das leis, e não organizar nem promulgar qualquer medida que possa comprometer a sua segurança. Este é o dever obrigatório dos governantes para com as pessoas sobre as quais eles governam. -ID 6.
Pelas palavras do papa fica claro que esta obrigação de um Estado Católico de oferecer o culto católico público se aplica tanto ao corpo político (a cidadania coletiva) quanto à parte superior do corpo político (ou seus governantes).
Algumas distinções sobre o princípio. Três questões intimamente relacionadas, mas realmente distintas, fundamentam o princípio enunciado acima em termos genéricos. Deixar de mantê-los distintos, sentimos, causa confusão desnecessária [Nota: Sentimos que alguns dos escritos controversos empreendidos por teólogos católicos americanos nos últimos anos, abordando o problema Igreja-Estado, foram realmente ocasionados por uma falha em esclarecer as três questões distintas indicadas acima. Em outras palavras, achamos que grande parte de sua discordância nessa área foi mais verbal do que real, porque na verdade eles não estavam discutindo o mesmo problema. Falhando em separar as três questões separadas e em discuti-las separadamente, eles nunca realmente se juntaram ao assunto. Um lado estava empenhado em defender o princípio genérico de que "um estado católico per se é obrigado a professar o catolicismo publicamente" (no que eles estavam perfeitamente corretos); enquanto o outro lado (embora não negando esse princípio de forma alguma) estava preocupado com a questão mais sutil de saber se havia uma obrigação estrita de ter uma instituição jurídica do catolicismo como religião de estado. Quanto ao seu desacordo real em questões menores - particularmente o uso e a utilidade de várias fórmulas técnicas como "o erro não tem direitos", "a subordinação indireta do Estado à Igreja", "intolerância dogmática" etc., o leitor interessado encontre ampla bibliografia no início desta seção. Em vez de tentar qualquer julgamento prematuro e peremptório sobre qual lado teve o melhor argumento nos muitos assuntos abordados, preferimos prestar homenagem a ambos os lados com esta citação da Hierarquia de Saskatchewan: "Entre os estudiosos, uma discussão sobre a união ou separação da Igreja e do Estado há muito tem ocorrido. Nos últimos anos, muita luz foi lançada sobre as várias teorias das relações Igreja-Estado em uma série de artigos na American Ecclesiastical Review and Theological Studies" (The Catholic Mind, 54 [1956], p. 592)]. A primeira pergunta é: um estado católico é obrigado a professar o catolicismo publicamente? A segunda: existe algum modo especial em que essa profissão pública deve ocorrer? Em outras palavras, para cumprir a obrigação de professar publicamente o catolicismo é necessário um arranjo jurídico, uma declaração constitucional ou uma concordata oficial que estabeleça a religião católica como religião oficial do Estado e a Igreja Católica como igreja oficial do Estado? A terceira questão diz respeito às consequências que decorrem de uma resposta afirmativa às duas primeiras questões. Resumidamente, se um Estado Católico é obrigado a professar publicamente o Catolicismo, e se deve fazer tal profissão instalando juridicamente o Catolicismo como religião do Estado, o Estado também é obrigado a proibir o reconhecimento jurídico de outras religiões e a tomar algum tipo de medida repressiva contra proselitismo de seitas não católicas?
Resumidamente, pensamos que as respostas a essas três perguntas fornecidas pelo ensino papal são as seguintes:
1. Um Estado católico per se é obrigado a fazer profissão pública de catolicismo? -Sim.
2. É absolutamente necessário que tal profissão tome forma jurídica ao instituir o catolicismo como religião do Estado (como tal proclamada na constituição do Estado)? Não, não é absolutamente necessário. Mas é o ideal católico - algo a ser esperado e bem-vindo, a menos que, em determinadas circunstâncias, faça mais mal do que bem. Pio XII nos diz:
A Igreja não esconde que, em princípio, ela considera tal colaboração [isto é, entre a Igreja e o Estado em um país católico] normal e que ela considera a unidade do povo na verdadeira religião e a unanimidade de ação entre ela e o estado como um ideal.
Mas ela também sabe que por algum tempo os eventos têm evoluído em uma direção bastante diferente. -Discurso aos Historiadores (7 de setembro de 1955).
3. Ainda que um Estado católico faça profissão jurídica da verdadeira religião, estabeleça legalmente o catolicismo como religião oficial, pode também dar reconhecimento jurídico a outras e falsas religiões a bem da salvaguarda dos direitos de consciência e do bem comum. Os católicos devem, no entanto, deixar claro em tais convenções jurídicas que não estão subscrevendo o indiferentismo religioso.
4. Não há nenhuma obrigação per se por parte de um Estado Católico de suprimir as falsas religiões, nem qualquer direito concedido ao Estado por Deus para fazê-lo. Por acidente, para evitar o enfraquecimento da moralidade pública, ou para prevenir terríveis desordens na sociedade, qualquer estado católico ou não católico pode ser forçado a reduzir as atividades de uma religião realmente viciosa. Se, por exemplo, alguém revivesse o antigo costume de sacrificar bebês a Moloch, o Estado, como guardião do bem-estar público, seria obrigado a impedir que uma religião tão pervertida levasse suas ideias perversas à prática. Uma discussão mais completa dos pontos 3 e 4 será encontrada abaixo nos scholion intitulados: A posição dos não-católicos em um Estado Católico e Onde o "ideal" não é obtido. Ali se verá que não há nada inerente aos princípios católicos que cerceie os plenos direitos cívicos de qualquer cidadão, católico ou não católico.
Scholion 1. A posição dos não-católicos em um Estado católico.
Um ponto que incomoda os não-católicos de mente justa é o espectro de que, embora a Igreja Católica concorde com a liberdade religiosa naqueles países onde não tem uma maioria dominante, ela inverteria sua posição se os católicos se tornassem a maioria. [Nota: Parece difícil incluir nesta categoria de “mente justa” indivíduos como Paul Blanshard, ou Agnes Meyer, ou uma organização como o P.O.A.U. Por mais sinceros que sejam seus motivos pessoais, eles parecem estar sofrendo de um tipo de histeria de grupo que poderíamos rotular de eclesiafobia. Como John Courtney Murray aponta habilmente, espirituosamente, mas caridosamente, eles simplesmente reviveram de forma menos grosseira os antigos, histéricos e anticatólicos preconceitos dos dias de The Menace e Ku Klux Klan. ("Religious Liberty: the Concern of All," America [7 de fevereiro de 1948] pp. 513-16.) Com tais pessoas é difícil manter uma discussão inteligente. Como Maritain observa pertinentemente, nossos esforços para tornar o ensinamento católico nesta área inteligível devem ser direcionados principalmente para os não-católicos de mente aberta, não para aqueles cujas mentes estão temporariamente obscurecidas pelo fanatismo ou histeria: Estou me referindo a autores sérios, não ao Sr. Paul Blanshard. Seu tratamento da questão (American Freedom and Catholic Power [Beacon Press, 1949], cap. iii) não vale a pena discutir porque é simplesmente injusto, como o resto de seu livro, cujas críticas, em vez de esclarecer as coisas, são constantemente viciadas. pela interpretação tendenciosa e tortuosa, e que confunde todas as questões de maneira caluniosa, até atribuir à Igreja Católica "um sistema completo de fetichismo e feitiçaria". cit., pág. 184 n. 36]. Eles temem que, se a América se tornasse 90% católica, todos os protestantes, judeus, agnósticos ou ateus remanescentes seriam perseguidos ou, no mínimo, tratados como cidadãos de segunda classe. Eles sentem que esta é uma consequência lógica e inexorável do ensinamento de que existe apenas uma religião verdadeira, e que um Estado Católico é (per se) obrigado a fazer profissão pública dessa verdadeira religião.
Esse medo foi em grande parte engendrado pela caricatura da doutrina da Igreja apresentada pelos liberais do século XIX. Pode ter sido alimentada ainda mais por alguns teólogos excessivamente rígidos que consideravam que um Estado católico sempre seria obrigado a reprimir as seitas heréticas.
A melhor maneira de dissipar esse medo é mostrar que se trata de uma caricatura de simplificação excessiva, simplesmente acrescentando ensino papal explícito sobre o assunto em discussão [Nota: Não é incomum encontrar até mesmo os princípios mais fundamentais do cristianismo caricaturados por tal simplificação. Assim, a Trindade é apresentada como “três deuses”, a Encarnação significa que Cristo é um híbrido fantástico, “meio deus e meio homem”, a Redenção significa que Deus usou Cristo como um “menino chicoteado”, etc.]. Leão XIII, após apontar a obrigação de um Estado católico de reconhecer publicamente a verdadeira religião, afirma claramente:
Tampouco há razão para que alguém acuse a Igreja de carecer de gentileza de ação ou amplitude de visão, ou de se opor à liberdade real e legal. A Igreja, de fato, considera ilegal colocar as várias formas de culto divino em pé de igualdade com a verdadeira religião, mas, por isso, não condena aqueles governantes que, para garantir algum grande bem ou impedir algum grande mal, permitem pacientemente que o costume ou o uso sejam uma espécie de sanção para cada tipo de religião que tem seu lugar no Estado. E, de fato, a Igreja costuma prestar muita atenção para que ninguém seja forçado a abraçar a fé católica contra sua vontade, pois, como Santo Agostinho nos lembra sabiamente, "o homem não pode acreditar senão por sua própria vontade". -ID 36
Mais uma vez, o mesmo papa em sua encíclica Sobre a liberdade humana (1888) em sua discussão sobre a liberdade de consciência, depois de apontar o absurdo de pensar que existe algum direito [Nota: queremos dizer um direito moral, não civil] de adorar a Deus ou ignorá-lo por capricho, passa a estabelecer o princípio que governa a permissão paciente de males objetivos, incluindo o mal objetivo das falsas religiões. Este princípio é simplesmente um reflexo fiel do próprio método de governo de Deus. Embora Deus abomine o mal, Ele permite alguns males para prevenir outros ainda piores, ou para a proteção de algum bem maior:
No entanto, com o discernimento de uma verdadeira mãe, a Igreja pesa o grande fardo da fraqueza humana e conhece bem o rumo que as mentes e ações dos homens de nossa época estão tomando. Por isso, embora não conceda direito a nada senão o que é verdadeiro e honesto, ela não proíbe a autoridade pública de tolerar o que está em desacordo com a verdade e a justiça, a fim de evitar algum mal maior, ou de obter ou preservar algum bem maior. O próprio Deus em Sua providência, embora infinitamente bom e poderoso, permite que o mal exista no mundo, em parte para que um bem maior não seja impedido, e em parte para que um mal maior não ocorra. No governo dos Estados não é proibido imitar o Governante do mundo; e, como a autoridade do homem é impotente para impedir todo mal, ela deve (como diz Santo Agostinho) ignorar e deixar impunes muitas coisas que são punidas, e com razão, pela Divina Providência. Mas se, em tais circunstâncias, por causa do bem comum (e esta é a única razão legítima), a lei humana pode ou mesmo deve tolerar o mal, não pode e não deve aprovar ou desejar o mal por si mesmo; pois o mal em si, sendo uma privação do bem, se opõe ao bem comum que todo legislador é obrigado a desejar e defender com o melhor de sua capacidade. Nisto, a lei humana deve esforçar-se por imitar Deus, que, como ensina São Tomás, ao permitir que o mal exista no mundo "nem quer que o mal seja feito, nem quer que não seja feito, mas quer apenas permitir que seja feito, e isso é bom." Este dito do Doutor Angélico contém resumidamente toda a doutrina da permissão do mal. -Sobre a liberdade humana, Gilson ed., no. 33
O ensinamento de Leão de que as religiões não católicas, embora objetivamente falsas, podem ter status legal em um Estado católico e que seus adeptos não devem sofrer incapacidades cívicas por causa de suas convicções honestas, foi reiterado, endossado e apresentado em termos ainda mais fortes por Pio XII várias vezes. Em seu discurso aos advogados católicos italianos, Ci Riesci (6 de dezembro de 1953), ele apela a esse princípio de tolerância cristã do mal religioso ou moral objetivo em prol de um bem maior, mesmo quando um Estado católico possui o poder de reprimir tais males. Ele repreende fortemente a opinião de que, porque "o mal não tem direito objetivo de existir", sempre corresponde o dever de reprimi-lo. Em outras palavras, o papa repreende a declaração direta e sem reservas de que "tolerar males religiosos ou morais quando se tem o poder de detê-los é em si uma maneira imoral de agir". Ele aponta que, em algumas circunstâncias, a tolerância do mal não é apenas permissível, mas pode ser o melhor caminho a seguir. Ao estabelecer esses princípios, Pio XII apela não apenas ao princípio usado por Leão, mas também cita as palavras de Cristo sobre não tentar erradicar o joio antes da época da colheita:
Acabamos de apresentar a autoridade de Deus. Poderia Deus, embora Lhe fosse possível e fácil reprimir o erro e o desvio moral, em alguns casos escolher o “não impedimento” sem contrariar a Sua infinita perfeição? Será que em certas circunstâncias Ele não daria aos homens nenhum mandato, não imporia nenhum dever e nem mesmo comunicaria o direito de reprimir o que é errôneo e falso? Um olhar para as coisas como elas são dá uma resposta afirmativa. A realidade mostra que o erro e o pecado estão no mundo em grande medida. Deus os reprova, mas permite que existam. Daí a afirmação: o erro religioso e moral deve ser sempre impedido, quando possível, porque tolerá-los é em si imoral, não é válido absoluta e incondicionalmente.
Além disso, Deus não deu nem mesmo à autoridade humana um comando tão absoluto e universal em questões de fé e moralidade. Tal comando é desconhecido das convicções comuns da humanidade, da consciência cristã, das fontes da Revelação e da prática da Igreja. Para omitir aqui outros textos bíblicos que são aduzidos em apoio a este argumento, Cristo na parábola do berbigão dá o seguinte conselho: "deixe a cizânia crescer no campo do mundo junto com a boa semente em vista da colheita" (veja Mateus 13: 24-30). O dever de reprimir o erro moral e religioso não pode, portanto, ser norma última de ação. Deve estar subordinado a normas mais altas e gerais, que em algumas circunstâncias permitem, e talvez até pareçam indicar como a melhor política, a tolerância ao erro a fim de promover um bem maior.
Esclarecem-se assim os dois princípios aos quais se deve recorrer em casos concretos para responder à grave questão relativa à atitude que o jurista, o estadista e o Estado católico soberano devem adotar em consideração à comunidade das nações em relação a uma fórmula de tolerância religiosa e moral descrita acima. Primeiro: aquilo que não corresponde objetivamente à verdade ou à norma moral não tem direito de existir, de se difundir ou de ser ativado. Em segundo lugar: a falha em impedir isso com leis civis e medidas coercitivas pode, no entanto, ser justificada no interesse de um bem maior e mais geral. -Tradução de AER, 134 (1954), pp. 134-5 [Nota: A linguagem deste discurso é redigida com extremo cuidado, com muitas nuances. Um leitor comum, desacostumado com a precisão papal, pode concluir que o papa estava "se protegendo" da questão. "Por que ele simplesmente não disse 'sim' ou 'não'?" um leigo irritado pode perguntar. A razão é que não existem respostas simples para problemas em si mesmos delicados e complexos. Respostas simples são para problemas simples. O assunto aqui em questão envolve um delicado equilíbrio de princípios que não pode ser simplesmente esmagado, mas deve ser contrabalançado. O discurso era para mentes jurídicas, em fraseologia jurídica, e seria apreciado por mentes sintonizadas com os refinamentos da terminologia jurídica. Para uma análise cuidadosa deste discurso, veja o comentário de J. C. Fenton em "The Teaching of Ci Riesci," ibid., pp. 114-23].
