Quarta-feira, Maio 8, 2024

DEBATE: Pe. Brian Harrison, O.S. vs. Pe. François Laisney, FSSPX (Sobre a Liberdade Religiosa)

 

Entregamos para os nossos leitores a tradução de um debate instigante sobre a Liberdade Religiosa entre Pe. W. Harrison, O. S. e Pe. François Laisney, da FSSPX. Este debate só nos foi possível trazer a público em língua portuguesa graças a generosidade do Pe. Brian Harrison, o qual nos enviou a versão em inglês e nos autorizou a tradução.

Pe. Brian W. Harrison é um teólogo australiano, especialista no tema da Liberdade Religiosa, sobre o qual escreveu diversas obras e artigos. Do ponto de vista doutrinal, Padre Brian Harrison é um conservador. Contudo, ao mesmo tempo em que se opõe às interpretações progressistas e modernistas sobre o Concílio Vaticano II, também se opõe ao que considera uma crítica excessiva e descabida aos textos deste mesmo Concílio, feita pelos católicos tradicionalistas.

 

A ordem cronológica das seis partes neste debate, como apareceram no The Remnant, é a seguinte:

 

1.  Crítica inicial do Pe. Laisney à minha posição, The Remnant, 31 de maio de 2012, pp. 9-10

 

2.  Minha primeira resposta ao Pe. Laisney, The Remnant, 30 de junho de 2012, p.12.

 

3.  A resposta do Pe. Laisney ao nº. 2, imediatamente a seguir, na mesma edição do The Remnant, nas pp. 12-13.

 

4.  Minha segunda resposta ao Pe. Laisney, em resposta ao nº. 3, The Remnant, 31 de julho de 2012, pp. 8-9

 

5.  Terceira parte do Pe. Laisney, respondendo ao nº. 4, que eu só vi on-line, por volta de Setembro de 2012. (acho que também saiu logo depois em uma cópia impressa do The Remnant). Isso foi parte de um artigo mais longo em resposta à carta do Arcebispo Augustine Di Noia à FSSPX. Apenas aquela parte que foi dirigida contra a minha própria posição sobre a liberdade religiosa é reproduzida aqui.

 

6. Minha refutação final ao Pe Laisney, em resposta ao nº. 5, publicada na forma de  uma “carta ao editor” no The Remnant, de 20 de outubro de 2012, pp 3, 16. NB:. Tendo em vista que a minha resposta publicada estava incompleta, devido ao limitado espaço disponível em uma “carta ao editor”, eu a ampliei e a complementei aqui.

  

O que se segue daqui para frente são os respectivos textos de números 1, 2, 4, 5 e 6.

  

 

.1

  

(…) Ora, é uma questão de fato que o Vaticano II ensinou novas doutrinas. O próprio João Paulo II reconhece-o, quando ele convida a “um compromisso renovado para um estudo mais aprofundado, a fim de revelar claramente a continuidade do Concílio com a Tradição, especialmente em pontos de doutrina que, talvez porque eles sejam novos, ainda não foram bem compreendidos por alguns setores da Igreja”.Em outras palavras, é evidente para todos que eles são novos, mas que haja alguns “estudos” para revelar que eles estão em continuidade! Os modernistas não estavam interessados em fazer tais estudos, uma vez que não se importavam com as novidades. Alguns conservadores tentaram tais estudos. Ao meu ver o melhor esforço desse tipo é encontrada em um livro, publicado em 1988 por um padre americano, tentando provar que a doutrina do Vaticano II sobre a liberdade religiosa estava em continuidade com o passado. No entanto, o núcleo deste livro é um sofisma!

Ele demonstrou adequadamente que a Igreja ensinou a tolerância, ou seja, a paciência, no que diz respeito às falsas religiões; demonstrou até onde vai o ensinamento da Igreja acerca da tolerância, a tal ponto que em algumas circunstâncias ao Estado não só foi permitido, mas mesmo obrigatório tolerar as falsas religiões. Em suma, a Igreja ensinou que, por vezes, havia o dever de se tolerar. Ora, ele evoca um princípio verdadeiro: a cada dever existe um direito correlato. E conclui: portanto, há um direito a ser tolerado. Esse direito não é nada mais do que o “direito de imunidade em matéria religiosa”, ou seja, a liberdade religiosa como ensinado pelo Concílio Vaticano II. 

O sofisma é fácil de resolver: sim, ao dever de tolerar corresponde um direito, mas qual direito? Não o direito privado daqueles que, por espalhar erros religiosos, são perigosos para muitas almas; mas o direito dos outros cidadãos à paz, à repressão dos erros religiosos que prejudicam este bem comum.

Uma comparação simples deixa isso muito claro: a Igreja ensinou que às vezes à mãe não só é permitido tolerar o abuso de seu marido, mas que tem o dever de ser paciente com ele. No entanto, tal se deve obviamente, por conta dos direitos dos filhos, para que o colapso completo do casamento não traga mais danos para os filhos do que os seus sofrimentos. Mas quem se atreveria a concluir que o marido tem “o direito de ser tolerado” por bater em sua mulher?

Assim, o ensinamento milenar da Igreja permanece firme: o mal não tem qualquer direito. A propagação de erros religiosos é um mal, e, portanto, no máximo, pode ser tolerada, mas não tem direito, nem mesmo um “direito de imunidade”. É também verdade que todos os esforços devem ser tomados “não para a morte do pecador, mas que se converta e viva” (Ez. 18:23). Daí a Igreja usa da paciência, da bondade, de instruções suaves, do bom exemplo, etc, para convertê-los. No entanto, a Igreja não ignora os danos causados às almas pelas heresias, e nunca reconheceu um “direito” a tais erros. Esta é a doutrina – fielmente ensinada por séculos – a partir da qual o Vaticano II deu seguimento. Rejeitamos qualquer inovador desvio da doutrina milenar, sem qualquer apego ao julgamento pessoal, mas a partir da fidelidade ao que a própria Igreja ensinou durante séculos, mesmo desde o Antigo Testamento.

