Sábado, Maio 18, 2024

Algumas interpretações minimalizantes do Magistério ordinário e universal em meio “tradicionalista” (Excerto)

 

Refutação à tese do Padre Calderón[1]

 

A confusão entre “Magistério ordinário e universal” e “critério leriniano”, ainda discutida em nossos dias por Arnaud de Lassus, foi suficientemente difundida entre os tradicionalistas a partir do final dos anos 1960.

Entretanto, inúmeros autores de algum impacto nesses meios compreenderam que existia, aí, um erro claramente oposto à doutrina da Igreja. A aquisição desse conhecimento, infelizmente, não levou a uma revisão profunda de posições já abandonadas de outras formas. É por isso que vários autores “tradicionalistas” esforçaram-se para encontrar uma solução que permita, conjuntamente:

  • Sustentar que Dignitatis Humanae ensina uma doutrina já infalivelmente condenada pela Igreja[2];
  • Afirmar que o Magistério ordinário universal (compreendido no sentido da universalidade em uma dada época) é verdadeiramente infalível;
  • Não adotar uma posição sedevacantista, nem a tese de Cassiciacum[3].

Apresentaremos e refutaremos três das tentativas mais difundidas que foram assim elaboradas.

Precisemos bem a questão, bastante limitada.

Não afirmamos categoricamente que TUDO o que se encontra nos textos do Vaticano II é ensinamento infalível em nome da infalibilidade do Magistério ordinário e universal.

Dizemos, simplesmente, que:

  • Certas passagens do Vaticano II são cobertas pela infalibilidade do Magistério ordinário e universal. São elas:
    • Onde uma doutrina é diretamente afirmada;
    • E onde, além disso, essa doutrina é apresentada como revelada, ou como absolutamente obrigatória para os fiéis.

Essas são, com efeito, diferentes maneiras de dizer que uma doutrina deve ser crença definitiva ou irrevogável.

  • Outras passagens, sem dúvida a maioria, destacam-se do Magistério simplesmente autêntico (NÃO INFALÍVEL); e entre essas: Outras propostas (novamente, o maior número) são introduzidas apenas indiretamente: não por si mesmas, mas em relação a uma afirmação diretamente ensinada. São argumentos, ilustrações, desenvolvimentos de consequências, etc. Essas afirmações, ao menos habitualmente, não são apresentadas pelo Magistério com autoridade e não exigem a priori uma verdadeira adesão do espírito em nome da assistência divina, ainda que elas exijam ser seriamente tomadas em consideração, levando em conta a autoridade moral própria à Igreja considerada puramente como causa segunda. As proposições desta categoria constituem a grande maioria nos documentos do Vaticano II. E, para o caso preciso deste Concílio, o julgamento pode ser (e foi de fato, da parte de numerosos teólogos católicos) fortemente crítico.
    • Certas afirmações exigem de si[4] uma adesão do espírito: são as afirmações que são ensinadas diretamente, por si mesmas, mas sem que seja dito que elas são reveladas, ou ligadas diretamente à revelação, etc.

Sejamos perfeitamente precisos: o que sustentamos aqui e que diversos autores “tradicionalistas” negam[5] é que a infalibilidade do Magistério ordinário e universal cobre a afirmação central de Dignitatis Humanae, afirmação contida no primeiro parágrafo de DH, 2 e que nós lembramos:

“O Concílio do Vaticano declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Essa liberdade consiste em que todos os homens devem ser livres de qualquer constrangimento da parte tanto de indivíduos quanto de grupos sociais e de qualquer poder humano que seja, de tal sorte que em matéria religiosa ninguém seja forçado a agir contra sua consciência, nem impedido de agir, em justos limites, segundo sua consciência, em privado como em público, só ou associado a outros. Ele declara, além disso, que o direito à liberdade religiosa tem seu fundamento na própria dignidade da pessoa humana tal como faz conhecer a Palavra de Deus e a própria razão.”

