(1) É segundo esta perspectiva que se deve encarar a finalidade com que o .santo fundou uma nova Ordem, com a sua amiga Joana de Chantal. As religiosas com quem ele sonhava pertenceriam, no seu espírito, a um novo tipo. Originalmente, deviam chamar-se “Filhas de Santa Maria”, nome que revelava bem a sua vocação. São Francisco queria-as dotadas de zelo apostólico, levando a presença de Cristo ao mundo, visitando os pobres e os doentes, como a Virgem Maria visitou a sua prima Isabel: daí o nome de Visitação que a Congregação tomará definitivamente. Elas dariam testemunho concreto da santidade que adquiririam na sua vida de renúncia e de oração. Temerosas de que as freiras saíssem dos seus conventos e se misturassem com a vida dos homens, as autoridades religiosas acharam a idéia excessivamente avançada. O arcebispo de Lyon persuadiu o santo (e mais dificilmente Santa Joana de Chantal) a fazer das suas visitandinas mulheres de oração e a aceitar que fossem úteis ao mundo unicamente pela oração e mortificação.
Uma figura que encarna uma época: São Francisco de Sales – Por Daniel Rops
Houve um homem que parece ter sido especialmente escolhido pela Providência para resumir no seu ser e na sua vida fecunda o mais essencial – e decisivo para o futuro – do imenso esforço realizado pela Igreja, desde que verdadeiramente tomou consciência dos seus problemas e dos seus perigos, para renovar-se no seu interior, regressar às suas verdadeiras fidelidades e opor aos seus inimigos armas de luz. Esse homem foi São Francisco de Sales (1567-1622). Basta recordar os vários pontos do grande plano de renovação posto em marcha pelo catolicismo, durante os sessenta anos que se seguiram à conclusão do Concilio de Trento, para medir a importância histórica deste homem: quanto à defesa da fé, encontra-se na primeira fila; quanto à reconquista das terras ocupadas pela heresia, é a tarefa a que dedica a sua juventude; quanto à reforma do clero, a ela se consagra obstinadamente ao longo de vinte anos; das suas mãos sai uma nova Ordem, e, para reintroduzir na pesada massa cristã o verdadeiro fermento do Evangelho, quem mais eficaz do que esse pregador infatigável, do que o autor das grandes tiragens da Introdução à vida devota?
Nascera em Thorens, na Savóia, nessa província que uma sobrevivência feudal fazia ainda depender de Turim, mas que participa já plenamente do desenvolvimento espiritual da França, com a qual mantém múltiplas relações. A língua que lá se fala é o francês mais puro, aquele que então caminha para a sua forma definitiva; aliás, o grupo de intelectuais que se autodenominava La Pleiade conta com amigos em Annecy, em Chambéry e até na abadia real de Hautecombe. Foi em Paris que Francisco acabou os seus estudos, no Colégio de Clermont – futuro Liceu Louis le Grand —, onde os jesuítas se dedicavam a formar autênticos humanistas, apaixonados pelo grego e pelo latim. E católicos fervorosos! Mas haveria necessidade de animar nesse sentido a criança ajuizada que pedira a tonsura aos onze anos e que sorria em silêncio quando seu pai lhe acenava com um ambicioso futuro de senador ou de jurisconsulto? Em Clermont, mostra-se tão recolhido, tão amável, tão diligente em comungar todas as semanas, que os seus companheiros o apelidam de “o Anjo”. O seu caminho parece fixado.
Contudo, aos dezoito anos, uma provação, um maelstroem, um vórtice feito de angústia e de dúvida. Crise de alma e de espírito ao mesmo tempo. É a hora obscura, a hora dolorosa em que cada qual, perante problemas decisivos, deve escolher o seu destino. Para a maioria, esses dramas desenrolam-se no nível dos instintos, e patinha-se em lodo muito sujo. Para Francisco de Sales, não; mas sim um conflito de ideias, esse mesmo em que se dilaceram até à carne viva tantos homens da sua época: graça, predestinação, salvação eterna, condenação fatal. Debate-se durante meses entre as teses e as hipóteses, sabendo que disso depende tudo. Finalmente, triunfa. Desses conflitos extenuantes da alma, não é a inteligência que o tirará, nem o raciocínio, mas o impulso do amor. Também ele tem a sua noite de fogo, sessenta e oito anos antes de Pascal. “O Senhor — grita —, se não vos devo ver, permiti ao menos que nunca vos amaldiçoe nem blasfeme de Vós! E se não vos posso amar na outra vida, pois ninguém vos louva no inferno, que ao menos aproveite todos os momentos da minha curta existência neste mundo para vos amar!” Oração que merece ser atendida e que o será de maneira incomparável. Está feito: Francisco vai-se ajoelhar diante da imagem de Nossa Senhora de Grès, e a Santíssima Virgem recebe o seu coração.