 

 

 Nº.2 (Minha resposta ao no. 1, acima):

 

O Editor,

The Remnant

 

Prezado Senhor,

 

Enquanto sacerdote “americano” (sou australiano, na verdade) e autor do livro Religious Liberty and Contraception (Liberdade Religiosa e Contracepção) mencionado pelo Pe François Laisney, SSPX (The Remnant, 31 de maio de 2012, pp. 9-10), eu gostaria de responder a sua tentativa de refutação de minha afirmação de que os ensinamentos do Vaticano II sobre a liberdade religiosa não contradizem a doutrina católica tradicional.

Pe. Laisney afirma, “O núcleo do livro é um sofisma!” Bem, eu suponho que o argumento que ele ataca é de fato um “sofisma”. Mas não é o meu argumento, apenas uma caricatura simplista deste. De acordo com o Pe Laisney, eu argumento da seguinte forma: 1) a Igreja tradicionalmente ensinou que às vezes caberia um dever para o Estado de tolerar falsas religiões; 2) a cada dever há um direito correlato; portanto, 3) há um direito [às falsas religiões] de serem toleradas pelo Estado – e isso é essencialmente o que o Vaticano II quer dizer ao reconhecer um direito de imunidade de coação pelo Estado às pessoas que praticam diversas religiões diferentes.

Mas aqueles que tomam o cuidado de ler a passagem em questão no meu livro (Capítulo 8, “Vatican II: ‘Rights’ versus ‘Tolerance’?” – “Vaticano II: ‘direitos’ versus ‘Tolerância’?” –  pp. 113-118, acessível online em  www.rtforum.org/lt/lt16.html#II [NdoT.: Em português pode ser lido aqui])verá que eu não discuto isto de forma alguma ao longo daquelas linhas. Para começar, eu não concordo com 2) acima, uma vez que nem sempre a todos os deveres há um direito correlato, apenas os deveres decorrentes das exigências da justiça (o que é distinto, digamos, de prudência, de temperança, ou de outras virtudes). Muito menos eu pulo ilogicamente ao no. 3) como conclusão.

Aqui o que de fato eu disse: 

“O Concilio insistiu que a liberdade religiosa é um direito, no sentido estrito da palavra. . . No entanto, isto não envolveu em uma contradição à doutrina tradicional de que a propagação de falsas religiões era algo que o poder civil poderia ‘tolerar’. O que equivaleu genuinamente a um novo desenvolvimento doutrinário que postulava algo que à primeira vista parece paradoxal: um direito a ser tolerado. Essa expressão não foi utilizada pelo Concilio. . . . Mas isto equivale, no entanto, ao que é ensinado na Dignitatis HumanaeNão há incoerência [em] falar de um “direito a ser tolerado”, porque a idéia de “tolerância” para uma determinada atividade não implica necessariamente que a autoridade ao tolerá-la tenha o direito de suprimi-la; isso implica necessariamente não mais do que aquela autoridade considerar a atividade como má (pelo menos em alguns aspectos) e que tem o poder físico para suprimi-la“ (p. 117, negrito no original. itálicos adicionados).

Como pode ser visto aqui, o ponto que eu estou querendo salientar é simplesmente que não há qualquer contradição intrínseca entre as duas proposições seguintes: (a) “O Estado, por vezes, tem o dever de tolerar a prática pública de religiões não-católicas” (doutrina pré-Vaticano II), e (b)“Por vezes, existe um direito das religiões não-católicas de não serem impedidas pelo Estado de praticar publicamente sua religião” (doutrina do Vaticano II. A razão pela qual elas não são contraditórias está explicado na última frase da citação acima em meu livro. Mas, como os leitores podem ver, eu certamente não argumento, como Pe. Laisney afirma que faço, que (b) está implícito em (a), ou seja, que a verdade do ensino do Vaticano II pode ser deduzida de forma simples e direta do ensino tradicional da Igreja sobre tolerância. Nem eu argumento (como parece pressupor a comparação do Pe Laisney com o abuso da esposa) que cada tipo de atividade religiosa que, por vezes, deve ser tolerado pelo Estado tenha um direito àquela tolerância. Nem jamais o Vaticano II ensina esta proposição.

Pe. Laisney afirma: “A propagação de erros religiosos é má, e, portanto, no máximo, pode ser tolerada, mas não tem o direito, nem mesmo um ‘direito de imunidade'”. Ele claramente quer dizer que nunca, sob nenhuma circunstância, podem as pessoas ter o direito natural à imunidade de coação pelo Estado ao difundir idéias e práticas religiosas não-católicas. Agora, se isso era de fato a doutrina católica pré-conciliar, então, de fato, os ensinamentos do Vaticano II são irreconciliáveis com ela.

Mas eu não admito que a doutrina tradicional seja de fato tão absoluta. Eu creio que o ensino oficial da Igreja era, na verdade, pouco claro sobre este ponto anterior ao Vaticano II. Assim, eu penso que o Pe. Laisney e a FSSPX estão erroneamente elevando ao status de doutrina católica tradicional o que era apenas uma opinião tradicional comum. E se esta opinião fosse verdadeira, algumas conclusões estranhas e muito duras resultariam pela força da lógica: por exemplo, que Hitler não violou qualquer direito dos judeus ao destruir ou cerrar suas sinagogas; que Stalin não cometeu qualquer injustiça ao fazer o mesmo para com as igrejas ortodoxas russas e ao enviar seus sacerdotes para o Gulag; que a população de 99,5% muçulmana da antiga colônia espanhola do Saara Ocidental não teria sofrido qualquer violação de seus direitos se o General Franco tivesse desencadeado uma perseguição anti-islâmica, ao enviar tropas para botar a baixo todas as mesquitas na colônia; e que os primeiros missionários metodistas que pregavam em Fiji não tinham qualquer direito de serem punidos (e não serem comidos?) pelos caciques locais por pregarem o cristianismo.

Para um resumo recém-publicado acerca da minha questão sobre a compatibilidade da Dignitatis Humanae com a doutrina tradicional, os leitores interessados podem ir para www.rtforum.org/lt/lt151.html.

 

Pe. Brian W. Harrison, O.S.

St. Louis, Missouri

  

 

.3 (Resposta do Pe. Laisney ao no. 2 acima: o texto eletrônico não disponível para mim)

 

 

Nº.4 (Minha resposta ao no, 3 acima)

  

LIBERDADE RELIGIOSA: MAIS UMA RESPOSTA PARA O PE. LAISNEY, SSPX

 

Pe. Brian W. Harrison, O.S.