É evidentemente a análise literária mais elementar que mostra que esta passagem é verdadeiramente central na Declaração, e diretamente visada. Além do mais, nós possuímos, no caso em questão, uma confirmação quase oficial dessa “centralidade”. A Comissão Teológica encarregada de examinar, integrar ou recusar as correções solicitadas pelos Padres o afirmou, na verdade, no relatório fornecido por ocasião da 164ª reunião geral (19 de novembro de 1965)[6]:

“[18º pedido de correção sobre o número 2] – Pag. 5, linhas 2-6, que se retire a frase “Insuper …cognoscitur” (45 Padres); que se retire somente as palavras “qualis … cognoscitur” (1 Padre); pag. 5, linhas 2-4, em vez de “Insuper declarat … fundatum”, que se diga “Hoc … fundatur” (1 Padre).

[Resposta da Comissão] – O texto inteiro é necessário no lugar onde se encontra: é como O PONTO CENTRAL DA DECLARAÇÃO[7]. Além disso, quando é questão do fundamento, não se trata, portanto, de argumentos. Cf. também a resposta às correções que seguem imediatamente.”

Assim a Comissão afirma que nossa passagem é o ponto central da Declaração, e ela precisa que a afirmação do fundamento faz parte desse ponto central, e então é desejada por si mesma, e não pode ser relegada à simples classe de argumento.

Nós aproveitamos a ocasião para transcrever a resposta seguinte, como a Comissão nos convida a fazer. Essa resposta é, com efeito, útil contra a tendência inversa da que nos ocupa por enquanto, a tendência do “fundamentalismo magisterial”, que desejaria que tudo o que é contido em um texto magisterial se impusesse com autoridade. Eis a sequência:

“[19] – Pag. 5, linha 6, que se introduza a transição desta forma: “Doctrinam declaratam paucis illustrare licet”, afim de que não pareça que a argumentação é proposta com autoridade pelo Santo Sínodo (1 Padre). Que se retire a palavra “enim” na linha 7 (44 Padres).

[Resposta da Comissão] – Afim de que apareça mais claramente que a argumentação não é proposta com autoridade, retire-se a palavra “enim” da linha 7.”

Voltemos às teses que queremos submeter à crítica. Diversos autores tradicionalistas, sempre admitindo (ou ao menos não negando) a doutrina católica sobre a infalibilidade do Magistério ordinário e universal (em não importa qual época dada), estimam que essa infalibilidade não foi comprometida ao Vaticano II, ou ao menos não o foi para o ponto central de DH.

Nós examinamos três teorias:

  1. O concílio não quis comprometer a infalibilidade. Essa tese se apoia seja sobre a natureza pastoral do Concílio, seja sobre uma pretensa afirmação explícita de não-infalibilidade feita pelo Concílio, seja sobre uma impossibilidade interna oriunda do “liberalismo” das autoridades conciliares.
  2. O Concílio não se destaca do Magistério ordinário e universal, porque este exige que os bispos estejam dispersos sobre toda a terra, e não apenas não reunidos.
  3. A Declaração DH não se destaca do Magistério ordinário e universal, porque 70 Padres não a assinaram: não há, então, a unanimidade necessária à infalibilidade segundo o modo ordinário.

 

A.   O Concílio Vaticano II excluiu, de modo geral, o compromisso com a infalibilidade?

Nós já examinamos diversas vezes dois dos argumentos adiantados por essa tese. Basta-nos, de memória, lembrar nossas propostas[8]:

“Muitos autores “tradicionalistas” contestaram, é verdade, que o Vaticano jamais tenha comprometido a infalibilidade. Eles inicialmente pretenderam que o Vaticano II não era infalível porque ele era pastoral. Esse erro manifesto consistia em confundir o ponto de vista da finalidade (o foco do Concílio era expressamente pastoral, na verdade) e o da causa formal (o Concílio, em um foco pastoral, pôde muito bem afirmar infalivelmente doutrinas reveladas ou ligadas à revelação). Todo católico sabe bem que não há nada mais importante para a pastoral que a verdade doutrinal e mesmo dogmática, apresentada em um espírito de caridade.