Ainda mais recentemente, em seu Discurso aos Historiadores (7 de setembro de 1955), Pio XII afirma enfaticamente que a Igreja sempre respeitou e sempre respeitará a consciência dos não católicos, mesmo quando desaprova os princípios errôneos aos quais eles podem subscrever de boa fé. A posição deles é totalmente diferente da dos católicos apóstatas que deliberadamente rejeitam a fé na qual foram educados. A Igreja considera tais católicos como cometendo pecado por sua apostasia. Não culpa os não católicos que honestamente discordam. A Igreja respeita sua consciência enquanto rejeita seus princípios:
Que ninguém objete que a própria Igreja despreza as convicções pessoais daqueles que não pensam como ela. A Igreja considerou e ainda considera pecado o abandono voluntário da verdadeira fé. Ao começar por volta de 1200, tal deserção envolveu processos penais tanto por parte do poder espiritual quanto temporal, foi apenas para evitar a destruição da unidade religiosa e eclesiástica do Ocidente [Nota: Não houve protestantes envolvidos na inquisição medieval porque ainda não existiam protestantes. Como o erudito historiador não católico, Runciman, apropriadamente observa: "Escritores que procuram encontrar os herdeiros dos cátaros nos protestantes da Reforma ou mesmo nos primeiros protestantes que chamamos de lolardos e hussitas, fazem uma injustiça ao protestantismo". (The Medieval Manichee [Cambridge, 1955], p. 178). Todos os envolvidos eram católicos. Como tal, eles estavam sujeitos à jurisdição da Igreja e sujeitos às penalidades espirituais que ela tinha o direito de impor. O fato de esses católicos apóstatas também receberem punições do Estado (desde multas até exílio ou execução) deveu-se às circunstâncias peculiares da configuração medieval Igreja-Estado, em que ser católico era ser cidadão e vice-versa. Consequentemente, a heresia era considerada um crime simultaneamente contra a Igreja e o Estado. A mente moderna recua à simples menção da palavra "inquisição". Sem tentar desculpar muitos dos horrores reais que o acompanharam (extorsão de provas por tortura, testemunhas secretas, etc.), pensamos que pode ser dito com segurança que o público leitor em geral recebeu uma descrição muito mais horripilante de todo o negócio. do que a calma evidência histórica parece justificar. O maniqueu medieval (albigense) não era um dissidente teórico, apegando-se educada e sinceramente às suas convicções pessoais de consciência, como faria um professor universitário do século XX; ele parece ter sido um conspirador ativo contra a sociedade, como um comunista do século XX. Ele colocou suas idéias peculiares em ação. Muitas de suas ideias - como sua convicção da depravação básica do casamento ou seu direito de assassinar companheiros maniqueístas para evitar que recaíssem - eram, para dizer o mínimo, subversivas da sociedade. Concedendo generosas concessões a piedosos exageros, Runciman admite que essas teorias foram certamente sustentadas pelo maniqueu medieval e, pelo menos de tempos em tempos, realizadas na prática (cf. op. cit., p. 151, 158, 176-7). Mas a inquisição é um problema complicado demais para ser resolvido de maneira sumária. Para uma avaliação honesta da inquisição por historiadores católicos, veja Vacandard, The Inquisition, e Maycock, The Medieval Inquisition. Também vale a pena ler sobre este ponto o breve ensaio de Heinrich Rommen, professor de ciências políticas na Universidade de Georgetown, "The Church and Human Rights" em The Catholic Church in World Affairs (Notre Dame, Indiana, 1954), pp. 53, e o tratamento de Monsenhor Journet da inquisição em "A Igreja do Verbo Encarnado", I, 262-304. Nenhum dos historiadores, filósofos ou teólogos católicos mencionados acima tenta encobrir totalmente a inquisição; mas procuram colocá-lo em sua perspectiva adequada em relação ao meio medieval e torná-lo inteligível, pelo menos nesses termos. Runciman também, embora não católico, não parece surpreso com o fato de medidas repressivas terem sido tomadas contra o maniqueu medieval; era algo que se poderia esperar naturalmente nas circunstâncias dadas: Não é notável que a propagação do Dualismo tenha aterrorizado não apenas os clérigos de pensamento correto, mas também muitas das autoridades leigas. Foi considerado heresia, e corretamente considerado... Não há lugar para Cristo em uma religião verdadeiramente Dualista. Assim, todos os bons cristãos devem necessariamente lutar contra o Dualismo. E o Estado costuma apoiá-los. Pois a doutrina do Dualismo leva inevitavelmente à doutrina de que o suicídio racial é desejável: e essa é uma doutrina que nenhuma autoridade leiga pode considerar com aprovação. Além disso, havia outra razão pela qual a Igreja e o Estado detestavam a Tradição Dualista. Para eles, estava associado à obscenidade orgiástica. É possível descartar as horríveis insinuações de escritores ortodoxos como mera propaganda, mas a regularidade das acusações torna necessária alguma investigação. ... De fato, o relato das orgias dualistas não pode ser totalmente fictício, o dualismo necessariamente desaprova a propagação da espécie. Portanto, desaprova o casamento muito mais do que a relação sexual casual, pois o último representa apenas um pecado isolado, enquanto o primeiro é um estado de pecado. Da mesma forma, a relação sexual de tipo não natural, ao eliminar qualquer risco de procriar filhos, era preferível à relação sexual normal entre o homem e a mulher. Além disso, até sua cerimônia de iniciação, o Crente Dualista era apenas uma criação do Diabo. Satisfazer seus apetites carnais não o tornaria pior.-Op. cit., 175-7].
Aos não católicos a Igreja aplicou o princípio contido no Código de Direito Canônico: "Ninguém seja forçado contra sua vontade a abraçar a fé católica" (Ad amplexandam fidem catholicam nemo invitus cogatur, cânon 1351). Ela acredita que suas convicções constituem uma razão, embora nem sempre a principal, para a tolerância. Já tratamos do assunto em nosso discurso de 6 de dezembro de 1953 aos advogados católicos da Itália.
Que os católicos americanos, tanto a hierarquia quanto os leigos, subscrevem esse ensinamento papal e estão genuinamente interessados em salvaguardar todos os direitos e a dignidade de seus concidadãos não católicos é um fato fácil o suficiente para comprovar para qualquer pessoa disposta a fazer um pouco de pesquisa paciente. A famosa resposta do cardeal Manning a Gladstone sobre a questão da liberdade religiosa seria entusiasticamente endossada por qualquer católico americano e é apenas típica de declarações semelhantes de bispos americanos emitidas em vários momentos da história deste país [Nota: Veja, por exemplo, a declaração do falecido arcebispo John T. McNicholas: “Nós negamos absolutamente e sem qualquer qualificação que os bispos católicos dos Estados Unidos estejam buscando uma união da Igreja e do Estado por quaisquer esforços, próximos ou remotos. Se amanhã os católicos constituíssem a maioria em nosso país, eles não buscariam uma união entre Igreja e Estado”. - "The Catholic Church in American Democracy", comunicado de imprensa do NCWC, 26 de janeiro de 1948, conforme citado em J. Cavanaugh, Evidence for Our Faith (Notre Dame, Indiana, 1952), p. 296]:
"Se os católicos estivessem no poder amanhã na Inglaterra", escreveu o cardeal Manning, "nem uma lei penal seria proposta, nem uma sombra de restrição imposta à fé de qualquer homem. Gostaríamos que todos os homens acreditassem plenamente na verdade; a fé é uma hipocrisia odiosa para Deus e para o homem... Se os católicos fossem amanhã a raça imperial nesses reinos, eles não usariam o poder político para molestar o estado religioso hereditário e dividido do povo. Nós não fecharíamos nenhuma de suas Igrejas, faculdades ou escolas. Eles teriam as mesmas liberdades que desfrutamos como minoria." - Henry E. Manning, The Vatican Decrees in Their Bearing on Civil Allegiance citado em Maritain, op. cit., pág. 181.
Se a América algum dia se tornará 90 ou 95% católica, não sabemos. Talvez as bombas de hidrogênio excluam tal possibilidade; talvez daqui a duzentos anos todos os católicos americanos tenham apostatado da Igreja ou tenham sido jogados aos leões como seus ancestrais, por causa da histeria dos "verdadeiros romanos" que temem a derrubada dos deuses nacionais. Talvez a América se torne 100% católica e então não haverá mais ninguém para temer os perigos desconhecidos do catolicismo. Quem sabe? Existem muitas possibilidades, mas não pretendemos o manto da profecia. Para todos os que desejam profetizar, podemos apenas dizer: houve falsos profetas.
Finalmente, pode ser útil, em vez de tentar vislumbrar o futuro puramente hipotético, estudar algo do presente. Um país católico, que na sua constituição afirma publicamente a sua devoção ao catolicismo, não menos veementemente afirma os direitos dos seus cidadãos não católicos e reconhece o estatuto jurídico de várias religiões não católicas. Referimo-nos à República da Irlanda. Uma leitura atenta de trechos de sua constituição indicará que não há nada inerente aos princípios católicos que represente uma ameaça à liberdade cívica e religiosa:
CONSTITUIÇÃO DA EIRE
1. Em nome da Santíssima Trindade, de quem é toda a autoridade e a quem, como nosso fim último, todas as ações, tanto dos homens quanto dos Estados, devem ser referidas,
Nós, o povo da Irlanda,
reconhecendo humildemente todas as nossas obrigações para com Nosso Divino Senhor Jesus Cristo... e procurando promover o bem comum, com a devida observância da Prudência, da Justiça e da Caridade, para que sejam asseguradas a dignidade e a liberdade do indivíduo, alcançada a verdadeira ordem social, a unidade de nosso país restaurada e a concórdia estabelecida com outras nações, por meio deste, adotamos e damos a nós mesmos esta Constituição.
Direitos Pessoais
Artigo 40.º Todos os cidadãos são, como pessoas humanas, iguais perante a lei.
A família
Art. 41. O Estado reconhece a Família como unidade natural, primária e fundamental da Sociedade, e como instituição moral dotada de direitos inalienáveis e imprescritíveis, antecedente e superior a todo direito positivo.
Educação
Artigo 42.º 1. O Estado reconhece que o educador primário e natural da criança é a Família e garante respeitar o direito e o dever inalienável dos pais de prover, segundo as suas possibilidades, o sustento religioso e moral, intelectual, físico e social educação de seus filhos.
2. Os pais são livres de ministrar esta educação no seu domicílio ou em escolas particulares ou reconhecidas e instituídas pelo Estado.
3. O Estado não obrigará os pais, em violação da sua consciência e preferência legal, a enviar os seus filhos para escolas estabelecidas pelo Estado, ou para qualquer tipo particular de escola designada pelo Estado.
Religião
Artigo 44.º 1. (i) O Estado reconhece que a homenagem do culto público é devida ao Deus Todo-Poderoso. Terá Seu Nome em reverência e respeitará e honrará a religião.
(ii) O Estado reconhece a posição especial da Santa Igreja Católica Apostólica e Romana como guardiã da Fé professada pela grande maioria dos cidadãos.
(iii) O Estado também reconhece a Igreja da Irlanda, a Igreja Presbiteriana na Irlanda, a Igreja Metodista na Irlanda, a Sociedade Religiosa de Amigos na Irlanda, bem como as Congregações Judaicas e outras denominações religiosas existentes na Irlanda na data de a entrada em vigor desta Constituição
2. (i) A liberdade de consciência, a livre profissão e prática da religião são, sujeitas à ordem pública e aos bons costumes, garantidas a todos os cidadãos.
(ii) O Estado garante não adotar nenhuma religião.
(iii) O Estado não deve impor nenhuma deficiência ou fazer qualquer discriminação com base na profissão religiosa, crença ou status.
(iv) A legislação que fornece auxílio estatal para escolas não deve discriminar entre escolas administradas por diferentes confissões religiosas, nem ser tal que afete prejudicialmente o direito de qualquer criança de frequentar uma escola que recebe dinheiro público sem frequentar instrução religiosa nessa escola.
(v) Toda denominação religiosa terá o direito de administrar seus próprios negócios, possuir, adquirir e administrar propriedades, móveis e imóveis, e manter instituições para fins religiosos ou de caridade.
(vi) A propriedade de qualquer denominação religiosa ou qualquer instituição educacional não deve ser desviada, exceto para obras necessárias de utilidade pública e mediante pagamento de indenização. - Igreja e Estado Através dos Séculos: Uma coleção de documentos históricos com comentários, trad. e ed. por S. Z. Ehler e J. B. Morrall (Westminster, Maryland, 1954), 595-9.
Scholion 2: Onde o relacionamento "ideal" não é obtido.
Ainda que o estabelecimento de relações jurídicas entre Igreja e Estado seja o ideal católico, a "tese" católica, não é necessariamente corolário, parece-nos, que qualquer outro arranjo seja necessariamente mau (per se malum). A dicotomia proposta: "ou você tem o ideal, ou você tem algo per se mau" certamente parece falsa. Existem muitas gradações entre o ideal e o mal: há o ideal (melhor), o melhor, o bom e, só então, o mal. A dicotomia é uma falsa apresentação de nossa posição, ou pelo menos uma representação excessivamente rígida dela por alguns teólogos católicos. O fato de a Igreja afirmar a superioridade da virgindade sobre o casamento não significa que ela o despreze, mas o venera muito. Da mesma forma, embora a Igreja elogie e deseje que seus membros busquem a relação Igreja-Estado ideal [Nota: O que poderia ser mais natural do que um povo profundamente católico desejar publicamente e com orgulho proclamar seu amor e lealdade a Jesus Cristo e à Sua Igreja? Todo povo, incluindo o americano, instintivamente proclama em voz alta suas lealdades e ideais nativos] por todos os meios honrosos, respeitando as consciências dos não-católicos em seu meio, ela de forma alguma despreza ou considera más outras relações exigidas por circunstâncias particulares. A Igreja não tem apenas um princípio a ter em mente - a obrigação do homem como ser social de fazer profissão social de sua religião - existem outros princípios católicos: que as pessoas individuais são obrigadas a seguir suas consciências, mesmo consciências errôneas; que nenhum homem pode ser constrangido a aceitar o catolicismo; e, finalmente, que o Estado tem a obrigação de prover o bem-estar comum de todos, não apenas de seus cidadãos católicos. Onde, então, o ideal é irrealizável sem dano a outros princípios, a Igreja se contenta com algo bom, embora menos bom. É por isso que o atual Santo Padre se esforçou especialmente para apontar explicitamente para a América para mostrar que a Igreja pode prosperar nas mais diversas situações:
A Igreja não esconde que, em princípio, ela considera tal colaboração [isto é, entre a Igreja e o Estado em uma nação católica] normal e que ela considera a unidade do povo na verdadeira religião e a unanimidade de ação entre ela e o estado como um ideal.
Mas ela também sabe que há algum tempo os eventos evoluíram em uma direção bastante diferente, ou seja, em direção à multiplicidade de crenças religiosas e concepções de vida dentro de uma mesma comunidade nacional, onde os católicos são uma minoria mais ou menos forte. Pode ser interessante e surpreendente para o historiador encontrar nos Estados Unidos da América um exemplo, entre outros, do modo como a Igreja consegue florescer nas situações mais díspares. -Discurso aos Historiadores.
Como assinala Pio XII na mesma alocução, a Igreja, ainda que a sua meta alcance a eternidade, como o seu Fundador, entrou em todas as complexidades do tempo. Sem abdicar de princípios, a Igreja adapta-se com uma flexibilidade admirável a todas as multitudinárias culturas por onde passou, sem se tornar simplesmente um artefacto de uma determinada época - antiga, medieval ou moderna. Seu objetivo em todas as épocas é principalmente religioso e moral, mas porque ela está situada em circunstâncias históricas e sempre tem o homem como seu objeto, a Igreja está interessada em tudo o que afeta a humanidade em qualquer período e se esforça para promover tudo que promova o bem-estar do homem:
A Igreja sabe que a sua missão, embora pela sua natureza e pelas suas finalidades pertença ao domínio religioso e moral, situada no além e na eternidade, penetra, no entanto, até ao próprio coração da história humana. Sempre e em toda a parte, adaptando-se incessantemente às circunstâncias do tempo e do lugar, ela procura modelar as pessoas, os indivíduos e, na medida do possível, todos os indivíduos segundo as leis de Cristo, alcançando assim a base moral da vida social. O objeto da Igreja é o homem naturalmente bom, imbuído, enobrecido e fortalecido pela verdade e graça de Cristo. -Ibid.
Essa simpatia da Igreja pelo homem governa não apenas suas relações com os indivíduos em qualquer época histórica, mas também as sociedades humanas. É por isso que ela mostra a mesma flexibilidade maravilhosa em lidar com tipos de Estado tão díspares. Embora seu ideal seja a colaboração íntima com o Estado entre um povo religiosamente unido, ela não hesita em entrar em concordatas com sociedades onde o fundo religioso pode ser pluralista. Em algumas concordatas, a Igreja e o Estado podem expressar suas convicções religiosas comuns; em outros, a Igreja pode simplesmente desejar uma honrosa independência para fazer seu próprio trabalho; em outros ainda, ela pode simplesmente querer ajudar a preservar a tranquilidade social, traçando linhas de demarcação entre o Estado e ela, evitando ou diminuindo a possibilidade de conflitos futuros:
Na história das relações entre a Igreja e o Estado, as Concordatas, como sabeis, desempenham um papel importante. ... nas Concordatas, digamos, a Igreja procura a segurança jurídica e a independência necessárias à sua missão.
É possível, acrescentemos, que a Igreja e o Estado proclamem em Concordata as suas convicções religiosas comuns. Mas também pode acontecer que a Concordata tenha por objetivo, entre outros, prevenir conflitos sobre questões de princípio e evitar desde o início possíveis ocasiões de conflito. Quando a Igreja assina uma Concordata, a aprovação se aplica a todo o seu conteúdo.
Mas o significado mais profundo pode incluir matizes de significado sobre os quais ambas as partes contratantes conhecem. Pode significar uma aprovação expressa, mas também pode prever uma tolerância simples... de acordo com os princípios que servem de norma para a convivência da Igreja e seus fiéis com os homens e poderes de diferentes crenças. -Ibid.