  

Na minha resposta inicial à reivindicação do Pe. François Laisney de que o argumento “central” do meu livro sobre a Dignitatis Humanae (DH) é um “sofisma”, eu indiquei, com uma citação do livro, que ele irrelevantemente atacou de maneira falaciosa: a posição ele acreditava ser minha, mas que na verdade eu nunca tive ou desejei ter a intenção de afirmar (cf. The Remnant, 30 de junho, p. 12, onde a minha resposta é seguida pela tréplica do Pe Laisney ).

Continuando em sua insistência inflexível de que a DH não pode ser reconciliada com a doutrina católica tradicional, o Padre começa sua tréplica com uma entediosa e rebuscada exegese das páginas 114-115 do meu livro, explicando por que ele acha que a passagem implica no argumento sofístico em questão. Talvez eu não tenha me expressado de forma muito clara nesse ponto; mas, de qualquer caso Pe Laisney supôs erroneamente que pelas palavras “o mesmo ponto básico“, eu quis dizer “exatamente o mesmo ponto”. Além disso, ele originalmente tomou nota só do que eu digo sobre o assunto nessas duas páginas, passando por cima o tratamento mais explícito deste ponto na página 117. Assim, ele não conseguiu observar a regra hermenêutica que, ao descobrir qual é a posição do autor sobre um determinado tópico, uma passagem que não está totalmente clara deve ser interpretada à luz de outras passagens que tratam do mesmo assunto com mais clareza. De qualquer forma, fica agora confirmado que o argumento que Padre atribuía a mim simplesmente não reflete, e nunca refletiu, o meu próprio entendimento e intenção. Então, eu espero que ele concorde que não há qualquer razão em desperdiçar mais tempo com este sofisma tolo de que nenhum de nós quer defender.

O Pe. Laisney agora levanta outras objeções à minha afirmação de que DH pode ser lida em continuidade com a doutrina tradicional. Primeiro, ele novamente me interpreta mal, afirmando que quando falo de “o que era novo na doutrina” da DH (p 117, grifo nosso.), eu estaria assim “reconhecendo que esta doutrina é nova” – e, assim, ipso facto alheio ao ensinamento de Cristo. Mas isso é o mesmo que inferir que se eu falar sobre reformas levadas a cabo em minha casa, que eu esteja dizendo que a minha casa em si seja nova! Apenas algumas linhas antes na p. 117 (nas palavras citadas tanto pelo Pe. Laisney e por mim mesmo, na edição da Remnant de 30 de Junho), eu explico que a “novidade” que tenho em mente aqui é “genuinamente um novo desenvolvimento doutrinal”. Agora, cada teólogo sabe (ou deveria saber) que os novos desenvolvimentos da doutrina não são “novas doutrinas”. Tratam-se de inferências gradualmente ocorridas ao longo dos séculos por reflexão teológica sobre os dados apresentados na Escritura e na Tradição.

Um tipo de desenvolvimento consiste em esclarecer algum ponto que tem sido até agora obscuro no ensino magisterial anterior. Eu já disse na minha primeira resposta ao Pe. Laisney que eu entendo “o que é novo na doutrina” da DH como um exemplo disso. Ou seja, não estava claro antes do Vaticano II que o status doutrinal era da seguinte proposição, Nunca, sob quaisquer circunstâncias, a pessoa tem o direito natural de ser deixado livre pela autoridade civil para manifestar publicamente suas crenças e práticas religiosas não-católicas. Alguns, como o Arcebispo Lefebvre, pensava que esta proposição não era apenas verdade, mas que também era uma verdade da doutrina católica. Outros teólogos renomados, como conselheiro de confiança de Leão XIII sobre a doutrina social, Bispo Emmanuel von Ketteler, discordou da Q. Bem, o último Concílio Ecumênico já resolveu esta disputa com autoridade (embora não de forma infalível), ensinando que Q é falso, pois é claramente incompatível com DH # 2.

Ora, como é que o Pe. Laisney tenta justificar sua continuada insistência de que Q era parte da doutrina católica tradicional? Ele não consegue citar qualquer declaração magisterial que confirme claramente Q, mas afirma que está implícito o princípio doutrinário universal que o “erro é um mal da inteligência, e erro com respeito a Deus é um grave mal”. Na verdade, é. Mas essa premissa por si só não é de forma alguma suficiente para levar a conclusão que Q seja verdadeira. O silogismo que Pe. Laisney precisa exigirá uma outra premissa (menor), de tal forma que se possa concluir que nunca, sob quaisquer circunstâncias, pode o mal grave e objetivo de um erro público sobre Deus possa ser superado, por efeitos da legislação civil, por outras considerações que apelem ao direito natural mencionado em Q. Porém Pe. Laisney tem sido incapaz de fornecer tal premissa proveniente do Magistério tradicional.

Vamos refutar primeiramente a sua tentativa mais insuficiente e mais sofística de contornar esta dificuldade. Ele sustenta que a “paz pública” na Quanta Cura de Pio IX tem “exatamente o mesmo” significado que “apenas a ordem pública” na DH. Se isso fosse verdade, a DH estaria na realidade em contradição com QC. O Padre defende essa suposta identidade de significado, afirmando (de forma gratuita) que ambos os termos são sinônimos de um terceiro, ou seja, “a tranquilidade da ordem”. Mas como a DH # 7 diz que a “paz pública” é apenas um dos três componentes que, juntos, compõem uma única “ordem pública”, a reivindicação do Pe. Laisney imputa ao Concílio o ensino absurdo que o todo pode ser igual a uma das suas partes, ou seja, que a “tranquilidade da ordem” é um dos três componentes de si mesmo! É óbvio que uma tal doutrina – reconhecível como um absurdo por qualquer aluno da terceira série – nunca poderia ser promulgada por um Concílio Ecumênico. E certamente não foi promulgada pela DH.