Depois, Pádua, por quatro anos: tempo suficiente para travar um conhecimento reverente com São Tomás de Aquino e para descobrir com enlevo Santo Agostinho e os Padres da Igreja. Tempo também para confirmar-se na sua vocação, no meio de uma juventude louca a quem o seu porte digno irrita e que o arrelia cruelmente. E chega a ordenação, em tempo brevíssimo: todas as Ordens menores numa semana, o diaconato três meses depois, e o sacerdócio passados outros três; sentimo-nos tentados a pensar se, a propósito deste rapaz visivelmente eleito, não seria o caso de repetir a célebre máxima de São Gregório Nazianzeno: “Era sacerdote antes de ser sacerdote”. Era por demais evidente que Deus o tinha reservado para Si.
Imediatamente, à ação! Recém-ordenado, vemo-lo plenamente absorvido no seu ministério. Deão do cabido: um belo título, mas que não significa senão o que o titular quiser. O jovem cônego põe nele todo o seu ardor, toda a sua caridade. Visitar os doentes, socorrer os pobres, passar longas horas no confessionário, e pregar, pregar muito, tanto que Monsieur de Sales, seu pai, quase se indigna e o censura por não preparar desses belos sermões “em que se cite o grego e o latim”, e que, proporcionando um agradável lazer aos ouvintes, os deixam, no fim das contas, na sua tranquila rotina… Não, esse jovem pregador de menos de trinta anos sabe muito bem como mover o coração das multidões, e a sua reputação já vai crescendo. E há de valer-lhe uma distinção bem perigosa.
O Chablais, essa encantadora região de montes e colinas que, de Hermance a Saint-Gingolph, acompanha a margem sul do lago Léman, e cuja capital é Thonon, tinha-se tornado protestante. Em 1550, o duque da Savóia Carlos Manuel tomara essa região ao cantão de Berna e desejava que fosse retomada também ao calvinismo. Uma primeira tentativa falhou. O bispo de Annecy — que é também o desolado titular de Genebra — pede voluntários para tentar de novo. Na primeira fila, apresenta-se o jovem preboste do cabido, Francisco. E parte. Quatro anos de esforços sobre-humanos e, literalmente, heroicos. Quantas vezes não entra o missionário no castelo de Allinges, através do gelo e da neve espessa, com os pés gretados a ponto de o sangue lhe tingir as meias! Quantas noites não passa ao ar livre, sem ter, como o divino Mestre, onde repousar a cabeça! Quantas vezes não arrisca a vida ao atravessar o ribeirão de Dranse sobre uma prancha escorregadia de gelo, ou ao aventurar-se entre os adversários, que – como veremos nos Grisões com Fidélis de Sigmaringen — são às vezes demasiado lépidos no uso do punhal! Não importa! A Palavra deve ser levada, e sê-lo-á. Não quererão ouvir as suas pregações? O antepassado dos publicistas, o padroeiro dos jornalistas, inventará os folhetos e fará distribuir ou afixar em toda a parte os seus impressos de controvérsia. O resultado está à vista. E quando, em 1598, o bispo vem examinar a tarefa realizada, verifica que a quase totalidade dos habitantes do Chablais regressou ao redil católico.
Francisco tem então trinta e dois anos. A sua missão no Chablais tornou-o célebre. Em Roma, Clemente VIII quer ouvi-lo pessoalmente, e, quando o jovem apóstolo termina a sua exposição perante oito cardeais e vinte bispos, o papa levanta-se e dá-lhe um abraço. O bispo de Annecy está velho, doente: Francisco é nomeado seu coadjutor com direito a sucessão. Em Paris, onde reside em 1602, a mesma notoriedade de bom quilate. O salão de Mme. Acarie recebe-o de braços abertos e Pierre de Bérulle declara-se seu amigo. Povo e nobres damas acotovelam-se ao pé do seu púlpito. E o próprio Henrique IV deseja agregá-lo ao clero do reino e oferece-lhe a coadjutoria de Paris, que ele rejeita. “Já estou casado, Majestade, com uma mulher pobre; não a posso deixar por uma mais rica”. Tem perfeita consciência de que é o próprio Deus quem o chama a esse dever, deliberadamente escolhido. A morte do seu bispo encontra-o a meio do caminho de regresso. Não será nada mais nada menos que um modesto bispo savoiano.