Resumindo, a Igreja faz o melhor em qualquer sociedade - católica, protestante ou secular - para promover o bem-estar do indivíduo e o bem da sociedade como um todo. Ela respeita e defende toda autoridade civil legal como tendo Deus como seu autor final. Ela instrui os fiéis - sejam eles uma minoria ou uma maioria - a respeitar e obedecer à autoridade civil. Ela tenta ser "todas as coisas para todos os homens, a fim de ganhar todos os homens para Cristo". Santo Agostinho descreve lindamente essa atitude imutável em todas as épocas quando se dirige à Igreja Católica com estas palavras:
Tu ensinas e treinas as crianças com muita ternura; jovens com muito vigor, velhos com muita gentileza; como a idade não só do corpo, mas da mente de cada um exige. As mulheres sujeitas a seus maridos em obediência casta e fiel, não para satisfazer sua luxúria, mas para dar à luz filhos e participar das preocupações da família. Tu colocas os maridos acima de suas esposas, não para que eles brinquem com o sexo mais fraco, mas de acordo com os requisitos de afeto sincero. Tu sujeitas os filhos a seus pais em uma espécie de serviço gratuito, e estabeleces os pais sobre ... Tu unes seus filhos com uma regra benigna não apenas na sociedade, mas em uma espécie de irmandade, cidadão com cidadão, nação com nação e toda a raça dos homens, lembrando-os de sua paternidade comum. Tu ensinas os reis a cuidar dos interesses de seu povo e admoestas o povo a ser submisso a seus reis. Com todo o cuidado, ensinas a todos a quem se deve honra, afeição, reverência, temor, consolo, admoestação, exortação, disciplina, censura e punição. Tu mostras que tudo isso não é igualmente incumbido a todos, mas que a caridade é devida a todos e a injustiça a ninguém. - De moribus i. 30. 63; ver identificação 20.
Para qualquer um que calunie a Igreja como sendo hostil ao Estado ou hostil ao bem-estar da sociedade, vale a pena ponderar profundamente a resposta de Santo Agostinho à mesma calúnia em seus dias:
Que aqueles que dizem que o ensino de Cristo é prejudicial ao Estado produzam tais exércitos como as máximas de Jesus ordenaram aos soldados que criassem; tais governadores de províncias; tais maridos e esposas; tais pais e filhos; tais mestres e servos; tais reis; tais juízes, e tais pagadores e coletores de tributos, como o ensino cristão os instrui a se tornarem, e então deixe-os ousar dizer que tal ensino é prejudicial ao Estado. Não, eles hesitarão em reconhecer que esta disciplina, se devidamente praticada, é o esteio da comunidade. -Epistula cxxxviii. 2. 15; ver ID 20
Leão XIII nos tempos modernos respondeu à mesma calúnia desta forma:
Portanto, quando se diz que a Igreja é hostil aos regimes políticos modernos e que ela repudia as descobertas da pesquisa moderna, a acusação é uma calúnia ridícula e infundada. Opiniões selvagens ela repudia, projetos perversos e sediciosos ela condena, juntamente com aquela atitude mental que aponta para o início de um afastamento voluntário de Deus. Mas, como toda verdade deve necessariamente proceder de Deus, a Igreja reconhece em toda verdade alcançada pela pesquisa um traço da inteligência divina. E como toda verdade na ordem natural é impotente para destruir a crença nos ensinamentos da revelação, mas pode fazer muito para confirmá-la, e como toda verdade recém-descoberta pode servir para promover o conhecimento ou o louvor de Deus, segue-se que tudo o que espalha o gama de conhecimento será sempre bem-vinda e até alegremente acolhida pela Igreja. Ela sempre incentivará e promoverá, como faz em outros ramos do conhecimento, todo estudo voltado para a investigação da natureza. Nessas buscas, se o intelecto humano descobrir algo não conhecido antes, a Igreja não se opõe. Ela nunca se opõe a procurar coisas que ministrem os refinamentos e confortos da vida. Longe, de fato, de se opor a eles, ela é agora, como sempre foi, hostil apenas à indolência e à preguiça, e deseja sinceramente que os talentos dos homens produzam frutos cada vez mais abundantes pelo cultivo e exercício. -ID 39.
Artigo II
VALOR TEOLÓGICO DO ENSINO DE LEÃO XIII
I. Observações Preliminares
II. O Ensinamento de Leão XIII é a Doutrina Católica:
1. A própria natureza de uma encíclica
2. Uma inspeção da própria Immortale Dei
3. O acordo unânime dos teólogos
4. Endosso papal subsequente
Artigo II
VALOR TEOLÓGICO DO ENSINO DE LEÃO XIII
I. Observações Preliminares
Acaba de ser apresentada uma breve síntese do ensinamento da Igreja sobre as relações ideais que devem existir entre a Igreja e o Estado num país católico. A maior parte desse ensinamento foi sintetizada por Leão XIII em sua famosa Immortale Dei e outras encíclicas relacionadas. Qual é o valor teológico do ensinamento de Leão neste assunto? Seus ensinamentos representam simplesmente seus pontos de vista como teólogo particular? É apenas um ensino autoritário garantido como seguro por um tempo, mas restrito em seu valor aos problemas peculiares que enfrentaram a Igreja em meio a um desenfreado liberalismo anti-religioso do século XIX? Ou é algo de aplicação universal, expressando claramente o pensamento da Igreja: uma norma perene para todos os teólogos e fiéis ao lidar com este problema sempre delicado e complexo da Igreja e do Estado?
Levantamos esta questão explicitamente porque, à luz de alguns escritos controversos recentes na América, não-teólogos e particularmente não-católicos podem chegar erroneamente - e não necessariamente por causa de qualquer um dos participantes teológicos no debate [Nota: Todos os teólogos envolvidos declararam enfaticamente sua lealdade e submissão aos ensinamentos de Leão; eles simplesmente discordaram sobre qual seria o entendimento adequado desta ou daquela seção de seus escritos] - à noção de que o ensinamento de Leão era algo meramente pertinente a um contexto histórico peculiar e, portanto, capaz de ser reformulado à luz de cada mudança de "constelação histórica", para usar a frase poética de Maritain. [Op. Cit., p. 160].
II. O Ensinamento de Leão XIII é a Doutrina Católica:
Uma análise do valor do ensinamento de Leão sobre a Igreja e o Estado pode ser obtida rapidamente a partir de uma breve consideração destes pontos: 1. a própria natureza de uma encíclica; 2. uma inspeção da própria Immortale Dei; 3. o acordo unânime dos teólogos; 4. o endosso dos ensinamentos de Leão pelos papas subsequentes.
1. A própria natureza de uma encíclica. Uma encíclica é um importante documento papal destinado a levar o ensinamento ordinário do papa a todo o mundo católico, mesmo que seja endereçado a alguma igreja em particular. Consequentemente, uma encíclica dá a opinião clara da Igreja sobre o assunto em discussão. Seu conteúdo visto como um todo exigirá sempre, no mínimo, um assentimento de obediência religiosa interna. No máximo, alguns de seus conteúdos podem exigir um consentimento da fé divina e católica: por exemplo, não é incomum que as encíclicas repitam pontos que já foram solenemente definidos pela Igreja. Para usar um rótulo abrangente, então, a melhor maneira de classificar o conteúdo de uma encíclica, visto como um todo, provavelmente seria: ensino católico. Esta é uma etiqueta elástica usada para cobrir uma variedade de assentimentos. Significa doutrina que é ensinada em todo o mundo católico e, portanto, não é algo do mero domínio da opinião. Para que ninguém confunda a importância das cartas encíclicas, o atual papa lembrou aos teólogos em seu Humani generis (12 de agosto de 1950) que as encíclicas exigem nosso consentimento. Eles são uma expressão do poder de ensino comum da Igreja, ao qual é correto aplicar a máxima de Cristo: "Quem vos ouve, a mim ouve".
2. Uma inspeção da própria Immortale Dei confirma o fato de que Leão não estava restringindo seu ensino apenas a uma situação especial que ele estava enfrentando, nem simplesmente expressando suas próprias opiniões como um teólogo particular. Repetidas vezes na encíclica ele se refere ao fato de estar exercendo seu ofício apostólico de mestre de toda a Igreja; em segundo lugar, que seu ensino sobre a Igreja e o Estado é, em última análise, fundamentado na revelação e na filosofia sólida. Algumas citações serão suficientes para mostrar isso claramente. Depois de afirmar que muitos tentaram elaborar planos para a sociedade civil com base em doutrinas diferentes das aprovadas pela Igreja Católica, ele escreve:
Mas, embora empreendimentos de vários tipos tenham sido realizados, é claro que nenhum modo melhor foi concebido para construir e governar o Estado do que aquele que é o crescimento necessário dos ensinamentos do evangelho. Consideramos, portanto, da mais alta importância, e um estrito dever de Nosso ofício apostólico, contrastar com as lições ensinadas por Cristo as novas teorias agora apresentadas a respeito do Estado. -2.
Tal é, pois, conforme indicamos brevemente, a organização cristã da sociedade civil; não moldado de forma imprudente ou fantasiosa, mas eduzido dos princípios mais elevados e verdadeiros, confirmados pela própria razão natural. -16.
Este, então, é o ensinamento da Igreja Católica sobre a constituição e governo do Estado. -36.
Visto que a verdade, quando trazida à luz, costuma, por sua própria natureza, espalhar-se por toda parte e gradualmente tomar posse das mentes dos homens, nós, movidos pelo grande e santo dever de nossa missão apostólica a todas as nações, falamos, como somos obrigados a fazer, com liberdade. -40.
Finalmente, no encerramento da encíclica, Leão afirma inequivocamente que seu ensinamento é dirigido não apenas a um país, mas a todo o mundo católico:
Isso, veneráveis irmãos, é o que pensamos ser nosso dever expor a todas as nações do mundo católico a respeito da constituição cristã dos estados e dos deveres dos cidadãos individuais. -50.
3. O acordo unânime dos teólogos. Finalmente, todos os teólogos e canonistas desde a época de Leão até o presente referem-se ao ensinamento de Leão como a fonte clássica do ensinamento da Igreja sobre as relações entre Igreja e Estado. Seria cansativo enumerá-los todos. Aqui estão alguns dos teólogos padrão: Billot, Tanquerey, Hervé, Pesch, Zapalena, Tromp, Garrigou-Lagrange, Parente e Salaverri. Aqui estão alguns dos canonistas padrão: Ottaviani, Cappello, Coronata e Bender. [Nota: 1. Os seguintes teólogos e canonistas apelam para a autoridade de Leão XIII como fonte de seus ensinamentos sobre as relações adequadas entre Igreja e Estado:Teólogos: L. Billot, De ecclesia Christi (3rd ed., 1929), II, passim and especially p. 82-93; R. Garrigou-Lagrange, De revelatione (4th ed., 1945), II, p. 411-9; J. M. Hervé, Manuale theologiae dogmaticae (5th ver. Ed., 1951), p.244-5; L. Lercher, op. Cit., p. 244-5; Parente, Theologia fundamentalis, op. Cit., 185-90; C. Pesch, Compendium theologiae dogmaticae (2nd ed., 1929), I, 160-3; I Salaverri, op. Cit., (1952), I, 805-17; A. Tanquerey, Synopsis theologiae dogmaticae (26th ed., 1949), I, 686-701. Canonistas: L. Bender, op. cit., p. 177-8; Capello, Summa iuris publici ecclesiastici (4th ed., 1936), p. 128-41; M. Coronata, Compendium iuris canonici (1937), p. 25-48; A. Ottaviani, Institutiones iuris publici ecclesiastici ), I, p. 157-72].
4. Endosso papal subsequente. Leão XIII, em sua própria encíclica, referiu-se ao fato de estar apenas repetindo e desenvolvendo o que os papas anteriores haviam ensinado sobre os mesmos princípios fundamentais. Ele cita explicitamente Gregório XVI e Pio IX (ID 34). São Pio X reiterou a condenação de Leão da doutrina liberalista da Igreja e do Estado em seu Vehementer Nos, dirigido à França em 1906 [Nota: Bender, op. cit., p. 178]. Pio XI repetiu a doutrina de Leão sobre a obrigação da sociedade civil de prestar culto público a Cristo Rei em sua encíclica Quas primas. [Nota: 4. See Pius XI, The Kingship of Christ (Quas primas), translated by Gerald Treacy (New York, 1944), nos. 20 and 24].
Se restasse alguma dúvida de que Leão XIII representou a mente clara da Igreja em seus ensinamentos sobre Igreja e Estado, Pio XII dissipou tais ilusões em seu recente Discurso aos Historiadores (7 de setembro de 1955). Observando que os estudiosos têm estado recentemente atentos à história das relações entre a Igreja e o Estado, o atual Santo Padre afirma que Leão colocou em uma espécie de fórmula as relações adequadas que devem existir entre as duas sociedades. Depois de afirmar que Leão deu "uma explicação esclarecedora" dessas relações em suas encíclicas Diuturnum illud (1881), Immortale Dei (1885) e Sapientiae Christianae (1890), Pio XII refere-se ao valor do ensinamento de Leão sobre a Igreja e o Estado nessas palavras:
Pode-se dizer que, com exceção de alguns séculos - tanto nos primeiros 1.000 anos quanto nos últimos 400 - a declaração de Leão XIII reflete mais ou menos explicitamente a mente da Igreja. Além disso, mesmo durante o período intermediário, havia representantes da doutrina da Igreja - talvez até uma maioria que compartilhava da mesma opinião. Para ver o original em francês, ver AAS, 47 (1955), 678.
Em outras palavras, Pio XII nos diz claramente que o ensinamento de Leão sobre a Igreja e o Estado representa em termos explícitos o que foi o ensinamento da Igreja Católica ao longo dos séculos - cerca de 1.400 anos - talvez com um breve interlúdio no qual o ensinamento da Igreja foi temporariamente obscurecido (a Era Medieval) - e que mesmo durante essa época havia representantes da verdadeira doutrina da Igreja. O ensinamento de Leo, portanto, não pode ser reduzido simplesmente a uma solução ad hoc produzida para atender às necessidades peculiares do século XIX. É a doutrina católica (doctrina catholica).
NOORT, VAN. Dogmatic Theology Vol. II Christ's Church, traduzido e revisado por J. Castelot e W. Murphy, The Newman Press, 1959, pp. 343-394. Tradução pt: Gustavo Lopes.
A Questão de Galileu.
Por Mons. Pedro Gaston Ribeiro da Veiga,
Hospital da Ordem III dos Mínimos de S. Francisco de Paula,
Rio de Janeiro.
1945.
É bem notório quanto os inimigos da Igreja têm, contra ela, procurado explorar em todos os sentidos esta célebre questão de Galileu. Seu êxito pelo passado já tem sido grande, e, lamentavelmente, ainda prossegue em nossos dias, graças à ignorância e à má fé tão comuns ao gênero humano. Esforçam-se eles por fazer acreditar que, pelo menos então, sofreu a Igreja um golpe mortal em sua infalibilidade, porquanto definiu como dogma de fé, isto é, como uma verdade da realidade objetiva, verdade teorética, um erro crasso: que o sistema planetário heliocêntrico, defendido por Galileu, era falso e contrário às Escrituras Sagradas. A distinção, tão clara e justa, entre uma definição ex cathedra e uma definição com aprovação in forma communi, ou mesmo in forma specifica, mas não ex cathedra, fingem eles não a compreender, e tacham-na de questão bizantina.
Assim, pois, se for possível demonstrar que nesta questão de Galileu não houve, realmente, da parte da Igreja, erro de nenhuma espécie, ficarão de certo privados seus implacáveis adversários de qualquer pretexto ou falso fundamento para ulteriores acusações. Após longo e aprofundado estudo do assunto[1], pareceu-me perfeitamente realizável esse desideratum, baseando-me, aliás, em argumentos de valor incontestável.
Bem sei não ser esta, hoje, a comum opinião dos próprios apologetas católicos, os quais, embora demonstrem de modo perfeitamente cabal não se tratar aqui de uma definição ex cathedra e, por conseguinte, de nenhum modo estar em jogo a infalibilidade da Igreja, concedem entretanto que houve grave erro da parte das duas Congregações eclesiásticas, do Índex e do S. Ofício, que trataram da questão, e bem assim dos dois Sumos Pontífices, Paulo X e Urbano VIII, que aprovaram suas determinações. Creio que esta atitude dos apologetas católicos se deve, em grande parte, ao anacronismo de se deixarem eles por demais influenciar pelo ambiente dos nossos dias, antes que pelo ambiente coevo, como seria para desejar.
A questão de Galileu tem duas fases bem distintas, mas entre si concatenadas. A cada uma delas corresponde um decreto da Igreja: o primeiro da Congregação do Índex, e o segundo da Congregação do Santo Ofício.
Primeira Fase: Decreto da Congregação do Índex.