Pe. Laisney também crê que a premissa menor que ele precisa para provar o status da  Proposição Q como doutrina católica é fornecida pela afirmação irrestrita de Pio XII que tudo o que “não estiver em conformidade com a verdade e a lei moral não tem objetivamente o direito a ser, a propagação, nem à ação”. Ora, esta afirmação, reformulada em termos para facilitar a comparação exata com a DH, simplesmente significa que nenhuma pessoa humana tem direito objetivo de acreditar, propagar, ou agir de acordo com qualquer idéia que não esteja em conformidade com a verdade e a lei moral. Mas DH não afirma tal direito! Na verdade, o novo Catecismo nega expressamente que o tipo de liberdade religiosa aprovado pelo Concílio seja do tipo que Pio XII condenou; para o Catecismo não é “nem” uma licença moral para aderir ao erro”, nem “um suposto direito ao erro”(# 2208). Pe. Laisney está aqui fazendo o erro comum de confundir duas noções distintas: (a) aquela [noção] de um direito objetivo de fazer X; e (b) aquela de um direito objetivo, sob certas circunstâncias, ser deixado livre pelo governo de fazer X. Onde X significa a manifestação de uma religião falsa, Pio XII condena somente (a), enquanto DH afirma única (b)Ergo, não há contradição.

Ora, Pe. Laisney tenta de duas maneiras refutar o meu apelo à distinção entre (a) e (b). Ambas as tentativas falharam. Primeiro, ao usar um argumento reductio ad absurdum, ele coloca a manifestação de religiões não-católicas no mesmo plano moral como roubar, e zomba da idéia absurda de haver uma “imunidade contra coação de roubar”. Ao que eu respondo, Nego maiorem! Essas duas coisas claramente não estão no mesmo plano moral. A última é ruim tanto objetivamente como subjetivamente; mas a primeira, enquanto objetivamente ruim, é em sua maior parte subjetivamente boa. A esse respeito, portanto, é agradável a Deus e às vezes até sobrenaturalmente meritória. Os ladrões não roubam bancos ou assaltam casas sem ter em suas consciência um sentido do dever sagrado para com Deus! Mas não-católicos normalmente praticam sua religião precisamente por essa razão. E o que o Vaticano II justamente ensina, em um novo, mas harmonioso desenvolvimento da tradição católica anterior, é que, enquanto essa motivação religiosa consciente e subjetivamente agradável a Deus não é suficiente por si só para fundamentar o direito de imunidade de coação do Estado – pois há “limites devidos” para esta imunidade – é um importante fator constitutivo desse direito, dado que os atos que visem honrar e obedecer a Deus são expressões fundamentais da dignidade humana, que todos os governos são chamados a respeitar. E este apelo ao respeito é particularmente urgente hoje, é dirigido pelo Concílio, pois que quase todos os governos nacionais tratam de negar o Reinado Social de Cristo. Eles, portanto, trazem em si as sementes contaminadas que muito facilmente produzirão frutos venenosos de corrupção moral e, cedo ou tarde, se seguirá a perseguição dos católicos e outros cristãos.

A segunda argumentação do Pe. Laisney contra o meu apelo quanto à distinção (a) – (b) depende, para sua validade daquela primeira argumento\ação. Tendo refutado a primeira, portanto, eu não preciso me preocupar em refutar a segunda. Eu me contentarei em apontar que aqui, mais uma vez, o Pe. Laisney atribui a mim uma tese que, longe de endossar, tenho constantemente me oposto: a tese ‘Murrayite’ que os Estados “não são competentes” para reconhecer a verdadeira religião e portanto para “aceitar os juízos da Igreja”. Uma boa parte do meu livro (que Pe Laisney diz ter lido) é dedicada a mostrar que a DH, ao contrário do comentário oportunista sustentado pelo Pe. JC Murray, defende o ensino das encíclicas pré-conciliares sobre este ponto. (Cf. Chapter 6, “Vatican II: Society’s Duty to the True Religion”, pp. 63-82, and Appendix I: “Church and State: John Courtney Murray”,pp. 147-162). Também publiquei um outro ensaio de duas partes refutando a deturpação da DH do Pe. Murray de DH sobre este ponto, e que está acessível on-line em: www.rtforum.org/lt/lt33.html (Parte I) [NdoT: Em português aqui] e www.rtforum.org/lt/lt34.html (Parte II) [NdoT: Em português aqui].

Voltemos à Proposição Q acima – o nosso principal ponto de discórdia. As chances de Pe. Laisney encontrar em documentos magisteriais aquela premissa menor que precisa para provar o status de Q como doutrina católica parecem cada vez mais remotas, quando lembramos que a proposta inclui a arrebatadora frase “nunca, sob nenhuma circunstância”. Pois essas palavras implicam que a “autoridade civil” mencionada nesta proposição não significam autoridade civil apenas Católica. As “circunstâncias” irrestritas que Q contempla também irão cobrir qualquer outro tipo de regime, bom, mau ou indiferente, que já tenha surgido ou possa surgir sobre a face deste planeta. É precisamente por isso que eu mencionei, na minha resposta inicial ao Pe. Laisney, regimes tão variados como o do General católico Franco, dos chefes pagãos de Fiji e ditadores como de Hitler e de Stalin. Meu crítico protesta que estes últimos tiranos não suprimiram o culto dos judeus e da Rússia Ortodoxa “porque [eles] consideravam a religião deles como sendo falsas”. Mas as razões deles para esta supressão, incluindo o desejo deles de suprimir todo o culto monoteísta,como tal, são bastante irrelevantes aqui. Pois a Proposição Q (aceita pelo Pe. Laisney e negada pela DH) nem sequer menciona as muitas motivações possíveis que poderiam levar um determinado governo a suprimir algumas ou todas as prática religiosas. Q certamente implica que Hitler e Stalin não violaram quaisquer direitos de judeus e de ortodoxos na medida em que suprimiram os ritos e crenças daquelas pessoas distintamente não-católicas. Isso é o que eu estou chamando uma “conclusão estranha e muito dura”, e está certamente implícita por Q, queira ou não Pe. Laisney se importar em reconhecer esse fato.