Mas que bispo Sê-lo-á durante vinte anos, como São Carlos Borromeu. Lenta e pacientemente, abrirá o sulco e semeará com cuidado a boa semente. Na pequena cidade que é então Annecy – pois Genebra, de que é bispo pelo título, está nas mãos de Teodoro de Beza -, vive modestamente, mais como monge do que como dignitário. Todos os que precisam dele encontram-no disponível: “os bispos, esses grandes bebedouros públicos…”, diz ele, amavelmente. Promove aulas de catequese em toda a parte, e ele mesmo vai ensinar as crianças. Ordena aos sacerdotes que não têm paróquia que se ponham à disposição dos párocos para os ajudarem na sua tarefa. Como lhe faltam fundos para criar um seminário, supre esse lamentável vazio com semanas de colóquios espirituais destinados ao clero e com conversas particulares em que sonda minuciosamente a vocação de cada um dos candidatos ao sacerdócio. Quer levar a verdade e a vida a todo esse povo que Deus lhe confiou. Fala todos os domingos, e a catedral transborda. Acaso serão sermões essa palestras familiares, em tom delicioso, em que se misturam as anedotas, as comparações, as perguntas lançadas ao auditório, tudo com bonomia e finura infinitas? Que maravilhoso pregador esse que adotou como princípio: “Não desejaria que se dissesse: Oh, que grande pregador! Oh, como fala bem!, mas simplesmente: Meu Deus, como sois bom, justo, e coisas semelhantes…”.
Não é necessário dizer que não permanece confinado na sua amável cidadezinha; deixa-a muitas vezes, para ir, “apesar do mau tempo e da muita neve”, a cavalo, munido de pesadas botas, “bater a região durante semanas” e visitar sucessivamente os vinte setores em que dividiu a sua diocese. Um bispo de ação, o que há de mais contrário a um homem de gabinete! O que não o impede de escrever inúmeras cartas – conhecem-se mais de duas mil – aos seus amigos, ilustres ou obscuros, aos seus dirigidos ou dirigidas. E encontra ainda tempo para ir pregar em Grenoble, Dijon, Paris, onde se exige a sua presença em 1618. Morrerá aos cinquenta e cinco anos, mas os seus vinte anos de episcopado podem contar-se pelo dobro numa vida de tal calibre. Poucos como ele possuíram a misteriosa ubiquidade que permite ao gênio desempenhar simultaneamente tarefas cuja transcendência desconcerta o vulgo.
Ao serviço dessa atividade incansável, que qualidades de inteligência e de coração! E, além disso, sem dúvida, um homem de feições belas, de uma beleza de prata dourada, fascinante, que Joana de Chantal ressaltou e que — acrescenta ela — causou ao santo alguns desgostos com o sexo frágil. Os seus retratos não exprimem talvez com muita precisão essa beleza: a maioria deles — mesmo o do hospital de Annecy, feito em vida — são insípidos e convencionais. “Esse rosto cheio de doçura, mas também de majestade, pacífico, mas carregado de poder, e tão suave e luminoso que insensivelmente espalha a serenidade nos espíritos mais perturbados” -como diz Henri Bordeaux — é realmente aquele que os seus contemporâneos captaram e que os seus íntimos amaram. O seu traço de caráter mais evidente é a mansidão, a caridade incessantemente presente, nas grandes e nas pequenas vicissitudes da vida, uma caridade que o leva a dar os sapatos a um pobre, mas também a não ferir com uma palavra severa uma pobre moça que não se portou dignamente… “Sou o mais afetivo do mundo — confessa ele —, e parece-me que não amo nada tanto como a Deus e a todas as almas por amor de Deus”.