Este decreto, depois de haver proibido a leitura de cinco obras de direito e teologia de autores protestantes, contém o seguinte parágrafo:
“E por isso que veio ao conhecimento da Sagrada Congregação que a falsa doutrina de Pitágoras, de todo contrária à Divina Escritura, com respeito ao movimento da Terra e à imobilidade do Sol, que Nicolau Copérnico em sua obra sobre as revoluções dos globos celestes, e Diogo de Zúñica em sua obra sobre Jé, ensinaram, já se tem espalhado e foi aceita por muitas pessoas, como se conclui da carta de um Padre Carmelita cujo título é “Carta do Pe. Mestre P. A. Foscarini, Carmelita, sobre a opinião dos pitagorianos e de Copérnico...”, impressa em Nápoles por Lazzaro Scariggi, em 1615, na qual o dito Padre se esforça por mostrar que a dita doutrina está de acordo com a verdade e não é absolutamente oposta à Escritura, a Congregação, a fim de que esta opinião não mais se difunda daqui por diante, em detrimento da verdade católica, é de aviso que se suspendam as duas obras de Copérnico e Diogo de Zúñica até que sejam corrigidas, de proibir inteiramente o livro do Pe. Foscarini, e de proibir igualmente todos os livros que ensinam a mesma doutrina, como pelo presente decreto ela os proíbe, todas e cada um, os condena e os suspende.” (Os grifos são meus).
Pelo teor deste decreto percebe-se que a Congregação do Índex trata Galileu com a maior benevolência, omitindo aí seu nome e não mencionando nenhuma de suas obras, as quais podem estar somente compreendidas na condenação geral.
O decreto é de certo puramente disciplinar, por isso que tem por único fim condenar ao Índex as obras, em geral, dos autores que defendem a doutrina de Pitágoras e, em particular, as obras de Copérnico e Zúñica até que sejam corrigidas (nas passagens em que parecem afirmar, não como hipótese, mas como tese, a doutrina heliocêntrica) e, finalmente, proibir completamente o livro do Pe. Foscarini, que, além, de defender aquela teoria, procura interpretar em sentido figurado e não no sentido literal as passagens da Escritura que literalmente lhe são contrárias.
É bem que se note, além disso, não ter a Congregação do Índex nenhuma competência para tratar de matéria doutrinal, o que é da exclusiva alçada da Congregação do Santo Ofício. Entretanto, em seus considerandos, que propriamente não fazem parte do decreto, a Congregação do Índex afirma ser falsa e de todo contrária às Escrituras a doutrina de Pitágoras. Devemos, assim, demonstrar que, mesmo nesses seus considerandos, não afirma erro de nenhuma espécie.
Primeiro Argumento.
Por parte da Igreja a razão primordial da questão de Galileu é a defesa das Sagradas Escrituras, entrando, aí, apenas acidentalmente e em plano secundário, a condenação da doutrina heliocêntrica.
De fato, a magna devastação da fé, então já em pleno desenvolvimento na consciência cristã dos povos do norte da Europa – conseqüência lógica do “livre exame” das Escrituras proposto pela Reforma de Lutero, em virtude do qual a razão individual é o supremo árbitro da palavra divina – não podia deixar de suscitar por aquele tempo, em Roma, uma forte reação que correspondesse ao mal gravíssimo a evitar, por parte dos eclesiásticos e das Congregações Romanas responsáveis pela defesa da fé.
Convém também lembrar que, muito antes de Galileu, dois eclesiásticos, o Pe. Nicolau de Cusa, mais tarde Cardeal, e o Cônego Copérnico, haviam defendido publicamente a teoria heliocêntrica de Pitágoras, sem que sofressem por isso nenhum constrangimento por parte da Igreja. A obra de Copérnico fora até dedicada ao Sumo Pontífice. A razão dessa tolerância por parte da Igreja é que ambos se limitaram a tratar da questão sob o exclusivo ponto de vista científico, sem que introduzissem aí considerações acerca das Sagradas Escrituras.
Galileu, porém, – seguindo os passos dos Padres Zúñica e Foscarini – não só tentava defender cientificamente a doutrina heliocêntrica, como ardorosamente se esforçava por interpretar as Sagradas Escrituras em sentido figurado, naquelas passagens em que o sentido literal lhe era contrário.
De nada valeram nesse particular os conselhos dados por seus amigos, principalmente eclesiásticos. O Maestro do Sacro Palácio, Padre Ricardi, que nesta questão era neutro entre Copérnico e Ptolomeu, escrevia-lhe a propósito: “Não é esta questão matéria de fé e é necessário não misturar com ela as Sagradas Escrituras.” (Op. Gal. t. VI, p. 296.) Mons. J. B, Ciampoli, mais tarde secretários dos Breves de Urbano VIII, também lhe escrevia: “O Cardeal Barberini (depois Papa Urbano VIII) me dizia ontem de tarde quando o visitei que os negócios do céu não estão aqui em jogo, que não se deve tomar partido por Copérnico ou Ptolomeu, mas antes de tudo permanecer bem dentro dos limites onde a física e a astronomia se devem limitar. Eis o ponto verdadeiro da questão.” (Apud Chasles, Galileo Galilei, p. 6.) Mons. Dini, grande amigo de Galileu, em carta de 7-3-1615 dizia que o Pe. Grienberger, S. J., astrônomo, havia manifestado a Galileu que lhe seria mais agradável “ouvir primeiramente a exposição de suas provas científicas e somente depois entrar na questão das Sagradas Escrituras.” (Op. Gal. XII, p. 151.) O mesmo Mons. Dini em carta de 2-5-1615 lhe escreve: “Um ponto é bem claro: pode-se escrever como matemático e em forma de hipótese, como se diz tenha feito Copérnico; pode-se escrever livremente contanto que não se entre na sacristia.” (Op. Gal. VIII, 374-375). O Marquês de Nicolini, embaixador em Roma do Duque de Toscana (que era grande amigo de Galileu), lhe escreve: “Galileu se obstina; ele quer absolutamente fazer-se teólogo e resiste aos amigos que o aconselham.” (Apud Chasles, op. cit., p. 163)
Esta verdadeira obstinação de Galileu de intrometer na questão científica da teoria heliocêntrica foi justamente o que levou a Sagrada Congregação do Índex a condenar aquela teoria, e foi também sem dúvida nenhuma a sua ruína. A comum tradição dos Santos Padres era favorável ao sentido literal das passagens em questão, e o Concílio de Trento estabelecera, não havia muito, não fosse permitido que alguém “contra unanimem consensum Patrum ipsam Scripturam Sacram interpretari audeat.” (Sess. IV.)
Segundo Argumento.
Toda a tradição científica de muitos séculos, bem como os astrônomos contemporâneos, inclusive o de maior renome, então, Tycho Brahe, tinham por verdadeira e ensinavam a teoria de Ptolomeu ou pouco diversa, em que a Terra sempre ocupava o centro do mundo, porém o Sol girava em torno dela.[2] A Ugreja não podia desse modo ir de encontro a toda a ciência do seu tempo sem que se apresentasse um argumento decisivo, concludente, em favor da teoria heliocêntrica. Ora, Galileu, como veremos em seguida, não conseguiu jamais propor nenhum argumento naquelas condições. Aliás, tal argumento decisivo e concludente só foi descoberto um século depois, em 1725, por Bradley, com a aberração da luz solar, confirmado nos meados do século XIX (portanto dois séculos depois) com a nova descoberta da paralaxe das estrelas mais próximas por Bessel.
Terceiro Argumento.
Galileu não somente não propôs nenhum argumento decisivo, concludente, em favor da doutrina heliocêntrica, como, pelo contrário, seu argumento favorito, seu argumento Aquiles, no qual ele próprio dizia pôr sua maior confiança – o argumento dos mares – foi-lhe demonstrado de todo errôneo, falso, pelos astrônomos aos quais fora pela Igreja submetido a exame. O próprio Papa Urbano VIII, grande estudioso de astronomia, fez ver a Galileu que o fenômeno das marés era devido à influência da Lua sobre os mares terrenos e não pelo movimento da Terra como queria Galileu. Quem disso nos faz ciente é o próprio Galileu em seus Diálogos, aliás procurando aí ridicularizar aquela opinião do Papa. Este “argumento das marés”, proposto com tanta ênfase por Galileu, tornou-se de todo contraproducente, por isso que fez suscitar veemente desconfiança e forte opinião, até entre seus partidários, de não ser possível em absoluto encontrar argumento decisivo em favor da teoria heliocêntrica, visto como o próprio grande talento de Galileu (coisa que ninguém lhe negava) não havia podido encontrar melhor argumento do que esse que era certamente falso. O grande matemático e físico Joseph Bertrand, secretário perpétuo da “Academia das Ciências” de Paris, grande admirador de Galileu (em cuja defesa chega a injuriar o Papa Urbano VIII), não pode deixar de confessar que o argumento das marés de Galileu “não resiste a um exame atento e sério. Galileu, entretanto, o contava no número das provas decisivas do movimento da Terra e, mau grado a habilidade que ele põe em defendê-lo, devemos lastimar que ele lhe tenha concedido um lugar num dos seus mais excelente escritos.” (Les Fondateurs”, p. 227.)
Laplace, grande astrônomo moderno, afirma que as provas de Galileu são apenas analogias. (Essai sur lês Probabilités, p. 247.) Arago, célebre físico francês, tratando do argumento das marés, diz ser “pouco digno do autor a quem são devidos os verdadeiros princípios da mecânica moderna... O menor dos inconvenientes de uma tal explicação é que ela não satisfaz a nenhuma das leis experimentais do fenômeno.” (Notices biographiques. III, p. 285.)
Quarto Argumento.
Condenando a Igreja como falsa e contrária às Escrituras a doutrina heliocêntrica, não quis afirmar com isso uma verdade teorética, de realidade objetiva, e muito menos um dogma, como querem seus inimigos; mas a condenou, simplesmente, como uma verdade de realidade subjetiva, na ordem prática das consciências cristãs. Eis aqui o fulcro de toda a questão de Galileu.
De fato, ainda que ignorássemos não ter a Congregação do Índex nenhuma competência para tratar ou definir assuntos doutrinários, toda manifesta atitude da Igreja, por essa ocasião e nos anos subseqüentes, vem-nos com meridiana evidência proclamar aquela verdade. Assim é que ela condena ao Índex a obra de Copérnico tão-somente até que seja corrigida – donec corrigatur – isto é, até que se faça a correção de algumas breves passagens em que o autor parece admitir como tese e não como hipótese a teoria heliocêntrica. E apenas quatro anos mais tarde, feitas essas correções, a obra é licenciada por decreto da Congregação do Índex de 15-5-1620 e a Igreja permite daí por diante que se ensine como hipótese a teoria heliocêntrica. Ora, se essa teoria houvesse sido declarada falsa e contrária às Escrituras pela Congregação do Índex como uma verdade teorética, de realidade objetiva, quase que um dogma, de certo nem mesmo como simples hipótese poderia a Igreja tolerar o seu público ensinamento. Isto é claríssimo, de meridiana evidência.
O Cardeal S. Belarmino, a alma, pode-se dizer, do primeiro processo de Galileu, a 12 de abril de 1615 escrevia ao Pe. Foscarini: “Eu digo que se houvesse uma verdadeira demonstração que provasse ser o Sol o centro do mundo e a Terra no terceiro céu, que o Sol não gira ao redor da Terra, mas esta é que gira em torno do Sol, então seria necessária muita circunspecção na interpretação das passagens da Escritura que parecem contrárias, e dizer que nós não as entendemos, do que declarar falso o que seria demonstrado. Mas eu não crerei numa tal demonstração até que me seja apresentada: provar que se salvam as aparências, supondo o Sol no centro do mundo e a Terra no terceiro céu, não é a mesma coisa que provar que verdadeiramente o Sol está no centro e a Terra no céu. Eu creio possível a primeira demonstração, mas duvido muito da segunda. Em caso de dúvida não se deve abandonar a interpretação da Escritura que nos foi transmitida pelos Santos Padres.” (Berti, Copernico e le Vicende del Sistema Copernicano, Roma, 1875, p. 121.) De conformidade com estas palavras do Cardeal S. Berlarmino, torna-se claro que não somente havia dúvida da parte da Congregação sobre a matéria em apreço, como no caso de ser apresentado um argumento decisivo em favor da teoria heliocêntrica, seria mister dar “nova interpretação às passagens da Escritura que lhe pareciam contrárias, antes que declarar falso o que houver sido demonstrado.” E o Pe. Grassi, S. J., que era íntimo do Cardeal S. Belarmino e sabia por conseguinte seu íntimo pensamento, havia dito a Guiducci a propósito das idéias de Galileu: “Quando se encontrar uma demonstração deste movimento, convirá interpretar a Escritura de modo diferente do que se fez: eis a opinião do Cardeal S. Belarmino.” (Op. Gal. IX, p. 65.)
Se, pois, na opinião do Cardeal S. Belarmino, que tamanha preponderância exerceu na primeira fase da questão, a decisão era reformável, claro está que essa decisão não importava definição de ordem teorética, com realidade objetiva e muito menos um dogma, como afirmam os inimigos da Igreja.
O teólogo contemporâneo Caramuel ensina positivamente que o decreto dos Cardeais é reformável, “pois que – diz ele – no dia em que se descobrir uma prova apodíctica do movimento da Terra, os Cardeais poderão então permitir, por este motivo, que se expliquem as palavras do capítulo X de Josué como expressões metafóricas, destinadas a exprimir as aparências.” (Theol. Mor. Fund. L. I, Fund. V. n. 272.)
O Pe. Riccioli, teólogo também contemporâneo, escreve: “Pois que não existe nenhuma decisão de fé emanada do Sumo Pontífice ou de um Concílio por Ele convocado e aprovado, nenhum decreto de uma Congregação, que trate deste sistema, pode obrigar-me a crer como verdade de fé que o Sol gire ao redor da Terra e a Terra seja imóvel.” (Almagestum Novum, t. I, p. 52, Bolonha, 1651.)
O Pe. Campanella, grande amiga de Galileu, não sofreu constrangimento para publicar, em 1637, em Francfort, sua obra cujo título era: “La Cité du Soleil et Défense du Système de Copernico non contraire à l’Écriture.”
O Papa Clemente VII, em companhia de Cardeais e outras pessoas gradas, assistiu em 1533, nos jardins do Vaticano, a uma preleção do Chanceler João Alberto Widmanstadt em defesa da doutrina heliocêntrica. Como testemunho do seu agrado o Papa lhe ofertou, nessa ocasião, o manuscrito da obra grega de Alexandre de Afrodísio Do Sentido e do Sensível, o qual ainda hoje se conserva em Munique, e nela o própria Widmanstadt anotou: “Clemens VII hunc codicem mihi dono dedit anno 1533, Romae, postquem prasesentibus Francisco Ursino, Jo. Salviati, cardinalibus, Jo. Petro, epíscopo Viterbiensi et Matheo Curtio, medico physico, in hortis Vaticanis, copernicam de motu Terrae sententiam explicavi. Johannes Albertus Widmanstadius, cognomento Lucretius, S.S. D.N. secretarius domesticus et familiaris.” (Cit. por Aubanel, Galilée et l’Église, p. 83.)
À vista destes documentos de valor irrefragável, além de outros que omito por amor à brevidade, nos quais fica plenamente evidenciado não somente a nímia tolerância da Igreja para com uma doutrina por Ela declarada falsa e de todo contrária às Escrituras – e isso logo após a sua condenação –, mas ainda e principalmente a sua disposição de revogá-la logo que aparecesse um decisivo argumento em seu favor, tudo isso nos obriga a firmar a convicção que a teoria copernicana não foi condenada então como uma verdade teorética, de realidade objetiva, mas apenas como uma verdade de realidade subjetiva na ordem prática das consciências católicas. Desse modo o católico que afirmasse então tal doutrina, não possuindo argumento decisivo em seu favor, – indo assim de encontro à comum interpretação das Escrituras pelos Santos Padres – cometeria pecado e, neste caso, certamente pecado de heresia. Nem é para admirar que possa haver pecado subjetivo que o não seja objetivamente, pois bem sabemos, pela teologia, que pode dar-se pecado subjetivo que não seja objetivo, e, vice-versa, pecado objetivo que não seja subjetivo. A teoria copernicana era pois de todo contrária, praticamente, às Escrituras e por conseguinte não podia deixar de ser falsa, como declarou a Congregação do Índex.
É mister notar-se, além disso, que no tempo de Galileu ainda se não achavam bem determinados, isto é, suficientemente precisos, os termos com que a Igreja define as proposições contrárias à fé. Justamente a questão de Galileu é que veio fazer com que se prestasse, daí por diante, maior atenção ao assunto. Entretanto, é bem significativo que o próprio Galileu, em carta a Mons. Cesi de 4-6-1624, dá o testemunho de que o Papa Urbano VIII houvera declarado que não era a intenção da Igreja condenar como herética a teoria copernicana, mas tão-somente como temerária. Eis as palavras de Galileu: “Por Sua Santidade foi respondido que a Santa Igreja não a havia condenado (a teoria copernicana) nem a condenaria como herética, mas tão-somente como temerária.” (Op. Gal. XIII, p. 182.)