O Padre introduz uma falsa questão neste momento ao levantar as mãos horrorizadas com minha menção do General Franco na mesma frase junto com Hitler e Stalin. Ao contrário do que parece presumir, isso não se deveu a qualquer antipatia liberal para com Franco. Pelo contrário, admiro e respeito por ele (apesar da sua dureza, por vezes excessiva) como um corajoso campeão do século 20 em prol do Reinado Social de Cristo. Além disso, também eu aplaudo sua política de “não fornecer vistos aos ministros protestantes, que queriam entrar em Espanha”. (a DH realmente se silencia sobre vistos ou políticas de imigração. Sua única referência aos estrangeiros está no artigo 4, que apenas diz que o governo não deve impedir grupos religiosos de “se comunicarem com as autoridades religiosas e comunidades em outras partes do mundo”. E mesmo isto é claramente proposto pelo Concílio apenas como um julgamento político, não como uma doutrina que exige o nosso assentimento religioso como uma condição de “plena comunhão” com a Igreja.)

Não, a razão pela qual eu mencionei Franco não é porque eu suspeite de que ele alguma vez sonhasse em desencadear aquele tipo de perseguição anti-muçulmana que eu mencionei. Foi simplesmente porque ele passou a ser um governante católico recente cuja jurisdição incluía um país 99,5%muçulmano. Eu tenho medo da reação “chocadíssima” do Pe. Laisney à minha menção a um hipotético decreto do Generalíssimo de fechar todas as mesquitas no então Sahara espanhol parecer uma mera cortina de fumaça para desviar a atenção da questão subjacente ao princípio. Claro que todos nós iremos concordar que tal decreto teria sido, no mínimo, extremamente imprudente. Mas será que ele também teria sido injusto? Ou seja, teria violado um direito humano daquelas pessoas muçulmanas? Bem, Pe. Laisney agora diz que teria sido um “crime”. Um crime, Padre? Como você poderia descrever de forma consistente com a sua professada adesão à Proposição Q, portanto? Um crime significaria uma injustiça, uma violação dos direitos desses muçulmanos. Mas Q, que você diz ser uma doutrina que exige o consentimento de todos os católicos, afirma que “sob nenhuma circunstância” os muçulmanos ou quaisquer outros não-católicos têm o direito natural de serem deixados livres pelo governo ao manifestarem publicamente a sua religião.

Esta incoerência na posição do Pe. Laisney vem à tona novamente na parte final de sua resposta. Ele diz aqui que “a propagação de erros religiosos/heresias é por si só contra o bem comum”, uma vez que impede o direito de todos os cidadãos em encontrar e aderir à verdade, e é também “contra a moral pública”. Especialmente tendo em vista que o Padre tão fortemente enfatiza a expressão “por si só“, ele quer dizer claramente aqui que essa propagação é sempre e em toda parte tão gravemente contrária ao bem comum que a sua supressão pelo governo nunca poderia, per se, violar qualquer direito natural dos propagadores. Agora esta afirmação, com certeza, está bem em sintonia com a proposição Q; mas é manifestamente incompatível com a admissão do Pe. Laisney de que o encerramento hipotética das mesquitas no Sahara espanhol teria sido um “crime”, i.e, uma violação dos direitos daqueles que propagaram erros islâmicos nessas mesquitas. Além disso, desde que mesma reivindicação é essencialmente a premissa menor implícita do silogismo pelo qual o Padre quer provar Q, também vale a pena lembrar aos leitores aqui que o Padre não conseguiu produzir qualquer prova magisterial para essa premissa (expressa acima, em itálico, no quinto parágrafo desta resposta).

Já quase no fim de sua resposta, Pe. Laisney faz uma afirmação mais limitada- muito menos ampla que Q – que a DH é incompatível com a doutrina tradicional sobre os direitos e deveres das autoridades civis católicas nas suas relações com as falsas religiões. Eu responderia que a posição da Declaração sobre esta questão mais específica não é estritamente doutrinal de todo, mas sim, um juízo prudencial implícito que, como tal, não exige necessariamente o assentimento religioso dos católicos. Não há, no entanto, espaço para desenvolver este argumentação aqui. Eu me concentrei nesta resposta em Q – uma tese que abranja todas as autoridades civis possíveis, não apenas as católicas – porque se apenas o Pe. Laisney e a SSPX pudessem reconhecer que Q nunca de fato foi uma doutrina católica, apenas uma opinião teológica, o caminho estaria aberto para eles darem o seu assentimento à rejeição de pelo Vaticano II. E uma vez o reconhecido que Q é falso, isto se constituiria ipso facto em assentir ao desenvolvimento doutrinal novo encontrado em DH, o caminho estaria, então, aberto para regularização da Sociedade pela Sé de Pedro. Pela primeira vez este obstáculo da liberdade religiosa seria retirado, superando os restantes obstáculos doutrinários – aquelas relacionados ao ecumenismo, a colegialidade, etc – seriam uma moleza, comparativamente.

 

 

Nº.5 (Resposta do Pe. Laisney ao no. 4 acima)

 

(Este é um excerto de seu artigo na Remnant criticando os comentários do arcebispo Augustine Di Noia sobre a posição da Sociedade São Pio X vis-à-vis a Santa Sé e  o Vaticano II)

 

A Liberdade Religiosa

 

O Arcebispo Di Noia em seguida diz que “a Sociedade pensa, é claro, que todo o ensinamento sobre a liberdade religiosa é um afastamento da Tradição. Mas algumas pessoas muito inteligentes têm tentado salientar que se trata de um desenvolvimento que é consistente”. O único problema para ele vem a ser o mais esperto daqueles que tentaram, Pe. Brian Harrison, que atualmente afirma de maneira clara que ele não tem a intenção de mostrar a continuidade, mas, ao reconhecer que a idéia de um “direito de ser tolerado” é “o que era novo na doutrina” do Concílio Vaticano II, ele apenas tenta mostrar a não-contradição com a doutrina anterior. Ele próprio reconhece que seria um sofisma passar do “dever de tolerar” por parte das autoridades (doutrina pré-Vaticano II) para um “direito de ser tolerado” por parte do indivíduo, independentemente da verdade (doutrina do Vaticano II): não há continuidade entre as duas doutrinas.

Um dos comentários postados após a entrevista pede um exemplo preciso de contradição entre a doutrina anterior e doutrina do Vaticano II. A liberdade religiosa é um bom exemplo. A Igreja ensinava antes que “o que não corresponde à verdade e à lei moral não tem o direito objetivo à existência, propaganda ou ação” (Pio XII, Ciriese, 06 de dezembro de 1953). Ora, o Vaticano II declara que a “a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Esta liberdade consiste no seguinte: todos os homens devem estar livres de coação, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado com outros.”(DH 2) Este direito em sua generalidade (ou seja, ao incluir qualquer religião) é falso. Ou existe ou não existe qualquer direito: a afirmação e a negação são contraditórias.

