Sábado, Maio 4, 2024

Tertuliano negou a virgindade de Maria depois do parto?

I. Introdução

Tertuliano de Cartago, um autor cristão que viveu entre o fim do século II e o início do século III, ficou historicamente conhecido no estudo da mariologia por ter sido o único dos tradicionalmente identificados “Padres da Igreja” a ter negado a doutrina da virgindade de Maria depois do parto. A razão disso é simples: quando, no século IV, São Jerônimo escreveu sua réplica ao heresiarca Helvídio, não impugnou a parte de sua argumentação que se utilizava da autoridade de Tertuliano para negar a virgindade de Maria, limitando-se, sobre o tema, a escrever: De Tertulliano nihil amplius dico quam ecclesiasticum hominera non fuiase” (Adv. Helv., PL. 23, 201 B).

O silêncio do santo foi interpretado erroneamente pelos autores posteriores – católicos incluso – como um consentimento tácito com a tese de Helvídio de que Tertuliano teria negado a virgindade de Maria depois do parto. Um dos maiores mariologistas do século passado, o Pe. Gabrielle Roschini, O.S.M., por exemplo, escreveu que, no Ocidente, “negou a virgindade de Maria depois do parto – como também no parto – Tertuliano (c. 202), quando já era herege, como nota o mesmo S. Jerônimo contra os que se apoiavam na autoridade daquele1. Atitude semelhante tiveram os Padres Luigi Gambero e Michael O’Caroll em suas obras.2 Eles, em geral, utilizavam-se ainda de cerca de uns cinco textos que supostamente corroborariam com a interpretação de Helvídio sobre Tertuliano e a virgindade de Maria:  “De monogamia” 8.1-3 (CCL 2:1239),  “De virginibus velandis” 6.2-3 (CCL 2:1215-16), “Adversus Marcionem” 4.19 (CCL 1:592-94),  “De carne Christi” 7 (CCL 2:886-89) e, por fim, “De carne Christi” 23 (CCL 2:914-15).

Ao refutar Helvídio, São Jerônimo, na realidade, sequer entrou no mérito dos escritos de Tertuliano, sendo-lhe suficiente questionar a autoridade do presbítero apóstata de Cartago sobre o assunto. Há motivos, entretanto, para se questionar a recepção acrítica da interpretação de Helvídio sobre os textos de Tertuliano quanto a este tema. O primeiro é que todos os escritores contemporâneos a Tertuliano afirmavam a virgindade perpétua de Maria3, com Orígenes chegando até mesmo, segundo o Pe. Gambero, “a implicar diretamente que esta é uma verdade já reconhecida como parte integrante do depósito da fé”4. O segundo é que os cinco textos apresentados como “provas” de que Tertuliano teria negado a virgindade de Maria depois do parto não só são insatisfatórios para provar esta tese, como também podem ser utilizados em defesa da virgindade de Maria depois do parto5. Os mariólogos Josef Blinzer6, John McHugh7 e José M. Pedrozo8, são exemplos de autores que discordam da interpretação “tradicional” (i.e. “helvidiana”) desses escritos de Tertuliano e que defendem que as passagens citadas em favor dessa interpretação podem ser lidas de uma maneira a não negar a doutrina da virgindade de Maria post partum.

As teses de Blinzer, McHugh e Pedrozo serão defendidas no presente trabalho. Para isso, analisaremos individualmente cada texto de Tertuliano citado em favor da interpretação helvidiana, prosseguindo para nossas conclusões.