Mas que vem a ser uma proposição definida pela Igreja como temerária? Sem dúvida nenhuma ela não é condenada como herética, objetivamente; entretanto, se algum católico afirma-la, sem possuir uma prova evidente em seu favor, comete de certo pecado de heresia. Pode-se dizer, assim, que uma proposição temerária, ainda que não seja objetivamente herética, subjetivamente deve ser ela considerada como tal. O Papa Urbano VIII tinha, pois, toda a razão quando afirmou que a doutrina copernicana não havia sido realmente condenada pela Igreja como herética, mas apenas como temerária. Já em 1626 o Pe. Tanner, S. J., concluía, do decreto de 1616, que a doutrina condenada “já não podia mais, daí por diante, se ensinada com toda a segurança.” (Theol. Schol. II, disp. VI q. 4 ad 3.)
Fica assim confirmado que a condenação da teoria heliocêntrica pela Congregação do Índex foi feita não como uma verdade de realidade objetiva, teorética, mas como verdade de realidade subjetiva, na ordem prática das consciências católicas. De modo que praticamente aquela teoria era falsa de todo e contrária às Escrituras. Não houve, pois, nenhum erro da parte da Congregação do Índex.
No entanto, os consultores do Santo Ofício parece terem jogado a barra mais longe. Tendo-lhes sido dadas a examinar, a 19 de fevereiro de 1616, as duas proposições seguintes: 1.ª “O Sol é o centro do mundo e absolutamente imóvel, quanto a movimento local”, 2.ª “A Terra não é o centro do mundo nem imóvel, mas se move com movimento de rotação e translação”, responderam eles quanto à 1.ª: “Ser a dita proposição estulta e absurda em filosofia, e formalmente herética enquanto que contradiz expressamente sentenças da Sagrada Escritura em muitos lugares, de conformidade com o sentido próprio (literal) das palavras, e a exposição e sentido dos Santos Padres e teólogos doutores”; quanto à 2.ª: “Esta proposição receber a mesma censura em filosofia, e no que diz respeita à verdade teológica ser pelo menos errônea na fé.”
Devemos agora demonstrar que nem mesmo estas censuras – que à primeira vista parecem exorbitar – contêm erro de nenhuma espécie. Com efeito, a primeira censura, em sua primeira parte diz ser estulto e absurdo em filosofia (isto é, debaixo tão-só do ponto de visa da razão natural) afirmar-se que o Sol é o centro do mundo e absolutamente imóvel. Ora, ninguém poderá negar ser isso uma verdade incontrastável, pois é sabido que o Sol não é imóvel, mas também ele se move com o duplo movimento de rotação em torno ao seu eixo, e o de translação na direção da constelação de Hércules, e por conseguinte não pode ele ser absolutamente o centro do universo. Verdade é que os consultores propriamente não se referiam a esses dois movimentos do Sol, que eles desconheciam, mas no entretanto negavam filosoficamente com todo o acerto a absoluta imobilidade do Sol, afirmado por Galileu. Quanto à 2.ª parte da 1.ª censura em que se diz ser a 1.ª proposição formalmente herética, por isso que contradiz expressamente passagens da Sagrada Escritura tomadas em seu sentido próprio, isto é, literal, e também porque contradiz a exposição e o sentido que às ditas passagens davam os Santos Padres e doutores da Igreja, isso é mera consequência lógica de tudo o que temos visto até aqui. De fato, já demonstramos que a doutrina heliocêntrica, na ordem prática das consciências católicas, era falsa e contrária às Escrituras. Ora, uma proposição falsa e contrária às Escrituras não pode deixar de ser formalmente herética. Ela é subjetivamente herética, ainda que o não seja objetivamente, de conformidade com o que antes já foi exposto.
Quanto à censura da 2.ª proposição, os consultores declaram que em filosofia (sob o ponto de visa da simples razão natural) a ela compete a mesma censura da 1.ª proposição, isto é, ser estulta e absurda, enquanto afirma a Terra não ser o centro do mundo, nem imóvel, mas se mover com o duplo movimento de rotação e translação. Por outras palavras afirmam que é verdadeiro o sistema planetário de Ptolomeu e, por conseguinte, a teoria copernicana, que lhe é contrária e até contraditória, é estulta e absurda.
Ora isso que, com os dados científicos modernos, não pode hoje deixar de ser considerado um erro crasso, sob as luzes da ciência do ambiente contemporâneo de Galileu, era uma verdade incontrastável. De fato, basta que recordemos o que se passa geralmente com as teorias físicas. Estabelecida uma teoria física que explique todos os fenômenos então conhecidos que lhe dizem respeito, ela é considerada e tida por verdadeira, enquanto não apareça algum novo fenômeno que não pode ser convenientemente por ela explicado. Vejamos, por exemplo, o que se tem passado com a teoria física da luz. Newton, com a teoria das emissões, explicou todos os fenômenos luminosos conhecidos em seu tempo. Era a teoria das emissões de Newton tida e considerada então como verdadeira. Mais tarde aparece o novo fenômeno da refração da luz, que a teoria de Newton não pôde explicar. Propôs então Foucault a teoria das ondas transversais, com a qual explicava ele os antigos e o novo fenômeno. A teoria das ondas transversais foi tida e considerada então como verdadeira e a teoria de Newton já não podia gozar mais dessa prerrogativa. Pois bem, em nossos dias, com o desenvolvimento dos estudos da relatividade de Einstein e seus discípulos, foi verificado que a teoria de Foucalt já não pôde corresponder satisfatoriamente a certos fenômenos observados de atração luminosa. Voltaram agora os sábios a propor de novo a teoria física das emissões de Newton, ainda que com certas modificações.
Daqui se conclui que uma teoria física, antes que definitivamente seja estabelecida, isto é, seja provada com argumentos decisivos, concludentes, têm uma realidade puramente subjetiva: ela é verdadeira (isto é, exprime a verdade objetiva de modo relativo) enquanto não aparecer novo fenômeno que ela não pode explicar.
Ora, no tempo de Galileu, a teoria planetária de Ptolomeu explicava todos, sem exceção, os fenômenos que lhe diziam respeito, até então conhecidos, e, assim, era considerada e tida por verdadeira por todos os astrônomos antigos e contemporâneos. Antes, pois, que se encontrasse um argumento decisivo, concludente, em favor da teoria de Copérnico, que lhe era contrária e até contraditória (uma afirmava que a Terra era imóvel e o Sol girava em torno dela; a outra, pelo contrário, afirmava que o Sol era imóvel e a Terra lhe girava em torno), dever-se-ia ter por verdadeira, certamente, a doutrina de Ptolomeu, e por conseguinte estulta e absurda a de Copérnico (que lhe era contraditória), isto sob o ponto de vista da pura razão natural ou filosófica. Não erraram, pois, os consultores do Santo Ofício.
Quanto à 2.ª parte da 2.ª proposição: “ser ela pelo menos errônea na fé”, também não houve erro da parte dos consultores. Nada há nas Escrituras que expressamente indique ser a Terra de todo imóvel. Entretanto, dada a opinião comum dos astrônomos, antigos e modernos, que tinham a Terra como o centro do universo, e considerada a opinião comum dos Santos Padres, que assim a consideravam, a dita proposição não podia deixar de ser, praticamente, pelo menos errônea na fé.
Creio, pois, com fundamento nos argumentos expostos, cujo valor não se pode negar, que nem mesmo os consultores do Santo Ofício cometeram erro de nenhuma espécie.
Resolvida satisfatoriamente a 1.ª fase da Questão de Galileu, fácil negócio é resolver-se a 2.ª fase, a qual toda ela se fundamenta na 1.ª E’ o que passo a fazer.
Segunda Fase: Decreto da Congregação do Santo Ofício.
Para melhor compreensão do assunto, convém fazer aqui um breve retrospecto histórico.
Logo após a condenação do sistema copernicano pela Congregação do Índex, o Cardeal S. Belarmino, por ordem do Papa Paulo V, fez vir a seu palácio Galileu e, aí, em presença do notário e das testemunhas, o Padre Comissário Segotius de Lauda o intimou a abandonar aquela doutrina, não a sustentando nem defendendo de nenhum modo daí por diante. Galileu se submeteu com perfeito acatamento a essa injunção, conforme declaração feita ao Santo Ofício pelo Cardeal S. Belarmino.
A despeito de tão solene promessa, passados sete anos, publicava Galileu em 1623 sua obra Il Saggiatore, que era uma defesa habilmente dissimulada do sistema copernicano. A obra fora dedicada ao Pontífice recentemente eleito, Urbano VIII, o qual com prazer a aceitou e ouviu ler como relatam algumas testemunhas.
Porventura animado com esse bom acolhimento do novo Papa, Galileu dá início por esse tempo à sua grande obra Os Diálogos, na qual defende abertamente e com ardor o sistema copernicano. Terminada a nova obra depois de sete anos de trabalho, ele a publica em 1632, apondo-lhe dolosamente o imprimatur do Maestro del Sacro Palazzo, sem porém fazer as correções, por este previamente ordenadas, a fim de ser permitida a sua publicação. Violava assim Galileu, ostensivamente, não só o decreto de 1616 da Congregação do Índex e a solene promessa que fizera ao Santo Ofício na presença do Cardeal S. Belarmino, como ainda as condições rigorosamente impostas pelo Maestro del Sacro Palazzo para a publicação da obra.
Profundamente desgostoso com essa grave insubmissão e deslealdade por parte de Galileu, o Papa Urbano VIII constituiu então uma comissão extraordinária para o exame da obra Os Diálogos. Esta apresentou sem demora o seu laudo, que concluía por dever-se proceder juridicamente tanto contra Galileu como contra sua obra. O negócio foi, pois, transferido ao Santo Ofício, que a 1.ª de outubro desse mesmo ano de 1632 enviou a Galileu uma citação, em forma jurídica, para que comparecesse ao Tribunal do Santo Ofício em Roma.
Durou o processo um ano, terminando com a condenação de Galileu e da sua obra Os Diálogos. A sentença foi pronunciada em nome da Sagrada Congregação da Inquisição do Santo Ofício, e promulgada com a publicação do respectivo decreto a 21 de junho de 1633. Eis o decreto do “Santo Ofício”:
Após várias considerações acerca dos motivos por que Galileu fora chamado ao “Santo Ofício”, assim procede:
“... Nós pronunciamos, julgamos e declaramos que tu, Galileu, te tornaste veementemente suspeito de heresia a este Santo Ofício, como tendo crido e sustentado uma doutrina falsa e contrária às santas e divinas Escrituras, a saber: o Sol é o centro do Universo, que ele não se move do oriente ao ocidente, que a Terra se move e não é o centro do mundo; e que se pode sustentar e defender uma opinião como provável depois que ela foi decretada e definida contrária à Escritura Santa; à vista disso, tu incorreste em todas as censuras e penas estabelecidas e promulgadas pelos sagrados cânones e outras constituições gerais e particulares contra as faltas desse gênero. Apraz-nos absolver-te, contanto que antes, de coração sincero e com fé não dissimulada, tu abjures em nossa presença, maldigas e detestes os erros e as heresias supraditas e qualquer outro erro e heresia contrária à Igreja Católica, Apostólica, Romana, de conformidade com a fórmula que nós te apresentaremos.
Porém, a fim de que teu grave e pernicioso erro e tua desobediência não fiquem absolutamente impunidos, a fim de que tu sejas para o futuro mais reservado e que tu sirvas de exemplo aos outros, para que eles evitem estas espécies de faltas, nós ordenamos que o livro dos “Diálogos” de Galileu Galilei seja proibido por um decreto público; nós te condenamos à prisão ordinária deste Santo Ofício, pelo tempo que nós determinaremos à nossa discrição e, a título de penitência salutar, nós te impomos recitar durante três anos, uma vez por semana, os sete salmos penitenciários, reservando-nos a faculdade de moderar, mudar, exonerar todas ou parte das penas e penitências supraditas.” (Os grifos são meus.)
Se bem que à Congregação do Santo Ofício pertença de modo peculiar tratar de assuntos doutrinários, vê-se pelo seu teor que não foi esse evidentemente o fim por ela colimado com este decreto. Ele não qualifica ou define qualquer doutrina, mas tão-somente constata a culpabilidade do acusado, fixa as penas que deve cumprir e proíbe o seu livro dos Diálogos. E até, quando aí se afirma “ser falsa e contrária às Escrituras” a doutrina heliocêntrica, a Congregação do Índex, pois acusa Galileu de sustentar e defender uma opinião como provável, “depois que ela foi declarada e definida contrária à Escritura Santa”. O decreto é, pois, meramente disciplinar e não doutrinário.
Quando muito se poderá dizer que o Santo Ofício confirma a condenação da doutrina heliocêntrica, já feita anteriormente pela Congregação do Índex, como falta e contrária às Escrituras e por conseguinte herética. Vale, então, neste caso e fica de pé, tudo o que já foi exposto na primeira fase acerca daquela condenação, onde, como foi plenamente demonstrado, não se depara erro de nenhuma espécie, não só da Congregação como dos seus consultores.
Em matéria doutrinal, pois, a única novidade que pode ser atribuída ao decreto da Congregação do Santo Ofício, é quando afirma que Galileu se tornou “veementemente suspeito de heresia”.
Note-se que aí Galileu não é declarado propriamente “herético” pela Congregação do Santo Ofício, mas “suspeito de heresia”. Vamos ver que esta declaração, além de verdadeira, encerra alta sabedoria.
Ela é verdadeira; porquanto, como já foi visto na primeira parte, o fiel católico, a não ser que possuísse argumento de plena evidência da doutrina heliocêntrica, não podia defendê-la sem cometer pecado de heresia, depois que essa teoria houvera sido declarada pela Congregação do Índex praticamente contrária às Escrituras e por conseguinte herética.
Ora, Galileu não possuía nenhum argumento convincente, decisivo, dessa teoria, como também já foi exposto acima, e justamente agora, no próprio momento de partir para Roma em obediência à citação do Santo Ofício, ele espontaneamente no-lo confirma sem nenhum subterfúgio.
Assim naqueles dias, em 1633, escrevia ele ao seu amigo Elias Diodati, que habitava em Paris: “Quanto a Fromont que dá prova também de muito espírito, eu desejara que ele tivesse evitado a falta, para mim bastante grave, ainda que muito frequente de, empreendendo a refutação do sistema de Copérnico, não haver começado por escarnecer e insultar amargamente aqueles que têm suas opiniões por verdadeiras. Parece-me demasiado inconveniente que ele se sirva da autoridade da Bíblia para combater seus adversários e os inculpar de heresia... Suponhamos que Fromont ou outros consigam seja declarado que há heresia ao afirmar-se que a Terra gira; suponhamos que mais tarde as observações, a crítica, a coesão e o conjunto dos fatos viessem a atestar como irrefragável o movimento da Terra, não teriam eles assim comprometido a Igreja e eles próprios?” (Cit. por Aubanel, Galilée et l’Église, pp. 35 e 36.)
Por estas palavras do próprios Galileu, fica perfeita e definitivamente provado que ele, ainda que a supusesse verdadeira, não possuía a evidência da doutrina heliocêntrica, já que, nas próprias vésperas de sua condenação, apela para uma hipótese futura (“suponhamos que mais tarde”, diz ele) a fim de que venha a aparecer um argumento “irrefragável” para demonstrá-la.
Sem possuir Galileu tal evidência, não podia defender por conseguinte a doutrina copernicana, como o fez em seus Diálogos, sem pelo menos expor-se ao perigo de cometer pecado de heresia. Entretanto, é mister considerar-se que, a despeito disto, o seu genial talento lhe facultaria uma tal ou qual intuição da veracidade daquela doutrina e, desse modo, defendendo-a, ele não era propriamente um herético. Daí a alta prudência e sabedoria da Congregação do Santo Ofício ao declará-lo apenas “suspeito de heresia”.
Nada mais há a respigar, em absoluto, neste decreto do Santo Ofício. Devemos concluir, pois, que se no primeiro decreto – o da Congregação do Índex – não deparamos erro de nenhuma espécie, muito menos a este – o da Congregação do Santo Ofício – poderá ser atribuída uma tal pecha.
Finalmente para o completo esgotamento do assunto, resta ainda a considerar um último documento: a solene abjuração feita por Galileu. Seus termos, porém, são perfeitamente idênticos aos dos dois supraditos decretos, como se vai ver.
Assim, após o juramento de haver crido sempre e esperar crer para o futuro, com o auxílio divino, tudo o que a Igreja Católica em seu magistério ensina e prega, vem a abjuração de Galileu nos seguintes dizeres:
"... Atendendo, porém, que depois de haver recebido deste Santo Ofício a injunção de abandonar absolutamente a falsa opinião que o Sol é o centro do mundo e imóvel, e que a Terra não é o centro e se move, e a proibição de manter, defender e ensinar esta sobredita falsa doutrina de qualquer maneira, de viva voz ou por escrito; e atendendo que depois de haver recebido notificação de que esta doutrina é contrária à Santa Escritura, eu escrevi e fiz imprimir um livro no qual exponho esta mesma doutrina já condenada, e que trago em seu favor argumentos eficazes, sem todavia dar uma solução; por estes motivos fui julgado veementemente suspeito de heresia por este Santo Ofício... Querendo, pois, fazer desaparecer do espírito de Vossas Eminências esta veemente suspeita justamente formada contra mim, eu abjuro, maldigo, detesto os supraditos erros e heresias, etc.”