O argumento evoluiu um pouco nos últimos meses. O ruído circula agora que Roma teria oficialmente acrescentado uma “cláusula de não-infalibilidade”  ao Concílio Vaticano II. Nós lemos, por exemplo, em um comunicado difundido no início de 2006[9]:

“Esta cláusula de não-infalibilidade é acrescida à Constituição Lumen Gentium nas Notificações de 16 de novembro de 1964. Ela será repetida em 7 de dezembro de 1965 pelo Papa Paulo VI, depois novamente por ele em 12 de janeiro de 1966: Dado seu caráter pastoral, o Concílio evitou pronunciar dogmas dotados da noção[10] de infalibilidade.”

A citação de Paulo VI é completamente falsa. Eis o texto autêntico [itálicos do autor]:

“Dado o caráter pastoral do Concílio, ele evitou pronunciar de uma maneira extraordinária dogmas comportando a nota de infalibilidade, mas ele muniu seus ensinamentos da autoridade do magistério ordinário supremo: esse magistério ordinário e manifestamente autêntico deve ser acolhido docilmente e sinceramente por todos os fiéis, segundo o espírito do Concílio concernente à natureza e aos focos de cada documento.”[11]

Mais uma nova elaboração, muito mais radical, é agora apresentada pelo Padre Calderón[12].

É bom interessar-se ao exposto por esse autor, de um lado porque ele fornece ao nosso conhecimento o exposto mais preciso sobre o que a Fraternidade São Pio X (FSSPX) pode dizer para justificar sua posição em relação ao Vaticano II, e de outro lado porque o Padre Calderón sustenta uma doutrina correta sobre o magistério na maioria dos casos onde essa doutrina católica foi mal posta nos meios ligados à dita FSSPX. Nesse ponto de vista, seu trabalho representa um claro progresso e merece ser saudado como tal.

O Padre Calderón enuncia com clareza sua teoria[13]:

“Ora, arrebanhadas pelo liberalismo, as autoridades conciliares não quiseram ensinar com infalibilidade sobre o modo extraordinário; e por essa razão mesmo, elas impediram seu magistério ordinário de atingir o universal. É a razão pela qual o magistério conciliar não é infalível e não poderá ser de nenhum modo a ponto de as autoridades eclesiásticas não abandonarem seu liberalismo.”[14]

Assim, para o Padre Calderón, a chave do caráter nem infalível, nem mesmo obrigatório do “magistério conciliar” é o que ele nomeia a “mentalidade liberal”[15]. Esse defeito é tão grave que ele não hesita em dizer, após ter caracterizado o “magistério conciliar” como “magistério dialogado”:

“É, entretanto, evidente que os papas conciliares utilizam o diálogo não como uma etapa a transpor antes de definir a doutrina, mas como uma etapa obrigatória e definitiva. É o motivo pelo qual se deve dizer que o magistério dialogado é uma exigência do modernismo inerente à hierarquia conciliar. O modernismo, que não corresponde a nada além de uma intenção de justificar teologicamente o liberalismo católico, pretende resolver o (falso) conflito entre liberdade e autoridade, sobretudo entre liberdade de pensamento e autoridade doutrinal, pela democratização do exercício do magistério.”[16]

Sob o risco de não responder a todas as nuances do pensamento do Padre Calderón, diremos simplesmente que sua tese sofre de duas falhas maiores, segundo a dupla via de seu desenvolvimento.