II. Os escritos de Tertuliano

a) “De monogamia” 8,1-3:

A monogamia e a castidade são as duas sacerdotisas de santidade cristã: uma modesta em Zacarias o sacerdote, outra absoluta em João, o mensageiro [João Batista]. Uma apazigua Deus; a outra prega Cristo; uma proclama um sacerdote perfeito; a outra exibe “mais do que um profeta” – ele que não só tem pregado ou pessoalmente apontado, mas que batizou Cristo. Pois quem era mais digno de realizar o rito iniciático sobre o corpo do Senhor, do que carne semelhante em tipo àquela que concebeu e deu à luz esse [corpo]? E na verdade era uma virgem, prestes a casar-se uma vez por todas depois do seu parto, que deu à luz Cristo, para que cada título de santidade pudesse cumprir-se na parentela de Cristo, por meio de uma mãe que era tanto virgem, como esposa de um só marido.” (Tertuliano de Cartago, “De monogamia”, 8, 1-3; PL 2, 939B; CCL 2:1239)

Neste texto, Tertuliano afirma que existem duas virtudes que expressam a santidade cristã: uma é a monogamia e a outra é a castidade. Ele afirma que Zacarias, pai de São João Batista, é um exemplo da primeira enquanto São João Batista é um exemplo da segunda. Maria, por sua vez, conteria ambas as virtudes, sendo virgem e casada ao mesmo tempo “para que cada título de santidade pudesse cumprir-se na parentela de Cristo”. Não há nenhuma negação explícita da virgindade de Maria post partum nessa passagem.

O teólogo modernista John Meier sugere que haveria uma crítica implícita à virgindade de Maria nesta passagem pois, segundo ele, o paralelo [de Maria] com Zacarias sugere naturalmente a relação sexual normal e fértil.”9 Dada a devida vênia, a interpretação de Meier é obviamente uma interpretação extensiva, pois apenas o status monogâmico de Zacarias está em questão no argumento de Tertuliano. Inferir qualquer coisa além disso é ir além do que diz o próprio texto quanto a essa questão.

Muito mais significativo, no entanto, é o paralelo que o texto faz entre a castidade de Maria e a castidade de São João Batista, um nazireu cuja castidade foi, de acordo com o próprio Tertuliano, uma castidade “absoluta”. Argumenta o Pe. McHugh: “Aqui Tertuliano está argumentando contra o re-casamento de viúvas e, portanto, está preocupado em enfatizar que Maria foi casada apenas uma vez. Não há, entretanto, nenhuma indicação de que ela tenha consumado esse casamento. De fato, na frase que precede a que acabamos de citar, ele fala do Batista como um homem “de total continência” (integra continentia) e de Zacarias, seu pai, como “casto em um casamento” (monogamia pudica) (ver 8,1: CC 2.1239, linhas 4=5 = ML 2.939 A). Ao comparar o Batista com Maria, portanto (ele era “eiusmodi caro qualis et concepit et peperit”), Tertuliano parece implicar que Maria permaneceu sempre virgem, assim como o Batista, embora ele não o diga explicitamente. Comparado com esta afirmação sobre o Batista, a mera afirmação de que Maria foi casada após o nascimento de Jesus (semel nuptura post partum) não é evidência de que Tertuliano acreditava que este casamento tivesse sido consumado, particularmente porque a sua ênfase não se baseia no fato de casamento, mas sobre o fato de que Maria se casou apenas uma vez.”10.