Os termos empregados nesta abjuração, como se vê, são ipsis verbis os do decreto do Santo Ofício, no que diz respeito à qualificação da doutrina heliocêntrica: “falsa doutrina”, “doutrina já condenada como contrária à Santa Escritura” e Galileu “veementemente suspeito de heresia”. Não é pois mister ainda uma vez tornar a considerá-las.
Conclusão
Agora um sumário das duas fases. Vimos na primeira: a) Em toda a questão de Galileu o primordial intuito da Igreja foi a defesa das Escrituras. O grande mal da época era a interpretação individual das Sagradas Letras, proposto pelo “livre exame” de Lutero, o qual já grassava nos países do norte da Europa e se insinuava agora sorrateiramente entre os fiéis católicos da Itália. b) A multissecular tradição científica, assim como os astrônomos coevos, eram plenamente favoráveis ao sistema de Ptolomeu, em que a Terra ocupava o centro do universo. O próprio Tycho Brahe, cujo sistema astronômico se diferenciava algum tanto do de Ptolomeu, mantinha, porém, a Terra ainda como centro do mundo. A Igreja não podia assim ir de encontro à ciência do seu tempo, sem que houvesse um argumento evidente em favor do sistema de Copérnico, o que só apareceu um século depois, em 1725, com a descoberta de Bradley da aberração da luz solar. c) Galileu não propôs nenhum argumento concludente em favor do sistema heliocêntrico. Os mais célebres astrônomos modernos são de opinião que seus argumentos eram meras analogias, e que o seu principal argumento, “o argumento das marés”, aquele em que ele punha sua maior confiança, era totalmente errôneo. d) Condenando como falsa e contrária às Escrituras a doutrina heliocêntrica, a Igreja não afirmou uma verdade de realidade objetiva, teorética, quase um dogma, porém uma verdade de realidade subjetiva, na ordem prática das consciências católicas. A teoria heliocêntrica era então, para as consciências católicas, praticamente falsa e contrária às Escrituras. Era uma doutrina em última análise temerária e não objetivamente herética. O próprio Galileu dá o testemunho de ser essa a opinião do Papa Urbano VIII.
Na 2.ª fase foi visto: No segundo processo de , a Congregação do Santo Ofício não fez mais do que confirmar a condenação já feita pela Congregação do Índex, à qual se reporta e nela se fundamenta. Apenas acrescentou que Galileu se tornara veementemente suspeito de heresia (e não propriamente herético), o que além de ser a verdade, como foi visto, denota da parte do Santo Ofício muita prudência e alta sabedoria.
Devemos, pois, com justiça concluir: a Providência Divina não permitiu que em todo o curso da questão de Galileu, cometesse a Igreja erro de nenhum espécie. Parece-me assim de todo necessário, por amor da verdade e a fim de atalhar as futuras explorações dos inimigos da Igreja, que os apologistas católicos já não lhes concedam mais – como têm feito até agora – haverem errado gravemente as Congregações Romanas e os Papas Paulo V e Urbano VIII nesta questão de Galileu, embora demonstrem eles de modo cabal que o erro não fora ex cathedra.
[1]O presente artigo é o resumo de um trabalho de maior fôlego, que ainda não pôde ser terminado.
[2]No sistema de Tycho Brahe, o Sol girava em torno da Terra, juntamente com os outros planetas girando em torno dele.
FONTE
Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 5, fasc. 4, dezembro 1945, pp. 815-831.
PARA CITAR
Mons. Pedro Gaston Ribeiro da Veiga. A Questão de Galileu. Disponível em: <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/idade-media/ciencia/905-a-questao-de-galileu>. Desde 29/08/2016. Transcritor: Tiago De Almeida Silva.
Autoridade Papal nos primeiros Concílios Ecumênicos
Pe. Brian Harrison
Tradução: Gustavo Lopes
"Nunca se dá um Concílio Ecuménico sem que seja como tal confirmado ou pelo menos aceito pelo sucessor de Pedro; e é prerrogativa do Romano Pontífice convocar estes Concílios, presidi-los e confirmá-los."
- Lumen Gentium, 22
"O papado reivindicou esporadicamente o primado da cristandade nos séculos anteriores (ao quinto), mas essas reivindicações foram negadas ou ignoradas por aqueles a quem foram dirigidas... .No Oriente [os Papas] foram confrontados por uma teoria sobre o governo da Igreja que haveria um lugar para a autoridade episcopal, mas nenhum para o primado Romano."
- WHC Frend, The EarlyChurch , pp. 233, 235
Até que ponto a história dos primeiros Concílios Ecumênicos se harmoniza com qualquer uma das duas teses acima? Elas podem ser tidas como declarações bastante típicas da crença católica romana por um lado, e o ponto de vista de muitos que são céticos em relação à interpretação católica tradicional da história, por outro.
Nos relatos dos grandes Concílios do século V, podemos ver os Bispos de Roma chegando a assumir explicitamente a posição dominante que seus sucessores continuaram a exercer desde então nos Concílios reconhecidos pela Igreja Católica como "Ecumênicos". Que a primazia Romana de jurisdição era amplamente aceita no Oriente nessa época, fica claro pelas negociações antes e durante o Concílio de Éfeso. Cirilo de Alexandria apela a Celestino de Roma para lidar com Nestório em Constantinopla; e Celestino responde, delegando Cirilo para excomungar Nestório se ele não se retratar dentro de dez dias, equiparando seu próprio julgamento à "sentença divina de Cristo" e afirmando que ele escreveu em termos semelhantes à outros quatro bispos importantes.¹No Concílio de Éfeso que se seguiu, descobrimos que Cirilo preside no lugar de Celestino,² e que todo o Concílio aceita como "idôneo"³ e digno de confirmação por todos, as palavras do legado romano Filipe, ao apresentar para aprovação conciliar (sem debate) a condenação prévia de Celestino a Nestório:
"Ninguém duvida, mas na verdade é conhecido em todos os tempos, que o santo e abençoado Pedro... recebeu de Nosso Senhor Jesus Cristo... as chaves do reino, e esse poder foi concedido a ele de ligar e desligar os pecados; que até hoje e sempre permanece em seus sucessores e os exerce." ⁴
Vinte anos depois, encontramos o Papa Leão Magno falando em estilo igualmente autoritário ao Concílio de Calcedônia, e sendo aceito em geral. Embora um grupo de 150 bispos dos 600⁵ não aceitassem o polêmico cânon 28 que menciona apenas a base política do primado Romano⁶, a carta dos bispos orientais à Leão Magno, implorando pela aceitação e ratificação no cânon, é um expressivo testemunho da posição de chefia que lhe conferiram⁷, por mais que eles posteriormente tenham tratado sua anulação do cânon⁸ como sem autoridade.
O Primado Papal de jurisdição, então, foi sem dúvida aceito em meados do século V (embora, como hoje, houvesse resistência a atos específicos da autoridade Romana por parte de vários bispos)⁹. Mas foi esse o mesmo caso com os dois grandes concílios do século IV, ou houve (como Frend diz) uma antiga tradição oriental que "não tinha lugar para o primado Papal"? Devido à relativa escassez de antigos documentos contemporâneos sobre algumas dessas questões vitais, o historiador como tal nem sempre pode afirmar que prova a validade da posição da Igreja Católica somente a partir de fontes escritas; mas argumentaremos aqui que uma visão ortodoxa católica romana da relação entre os Papas e os primeiros Concílios é bastante consistente com a evidência documental disponível.
O Concílio de Nicéia (325)
Não há dúvida de que o primeiro Concílio Ecumênico foi convocado pelo Imperador Constantino. O bispo Silvestre de Roma teve algo a ver com isso? Certamente Ortiz de Urbina não faz justiça às evidências ao afirmar que "Nicéia... não foi convocado por iniciativa da Igreja"¹⁰. A documentação original do Concílio desapareceu, mas Ortiz se omite de nos dizer que, segundo o historiador Rufino, que viveu pouco depois (d. 410), Constantino tomou sua decisão "por conselho do clero"¹¹, uma afirmação perfeitamente plausível. Simplesmente não podemos provar por fontes escritas se Roma foi ou não consultada de alguma forma, mas parece muito provável — quase certo — que o sócio de confiança de Constantino, Ossius de Córdoba, que posteriormente presidiu o Concílio, esteve envolvido de antemão em sua preparação.
O bispo anglicano J.W.C. Wand declara que os legados romanos "certamente" não presidiram o Concilio de Nicéia¹². Mas é bem provável que o próprio Ossius fosse, na verdade, uma espécie de legado romano e não presidiu apenas na qualidade de favorito do imperador¹³. O padre historiador oriental Gelásio de Cizicus, que não era um partidário romano, afirma que Ossius "ocupava o lugar de Silvestre de Roma, junto dos presbíteros romanos Vito e Vincentius"¹⁴. Gelásio nasceu e foi criado nas proximidades de Nicéia e escreveu por volta de 475, alegando basear sua história do Concílio nas atas originais (agora perdidas). Que Roma foi reconhecida como a primeira de todas as Sés é demonstrado pelo fato de que as assinaturas de seus indiscutíveis legados, Vito e Vincentius, vieram imediatamente após a de Ossius (cuja Sé menor, Córdoba, obviamente não teve nada a ver com sua proeminência neste contexto)¹⁵. O ponto de Luke Rivington aqui é revelador: se Ossius tivesse presidido apenas em virtude do favor do imperador, é difícil imaginar que isso nunca teria sido posteriormente citado como um precedente, especialmente em Calcedônia¹⁶. É bastante provável, então, que o bispo Ossius, sendo um prelado ocidental e o principal defensor do anti-arianismo, foi aceito por Silvestre como um representante ad hoc e presidido por mútuo acordo com Constantino. Devemos ter cuidado para não inferir da falta de evidência documental conclusiva que algo realmente ocorreu a ponto de concluir que não ocorreu¹⁷, como o bispo Wand faz.
Com respeito à atitude do papado depois de Nicéia, não há controvérsia: Roma endossou com entusiasmo a profissão de fé trinitária e os cânones disciplinares do Concílio, e continuou a insistir em sua observância.
O que dizer da atitude dos Padres Conciliares em relação a Roma (além da questão da presidência do Concílio)? O Cânon 6 concede a Alexandria uma autoridade metropolitana sobre o Egito, Líbia e Persépolis, e a razão dada para isso é que "isso também é costume do Bispo de Roma"¹⁸. Essas palavras são talvez um tanto obscuras em suas implicações precisas, mas mostram que, de alguma forma, o costume Romano era considerado normativo para a Igreja em geral, incluindo o Oriente. Além disso, o cânone se preocupa com o modo normal do governo da Igreja nas áreas "patriarcais" de Alexandria e Antioquia, e se o direito de Roma de atuar como árbitro em casos extraordinários (envolvendo acusações de heresia e semelhantes) não foi contestado na época, não há razão para que fosse mencionado neste contexto. O Sínodo Romano de 485 afirma que os Padres Nicenos "referiram a confirmação das coisas e a autoridade à santa Igreja Romana"¹⁹, embora não haja nenhuma evidência documental original disso. Constantino parece ter promulgado o credo e os cânones sem buscar a confirmação romana; mas, independentemente do fato de que a atitude do imperador não pode necessariamente ser tomada como um parâmetro da ortodoxia cristã aceita naquela época, sua ação prova muito pouco, dada a ausência das atas do Concílio. Se os legados romanos tivessem deixado claro no plenário do Conselho que o produto final estava de acordo com o mandato do bispo Silvestre, Constantino poderia muito bem ter assumido a atitude de que não havia necessidade de mais confirmação. De fato, pouco depois de Nicéia, encontramos o bispo Júlio de Roma apelando para um "Cânon da Igreja", bem como de "costume", contra um sínodo de bispos que ignorava a autoridade de Roma²⁰. Qual "cânone" ele tinha em mente não está claro, mas parece improvável que Silvestre, apenas alguns anos antes, tivesse tido uma visão contrária à de Júlio e se sentisse contente com o Concílio de Nicéia em tomar decisões finais sem de alguma forma ganhando sua aprovação.
O Primeiro Concílio de Constantinopla (381)
Mais uma vez, estamos lidando com uma situação em que as atas do Concílio já não existem mais. Mais uma vez, foi decretado pelo imperador Teodósio I²¹. A linguagem de seu decreto do ano anterior certamente sugere que ele considerava a visão romana como um parâmetro da ortodoxia cristã: ele ordena que todos os seus súditos pratiquem "aquela religião que Pedro, o Apóstolo transmitiu aos Romanos", e que (diz ele) é observada pelo "Pontífice" Dâmaso e pelo "Bispo" Pedro de Alexandria, "homem de santidade apostólica"²². Um curto édito de janeiro de 381 reforçou isso ao especificar a consubstancialidade do Espírito Santo como um princípio cristão essencial²³. Portanto, parece claro que, ao convocar um Concílio apenas alguns meses depois, Teodósio não imaginou os Bispos reunidos debatendo a doutrina romana como se fosse uma questão em aberto. Uma carta do papa Dâmaso a seu associado Ascholius de Thessalonika aprova a ideia de um Concílio para resolver a disputada sucessão em Constantinopla²⁴, então parece muito possível que, por meio de Ascholius, o imperador tenha consultado Roma de antemão.
O fato de Meletius de Antioquia presidir em Constantinopla, junto com a ausência de qualquer legado Romano, pode parecer uma evidência contra o primado Romano. Mas deve ser lembrado que este Concílio não foi originalmente planejado para ser "Ecumênico" no mesmo sentido que a grande convocação de Nicéia. Afinal, incluía apenas cerca de 150 bispos da Trácia, da Ásia Menor e do Egito²⁵, e foi convocado justamente para tratar de problemas orientais²⁶. Na verdade, não foi reconhecido como "Ecumênico" pelo Concílio de Éfeso meio século depois, e foi deixado ao Papa Gregório Magno, elevá-lo "papalmente" a esse status²⁷.
A declaração mais controversa deste Concílio é o terceiro cânone, que afirma: "O Bispo de Constantinopla terá o Primado de honra depois do Bispo de Roma, porque Constantinopla é a Nova Roma"²⁸. Quando isso foi mais tarde citado e confirmado por um grupo dos Padres Calcedônicos, Leão Magno se opôs, porque isso ignora o que Francis Dvornik chama de "princípio da apostolicidade" e enfatizou demais o "princípio da acomodação" (da geografia política da Igreja à do Império)²⁹. No entanto, como Dvornik aponta, o cânone não pretendia ter conotações anti-romanas, e estava preocupado apenas em regular a relação das sés no Oriente³⁰. Nem mesmo foi oficialmente comunicado ao Ocidente.
Este caráter relativamente local do Concílio é relevante também para seu segundo cânone, que proíbe os bispos de intervir nos assuntos das igrejas em outras dioceses civis³². De acordo com o historiador da igreja, o alemão W. Ullmann, este cânone indica uma "posição inferior agora concedida à Igreja Romana"³³. Mas parece que o cânon tem apenas os bispados orientais em mente, uma vez que descreve as cinco principais regiões do império oriental onde a Igreja está estabelecida, e nem mesmo menciona Roma ou qualquer diocese ocidental. Se este cânone foi entendido como implicando que Roma não tinha jurisdição sobre o Oriente, então por que não foi citado cinquenta anos depois, em protesto contra as intervenções contundentes do Papa Celestino contra Nestório, por intermédio de Cirilo de Alexandria?
Ullmann também enfatiza o fato de que, ao sancionar os decretos do Concílio em julho de 381, Teodósio "nem mesmo mencionou Roma"³⁴. Somos chamados a aceitar, com base nisso, que "assim o governo deixou muito claro que Roma e sua igreja deveriam ser relegadas a um lugar inferior. Roma deveria cair à categoria de um local histórico"³⁵. Agora, isso é bastante surpreendente. Ao promulgar (entre outras coisas) um cânone que reconhece expressamente a primazia de Roma sobre Constantinopla, Teodósio deve relegar Roma a um "lugar inferior" na Igreja, mesmo quando sua própria lei do ano anterior, tornando a fé de Roma obrigatória para todo o império oriental, permaneceu em pleno vigor! Se, como parece mais provável, os cânones disciplinares fossem vistos como um assunto oriental que não exigia o consentimento de Roma, não há razão convincente para que Teodósio tivesse mencionado Roma no édito pós-conciliar, uma vez que o ensino dogmático do Concílio já era conhecido por todos para desfrutar da aprovação romana.
Após o Concílio, o Ocidente expressou insatisfação com a eleição de Nectário e Flaviano para as sés de Constantinopla e Antioquia, e o Papa Dâmaso propôs um sínodo geral em Roma para resolver as questões. A resposta dos Bispos que permaneceram em Constantinopla é informativa³⁶: eles afirmam que desejaram "fugir" para Roma "para descansar convosco"³⁷, mas alegam que por razões práticas isso foi impossível, por isso propõe agora enviar três representantes a Roma, em vez disso, a fim de "mostrar nossa própria determinação pacífica e como almejamos a unidade"³⁸. Existe um toque de hipocrisia aqui? Mesmo se houver, é significativo que os bispos não questionem o direito de Dâmaso de convocar os bispos orientais a Roma dessa maneira. Afinal, lisonja e hipocrisia são precisamente os instrumentos diplomáticos usados no trato com pessoas oficialmente reconhecidas como tendo autoridade superior.