Alguns tentam evitar essa conclusão, dizendo que Pio XII tratou de “direitos objetivos” e  que Vaticano II tratou de “direitos subjetivos” (os direitos da pessoa): esta é uma defesa vã, já que os direitos estão sempre sujeitos a uma pessoa; portanto ao dizer que o erro não tem direitos objetivos significa nada mais do que as pessoas não têm direitos subjetivos ao erro!

Outros – e esta é a linha do Pe. Harrison – tentaram dizer que o Vaticano II não ensina que existe um direito de praticar a falsa religião, mas apenas um direito de imunidade de coação em praticar a falsa religião. Esta a defesa também é vã, uma vez que o bem merece uma recompensa, mas o mal merece uma punição (ou seja, precisa ser corrigido, para ser endireitado); o erro é o mal da inteligência, e não pode, ao mesmo tempo ter um direito de imunidade e uma necessidade de ser corrigido; imunidade e correção são duas coisas opostas. Mesmo que se considere um erro sem uma vontade má, um erro onde se foi mais enganado do que enganar a si mesmo, ainda não é bom se deixar tal erro sem correção  (Eu não digo que ele deve ser punido, mas deve ser corrigido), e, portanto, não pode haver um direito de um erro permanecer sem correção. Em outras palavras, não só o erro é mau, mas a imunidade de erro é má: é a privação do bem da correção; não pode haver um direito de imunidade de algo ruim, enquanto tal.

De fato, muitas pessoas consideram qualquer coação como má, porque consideram a liberdade humana um absoluto, mas essa mentalidade não é católica. Isto vai explicitamente contra o Evangelho onde Nosso Senhor dá ordens aos seus servos “compelle intrare” (Lc 14:23), literalmente “forçá-los a entrar” no banquete celestial! O homem não é a regra última do bem e do mal, e, portanto, a sua liberdade não existe sem uma regra desde cima, ou seja, a partir da Bondade Divina para a qual todas as suas escolhas devem ser orientadas. Aquela que o auxilia a fazer a escolha certa, a escolha por Deus, pela verdade, pela bondade, é realmente um auxílio, mesmo que no início se possa ressentir desta ajuda; São Paulo foi derrubado de seu cavalo, e está para sempre no Céu, graças a Deus por isso! Assim, alguma coação é boa (não toda, mas alguma). Ora, se houvesse um direito de estar livre de coação no domínio religioso, então qualquer coação seria errada por si só (apenas em circunstâncias de não respeito ao bem/a paz comum que permitiria tal coação, não o erro em si). Quem não percebe a contradição entre “toda coação (em assuntos religiosos) é por si só errado” (em oposição ao “direito de estar livre de toda coação”) e “alguma coação é boa? O Vaticano II ensina a primeira; a Igreja sempre ensinou a segunda.

O último esforço para resolver a contradição é a alegação de que o Vaticano II não nega que as falsas religiões não têm direitos, mas simplesmente nega ao Estado o direito de interferir em assuntos religiosos. Isso também se opõe ao ensino constante da Igreja, que Cristo deve reinar (1 Cor. 15:15), e não apenas sobre os indivíduos, mas sobre todos os reis da terra e sobre todas as nações, como tal, (Sl. 71:11). Não só os indivíduos podem e devem reconhecer a verdade da religião católica, mas também reis enquanto tais (ver as cartas de São Leão Magno para o imperador). E esta é a melhor fonte de bênçãos para um governo e um país.

Devido à sua natureza espiritual, muitos têm muita dificuldade em entender a novidade da doutrina do Concílio Vaticano II. Mas se quisermos transferir essa doutrina sobre questões mais práticas, seria facilmente compreendido. De fato, a Igreja sempre ensinou que matar e roubar eram errados, e “não tinham direito”. Ora, se um concílio viesse e declarasse que “a pessoa humana tem direito de imunidade de coação por parte de qualquer poder humano, de tal modo que, dentro dos devidos limites, ninguém deve ser impedido de roubar/assassinar, seja em privado ou em público, só ou associado com outros,” não seria um tal “direito” manifestadamente errado, e em contradição com o ensino anterior da Igreja?

 

 

Nº.6 A minha resposta ao no. 5 acima (uma versão ampliada da minha “carta ao editor”, publicada no The Remnant, em 20 de outubro de 2012)

 

Em seu último artigo no Remnant em que criticava as visões do Arcebispo Augustine Di Noia, Pe. Franςois Laisney lança mais alguns golpes na minha própria afirmação de que a Declaração do Concílio Vaticano II sobre a Liberdade Religiosa, Dignitatis Humanae (DH) não entra em conflito com a doutrina católica tradicional.

Mais uma vez, no entanto, seus golpes erram o alvo. De acordo com o Pe Laisney, eu teria sido extremamente generoso ao reconhecer que a FSSPX estaria basicamente correta o tempo todo ao considerar “todo o ensino [de DH] sobre a liberdade religiosa” ser “um afastamento da Tradição”. Ele escreve: “Pe. Brian Harrison agora afirma claramente que ele não tem a intenção de mostrar a continuidade,. . . ele apenas tenta mostrar a não-contradição com a doutrina anterior.” Assim, o Padre atribui a mim a admissão de que “não há continuidade entre ambas doutrinas “.

Mas eu nunca fiz este ou qualquer tipo de admissão! Longe de admitir que não há continuidade positiva entre ambas as doutrinas, apenas mostrei uma mera ausência de contradição, dediquei um capítulo inteiro do meu livro (que Pe Laisney afirma ter lido) expondo as raízes positivas na Tradição Católica do novo desenvolvimento doutrinal da DH (cf. Cap 10, pp 123. – 132). Esta evolução pode ser resumida na proposição de que às vezes há um direito natural dos não-católicos de não poderem ser impedidos pelas autoridades civis de praticar publicamente de forma conscienciosa sua religião. O Pe. Laisney confundiu a parte com o todo: com base no meu reconhecimento (cf. Remnant, 30 de junho de 2012) que o supramencionado ensino do Vaticano II não pode ser deduzido a partir de uma determinada parte específica da doutrina tradicional, ele saltou ilogicamente à conclusão de que estaria admitindo que não pode ser derivado a partir de qualquer parte do mesmo.