E, contra as interpretações de Meier, responde Pedrozo: “Primeiro de tudo, ele [Tertuliano] está argumentando contra o re-casamento de viúvas. Para alcançar a santidade cristã, acredita ele, há duas opções a seguir: monogamia ou continentia. Ele prossegue desenvolvendo uma analogia entre Zacarias e seu filho João Batista como representantes dessas duas opções: “monogamia et continentia, alia pudica in Zacharia sacerdote, alia integra in Ioanne antecursore, alia placans Deum, alia praedicans Christum, alia totum praedicans sacerdotem, alia plus praeferens quam propheten.” De acordo com Tertuliano, alguém deveria ser monogâmico, como Zacarias, ou permanecer solteiro como João Batista (e, é claro, neste caso, um cristão seria obrigado a praticar a continência). Mas a ênfase está em ser casado apenas uma vez. Observe que o termo usado por Tertuliano é continentia, não virginitas. Em certo sentido, a virgindade tem apenas um caráter incidental nessa analogia. Tertuliano acrescenta que, devido à santidade de Cristo, era apropriado que ele fosse nascido de uma mulher que era virgem e casada apenas uma vez (uirgine et uniuira). Isso é tudo o que Tertuliano está dizendo. Meier supõe que, como as pessoas casadas geralmente não são guardam perpetuamente a continência, as relações sexuais e a procriação devem ter seguido o caso de Maria e José. Mas não há razão para assumir isso a partir do próprio texto. Que Maria deve ter filhos é óbvio para Meier pelo fato de o próprio Zacarias ter um filho. Mas esta é uma observação irrelevante, uma vez que apenas o status monogâmico de Zacarias está em questão no argumento de Tertuliano. Sua ênfase particular é revelada ainda mais quando ele menciona Ana, a profetisa feminina no templo (cf. Lucas 2:36), que era uidua et uniuira. Para Tertuliano, é irrelevante se ela teve filhos ou não. Ele só está interessado em apontar que Ana era casada, que ela ficou viúva e que ela permaneceu viúva. Portanto, a menos que alguém implore a questão assumindo o que deve ser mostrado, este texto do De monogamia – e similarmente os outros quatro textos supracitados de Tertuliano – não podem ser usados como prova da negação de Tertuliano da virgindade de Maria no pós-parto. De fato, no presente exemplo, poderíamos pressionar a analogia na outra direção. Isso poderia implicar que Maria pertence a ambos os grupos (continente e monogâmico) permanentemente. Afinal, Tertuliano compara a virgindade de Maria diretamente com a virgindade de João Batista (ele não compara Zacarias diretamente com Maria).”11

A monogamia e a continência de Maria são, portanto, comparadas nessa passagem à “monogamia modesta” de Zacarias e à “continência absoluta” de São João Batista. Cada um desses “títulos de santidade” cumpriu-se, de acordo com Tertuliano, na mãe de Cristo. Se essa passagem não prova que Maria, em semelhança a São João Batista, permaneceu em continência absoluta, ela, no mínimo, é insuficiente para provar o ponto de Helvídio e seus seguidores.

b) “De virginibus velandis” 6.2-3:

“Além disso, no que diz respeito à presente passagem, se Maria é aqui colocada no mesmo nível de uma ‘noiva’, de modo que ela é chamada de mulher não por ser uma mulher, mas por ser designada a um marido, segue-se imediatamente que Cristo não nasceu de uma virgem, porque [seria nascido] de uma ‘noiva’, que, por este fato, terá deixado de ser virgem. Considerando que Ele nasceu de uma ‘virgem’ – embora ‘noiva’, mas intacta – reconhece que mesmo uma virgem, mesmo uma intacta, é chamada de ‘mulher’. Pois ele não poderia estar nomeando uma mulher posterior, da qual Cristo não deveria nascer – isto é, alguém que conheceu um homem; mas aquela que estava então presente, que era virgem, também foi chamada de mulher por causa da propriedade desse nome – justificada, de acordo com a norma primordial, (como pertencente) a uma virgem e, portanto, à classe universal das mulheres.” (Tertuliano de Cartago, “De virginibus velandis”, 6, 2-3; PL 2, 897B-898B; CCL 2:1215-16)

A discussão aqui concentra-se na frase “que, por este fato, terá deixado de ser virgem (virum passam)”. Uma interpretação literal da passagem levaria o leitor à conclusão absurda de que Tertuliano estaria defendendo que todas as mulheres passariam a ter relações sexuais após se tornem “noivas” (isto é, serem “designadas a um marido”), o que claramente não está de acordo com o pensamento do autor, conhecido por seu rigor moral e que sempre condenou o sexo pré-marital. O contexto deve, portanto, ser considerado para sua correta interpretação.