Finalmente, é importante notar que, no Sínodo Romano de 382, o Papa Dâmaso, embora não tenha mencionado explicitamente o contencioso terceiro cânone (que nunca foi oficialmente submetido a ele), pode muito bem tê-lo tido em mente: ele enfatizou que a reivindicação de Roma ao primado foi baseado na sucessão de Pedro, e foi de fato o primeiro pontífice conhecido a chamar Roma consistentemente de "a Sé Apostólica"³⁹.
Conclusão
À primeira vista, pode parecer que a iniciativa imperial de convocar os primeiros Concílios é inconsistente com a declaração do Vaticano II de que é "prerrogativa do Romano Pontífice convocar tais Concílios". Mas a formulação de Lumen Gentium é cautelosa. Cita apenas o Código de Direito Canônico (cânon 227, Código de 1917) em apoio a essa afirmação, como que para sugerir que se trata de uma questão de direito eclesiástico positivo, e não de algo absolutamente essencial. O critério básico mínimo para um Concílio Ecumênico é especificado na frase anterior: ele deve ser "confirmado ou pelo menos reconhecido como tal pelo sucessor de Pedro". Estas palavras foram provavelmente escritas com o I Concílio de Constantinopla em mente, uma vez que, como vimos, não foi concedido o status de um concílio "Ecumênico" até uma data muito posterior. Pode ser verdade, como afirma Ortiz, que o precedente estabelecido por Constantino ao convocar um concílio geral foi "objetivamente ... um abuso de poder por parte do imperador"⁴⁰, mas é compreensível que depois de séculos de governo pagão frequentemente opressor, sem política definida ou experiência quando se tratava de lidar com o fenômeno até então inédito de um poder secular cristão, a Igreja não estaria ansiosa para aceitar algo bom do Imperador, por assim dizer⁴¹.
A afirmação de Frend de que a tradição oriental excluía o primado romano neste período da história, e que as reivindicações papais "esporádicas" de jurisdição universal eram "negadas ou ignoradas por aqueles a quem eram dirigidas" é, na melhor das hipóteses, um argumento do silêncio e, na verdade, não parece bem apoiado pelas evidências disponíveis. Sem dúvida alguns orientais (e ocidentais) rejeitaram as reivindicações de primazia romana - particularmente arianos, semi-arianos e outros que persistentemente discordavam da fé Romana. Por outro lado, parece totalmente plausível - apenas com base nas evidências documentais disponíveis - sustentar que o primado da honra inquestionavelmente concedido a Roma em Nicéia foi acompanhado por uma consciência entre os Padres do Concílio de que eles não poderiam tomar decisões vinculativas para toda a Igreja sem o acordo da Sé de Roma⁴².
Dizemos "plausível" porque, embora não tenhamos acesso aos procedimentos de Nicéia ou de Constantinopla I, temos outras evidências, as mais importantes das quais podem ser resumidas da seguinte forma: (a) tradição posterior (incluindo tradição oriental) concedeu ao Bispo Silvestre de Roma um papel de liderança, embora indireto, em Nicéia, e seu sexto cânon sugere que o "costume" Romano é normativo de alguma forma para toda a Igreja; (b) O decreto de Teodósio em 380 considera a fé Petrina de Roma como normativa semelhante, e não encontramos objeções generalizadas a isso por parte dos bispos orientais da época; (c) o papel reconhecidamente pequeno desempenhado pelo papado em Constantinopla I poderia muito bem ser explicado pelo fato de que não era visto na época como uma convocação representando toda a Igreja, em paridade com Nicéia; e finalmente (d) nos dois primeiros concílios ecumênicos dos quais temos ampla documentação - Éfeso e Calcedônia - encontramos uma autoridade real sendo exercida por Roma e aceita pela maioria dos bispos orientais. Em vista do óbvio conservadorismo de todos os grupos cristãos neste momento - isto é, as veementes reivindicações de todas as partes de resistir à inovação e permanecer fiéis à revelação original - o ônus da prova parece recair muito sobre o historiador que deseja sustentar que a ideia da jurisdição papal sobre toda a Igreja, tão amplamente reconhecida pelos padres conciliares do século V, era uma novidade que teria sido repudiada por seus predecessores em Nicéia e Constantinopla. Afirmamos que esse historiador acharia muito difícil cumprir com êxito esse ônus da prova.
NOTAS
- Stevenson, J. (ed.), Creeds, CouncilsandControversies (CCC) (London, SPCK, 1978), pp. 279-280.
- "Caelestinilocum (TOPON) obtinebat (Mansi, Ampl. Collectio etc., vol. 4, col. 1123). Aqui descobrimos que, ao contrário de todos os outros bispos, cujos nomes e sés são apenas mencionados, Celestino é descrito - no topo da lista - como "o mais santo e sagrado arcebispo da Igreja Romana" ("sanctissimisacratissimiqueRomanaeecclesiaearchiepiscopi"). Em outro lugar, diz-se que Cirilo "governou" (regebat) o Concílio no lugar do Papa Celestino (Mansi 4: 1279).
- "consentanea" - "o que é apropriado, razoável" (Mansi 4: 1299).
- "Nullidubium, imo saeculisomnibusnotum est ... qui ad hoc usque tempus et sempre in suis successoribusvivit, et iudiciumexercit" (Mansi 4: 1295: ênfase adicionada na tradução).
- Rivington, L., The PrimitiveChurchandtheSeeof Peter (Longmans Green, 1894), p. 447.
- Stevenson, CCC, p. 333.
- Ibid., pp. 339-340.
- Ibid., pp. 342-344
- Basta lembrar a relação tensa entre Roma e alguns bispos - até mesmo conferências episcopais inteiras - desde o Concílio Vaticano II, por exemplo, e a atitude de alguns bispos para com a Humanae Vitae, a questão da ordenação de mulheres e outras questões doutrinárias atualmente em disputa.
- Ortiz de Urbina, I., Histoire desConcilesOecuméniques (vol. 1, Paris, 1963), p. 29.
- "exsententiasacerdotum" (Rufinus, Hist. Eccl. 1: 218: Migne, PatrologiaeCursusCompletus, 21: 467).
- Wand, J.W.C., A HistoryoftheEarlyChurch (Methuen, 1963), p. 156.
- As primeiras listas disponíveis dos signatários de Nicéia - e elas não são primitivas - colocam Ossius em primeiro lugar, mas omitem enigmaticamente qualquer indicação se ele presidiu como representante papal ou imperial (Mansi 2: 692, 697).
- Gelásio nasceu e foi criado nas proximidades de Nicéia e escreveu por volta de 475, alegando basear sua história do Concílio em suas atas originais. Ele fala de "Ossius, ocupando o lugar de Silvestre, o bispo da grande Roma, junto com os presbíteros romanos Vito e Vincentius" (Migne, PatrologiaGraeca, 85: 1229 - minha tradução). A citação é da obra de Gelasius, Hist. Nic. Conc.II, V.
O Papa Dâmaso, que reconhecidamente era por seu próprio cargo um porta-voz aberto da reivindicação de Roma à autoridade universal, em vez de uma fonte histórica "neutra", afirmou junto com um Sínodo de 93 Bispos Ocidentais menos de meio século depois de Nicéia (372) que os Padres Nicenos eram "dirigidos da cidade do santíssimo bispo de Roma". Seria precipitado rejeitar isso como mera propaganda, ou melhor, seria implorar a pergunta crucial. Esta declaração sinódica foi dirigida aos bispos orientais, de quem se poderia esperar que contestassem tal afirmação se fosse palpavelmente falsa. Cf. Mansi 3: 459.
Finalmente, Rivington chama a atenção para uma tradição oriental firme e duradoura do primado romano em Nicéia, citando a liturgia greco-russa, na qual o Ofício Divino de São Silvestre elogia este Pontífice em termos que pareceriam "triunfalistas" para muitos modernos Bispos ocidentais: "Tu te mostraste o supremo do Sagrado Conselho, ó iniciador nos sagrados mistérios, e ilustraste o Trono do Supremo dos Discípulos" (Rivington, op. Cit., P. 164).
- Mansi 2: 692, 697. Os dois legados romanos são descritos como agindo "pro venerabili viro papa et episcoponostroSanctoSylvestro". Seus nomes, junto com o de Ossius, figuram separadamente no topo das listas. Todos os outros bispos são apenas nomeados, juntamente com suas sés, e são agrupados de acordo com as províncias.
- Rivington, op. cit., p. 363. Dioscorus de Alexandria foi acusado pelo Concílio de Calcedônia por presidir o "Concílio do Ladrão" na presença de legados papais, por ordem expressa do Imperador.
- Ullmann é certamente culpado dessa falácia quando afirma que, "nas decisões do primeiro concílio geral, a Igreja de Roma nem mesmo desempenhou um papel menor" (Ullmann, W., A Short HistoryofthePapacy in theMiddle Ages: Methuen, 1974, p. 6). O mesmo ocorre com Weltin, que diz que Sylvester "apenas enviou dois representantes" e "pouco teve a ver com esse importante conclave" (Weltin, E.G., The AncientPopes: Newman Press, 1964, p. 171).
- Stevenson, J. (ed.), A New Eusebius (NE) (London, SPCK, 1965), p. 360.
- Quoted in Rivington, op. cit., p. 164.
- Stevenson, CCC, p. 8.
- Ibid., p. 147.
- Ibid., p. 160. Teodósio ordena que todos os seus súditos pratiquem "aquela religião que o Apóstolo Pedro transmitiu aos romanos", e que foi seguida pelo "Pontífice" Dâmaso e pelo "Bispo" Pedro de Alexandria, "um homem de santidade apostólica". Ullmann (op. Cit., P. 9) está claramente lendo seus próprios preconceitos neste decreto quando ele pensa discernir nele uma "igualdade estipulada" entre Roma e Alexandria. A ligação especificada entre Roma e Pedro, a diferença de títulos e o fato de Teodósio ter considerado necessário mencionar os méritos pessoais do titular de Alexandria, tudo sugere o contrário.
- Rivington, op. cit., p. 247.
- Damasus, Epistula V (Migne, Patrologia Latina, 13: 365-369.
- Dvornik, Francis, Byzantiumandthe Roman Primacy (FordhamUniversity Press, 1966), pp. 44-45. Also New CatholicEncyclopedia, article, "Constantinople, FirstCouncil of."
- Kreilkamp (artigo do NCE citado há pouco) observa que os padres conciliares falavam de si próprios como "ecumênicos", mas apenas no mesmo sentido em que essa palavra havia sido aplicada a um concílio anterior em Sardica (343). Eles contenderam com este termo apenas para distinguir sua reunião dos sinodosendemousa - um concílio local permanente em Constantinopla.
- Rivington, L., op. cit., pp. 256-268.
- Stevenson, J., CCC, p. 148.
- Dvornik, op. cit., Chapters 1 and 2.
- Ibid., p. 45.
- Assim, aprendemos com o Papa Leão Magno, escrevendo a Anatolius de Constantinopla (Mansi, 6: 203). Além disso, o próprio cânone (pace Ullmann, op. Cit., P. 9) de forma alguma nega, mesmo implicitamente, que o primado romano está ligado também de alguma forma à autoridade de Pedro - uma ideia que não era nova na época (veja Stevenson, NE, pp. 118, 242). O aspecto político da autoridade da "Velha Roma" é mencionado, com certeza, apenas porque era apenas por motivos políticos que Constantinopla poderia ter esperança de reivindicar qualquer status especial.
- Stevenson, CCC, pp. 147-148.
- Ullmann, op. cit., p. 30. O registro dificilmente parece confirmar a afirmação de Ullmann de que depois desse Concílio, "o centro de gravidade eclesiástico estava manifestamente em Constantinopla".
- Ibid., P. 9
- Ibidem, p. 10
- Rivington, op. cit., pp. 269-271 (citando Mansi, 3: 583).
- ibid., P. 270
- Ibidem, p. 271. É verdade, como Ortiz sustenta, que nesta carta os Bispos Orientais, ao contar a Dâmaso e aos Ocidentais as decisões dogmáticas do Concílio de 381, não as estão submetendo ao julgamento e aprovação do Papa, mas pretendem apenas «comunicá-los fraternalmente» (Ortiz de Urbina, op. cit., p. 224). No entanto, isso não é um ponto significativo, uma vez que eles estavam bem cientes de que as questões dogmáticas em questão - a ousia única e a hipóstase tripla de Pai, Filho e Espírito Santo - já eram enfaticamente insistidas por Dâmaso (cf. Stevenson, CCC, p. 149 - cânone 5), e recentemente tinha adquirido força de lei civil. Para traçar um paralelo moderno: que Conferência Episcopal enviaria agora a Roma um tratado defendendo, digamos, a Imaculada Conceição, pedindo um julgamento quanto à sua ortodoxia?
- New CatholicEncyclopedia, article, "Damasus I."
- Ortiz de Urbina, op. cit., p. 29.
- Além disso, como Weltin observa (op. Cit. P. 178), era natural que Constantino e seus súditos cristãos pensassem nele como Pontifexmaximus - "o símbolo do gênio espiritual e da corporação deificada de Roma". A formação hebraica do cristianismo estava, é claro, bem sintonizada com as idéias teocráticas, e o próprio São Paulo havia ensinado (Rom. 12) que o poder civil deriva da autoridade de Deus.
- Este é um princípio do qual, pode-se bem argumentar, as definições do Vaticano I de 1870 são um desenvolvimento válido.
7. Discute-se entre os Doutores por que razão e como é que sucedeu que os Apóstolos, ao falarem, fossem entendidos por todos. Com efeito, de dois modos pôde esse dom ser-lhes concedido: um modo, da parte dos ouvintes; outro modo, da parte dos falantes. De facto, por um lado, os Apóstolos, ao pregarem, com apenas uma pronúncia de palavras e um só idioma, foram entendidos ao mesmo tempo por todos os homens presentes que falavam diversas línguas; por outro lado, foram infundidas nos Apóstolos as especificidades e o conhecimento das diversas línguas, e foi-lhes dada a capacidade de falar a todos eles, não ao mesmo tempo e com a forma da mesma voz, mas sucessivamente e conforme as ocasiões. São Tomás examina este assunto na 2.2. questão 176, artº 1, onde ensina que foi necessário que o dom das línguas fosse dado aos Apóstolos, sendo eles enviados a ensinar os outros, pois eram pobres e ser-lhes-ia difícil encontrar alguém que traduzisse fielmente aos outros as suas palavras e lhes explicasse a eles as palavras dos outros. Além disso, tendo sido replicado a São Tomás que Deus podia fazer com que os Apóstolos, falando uma única língua, fossem entendidos por todos e que assim eles não teriam possuído a habilidade de falar todas as línguas, responde assim: Resposta à segunda: Bem podiam acontecer ambas as coisas: serem os apóstolos, falando uma só língua, entendidos por todos; ou falarem as línguas de todos. Contudo era mais conveniente falarem eles as línguas de todos; porque a perfeição da ciência deles exigia não somente o falarem, mas ainda o poderem entender a fala dos outros. Mas se todos entendessem a língua única, que os discípulos falassem, sê–lo–ia pela ciência dos que lhes entendessem a fala, ou uma como que ilusão, pela qual as palavras dos discípulos chegassem aos ouvintes em sentido diferente daquele com que foram proferidas.
8. Vem em favor da explicação de São Tomás aquela passagem de Paulo em 1Cor, 14, 18: Dou graças a Deus, porque falo a língua de todos vós. Comprova-o também a razão pelo mesmo apresentada, de que este dom foi necessário, não só para que os ouvintes entendessem os Apóstolos que falavam, mas também para que os Apóstolos entendessem os outros infiéis que lhes dirigiam a palavra, pudessem responder às suas perguntas e resolver as dificuldades apresentadas. À opinião deste santo Doutor aderem claramente Suarez, Tom.1 de Gratia, prolegom. 3, cap. 5, do número 47 ao 55; Escaco, de not. et sign sanctit. sect. 8, cap.6; Vigner, loco supra cit. cap. 9, vers. 8; os Salamanticenses, in cursu Theol. tom. 3, in arbore praedicamentali § 17, nº 168 e ss; Thyreus, de apparitione vocali, lib. 2, cap. 14; e todos afirmam que podia ter sucedido, e talvez até tenha sucedido, que os Apóstolos, de acordo com as várias circunstâncias, falando por vezes um único idioma, eram entendidos por todos os ouvintes, embora estes tivessem várias línguas. Segue-os Matêucio, in pract. Theologo-Canon. ad causas Beatificat. et Canoniz. tit. 3, cap. 3, artº 2 § 5, do nº 55 ao 62. Sílvio diz de maneira ótima, in 2.2. D. Thomas, qu. 176. artº 1: Não se deve negar que por vezes sucedeu que, falando um só uma única língua, ele fosse entendido pelos ouvintes de diversas e estranhas línguas, tal como aconteceu, quando Pedro, tomando a palavra, discursou para a multidão onde várias línguas estavam misturadas... Mas dizemos não só que isto foi concedido aos Apóstolos e aos Santos que foram como eles, mas também consideramos que se deve afirmar que eles falavam várias línguas, conforme eram aqueles a quem era necessária dirigir a palavra.