 

1.    Primeira via do Abade Calderón

A primeira via, a do “fato”, consiste em afirmar de diversas maneiras[17] que o “magistério conciliar” não quer “impor” sua doutrina:

“Não apenas o magistério conciliar não manifestou claramente a intenção de impor sua doutrina, mas, ao adotar uma atitude liberal, ele manifestou, ao contrário, a intenção de não impor essa doutrina.”[18]

Para tentar escorar essa resposta, o Padre Calderón começa por distinguir:

“Se não existiu intenção de impor uma doutrina pelo poder do magistério, houve intenção de fazê-lo – e quanto! – pelo poder de governo, porque o liberal não usa da autoridade magisterial, mas abusa da autoridade disciplinar.”[19]

Seja… mas falta provar a proposta concernente ao magistério, diante dos textos[20] perfeitamente explícitos e claros citados pelo Padre Ricossa. O Padre Calderón poderia particularmente esquivar que ele reconhece expressamente a doutrina católica:

“Ao aceitar ‘o que’ é ensinado, é preciso considerar não apenas as sentenças pronunciadas, mas também o grau de credibilidade que a própria autoridade lhes reconhece (…).”[21]

E, de forma geral:

“O magistério da Igreja é por definição um magistério público, ou seja, assistido pelo Espírito Santo em sua manifestação externa: o que importa, não é o que o Papa sinta ou pense em foro íntimo, é o que ele expressa de maneira sensível ao público. Ora, se há um aspecto de todo ato de ensino que deve sempre ser suficientemente explicitado, é bem o grau de intenção magisterial, porque o discípulo, como tal, deixa-se guiar pela fé na autoridade do mestre, e não pela verossimilhança de argumentos que não está em condição de julgar – o que seria a atitude do que pesquisa por si mesmo. Quando esse grau não é expresso por palavras, ele é suficientemente explicitado pelas circunstâncias igualmente externas e visíveis.”[22]

Ora, longe de responder, o Padre Calderón reafirma com mais força o fato (pretensa notoriedade da renúncia do Papa e dos bispos à sua autoridade), e depois desenvolve considerações pessoais sobre os eventos conciliares, interpretados à sua maneira, considerações não podem em nada anular o fato de que o próprio Concílio, e os Papas posteriores afirmaram a autoridade doutrinal do Vaticano II.

Aqui, a objeção do Padre Ricossa tem plena base, a resposta do Abade Calderón perde força, e sua tese permanece afirmação gratuita e contrária aos fatos.

A título de exemplo, eis o texto da promulgação ao fim da declaração sobre a liberdade religiosa:

“Todo o conjunto e cada um dos pontos foram lançados nessa declaração agradaram aos Padres do Concílio. E Nós, em virtude do poder apostólico que temos do Cristo, em união com os veneráveis Padres, Nós os aprovamos, fixamos e decretamos no Espírito Santo, e Nós ordenamos que o que foi assim estabelecido em Concílio seja promulgado para a glória de Deus.”[23]

Da mesma forma em sua Alocução de 12 de janeiro de 1966, Paulo VI, fazendo referência às notificações de 6 de março e de 16 de novembro de 1964, afirmava:

“(…) sendo dado o caráter pastoral do Concílio, ele evitou pronunciar de uma maneira extraordinária dogmas comportando a nota de infalibilidade, mas ele muniu seus ensinamentos da autoridade do magistério ordinário supremo: esse magistério ordinário e manifestamente autêntico deve ser acolhido docilmente e sinceramente por todos os fiéis, segundo o espírito do Concílio concernente à natureza e aos objetivos de cada documento.”

Essa primeira via, longe de estabelecer a tese do Padre Calderón, retorna-se então manifestamente contra ele. A segunda será mais propícia?

 

2.    Segunda via do Abade Calderón

A segunda via é, de certa forma, um reforço da precedente, na medida em que repete (“usque ad nauseam”) que “os pastores renunciaram na prática a exercer de maneira imperativa seu magistério doutrinal”[24].