No livro em questão, Tertuliano não segue o significado ordinário do termo “virgem” (isto é, aquela que não teve relações sexuais), mas cria o seu próprio significado para o termo:

Mas mesmo que seja “por causa dos anjos” que ela [a mulher] deve ser velada, sem dúvida a idade a partir da qual a lei do véu entrará em operação será aquela a partir da qual “as filhas dos homens” puderem atrair a concupiscência das pessoas e experimentar o casamento. Pois uma virgem deixa de ser virgem a partir do momento em que se torna possível que ela não o seja. E, portanto, em Israel, é ilegal entregar uma ao marido, exceto após o atestado por sangue de sua maturidade; assim, antes dessa indicação, a natureza é imatura. Portanto, se ela é virgem enquanto não está madura, ela deixa de ser virgem quando se percebe que está madura; e, como não virgem, está agora sujeita à lei, assim como está ao casamento. E os noivos, de fato, têm o exemplo de Rebeca, que, quando estava sendo conduzida – ela ainda desconhecida – a um noivo desconhecido, assim que soube que aquele que ela avistara de longe era o homem, não esperou o alcançar da mão, nem o encontro do beijo, nem o intercâmbio de saudações; mas confessando o que ela sentiu – ou seja, que ela (já) estava casada em espírito – negou-se a ser virgem até então e ali se velou. Oh mulher já pertencente à disciplina de Cristo!” (Tertuliano de Cartago, De virginibus velandis, 11)

Como se pode observar, na obra em questão, Tertuliano usa o termo “virgem” num sentido impróprio que se aplica não para mulheres que nunca tiveram relações sexuais, mas sim para mulheres ou imaturas ou que nunca foram designadas a um marido. Ao ser designada em noivado a Isaac, Rebecca deixa de ser virgem para Tertuliano, apesar de ainda não ter tido qualquer relação sexual. Para Tertuliano, portanto, as mulheres deixam de ser “virgens” no noivado não no sentido de que tiveram relações sexuais, mas porque atingiram a maturidade e foram designadas a um marido.

Temos, portanto, que concordar aqui com a conclusão que o Pe. John McHugh faz dessa passagem: “novamente tudo o que Tertuliano está dizendo é que Maria na época do nascimento de Jesus não conhecia homem”12.

c) “Adversus Marcionem” 4,19:

“‘Quem é minha mãe e meus irmãos?’ (…) Ele estava justamente indignado de que pessoas tão próximas dEle “permanecessem fora”, enquanto uns estranhos estivessem dentro aferrando-se às Suas palavras. Isto é particularmente assim dado que sua mãe e seus irmãos desejavam apartá-lo da obra solene que tinha entre mãos. Mais que negá-los, Ele os desautorizou. Portanto, à pergunta prévia, “Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos?” acrescentou a resposta: “Ninguém senão os que ouvem as minhas palavras e as praticam”. Deste modo transferiu os nomes das relações consanguíneas a outros que considerava mais estreitamente relacionados com Ele por causa da fé (…) Não é surpreendente que preferisse gente de fé aos seus próprios parentes, que não possuíam tal fé.” (Tertuliano de Cartago, “Adversus Marcionem” 4.19; CCL 1:592-94)

A discussão aqui se centra no fato de Tertuliano reconhecer “relações consanguíneas” entre Jesus e seus “irmãos”. Em favor da interpretação helvidiana de Tertuliano, esta passagem seria, segundo Meier, “a mais forte evidência”.13 Não há, no entanto, nada de tão excêntrico no texto que permita Meier a chegar a tão grandes conclusões.

Santo Agostinho, por exemplo, que sempre defendeu que os irmãos de Jesus nada mais eram para Ele do que meros primos14, não só os chama de os consangüíneos de Maria”15, como também, com relação à Cristo, os identifica como “os seus irmãos segundo a carne”.16 O mesmo ocorre com o cânon XXXII do Concílio Quinissexto de 692 e no Decreto de Graciano do ano de 1142 (p. III, dist. 1, can. 47), que reconhecem os irmãos de Jesus como sendo seus irmãos “segundo a carne”. Nenhum deles nega a virgindade perpétua de Maria, mas apenas reconhece que os irmãos de Jesus possuíam um parentesco biológico verdadeiro com Ele, distinguindo-o do parentesco meramente espiritual (“irmãos segundo a fé”).