9. Cristo Senhor teve, sem dúvida, conhecimento perfeitíssimo de todas as línguas, mas não precisou de as falar a todas, por ter de pregar somente a um povo, ou seja, aos judeus. Assim o advertiu São Tomás, no lugar citado, ad tertium, e Tomás Bózio ponderou-o atentamente, de signis Ecclesiae lib. 6, sign. 22, cap. 5, nº 1. Sílvio, no lugar citado, faz um comentário a São Tomás, dizendo que é muito verossímil que Cristo Senhor não tenha utilizado nenhuma outra língua publicamente e diante do povo, para além da que era familiar ao povo judeu, tendo o Senhor vindo pessoalmente a pregar só a eles. Mas privadamente, requerendo-o a ocasião, utilizou várias línguas, quando falava aos gentios no Egipto e quando falava a uma multidão formada por diversos povos, tal como está em Jo 12; ou quando falava ao Tribuno e à coorte dos soldados romanos que estavam reunidos com os Príncipes dos Sacerdotes, os magistrados do Templo e os Anciãos, tal como está em Jo 18 e em Lc 22. Embora aqui usasse uma única língua, certamente o Sírio, que nessa altura era familiar aos Hebreus, foi entendido por todos os presentes, ainda que nem todos dominassem a língua síria na perfeição. Mas não foi só aos Apóstolos, também à maior parte dos outros foi dado o Dom dos vários géneros de línguas para proveito e edificação dos fiéis. Há exemplos coligidos por Bagatta, in oper. de admirandis orbis Christiani, tom. 2, pag. 153. Nós, porém, apresentaremos aqui alguns exemplos, a partir dos quais se poderá reconhecer que Deus concedeu este dom, de que estamos a tratar, aos seus servos, tanto no primeiro modo, como no segundo modo. Na vida de São Sófio ou Cadoco, Bispo de Benevento e Mártir, editada por Bolando, para o dia 24 de janeiro, tom. 2, cap. 1, pag. 604, lê-se assim: Chegando, por fim, Cadoco a Jerusalém, visitou os lugares santos e o Senhor concedeu-lhe falar os idiomas dos povos por entre os quais Ele tinha passado, e Cadoco começou a falar em várias línguas. Na vida de São Teliau, Bispo de Llandaff, na edição do mesmo Bolando, para o dia 9 de Fevereiro, cap 2, nº 8, pag. 309, tom.2, estão estas palavras: Vendo que o amor da palavra de Deus se incendiava nos seus corações, não tendo ele nenhuma competência na língua deles, a preocupação e a angústia o invadiam de modo admirável. Todavia, para satisfazer o povo suplicante e as preces deles, começou a explicar as Sagradas Escrituras, e cada um dos que estavam diante dele ouviu-o a falar a sua própria língua. O mesmo dom foi concedido aos seus companheiros, isto é, aos Santos David e Paterno, como o atesta o mesmo autor, no lugar citado: Levantaram-se, pois, David e Paterno e pregaram ao povo, e todos os entendiam perfeitamente na sua própria língua. Na Paixão dos vinte Santos Mártires de Laura de São Sabas, na edição de Bolando, para o dia 20 de Março, cap. 7, nº 73, pag. 177, contase como um deles, desejoso de aprender a língua grega, para se dedicar à leitura das Escrituras, não conseguia aprendê-la de modo nenhum: Na verdade, deixando-se vencer pelo sono, foi visitado por um dos santos Padres, o Protodiácono Anastácio, de quem acima fizemos menção, tendo ele sido íntimo deste Padre, que lhe perguntou a causa da sua tristeza. Ele expôs-lhe então a sua dificuldade em aprender e o Santo, sorrindo, disselhe: “Abre a tua boca e mostra-me a tua língua”. Tendo-o em seu poder, tomou um pano novo e, esfregando-lhe a língua e limpando-a, depois de retirada uma substância gordurosa e uma viscosidade lodosa, desapareceu. Então o presbítero, que dormia, acordou. Porém, constatou que, a partir daquele dia, sentiu uma tão grande facilidade em entender o dialeto, e uma tão expedita eloquência, quer na leitura, quer na aprendizagem da língua submissa à sua vontade, que ele próprio se admirava e se espantava com o cuidado que Deus tinha para consigo e com a graça dos Santos. Nos paralipómenos às vidas de São Pacómio e São Teodoro, para o dia 14 de maio, segundo o citado Bolando, cap. 3, refere-se que São Pacómio, querendo corrigir um certo homem romano, que fazia uso do latim e do grego, idiomas esses que ele ignorava, dominando apenas a língua egípcia, dirigiu preces a Deus, durante três horas, para que pudesse auxiliar aquele irmão, e foi enviada do céu uma folha de papel escrita, que ele, logo que a leu, ficou a saber imediatamente as línguas de todos os povos. A seguir, tendo-se aproximado do irmão, o autor acrescenta que ele empregou sem nenhum erro tanto a língua romana, como a língua grega, diante do espanto desse irmão. Santo António dá este testemunho acerca de São Vicente Ferrer, na 3 part. Sum. histor. tit. 23, cap. 8 § 4: Era uma coisa estupenda e dotada de Graça Apostólica o facto de ele pregar no idioma vulgar da Catalunha e ser também entendido pelos outros povos que o ignoravam. Concorda com isto Henrique Espondano, in continuat. annal. Card. Baronii ad an. 1403, num. 7: Enfim, tem sido concedido a todos os pregadores do Evangelho, desde os tempos Apostólicos, que, falando-se na língua pátria e vulgar da Catalunha, o discurso seja entendido pelo povos estrangeiros que a ignoram, e seja ouvido não só pelos que são vizinhos da região, mas também pelos de regiões afastadíssimas, pelo doutos e pelos indoutos, pelos nobres e pelos plebeus. E por mais que se discurse prolixamente, ninguém é afetado pelo tédio. No relatório da causa do São Francisco Xavier, assim falaram os Auditores da Rota, no capítulo acerca do dom das línguas, etc.: Xavier distinguiu-se no dom das línguas, pois falava elegante e expeditamente as línguas dos diversos povos, que ele não tinha aprendido, quando recorria a elas por causa do Evangelho, como se ali tivesse nascido e ali fosse criado. E não raramente acontecia que qualquer um o ouvia a discursar para homens de diversas nações falando na sua língua. Tomás Bózio refere a mesma coisa acerca de São Luís Beltran, no lugar citado nº 3. Entre as epístolas de São Francisco Xavier (publicadas por Horácio Turselino despois da vida deste santo), a Epístola 5, lib. 3, pag. 105, fala a mesma coisa acerca de si próprio: Fez Deus com que, quanto antes, aprendêssemos o japonês, para a explicação das coisas divinas. Por fim, havemos de alcançar algum resultado na ação cristã. Com efeito, agora vivemos entre eles como se fôssemos estátuas mudas. Na verdade, eles dizem e pensam muitas coisas a nosso respeito, diante das quais nós obviamente emudecemos, ignaros como somos da sua fala. No momento presente voltamos à infância com a aprendizagem dos elementos desta língua. Tiago Picenino infere destas palavras que ele não foi dotado com o dom das línguas. Mas o Cardeal Gotto refuta-o energicamente, no tom. 1, de vera Ecclesia, cap. 2 § 4, nº 44, tendo podido o santo, num determinado momento, não dominar as línguas e, no momento seguinte, ser distinguido com o dom das línguas, como aconteceu com os Apóstolos, aos quais foi concedido o dom das línguas não imediatamente no início da sua vocação para o Apostolado, mas quando sobre eles desceu o Espírito Santo.
10. Não se deve duvidar que, com a permissão de Deus, o demónio pode fazer coisas semelhantes. Com efeito, ele pode, ao mover os instrumentos da voz, movê-los de tal maneira, que pronuncie a língua que quiser. E pode também formar a partir do ar diversas manifestações que nos ouvidos dos que ouvem representam palavras, que ele não pronuncia com a fala. Por isso, na vida de Santo Hilarião, São Jerónimo refere que um certo atrabiliário, que antes falava palavras siríacas, foi curado por esse santo, pondo em fuga o demónio. E tornou-se banal, entre os sinais da possessão demoníaca, que nenhum é mais evidente do que uma mulher, ou um camponês, ou um iletrado discutir sobre os mistérios teológicos, que ignorava antes da possessão, e conseguir falar em grego, ou hebraico, ou latim, em alemão ou em outra qualquer língua exótica, como nota Gaspar dos Reis, in Elysio iucundar. quaest. campo quaest. 27, art. 4. Por conseguinte, se ocorrer uma discussão acerca desta Graça dada de graça, que é o dom dos vários géneros de línguas, na Congregação dos Ritos Sagrados, por ocasião do estudo da causa de algum servo de Deus, de cuja beatificação ou canonização se trate, e os Postuladores afirmem que ele foi dotado do dom das línguas, isto é, que ele dominou por influência divina muitas línguas, será necessário que demonstrem, com o testemunho de homens honestos, que ele nunca se esforçou por aprender as línguas de que se trata, e que não foi com o tempo que ele se tornou perito nelas, utilizando-as de forma expedita, quando se proporcionava a ocasião, como alerta Matêncio, in pract. Theologo-Canon. ad causas Beatificat. et Canonizat. tit. 3, cap. 3, art. 2 § 5, num. 68. Os auditores da Rota seguem isto, no citado relatório da causa de São Francisco Xavier, tit. de dono linguarum. Porém, se os Postuladores afirmarem que o servo de Deus falava uma única língua e que foi ouvido por muitas pessoas de diversas línguas a falar a língua deles, como se fosse própria, é necessário que se apresentem testemunhas que assegurem que o ouviram a falar no seu próprio idioma, por exemplo, latim, italiano, etc., e se apresentem mais outras testemunhas de diversas nações a atestar que o ouviram também a falar as suas línguas, como por exemplo, alemães, a língua alemã; espanhóis, a língua hispânica, franceses, a língua francesa, ingleses, a língua inglesa, etc. Além disso, é necessário que todos concordem no facto de que o servo de Deus falou isso, segundo o que está determinado para os Auditores da Rota, no lugar citado. Além disto, deve advertir-se se no uso destas línguas se introduziu alguma vaidade, por exemplo, se isso aconteceu para granjear o aplauso dos povos ou dos príncipes, ou para arrecadar dinheiro, ou honras, ou se ele falou banalidades. Com efeito, estas coisas demonstrariam que o uso das várias línguas não procedeu de Deus. Pelo contrário, se ele falou das grandezas de Deus, se usou as línguas para converter os pecadores e os infiéis, esses serão sinais certíssimos de que ele foi agraciado por Deus com o dom das línguas, e este requisito se terá em muitíssima consideração nas causas de beatificação e canonização, depois estabelecidas principalmente as provas das virtudes em grau heroico, como advertiu Matta, de Canoniz. SS. part. 3, cap. 4, nº 18 e 19; e Matêucio, loc. cit., nº 68. Escaco, de Notis et sign. sanctit. sect. 8, cap.6, pag. 649.
11. A última Graça dada de graça, de que fala o Apóstolo, é a tradução dos discursos, que pode explicar-se de dois modos. Um deles é que a tradução de um discurso se refere ao significado das palavras; o outro é a busca do entendimento dos sentidos e mistérios nas palavras que ali constam. No primeiro modo, traduzir um discurso é transpor as palavras de um idioma para as palavras de outro idioma, coisa que pode fazer-se por escrito ou oralmente. No segundo modo, traduzir um discurso não é transpor as palavras de um idioma para as palavras de outro, mas ensinar os mistérios que se escondem nas palavras e que muitas vezes não são entendidos por aqueles que conhecem o significado das palavras. É isto que ensina Suarez, tom.1 de Gratia, prolegom. 3, cap. 5, nº 55 e ss. Ao primeiro modo deve atribuir-se a versão da Sagrada Escritura traduzida por Setenta homens que, sob a orientação de Ptolomeu de Filadélfia, segundo a comum opinião, compuseram a sua tradução, não a partir de charcos turvos de ribeiros, ou dos vulgares e populares livros caldaicos, siríacos e códices samaritanos, mas a partir das puras fontes hebraicas, tal como com sólidos argumentos o comprovou João Moriano contra o Rabino Azario; quer eles tenham feito esta versão separadamente, cada um fechado nas suas celas, como afirmaram Justino, Ireneu e Cirilo de Jerusalém; quer a tivessem feito reunidos num lugar público, ou numa grande basílica, afastada de todo o tumulto e ruído, como mais provavelmente pensa São Jerónimo. Ao segundo modo dizem respeito os textos que existem dos tradutores dos Santos Apóstolos. Na verdade, Pedro utilizou Marcos como tradutor, e Paulo teve como tradutor Tito, de quem na 2Cor 2, 12 diz: Quando cheguei a Tróade, para pregar o Evangelho de Cristo, e apesar de lá me estar aberta uma porta no Senhor, não tive sossego no meu espírito, porque não encontrei Tito. Na realidade, estes tradutores prestavam os seus serviços aos Apóstolos, como o fazia Tito a Paulo, quer quando se via que eles desejavam o serviço dos tradutores, no momento em que falavam a algum povo, por exemplo aos romanos, estando outros no meio do auditório que ignoravam totalmente o latim; quer quando os mesmos Apóstolos falavam coisas difíceis de entender, visto que nessa ocasião era missão dos tradutores explicá-las. Foi esta a conclusão a que chegou o Cardeal Barónio, depois de longa discussão, in annal. ad an. 45, nº 37.
12. Com o Cardeal Baronio concorda Suarez, loc. cit., nº 61 e ss. Mas Estio, in comment. ad cap.2 epist. 2 ad Corinth., considera que não pode aceitar-se como o múnus de tradutor tivesse sido exercido por Tito, seja de qual dos dois referidos modos for, e como Paulo tivesse podido ficar afetado por uma grande tristeza, ao não encontrar Tito em Tróade, e assim a ação dele não podia utilizar o modo explicado. Com efeito, diz que nessa altura Paulo pregou nas regiões da Ásia, da Acaia e da Macedónia, nas quais se falava a língua grega. Da mesma forma, Paulo alcançou, por um milagre divino, o conhecimento das línguas e falava com igual facilidade o latim, o grego e o hebreu, e, sendo assim, é improvável que ele, por causa da ausência de tradutor, que ele provavelmente nem precisava, ficasse com o espírito de tal modo perturbado, que, deixando Tróade, fosse para a Macedónia a procurar ali o seu tradutor. Este autor diz ainda que os Apóstolos, que pregavam à multidão, adaptavam o seu discurso às capacidades da maioria e que nessa altura reservavam os mistérios mais secretos, para os transmitirem aos mais capazes e mais adiantados na fé. Por essa razão o mesmo Apóstolo, na 1Cor 2, 6, diz: Nós falamos da sabedoria entre os perfeitos; e em 3, 1, diz: Não pude falar-vos a simples homens espirituais, mas como a homens carnais. Como a criancinhas em Cristo foi leite que vos dei a beber e não alimento sólido, que ainda não podíeis suportar. Destas palavras o mesmo Estio deduz que Paulo não precisava de Tito para a explicação dos mistérios e das coisas obscuras. E conclui que o espírito de Paulo não teve sossego, quando não encontrou Tito, porque o tinha enviado a Corinto, para lhe mandar notícias a saber se os Coríntios já se tinham corrigido. Cornélio a Lápide concorda com isto, no seu comentário ao capítulo 2 da Segunda Epístola aos Coríntios, onde tem estas palavras: Houve também outra razão pela qual Paulo se dirigiu de Tróade à Macedónia ao encontro de Tito: porque desejava que Tito, a quem ele tinha enviado a Corinto, lhe desse a conhecer o estado dos Coríntios, antes de regressar a Corinto, como tinha prometido. Por isso, no capítulo 7, versículo 6 diz que ele na Macedónia foi consolado com a chegada de Tito, que lhe contou o pranto dos Coríntios e desejo que tinham de Paulo. Parece, porém, que Tito comunicou a Paulo que ainda não era tempo de voltar a Corinto. Por isso Paulo adiou a sua viagem a Corinto, e enviou-lhes antes esta epístola, que lhe abriria o caminho para chegar até eles e corrigiria os defeitos dos Coríntios. Ora isto que eu referi é suficiente, pois, no que diz respeito às causas da Beatificação e Canonização, parece-me que é muito difícil que se dê ocasião à discussão desta Graça da tradução dos discursos. Embora, na verdade, possa acontecer, e muitas vezes aconteceu, que os mistérios ocultos das Escrituras fossem explicados por algum servo de Deus, sem o contributo do empenho humano, todavia isso não terá nada a ver com a Graça da tradução dos discursos, mas com a ciência infusa, de que falamos acima.
Fonte: https://charlesasullivan.com/6199/pope-benedict-xiv-on-the-gift-of-tongues/ Tradução: Pe. Zé.