Mas atenção! Por escrever que se apanham mais moscas com uma gota de mel do que com um barril de vinagre, não se deve considerá-lo um caçador de piedosas tontinhas. “Gosto das almas independentes – diz ele, à semelhança de Santa Teresa -, vigorosas e másculas”. A sua alma é precisamente dessa têmpera. Força de caráter, mas também bom-senso lúcido, grande prudência em não se deixar enganar pelas aparências nem se deixar levar por sentimentos. Qualidades modestas, virtudes burguesas? “Somos tentados — diz ainda o seu compatriota da Savóia, Henri Bordeaux — a tomá-lo por um homem vulgar, bom, calmo, doce e honesto, mas cuja virtude é também vulgar; ora, se lhe seguimos os passos, eis que de repente nos sentimos inundados de claridade: a sua santidade envolve-nos bruscamente, sem que nos tenhamos dado conta da sua vinda e das suas provas”. Sainte-Beuve, o crítico literário, que não pode ser acusado de excessiva credulidade, já o tinha assinalado no penetrante Lundi que consagrou a esta grande figura: “Em São Francisco de Sales, há mais do que o justo, mais do que o útil, mais do que o humano, há o santo, coisa real e que, desde que seja sincera, será sempre adorada entre os homens”. Adorado…, talvez não seja o termo exato. Mas muito venerado e querido, sem dúvida. Tantas virtudes humanas, iluminadas pelo amor de Cristo nesse sacerdote perfeito, que poder de irradiação não contém!
Eis, pois, que as almas vêm ter com ele: em breve, serão multidões. Grandes damas e moças humildes, seres excepcionais e outros simplesinhos. A todos se oferece com inesgotável delicadeza. Diretor de almas, Francisco de Sales consagra-se a cada uma das que se lhe entregaram como se fosse a única e a dona do seu tempo. A mais estimada é Joana de Chantal (1572-1641), que será uma santa autêntica na sua esteira, e a quem o une um “afeto mais branco que a neve, mais puro que o sol”. Dessa jovem viúva, que a princípio o fez rir um pouco, quando lhe falou da sua possível vocação, mas cuja profundidade de alma mediu rapidamente, fez ele uma associada da sua obra apostólica, a fundadora, consigo, e a primeira superiora da Ordem que prolongaria a sua obra – a Visitação. Uma outra dirigida, “a jovem dama toda de ouro”, Mme. de Charmoisy, dar-lhe-á ocasião de redigir esse “memorial dirigido a uma bela alma” que levará o seu nome às gerações futuras: a Introdução à vida devota. E se a morte não tivesse vindo interromper tão cedo o diálogo espiritual que manteve com Angélique Arnauid, quem sabe se não teria evitado que a impetuosa Madre se deixasse tragar pelo sombrio turbilhão para o qual o fascinante senhor de Saint-Cyran ia arrastá-la!
Foi dessa capacidade de irradiação – e também do seu trabalho de direção das consciências – que nasceu a sua obra, uma obra, em suma, de ocasião. Mas que dotes de escritor e, mais ainda, de especialista do coração humano, de descobridor de almas! A Introdução à vida devota, aparecida em 1608, dirige-se, para além da amável mulher que é a Filotéia do livro, a todo esse vasto público de verdadeiros fiéis – desses com quem a Igreja imediatamente posterior ao Concilio de Trento conta em bom número – que querem viver mais perto de Deus, “no meio das ondas amargas deste século, e voar entre as chamas das cobiças terrenas, sem queimar as asas dos sagrados desejos”. Livro para principiantes? Num certo sentido, sim, mas que é completado pelo Tratado do amor de Deus (1616), escrito certamente com o mesmo desígnio, mas que transporta aos mais altos cumes da experiência mística. Práticas espirituais, correspondência, outros tantos complementos de uma obra cuja verdadeira finalidade nunca foi expor na sua secura dogmática uma doutrina, mas torná-la tão próxima quanto possível da vida, para assim servir ao bem das almas.