Sobre essa passagem, comenta o Pe. McHugh: “Novamente, deve-se afirmar que Tertuliano não disse [nessa passagem] que esses irmãos eram filhos de Maria; suas palavras certamente afirmam que possuíam relações de sangue com Jesus, mas isso não é suficiente para provar que ele acreditava que fossem filhos da mesma mãe. E se ele acreditasse que esses irmãos eram nascidos de Maria, por que ele não o fez em ambas as ocasiões (em De carne Christi 7 e aqui), declarando de forma explícita e acabando com o argumento contra esses docetistas gnósticos com um só golpe?”17

E Pedrozo escreve: “No Adversus Marcionem, 4, 19, Tertuliano de fato responde aos Marcionitas sobre a interpretação deles de Mateus 12:48, argumentando que o significado do texto é que Jesus prefere a relação de fé a uma de sangue. Mas, mais uma vez, apenas se assumirmos o que [eles, Meier e os demais críticos] precisam mostrar – a saber, que os irmãos de Jesus são filhos de Maria – pode-se concluir que as declarações retóricas de

Tertuliano constituem uma afirmação explícita contra a virgindade de Maria no pós-parto.”18

Como vários outros Padres da Igreja, nessa passagem, Tertuliano só contrasta o parentesco segundo o sangue dos “irmãos” de Jesus, com o parentesco segundo a Fé da comunidade de discípulos. Nada se diz sobre tipo específico de parentesco que há entre os “irmãos” de Jesus e o próprio Cristo.

d)“De carne Christi”, 7:

Ele negou a seus pais, então, no sentido em que Ele nos ensinou a negar os nossos – pela obra de Deus. Mas há também outra visão do caso: na mãe abjurada há uma figura da sinagoga, bem como dos judeus nos irmãos incrédulos. Na sua pessoa, Israel permaneceu do lado de fora, enquanto os novos discípulos que se mantiveram perto de Cristo, ouvindo e acreditando, representavam a Igreja, que ele chamava de mãe em um sentido preferível e uma irmandade digna, com o repúdio do relacionamento carnal.” (Tertuliano de Cartago, “De carne Christi”, 7, CCL 2:886-89)

Essa passagem segue a mesma linha de argumentação de “Adversus Marcionem” 4,19. Comenta o Pe. McHugh: “Tertuliano está defendendo a realidade do nascimento de Cristo contra certos docetistas que aparentemente sustentavam que as palavras em Mt 12:48 (“Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?”) continham uma negação implícita, pelo próprio Jesus, de que ele havia entrado em o mundo por nascimento como uma criança. Em resposta, Tertuliano repetidamente insiste que Jesus tinha mãe e irmãos, mas em nenhum lugar declara, ou mesmo insinua, que esses irmãos eram filhos nascidos de Maria. Agora, se ele acreditasse que esses irmãos eram de fato filhos de Maria, certamente esse não teria sido um bom argumento a ser usado contra os docetistas? Os estudiosos modernos argumentam que a existência de tais irmãos e irmãs sublinha a realidade e a integridade da Encarnação; e mesmo aqueles que discordam dessa tese permitiriam que, se Maria tivesse outros filhos, isso sublinharia a realidade da humanidade de Jesus. Tertuliano nunca foi um homem a ignorar um argumento revelador; ele era um advogado nato que nunca perdeu uma oportunidade ou falhou em detectar uma fraqueza no caso de seu oponente. Portanto, a única razão possível para ele não mencionar explicitamente a interpretação ‘Helvidiana’ neste ponto é que ele não acreditava que os irmãos fossem filhos de Maria.” 19