Mas ela acrescenta uma dupla consideração. De um lado, o Padre Calderón atribui[25] a “unanimidade conciliar” ao “clima pluralista e liberal”, à “força dos jornais e da televisão’, etc. Não se vê claramente se o Padre Calderón fala, aqui, do conjunto de idéias geralmente difundidas na Igreja nas últimas décadas, ou dos próprios documentos conciliares. No primeiro caso, o que ele diz pode comportar verdade parcial, mas fora de contexto. Examinamos a hipótese unicamente para o segundo caso, a única que apresenta interesse aqui. Eis como o Padre Calderón se expressa[26]:

“A difusão puramente material de doutrinas e modos de pensar, universal pela força dos jornais e da televisão e não pela da predicação magisterial, não tem nada a ver com a firme unanimidade do Magistério ensinado em nome de Nosso Senhor.”

Vê-se: exceto a menção às mídias, o argumento nessa fase não acrescenta nada à primeira via e permanece uma afirmação gratuita e contrária aos fatos concernentes à autoridade doutrinal reconhecida no Concílio.

Mas é aí que o Padre Calderón faz uma consideração de certa forma intrínseca para justificar sua tese. Segundo ele, os pastores da Igreja “não querem impor sua autoridade porque se deixaram persuadir que o ‘sentimento dos fiéis’ é infalível e leva, por si só, à verdade (…)”.[27]

O argumento lembrado aqui foi desenvolvido em suas páginas 62-66 e 667-69.

A tese do Abade Calderón, que quer rejeitar o erro modernista da independência dos fiéis em relação ao magistério, cai em um erro contrário e tão grave quanto o primeiro. Porque, se é verdade que a concordância de todos os fiéis sobre um ponto de doutrina ocorre sob a dependência necessária do Magistério, em todo caso, a concordância do conjunto é garantida por Deus não somente através da ação do Magistério, mas também diretamente pelo influxo permanente do Cristo e do Espírito Santo sobre todo o Corpo Místico. Afirmar que, por causa de más circunstâncias históricas, o conjunto dos fiéis poderia professar unanimemente, como de domínio da revelação, uma doutrina falsa: é negar a assistência divina prometida pelo Cristo à Sua Igreja.

Mas o Padre Calderón leva tudo ainda mais longe, acrescentando o segundo erro ao primeiro. Com efeito, ele escreve[28]:

“(…) no cumprimento dessas tarefas, ele [o bispo diocesano] deve sempre se apoiar sobre a autoridade própria que ele tem do Cristo e se colocar sob assistência do Espírito Santo para não se enganar. Se, nessa missão pastoral, percebe-se que a universalidade dos bispos em comunhão com o Papa sustenta uma verdade ou condena um erro, não há possibilidade de engano.[29] Mas, como assinalado acima, para o que o magistério ordinário atinja a infalibilidade, ele deve também satisfazer de forma equivalente as quatro condições definidas por Vaticano I: é preciso que a sentença seja proposta pela universalidade dos bispos em comunhão com o Papa, de uma maneira definitiva e em virtude da autoridade que eles receberam do Cristo. Se, ao contrário, os bispos adotam uma atitude liberal, crendo que os movimentos religiosos de seus fiéis desfrutam de uma assistência infalível do Espírito Santo e se eles não assumem a responsabilidade de se opor a seu rebanho quando eles o vêem entregar-se ao erro, eles não fazem uso de sua autoridade própria, a única assistida pela infalibilidade. Não são mais as ovelhas que seguem o pastor, é o pastor que segue as ovelhas, e não é caso de se espantar de ver estas últimas tomar mil caminhos errados.”

A esse belo discurso, respondemos:

Se o Padre Calderón pretende descrever assim o próprio Concílio Vaticano II, como ele se manifesta explicitamente, é claro que ele não faz nada mais que repetir os julgamentos falsos que nós analisamos e refutamos na seção precedente.