Tudo o que eu disse foi que a proposição acima do Vaticano II não pode “ser deduzida de forma simples e direta do ensinamento da Igreja tradicional sobre tolerância” (grifo nosso). Mas que o ensino particular (ou seja, que um Estado Católico, por vezes, tem o dever de tolerar a prática pública de falsas religiões) de nenhuma maneira constitui a totalidade da doutrina tradicional sobre a liberdade religiosa. Um aspecto mais fundamental do que a doutrina foi a constante insistência explícita da Igreja de que ninguém pode ser forçado a abraçar a fé contra a sua vontade. E no meu livro argumentei de forma extensiva que uma vez que esta doutrina implica em um direito natural da pessoa humana de não ser forçada a entrar para Igreja Católica (ou para qualquer outro organismo religioso), ela estabelece as bases para, posteriormente, afirmar um direito dos não-cristãos, sob algumas circunstâncias, a ser tolerado pelas autoridades civis em praticar abertamente seus próprios cultos. Isto, obviamente, tem sido sempre a abordagem padrão desejado por nossos missionários. Pois se os poderes coloniais cristãos habitualmente tentaram “ajudar” seus missionários suprimir à força os cultos não-cristãos, tal naturalmente teria sido visto pelos nativos como uma tentativa mal disfarçada de forçar a sua conversão, violando assim os seus direitos.

Também não é apenas a minha opinião que o reconhecimento de um direito de alguns não-católicos de ser tolerado em seu culto público, até mesmo por governantes cristãos (e a fortiori por governantes não-cristãos) desenvolve-se harmoniosamente a partir da doutrina tradicional explícita de que ninguém pode ser forçado a abraçar a fé católica. Eu me pergunto se Pe. Laisney iria considerar o grande teólogo jesuíta Francisco Suárez (1548-1617) um liberal ou modernista. Pois ele observou a mesma conexão que eu faço. Num olhar retrospectivo, por sua vez, sobre o ensino de Gregório Magno, Suárez escreveu:

“Sobre os demais ritos dos infiéis, que somente se opõem à fé e não a razão natural, a tese certa é que os infiéis não devem ser obrigados, enquanto sejam súditos, a abandonar, mas que devem ser tolerados pela Igreja. Assim o ensina São Gregório (Epistolae, lib. XIII, epist. 12 (PL. 77, 1267), especialmente dos judeus, quando proíbe que sejam privados de suas sinagogas e manda (Epistolae, lib. XI, epist. 15 (PL. 77, 1131)) que lhes permita ter seus cultos… Em outra parte igualmente se disse que lhes deve permitir celebrar suas festas. Por qual razão? Estes ritos não são intrinsecamente maus em virtude da lei natural. Portanto, a potestade temporal do príncipe em si mesma não se estende para a proibição destes ritos, porque não pode se dar nenhuma razão para esta proibição se não é oposição à fé católica. Mas este não é motivo suficiente com relação àqueles que não estão sujeitos à potestade espiritual da Igreja.Confirma-se a conclusão. Essa política significaria certa espécie de coação para receber a fé católica, que não é permitido, como dissemos” (grifos nossos). 

Se, como diz Suárez, governantes cristãos (católicos) “tem o dever” sob certas circunstâncias tolerar a prática pública de falsas religiões, e não têm o direito de proibi-las”, isso significa que esses profissionais têm um direito de ser tolerado, nessas circunstâncias. Em outras palavras, eles têm o direito de imunidade de coação estatal na prática da sua religião – que é o núcleo do desenvolvimento doutrinal ensinado pelo Concílio Vaticano II. (Favor, observar que se falamos de um católico governante “tolerar” uma religião falsa, isto não implica necessariamente que ele tenha um direito de reprimir aquela religião se ele assim o quiser. Algumas vezes sim; algumas vezes não. “Tolerar” alguma coisa significa apenas consentir um mal por alguém que tenha força física para reprimi-lo, não necessariamente que ele também tenha a autoridade moral – ou seja, o direito – de reprimi-lo. 

Pe. Laisney involuntariamente admitiu este princípio em sua própria resposta ao Remnant de 30 de junho de 2012, quando ele reconheceu que teria sido um “crime” – ou seja, uma injustiça, uma violação dos direitos de outras pessoas – se o General Franco tivesse enviado tropas para fechar todas as mesquitas na então colônia do Sara espanhol. Mas o direito que teria sido violado seria precisamente o polêmico direito afirmado pela DH, a saber, o direito de mesmo os não-católicos, sob algumas circunstâncias, serem deixados livres pelo governo para praticar publicamente a sua religião. A posição do Padre parece-me, assim, um tanto confusa e contraditória. 

O Padre está novamente enganado ao afirmar que a DH #2 é incompatível com o ensinamento do Papa Pio XII que “o que não corresponde à verdade e à lei moral não tem o direito objetivo à existência, propaganda ou ação” (Pio XII, Alocução Ci riesce, 06 de dezembro de 1953). Ao ver aqui uma contradição, Pe. Laisney parece esquecer a distinção importante que eu já expliquei e defendi em uma réplica anterior: a distinção entre (a) reivindicar um direito de fazer X e (b) reivindicar um direito de não ser impedido pela autoridade civil de fazer X. Pio XII está falando sobre (a), enquanto DH #2 está falando sobre (b), então não há qualquer contradição. O Papa Pio está simplesmente ensinando que ninguém tem um direito objetivo de dizer, de fazer, ou mesmo de acreditar em algo que “não corresponde à verdade e à lei moral”. E o Vaticano II está de acordo com este ensino. Na verdade, ele se baseia também no Catecismo pós-conciliar da Igreja Católica. Precisamente, a fim de sustentar a sua afirmação de que “O direito à liberdade religiosa [como ensinado pelo Concílio Vaticano II] não é nem uma permissão moral para aderir ao erro, nem um suposto direito ao erro”, o Catecismo cita a passagem da Ci riesce que Pe. Laisney acredita que seja contrariada pela DH (ver nota de rodapé #2108). Por isso, fica claro por que a Igreja já rejeitou oficialmente qualquer interpretação da DH que a defina em oposição à alocução de 1953 de Pio XII. 