Nessa passagem, portanto, Tertuliano simplesmente contrasta àqueles com quem Cristo tem um relacionamento carnal daqueles com quem Cristo tem um meramente relacionamento espiritual. Santo Agostinho, que, como demonstrado acima, sempre defendeu que os “irmãos de Jesus” eram apenas seus primos20, faz uma interpretação muito parecida à de Tertuliano:

Das próprias palavras do Senhor, nós aprendemos que a Igreja são seus irmãos e que a Igreja são suas irmãs e que a Igreja é sua mãe, pois quando lhe foi transmitida uma mensagem que sua mãe e seus irmãos estavam ali, um fato simbólico foi mencionado: eles estavam do lado de fora (Cf. Mateus 12:46; Marcos 3:31). Quem era sua mãe, em um sentido típico? A sinagoga. E quem seus irmãos segundo a carne representavam? Os judeus que estavam do lado de fora.” 21.

Seria Santo Agostinho também um adversário da doutrina da virgindade de Maria após o parto? É óbvio que não. Essa passagem de Tertuliano, portanto, é insignificante para essa discussão.

e) “De carne Christi”, 23:

Deu à luz porque produziu um descendente de sua própria carne; não o deu, porque o fez sem intervenção de varão. Foi virgem em relação ao marido, não o foi em relação ao parto… A que deu à luz o fez verdadeiramente, e se foi virgem quando concebeu, no parto foi esposa… Mas é o casamento que abre o útero em todos os casos. O seio da Virgem se abriu de um modo especial, porque havia sido selado especialmente. De fato, se deveria chamá-la não tanto “uma virgem” como “a virgem” que se fez mãe sem transição, como se disséssemos, antes de ser esposa.” (Tertuliano de Cartago, “De carne Christi”, 23, CCL 2:914-15)

Nessa passagem, Tertuliano afirma que com o seu parto, Maria deixou de ser fisicamente “virgem” e se tornou “esposa”, no sentido de que seu ventre foi aberto (pois, de acordo com o Cartaginense, “é o casamento que abre o útero em todos os casos”). Tertuliano não diz que Maria se tornou “esposa” pois teve relações sexuais, mas simplesmente porque supostamente o seu útero foi aberto e supostamente perdeu sua virgindade física.

O texto é uma negação da virgindade de Maria no parto (virginitas in partum), mas nada fala sobre o que aconteceu depois deste evento (virginitas post-partum). Escreve Pedrozo: “No De carne Christi XXIII não há declarações a favor ou contra a virgindade de Maria após o nascimento de Cristo. Os irmãos de Jesus nem sequer são mencionados. Tertuliano simplesmente afirma que Maria era uma mãe virgem. Sua expressão virgo, quantum a uiro, non virgo, quantum a partu” reflete sua agenda anti-docetista. Nada além do nascimento de Cristo é considerado.”22.

E conclui o Pe. McHugh: “Aqui Tertuliano está meramente defendendo o fato de que Maria era tanto uma virgem na época do nascimento de Jesus (porque ela nunca conhecera homem) e também a verdadeira mãe de Jesus (porque sua carne não veio do céu, mas da carne dela). Não há referência aos irmãos do Senhor e nenhuma afirmação a favor ou contra a virgindade de Maria depois do nascimento de seu filho.”23

Sobre Tertuliano e a virgindade de Maria in partum, indica-se o estudo do colega Nelson Sarmento, “A virgindade perpétua de Maria nos cinco primeiros séculos (parte 1)” (2017), disponível aqui.

III. Conclusão.

Todos os textos historicamente citados para se defender que Tertuliano negou a virgindade de Maria post partum não são insuficientes para sustentar tal tese. O presbítero apóstata africano, de fato, negou a virgindade física de Maria no parto (virginitas in partum), mas isto não é a mesma coisa que atribuir relações sexuais à Virgem. Em seu De monogamia VIII, ao mesmo tempo em que comparou a monogamia de Maria à “monogamia modesta” de Zacarias, Tertuliano explicitamente comparou a continência da Virgem à “continência absoluta” de São João Batista. É uma afirmação implícita da virgindade post partum da mãe de Jesus, que coloca Tertuliano na mesma linha de pensamento de Orígenes e dos demais autores dos séculos II e III. Nada além disso pode ser extraído de seus escritos. Assim, a opinião de Helvídio de que Maria teria tido outros filhos com São José, como escreve Pedrozo, “não consegue encontrar uma única testemunha explícita antes do século IV”24.