Se o Padre Calderón pretende dizer que o conjunto dos bispos do Vaticano II está no erro porque cada um se referiu, para formar seu julgamento, a uma fonte errônea (o povo mal esclarecido e mal guiado): então certamente o argumento é novo (eis então a segunda via anunciada em nosso título)… Mas ele está claramente contra a doutrina da Igreja sobre a infalibilidade. A doutrina da assistência divina ensina, com efeito, que existe a obrigação moral grave, para os pastores, de empregar os meios corretos (segundo as normas católicas) para formar seus julgamentos[30]. Mas essa mesma doutrina afirma que, mesmo que essa obrigação não seja preenchida, a assistência divina infalível se exerce enquanto as condições estão reunidas, sendo bem entendido que essas condições não incluem as obrigações morais que acabamos de mencionar.

Assim, a partir do momento onde o conjunto dos bispos, com o Papa, afirma diretamente uma doutrina como revelada, ou ligada necessariamente à revelação, absolutamente obrigatória para todos, não é preciso se perguntar se tomaram os bons caminhos para chegar a esse acordo: o próprio fato de existir esse acordo está sob a assistência divina.

A segunda via do Padre Calderón, no que ela tem de próprio, é então contrária à doutrina da Igreja.[31]



[1] O subtítulo é por responsabilidade do Editor, com a autorização do autor.

[2] Esta tese é de fato geralmente encontrada nos meios “tradicionalistas” simpatizantes da “Fraternidade São Pio X”. A Dignitatis Humanae designa suas primeiras palavras a Declaração do Concílio Vaticano II sobre a liberdade religiosa. Posteriormente, trataremos deste texto da DH.

[3] Esta última tese, desenvolvida teologicamente pelo Padre Guerard des Lauriers, e aceita em 1992 pelo autor das presentes linhas, se distingue claramente do sedevacantismo. Muitas vezes, é confundida com o sedevacantismo por seus adversários em um espírito mais polêmico do que objetivamente teológico. Ela diz que o ocupante da Sé Apostólica, pelo menos desde 07 de dezembro de 1965, é papa materialmente (no que diz respeito às determinações legais externas) sem o ser formalmente (ele não possui em ato a Autoridade pontifícia divinamente assistida).

[4] “Em si mesmo” o que implica que por acidente o fiel possa ser levado a reter o seu assentimento: seja porque a afirmação em questão parece ser contrária a um ponto da doutrina já definido ou claramente contido nas fontes da revelação [hipótese que alguns teólogos consideram impossível, enquanto outros ao contrário], seja porque ela contrariaria uma outra verdade, estreitamente ligada à revelação, seja ainda porque integraria dados não revelados e reconhecidos como definitivamente errados.

[5] Alguns, como o Pe. Berto, consideram que a Dignitatis Humanae formalmente não ensina qualquer erro, outros, como os autores que nos refutam, sustentam que a Dignitatis Humanae ensina um erro infalivelmente já condenado pelo Magistério anterior. Além disso, muitos autores externos ao meio “tradicionalista” negam qualquer infalibilidade no Concílio Vaticano II. Mas essa atitude deriva de uma outra abordagem, geralmente de uma rejeição generalizada da infalibilidade como tal, ou porque ela seja considerada como opressiva, ou porque acredita-se que uma proposta jamais possa ter um sentido relativo, que fira qualquer decisão de infalibilidade no sentido católico. Não se pode, obviamente, examinar em um só estudo posições assim tão diversas.

[6] Ver Acta Synodalia Sacrosancti Concilii Oecumenici Vaticani II, Vol. IV, pars VI (1978), p. 734-735.

[7] « Est quasi punctum centrale Declarationis ».

[8] Cf. Sedes Sapientiae, n° 96, p. 20-21.

[9] Ver mais detalhes sobre isso em nosso artigo «Petite suite sur la liberté religieuse et Vatican II» em Sedes Sapientiae n° 97, p. 34-35.

[10] sic ! (lapsus pour « note »).