Contudo, essa doutrina existe, e mais comovedora e mais cativante por nunca se guindar nem se dar ares de importância. Como se está longe, apesar da proximidade geográfica, da Instituição cristã de Mestre Calvino! Na verdade, Francisco de Sales, sem quase pensar nisso, toma o sentido oposto da Instituição. “Humanismo devoto”, diz o historiador Brémond para definir a sua filosofia. O elemento essencial é que toma como ponto de partida o homem, o homem real, o homem completo, com os seus grandes defeitos, mas também com a sua divina semelhança. Como o conhece bem, o psicólogo!, porque é mais como psicólogo do que como metafísico que ele procura na alma os fundamentos do amor divino. Francisco é, no sentido pleno do termo, um humanista. “Sou tão homem… que nada mais sou”. E esta sua fórmula, célebre, exprime bem o que quer exprimir. “O humanismo cristão – comenta ainda Brémond – submete facilmente aos dogmas e ao espírito da Igreja as duas divisas: com Terêncio, e melhor do que ele, compreende bem que «nada de humano lhe é estranho», e isso porque, em tudo o que é humano, reconhece a imagem de Deus, e, em cada homem, um irmão; e com Shakespeare, e mais alto do que ele, também o santo exclama: «Como é bela a humanidade!», e isso porque a humanidade foi resgatada por um Deus feito homem e a graça divina o eleva acima da sua natural perfeição…”
Aqui estão, pois, nitidamente expressas, a realização e a glorificação em Deus do homem, com que os humanistas mais cristãos sonhavam
havia cento e cinquenta anos. “Humanismo devoto”: a palavra devoto – hoje tão insossa – deve ser tomada na acepção mais exigente, a que tinha no século XVII; significa que esse humanismo está votado, devotado a Deus, e que encontra no homem sobrenatural o seu sentido e a sua justificação. Eis, pois, afastada também essa espécie de desespero do homem que obstrui todo o protestantismo. Não é que Francisco de Sales desconheça a realidade do pecado, mas sabe também que existe a graça, e que ela é muito mais poderosa. O problema da predestinação, que tanto o angustiou aos dezoito anos, já não o preocupa, agora que descobriu na confiança plena em Deus o segredo da sabedoria; voluntariamente, confessa até “que odeia todas as contendas e disputas que surgem entre católicos”, e entrega-se ao Todo-Poderoso para resolver os problemas que ultrapassam a razão humana. “Deus, sem dúvida – escreve ele -, não preparou o Paraíso senão para aqueles que previu que seriam seus… Ora, está em nossas mãos sermos seus”.
Portanto, confiança em Deus e esforços sérios do homem, eis a regra de vida que propõe. “Fiar o fio das pequenas virtudes”, mas também sobrenaturalizar essas virtudes. Querer oferecer-se a Deus, querer fazer o bem, querer rezar e, acima de tudo, querer amar: basta. Depois disso, a ansiedade acabou: a misericórdia divina corresponderá a esses esforços, a essa expectativa, e o mistério da Redenção exercerá a sua eficácia. In pace in idipsum, “apaziguados em Deus”, como se canta nas Completas: o resto é resposta do céu.
Este humanismo será simplesmente um método de boa conduta ou levará a uma mística? Tem-se discutido muito: uns só veem nele uma técnica de ascese prática; Brémond, pelo contrário, defende que, em última análise, Francisco de Sales não é nem quer ser senão um místico, tendo em vista o “cume da alma”, o estado inexprimível. Talvez se trate apenas de discussões acerca de palavras. E evidente que não se encontram na sua obra as análises precisas que fazem dos livros de Santa Teresa de Ávila, de São João da Cruz e mais ainda de Santo Inácio muitos tratados minuciosamente especificados de oração. Em certo sentido, São Francisco de Sales é menos original e menos espartilhado, mas se o verdadeiro fim de toda a mística é entregar o homem todo ao amor infinito, quem poderia ser mais autenticamente um místico do que aquele para quem o amor é a única lei da vida religiosa? Só que a sua medida é mais prudente do que a dos grandes espanhóis e o seu ritmo menos arrebatado: será esse o estilo de toda a escola francesa do Grand Siècle um pouco desconfiada das exaltações e dos voos amplos: o do seu amigo Bérulle, o de Olier e o da admirável ursulina Maria da Encarnação.
Mas o seu mérito insigne foi o de ter introduzido essa mística na vida: torna-a direta e assimilável para cada um de nós. “Relegava-se para os claustros a vida interior e espiritual, que se considerava – diz Bossuet – demasiado selvagem para aparecer na corte e na alta sociedade. Francisco de Sales foi escolhido para ir procurá-la no seu retiro”. Homenagem exata, e que é preciso reter, na boca do grande orador! “É um erro, e, por isso uma heresia — escreve o santo — querer banir a vida devota do batalhão dos soldados, da oficina dos artesãos, da corte dos príncipes, do lar das pessoas casadas”. Toda a mulher que o queira será uma Filotéia em potência, e sabemos que, neste ponto, muitos homens gostariam de seguir o exemplo das mulheres. Toda a corrente que, por volta de 1600, tende a introduzir a santidade na vida – ao contrário daquela que, cento e cinquenta ou duzentos anos antes, tendera a afastá-la da vida – tem em São Francisco de Sales a sua expressão mais perfeita[1]. Antepassado da Ação Católica, do laicado missionário? Talvez. Em todo o caso, como diz Brémond, “mestre dos mestres” da forma moderna da vida espiritual.