Pe. Laisney também diz ser “vão” eu (e o Vaticano II) afirmar um direito de imunidade de coação em praticar uma falsa religião, enquanto nega um direito “de praticá-lo”. Eis aqui a razão que ele dá para rejeitar esta distinção: “Ainda não é bom deixar tal erro não corrigido (Eu não digo que ele deve ser punido, mas que deve ser corrigido), e, portanto, não pode haver um direito de um erro permanecer sem correção.” Ora, este é um argumento surpreendentemente fraco e confuso, pois o Vaticano II em nenhum lugar diz que não exista algum “direito de um erro permanecer sem correção”! O que é dito é que os erros religiosos não deveriam normalmente ser punidos pelo governo (como Pe. Laisney aqui aparentemente concorda!). O Concílio em nenhum lugar nega a necessidade de “corrigir” o erro; ele toma como certo que isso pode e deve ser feito por meio de métodos não-coercivos: a pregação, a escrita, ensino e debate – para não mencionar a oração e o exemplo de uma vida santa. 

O Pe. Laisney também escreve: “Ora, se houvesse um direito de estar livre de coação no domínio religioso, então qualquer coação seria errada por si mesma (apenas em circunstâncias de não respeito ao bem/a paz comum que permitiria tal coação, não o erro em si). Quem não percebe a contradição entre “toda coação (em assuntos religiosos) é por si só errado” (em oposição ao “direito de estar livre de toda coação”) e “alguma coação é boa? O Vaticano II ensina a primeira; a Igreja sempre ensinou a segunda.” 

Parece-me haver uma boa dose de confusão no parágrafo acima. Em primeiro lugar, eu assumo que quando o Padre (cuja língua nativa, claro, não é o Inglês) diz que “por si mesma”, ele quer dizer “por si só” (ou, per se). E eu ainda assumo que pela segunda proposição acima (que ele diz que “a Igreja sempre ensinou”), ele queira dizer: “Alguma coação é boa per se“. A menos que as palavras “per se” sejam incluídas, a proposição não vai contradizer a anterior, a que ele atribui ao Concílio Vaticano II (“Toda coação é errada per se“). Se estes dois pressupostos da minha parte estão corretos, Pe. Laisney está dizendo que, de acordo com o Vaticano II, a coação não é permitida, por si só, mas apenas por acidente (ou seja, em “circunstâncias de não respeito ao bem/à paz comum”). Mas o Vaticano II em nenhuma parte usa o contraste metafísico entre per se vs. per accidens ao discutir a liberdade religiosa. A DH em nenhum lugar diz que a coação religiosa está errada “per se” e correta apenas “per accidens“. Assim, a contradição que aqui ele vê não existe. 

O Padre também vê um contraste ou dicotomia entre coação para preservar “o bem comum” e coação por causa do “próprio erro em si”. Ele parece pensar que a doutrina católica tradicional permitiu que o erro religioso fosse reprimido, independentemente de se ser ou não um perigo para o bem comum. Não é assim. O Padre criou uma falsa dicotomia aqui. Quando a Igreja tradicionalmente endossava a legislação civil que reprimia a difusão da doutrina errônea per se (isto é, de toda essa doutrina), ela não o fazia simplesmente porque a doutrina estava errada, mas sim, precisamente porque esse tipo de erro foi visto como um perigo para o bem comum. Por quê? Porque o erro religioso (ao contrário, por exemplo, do erro científico, histórico ou geográfico) põe em risco a salvação dos cidadãos, a grande maioria dos quais, sendo católicos, estavam proibidos, sob pena de pecado mortal, de se afastarem da fé da Igreja. Ora, Dignitatis Humanae em nenhum lugar diz que esta legislação repressiva era intrinsecamente injusta. Ela, no entanto, sugere que, nas circunstâncias modernas tal legislação seria injusta, mesmo em países predominantemente católicos. Mas isso é um julgamento político prudencial, não doutrinário. É um pouco como o julgamento prudencial recente da Igreja (começando com a Encíclica Evangelium Vitae de Paulo há vinte anos atrás) que, sob as circunstâncias modernas, a pena capital, embora não seja intrinsecamente má, possa raramente ou nunca ser justificada.

Mais uma vez, a linha de fundo aqui é que DH não desmentiu a doutrina tradicional. Pois a doutrina da Igreja, por definição, é algo que ela propõe como verdadeiro para todos os tempos e em todos os lugares, não apenas sob determinadas circunstâncias históricas ou locais.

No penúltimo parágrafo do Pe. Laisney, ele reafirma os direitos de Cristo Rei sobre as sociedades humanas e seus governantes. No entanto, o Vaticano II, longe de negar essa doutrina, afirma em DH, nº 1 que “em nada afeta a doutrina católica tradicional” acerca da “doutrina católica tradicional” em relação ao “dever moral que. . . sociedades [incluindo as autoridades públicas de sociedades civis] tem em relação a verdadeira religião e a única Igreja de Cristo”. (Meio século após o Concílio Vaticano II, o nosso vizinho caribenho, a República Dominicana, ainda conta com total aprovação do Vaticano, ao se declarar como um Estado oficialmente católico.)

Por fim, Pe. Laisney repete aqui a mesma falsa analogia entre propagar uma religião não-católica e roubar/assassinar que ele fez uso em sua resposta inicial para mim. Mas ele não faz qualquer tentativa em refutar este argumento que eu já tinha apresentado em minha tréplica. Por este motivo, eu remeto os leitores à The Remnant, 31 de julho de 2012, p. 8, coluna 4. Essa mesma parte da Remnant também pode ser lida acima no. 4 nesta versão do nosso debate publicada no blog.

 

PARA CITAR


HARRISON, Pe. Brian W. DEBATE: Pe. François Laisney, FSSPX  vs. Pe. Brian Harrison, O.S. (Sobre a Liberdade Religiosa). <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/concilio-vaticano-ii/liberdade-religiosa/822-pe-francois-laisney-sspx-vs-pe-brian-harrison-o-s-sobre-a-liberdade-religiosa>. Desde 29/09/2015. Tradutor: Paulo José.

 

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