[11]  Paulo VI, Audiência Geral de 12 de janeiro. O texto completo em italiano (e a tradução francesa) em Basile Valuet, La liberté religieuse et la Tradition catholique, éd. Sainte-Madeleine, 1995 T. II, p. 533. Este texto já havia sido citado e bem comentado pelo Padre Guérard des Lauriers, Cahiers de Cassiciacum, I (1979), p. 15-16 note 8. Observa-se que somente a infalibilidade de acordo com a forma extraordinária que é declarada ausente.

[12] sacerdote da Fraternidade Sacerdotal São Pio X e professor no seminário de La Reja (Argentina). Le Sel de la Terre n° 47, Hiver 2003- 2004, p. 10-96: « Peut-on critiquer Vatican II sans s’ériger en juge du Magistère? ». O Padre Calderón continua sua apresentação no n°. 55 (Hiver 2005-2006) da mesma revista e uma terceira parte é anunciada.

[13] O Sal da Terra n° 47, p. 47 § 6.

[14] Esta declaração, e uma série de outras similares (por exemplo. p. 48 §2), que descreve a autoridade atual da Igreja como marcada por uma disposição habitual que a impede de exercer seus componentes essenciais mostra que, de fato, o Padre Calderón sustenta uma tese substancialmente idêntica à tese de Cassiciacum (ausência formal da autoridade em quem ocupa materialmente a Sé). O Pe. Calderón dela se defende vivamente e a ataca. Mas se notará que ao apresentar o argumento da Tese Cassiciacum, em relação à ausência de intenção habitual e real de procurar o bem comum (p. 24), ele não a responde em sua “resposta à objeção” (p. 70-76). Talvez isso venha do fato de que Donald Sanborn, em que o Padre Calderón toma a exposição da Tese Cassiciacum em que desenvolve mal o argumento (por identificar com o caso de cisma), o que parece indicar na página 24, último §, do Padre Calderón. Pode ser também que que tal seja devido a um equívoco sobre a autoridade na visão do Padre Calderón, concepção de acordo com a qual a autoridade não incluiria intrinsecamente uma relação voluntária, habitual e atual para o bem comum, mas não encontramos argumento positivo neste sentido no seu texto; Talvez uma vaga indicação no emprego da expressão (p. 70) “poder legítimo”?

[15] O Sal da Terra n° 47, p. 48 § 2.

[16] Padre Calderon, Le Sel de la Terre n° 55, p. 148. De acordo com o artigo n.º 47 da mesma revista, p. 60 último §-61 § 1, esta “transfiguração liberal” da autoridade suprema ocorreu “com as decisões iniciais tomadas na primeira sessão do Concílio Vaticano II.” E mais adiante (p. 86 abaixo) o Padre Calderón não hesita em afirmar a “notoriedade” da “virada liberal” tomada assim [o Vaticano II] pela a atitude da autoridade suprema. Ele ainda acrescenta: “O papa renunciou a sua autoridade em favor dos bispos; os bispos renunciaram-na em favor dos teólogos; (…)”. Nós realmente não vemos, com tais afirmações [há outros do mesmo tipo em seus textos. Por Exemplo. p. 88 § 2: “Paulo VI resolutamente continuou sua renúncia de fato à supremacia papal”], como Padre Calderón pode alegar não ser um defensor da Tese Cassiciacum, e mesmo o mais puro sedevacantismo (de acordo com seus próprios critérios, desenvolvido nas páginas 70-74, que todos giram em torno do tema da “notoriedade”).

[17] No artigo de Le Sel de la Terre n° 55, este será o tema do “Magistério dialogal.” Neste artigo (aquele do n° 47), ele trata no sentido mais genérico da mentalidade liberal.

[18] Padre Calderon, Le Sel de la Terre n° 47, p. 86. Note-se que aqui o Padre Calderón tenta responder à objeção do Padre Ricossa (Sodalitium (ed francês.) n° 52, p. 26-27) que ele mesmo relatou em sua página 38.