A doutrina de São Francisco de Sales vai marcar profundamente o catolicismo do seu tempo e daqueles que o seguirem. Não foi certamente o primeiro a dizer: “Os cristãos fazem mal em ser tão pouco cristãos como são…”, mas di-lo tão bem, de maneira tão persuasiva, que se ouve e se sente vontade de seguir os seus conselhos. O seu livro tem um sucesso prodigioso: multiplicam-se as edições, algumas até sem que ele as autorize ou mesmo conheça. Espalham-se as devoções que preconiza, como a devoção aos anjos, sobretudo ao Anjo da Guarda. Mais do que ninguém, é ele quem trabalha por introduzir nos costumes católicos a comunhão frequente, semanal. Com toda a simplicidade, armado de um belo sorriso e com a mão continuamente disposta a abençoar e a absolver, o que ele oferece é o próprio cristianismo que a sociedade do seu tempo — e sem dúvida também a nossa – mais pode desejar: um cristianismo todo de paz, de equilíbrio e de amor.
Não haverá, porém, alguns perigos nessa doutrina? A confiança que o humanismo devoto deposita na razão humana não levará ao resultado exatamente oposto àquele que pretendia São Francisco de Sales, a uma certa ruptura entre a religião e a vida? É-se “devoto” — num sentido que se vai tornar bastante deplorável — quanto às práticas e aos dogmas, mas quanto ao resto… Não será excessiva a parte que ele concede à vontade do homem na obra da salvação? Não invadirá as atribuições de Deus? Apelar totalmente para a graça não será correr o risco de cair no quietismo? Bossuet, depois de ter elogiado o bispo de Annecy, desconfiará mais ou menos da sua influência, quando vir Fénelon e os seus discípulos apoiarem-se tanto nele. E depois, a sublime intimidade de São Francisco de Sales, quando tiver perdido o seu complemento indispensável, a sua firme simplicidade, não correrá o risco de cair na banalidade? Escrever-se-ão os mandamentos da lei de Deus em quadras, o Pai-Nosso em canções, e as “pequenas virtudes” não serão mais do que pequenas observâncias… Mas esses perigos, que uma crítica a posteriori pode discernir, não existem quando essa doutrina, esse humanismo devoto se exprime pela voz de um homem de bases tão sábias e tão firmes como é o autor da Introdução a vida devota. Ele sabe muito bem que carga representa levantar uma alma pecadora, para não cair na rotina, na facilidade, no quietismo! Sabe muito bem, como lhe ensinou o seu mestre Lourenço Scupoli, que a experiência cristã é um combate.
E, no que lhe diz respeito, ele próprio trava esse combate até ao último suspiro. No fim do outono de 1622, chamado a Lyon para tratar de um assunto, Francisco de Sales põe-se a caminho. Está doente; para dizer a verdade, está precocemente gasto por todos os trabalhos excessivos a que se entregou. Os seus íntimos, que já no verão anterior, durante uma viagem a Maurienne, julgavam tê-lo perdido, procuram fazê-lo desistir. Apesar de tudo, parte. Faz um alto em Belley, na casa do seu amigo, o bispo Camus, que será o seu primeiro biógrafo. Põe-se de novo a caminho e, fustigado pelo vento glacial das margens do Ródano, continua a sua rota para a metrópole das Gálias. Num dia de dezembro, uma autoridade importuna retém-no de pé, com a cabeça descoberta, a tremer de frio, no átrio da catedral. No dia seguinte, 28, sofre um derrame que o derruba. E, perante a morte, permanece o homem ponderado, calmo e firme que sempre foi. Enquanto tem forças, continua a dar conselhos, instruções para a Visitação, para a direção da sua diocese. A vida devota tem o seu remate na mais exemplar das mortes.
E, assim, nesse ano de 1622, que de tantos modos parece marcado por um sinal, desaparece o homem que, mais do que todos os outros, contribuiu para preparar a síntese do passado e do futuro. Uma época inteira termina nele, mas dele ai brotar também muito da época seguinte. Está verdadeiramente na charneira do tempo. Não passará meio século sem que a Igreja, pela voz de Alexandre VII, em 1665, o eleve aos altares; e em 1877 Pio IX proclamá-lo-á Doutor da Igreja. E haverá algum católico que, voltando a abrir o seu livro inesgotável, não se sinta amigo de quem nos ensinou não haver melhor templo da glória de Deus do que o coração do homem, e cuja firme sabedoria parece tão simples que quase nos decidimos a imitá-la?