IV. Referências.

1 ROSCHINI, Gabriel. La Madre de Dios según la Fe y la Teologia, Volume II, p. 166.

2 GAMBERO, Luigi, “Mary and the Fathers of the Church”, p.62-63; O’Caroll, Michael, “Theotokos: A Theological Encyclopedia of the Blessed Virgin Mary”, p. 338.

3 SARMENTO, Nelson. A virgindade perpétua de Maria nos cinco primeiros séculos (parte 2). Disponível em <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/apologetica/virgem-maria/952-a-virgindade-perpetua-de-maria-nos-cinco-primeiros-seculos-parte-2> Desde 08/03/2017.

4 GAMBERO, Luigi, Mary and the Fathers of the Church, p. 75.

5 Cf. MCHUGH, John, “The mother of Jesus in the New Testament”, p. 448.

6 BLINZER, Josef, “Die Bruder und Schwestern Jesu”, Stuttgart, 1967, pp. 139-141.

7 MCHUGH, John, “The mother of Jesus in the New Testament”, pp. 448-449.

8 PEDROZO, José M. The Brothers of Jesus and his Mother’s Virginity. The Thomist: A Speculative Quarterly Review, Volume 63, n. 1, jan. 1999, pp. 90-95.

9  MEIER, John, “A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus”, p. 68.

10 MCHUGH, John, “The mother of Jesus in the New Testament”, p. 448.

11 PEDROZO, José M., “The Brothers of Jesus and his Mother’s Virginity”, p. 93-94.

12 MCHUGH, John, “The mother of Jesus in the New Testament”, p. 449.

13 MCHUGH, John, “The mother of Jesus in the New Testament”, p. 362, n. 43.

14 SANTO AGOSTINHO DE HIPONA, In Joh. Evang. x, III. 2. p. 368, ib. xxviii, III. 2. p. 508; Enarr. in Ps. cxxvii, IV. 2. p. 1443; Contr. Faust. xxii. 35, VIII p. 383; comp. Quaest XVII in Matth., III. 2. p. 285.

15 SANTO AGOSTINHO DE HIPONA, Comentário do Evangelho de São João, X, 2.

16 SANTO AGOSTINHO DE HIPONA, Enarrationes in Psalmos 127, 12; CSEL 95,3, PP. 1876.8-13.

17 MCHUGH, John, “The mother of Jesus in the New Testament”, p. 449-450.

18 PEDROZO, José M., “The Brothers of Jesus and his Mother’s Virginity”, p. 94, nota 35.

19 MCHUGH, John, “The mother of Jesus in the New Testament”, p. 449.

20 SANTO AGOSTINHO DE HIPONA, In Joh. Evang. x, III. 2. p. 368, ib. xxviii, III. 2. p. 508; Enarr. in Ps. cxxvii, IV. 2. p. 1443; Contr. Faust. xxii. 35, VIII p. 383; comp. Quaest XVII in Matth., III. 2. p. 285.

21 SANTO AGOSTINHO DE HIPONA, “Enarrationes in Psalmos”, 127, 12; CSEL 95,3, pp. 1876.8-13.

22 PEDROZO, José M., “The Brothers of Jesus and his Mother’s Virginity”, p. 94, nota 35.

23 MCHUGH, John, “The mother of Jesus in the New Testament”, p. 449.

24 PEDROZO, José M. The Brothers of Jesus and his Mother’s Virginity. The Thomist: A Speculative Quarterly Review, Volume 63, n. 1, jan. 1999, pp. 85-86.

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