[19] Reconhecemos, naturalmente, a distinção entre magistério e governo. Mas – e este é um dos nossos principais desacordos com Padre Calderón sobre a doutrina geral do Magistério – contestamos absolutamente que, uma vez feita esta distinção, pode-se caracterizar principalmente o magistério como um “poder de impor (a Doutrina)». Ora, essa caracterização é comum nos escritos do Padre Calderón; é central para o seu pensamento (ver suas páginas 82-86) … embora, na virada de uma frase, ele faça uma concessão que permite talvez se concordar (“embora se deva [o Papa ao impor uma crença] crer formalmente e, principalmente, pela autoridade de Deus, que o assiste”, final da p. 85 -início da 86 alto). Mas a armadilha está fortemente enraizada, como mostrado por exemplo na oposição absoluta entre “magistério” e “diálogo” (Le Sel de la Terre n° 55, p. 157-159). Estas páginas inclusive mostram uma concepção das mais estranhas acerca do magistério e da fé: a ordem da fé estando oposta àquela do conhecimento de Cristo, a luz divina da qual participa o magistério que é dito estar tanto “acima da fé,” e mesmo “acima do dogma” …

[20]  Especialmente: a forma de promulgação de diversos documentos conciliares, o famoso esclarecimento de Paulo VI em 12 de janeiro de 1966, que define e detalha o que tinha sido apresentado várias vezes ao longo do Concílio, o discurso de Papa Paulo VI de 24 de maio de 1976, sua carta de 11 de Outubro de 1976. Haveria muitos outros textos: estes são suficientes, visto que o Padre Calderón não responde.

[21] O Sal da Terra n° 47, p. 78 dernier § ; cf. p. 79 §8, et passim.

[22] Padre Calderón, O Sal da Terra n° 55, p. 143 § 2-§ 3.

[23] No n° 55 do Le Sel de la Terre, p. 158, § 2, o Padre Calderón não hesita em afirmar: “A consequência desta atitude [do desejo Magistério ao diálogo, tal como o Padre Calderón a apresenta] é que o magistério conciliar não o exerceu em qualquer grau de autoridade que detém a partir de Cristo.”

[24] O Sal da Terra n° 47, p. 92 dernier §, p. 93 §3, etc.

[25] O Sal da Terra n° 47, p. 93.

[26] Ibid. fin § 2.

[27] O Sal da Terra n° 47 p. 93 § 3.

[28] O Sal da Terra n° 47, p. 68 § 2-§ 3;

[29] Isto é a verdadeira doutrina católica, que o Padre Calderón admite em princípio. Infelizmente, sua dialética em torno do tema, tornou-se pura ideologia, o “magistério conciliar, liberal e dialogado”lhe desvia o olhar dos fatos à luz da doutrina católica e isso o levou a forjar uma representação puramente fantasmagórica da situação.

[30]  A propósito, pode-se questionar se o Padre Calderón não tem uma concepção iluminista da assistência divina ao Magistério, na oposição que ele desenvolve entre fé e magistério (Le Sel de la Terre n° 55, p. 158-159).

[31] Os opositores à infalibilidade papal, no Concílio Vaticano I, elaboraram um argumento de mesma estrutura: ver sua refutação pelo relator da Delegação da fé em Mansi T. 52, col. 1214 C – 1215.

 

FONTE


LUCIEN, Bernard. Les degrés d’autorité du Magistère. La question de l’infaillibilité / Doctrine catholique / Développements récents / Débats actuels. LA NEF, 2007, pp. 158-169.

 

PARA CITAR


LUCIEN, Pe. Bernard. Algumas interpretações minimalizantes do Magistério ordinário e universal em meio “tradicionalista”. <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/concilio-vaticano-ii/valor-magisterial/805-algumas-interpretacoes-minimalizantes-do-magisterio-ordinario-e-universal-em-meio-tradicionalista> Desde 12/07/2015. Tradutora: Milena Popovic.

 

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