Certos protestantes afirmam que a doutrina católica da transubstanciação seria uma deturpação da filosofia aristotélica feita por Santo Tomás, eis que Aristóteles dizia que os acidentes não podem subsistir sem a sua substância e vice-versa (aqui no que se refere aos acidentes próprios [chamados propriedade] e não aos acidentes impróprios, pois estes são passíveis de mudança).
Nesse sentido adoram citar o herege abortista Garry Wills, que sobre a matéria escreve:
“Embora Aristóteles tenha distinguido substância de acidente, ele não (não podia) os separou. Um cão não pode existir sem acidentes como tamanho. E não pode haver “um volume” ou “um branco” a subsistir sozinho sem uma substância. Tem de ser um volume ou um branco de alguma coisa. Um acidente “vem junto com” (symbainei) a coisa que é a sua essência. Tomás admitiu esta verdade natural: “Um acidente assume o que é da sua substância” (ST 3.77 a1r). Mas, para a Eucaristia, ele postulou uma ruptura milagrosa da ordem natural. Ele deu o passo radical de afirmar que uma substância pode existir sem os seus próprios acidentes, e os acidentes podem existir sem a sua própria substância, embora apenas por uma ação especial realizada por Deus cada vez que o sacerdote diz as palavras da consagração.” (“Why Priests,” p. 45).
Será, então, que Santo Tomás deformou o pensamento aristotélico, insistindo numa doutrina que é contrária a razão segundo Aristóteles? Seria a transubstanciação uma ruptura da ordem natural?
Antes de responder tais indagações é mister fazer uma precisão. Não foi Santo Tomás de Aquino o primeiro a utilizar o termo transubstanciação. Hildeberto de Lavardin (em 1.079) já havia utilizado, entre outros teólogos[1]. O Quarto Concílio de Latrão (Ecumênico, 1.215) também utilizou a expressão, como podemos ver:
“In qua (Ecclesia) idem ipse sacerdos et sacrificium J. C., cuius corpus et sanguis in Sacramento altaris sub speciebus panis et vini veraciter continentur, transubstantiatis pane in corpus et vino in sanguinem, potestate divina”.
Santo Tomás sempre teve ciência da visão aristotélica enunciada, e ele mesmo a pregou, como o próprio autor citado anteriormente confessa. Jamais Santo Tomás sustentou que a transubstanciação seria uma violação à ordem natural, como o autor sugere. É um milagre. O Milagre está fora e acima da ordem natural, mas jamais é contrário à razão.
Assim, deve-se dizer que Aristóteles está correto quando diz que os acidentes não podem subsistir sem sua substância, mas isso na ordem habitualmente seguida nos fenômenos da natureza criada. O milagre, por sua vez, acontece fora do curso normal de toda e qualquer lei que rege a atividade da criação. É um fenômeno produzido imediatamente por Deus, fora e acima das leis, como é a ressurreição de um morto e a transformação de água em vinho. Ninguém, no entanto, dirá que não exista uma lei que postula que a natureza não ressuscita mortos ou que não existam leis naturais que presidam a produção do vinho. Aristóteles desconhecia a noção de milagre.
Santo Afonso Maria de Ligório em sua obra História das Heresias já respondia magistralmente essa objeção levantada:
“32. Afirmam, além disso, que é repugnante argumentar que o corpo de Jesus Cristo existe sob as espécies, sem extensão ou quantidade, pois extensão e quantidade são qualidades essenciais dos corpos, e o próprio Deus não pode privar as coisas de suas essências, portanto, dizem eles, o corpo de Cristo não pode existir sem preencher um espaço correspondente à sua quantidade e, portanto, não pode estar em uma pequena Hóstia e em cada partícula da Hóstia, como acreditam os católicos. Nós a isto respondemos que, embora Deus não possa privar as coisas de sua essência, ainda assim ele pode privá-los da propriedade de sua essência; ele não pode tirar do fogo a essência do fogo, mas pode privar o fogo da qualidade essencial de queimar, como fez no caso de Daniel e seus companheiros, que ficaram ilesos na fornalha. Assim, da mesma forma, embora Deus não possa fazer um corpo existir sem extensão e quantidade, ainda assim ele pode fazê-lo, de modo que não ocupará espaço, e que ele será inteiro em todas as partes das espécies sensíveis que o contêm como uma substância; o corpo de Cristo, portanto, no qual a substância do pão é mudada, não ocupa lugar e é inteiro e completo em todas as partes da espécie. Aqui está como St. Thomas explica isso (1):
”Ad tertium dicendum quod, sicut dictum est, facta conversione panis in corpus Christi vel vini in sanguinem, accidentia utriusque remanent. Ex quo patet quod dimensiones panis vel vini non convertuntur in dimensiones corporis Christi, sed substantia in substantiam. Et sic substantia corporis Christi vel sanguinis est in hoc sacramento ex vi sacramenti, non autem dimensiones corporis vel sanguinis Christi. Unde patet quod corpus Christi est in hoc sacramento per modum substantiae, et non per modum quantitatis. Propria autem totalitas substantiae continetur indifferenter in parva vel magna quantitate, sicut tota natura aeris in magno vel parvo aere, et tota natura hominis in magno vel parvo homine. Unde et tota substantia corporis Christi et sanguinis continetur in hoc sacramento post consecrationem, sicut ante consecrationem continebatur ibi substantia panis et vini.”[2]
Sendo assim, não é o fato de que o corpo de Cristo na Eucaristia exista sem quantidade; a quantidade total está lá, mas de uma maneira sobrenatural, não natural. Não existe, portanto, circunscritivo, isto é, de acordo com a medida da quantidade adequada correspondente à quantidade de espaço; mas existe sacramentaliter – sacramentalmente, segundo a maneira de uma substância. Por isso é que Jesus Cristo, no Sacramento, não exerce nenhuma ação dependente dos sentidos; e embora ele exerça os atos do intelecto e da vontade, ele não exerce os atos corporais da vida sensível, que requerem uma certa extensão sensata e externa nos órgãos do corpo.
Nem é verdade que Jesus Cristo existe no Sacramento sem extensão. Seu corpo está lá e tem extensão; mas essa extensão não é externa, nem sensível e local, mas interna, in ordine ad se, embora todas as partes estejam no mesmo lugar, uma parte não se confunde com a outra. Assim, Jesus Cristo existe no Sacramento com extensão interna; mas quanto à extensão externa e local, ele é ampliado, indivisível e inteiro, e inteiro, em cada partícula da Hóstia, como uma substância, como já foi dito, sem ocupar espaço. Por conseguinte, o corpo de nosso Senhor não ocupa espaço, não pode ser movido de um lugar para outro, mas é movido apenas por acidentes, quando as espécies são movidas sob as quais estão contidas, assim como acontece conosco mesmos. que quando nossos corpos são movidos de um lugar para outro, nossas almas também são movidas, por acidente, embora a alma seja incapaz de ocupar qualquer espaço. Em suma, a Eucaristia é um sacramento de fé, misterium Fidei, e como não podemos compreender todas as questões de fé, não devemos fingir que entendemos tudo que a fé, através da Igreja, nos ensina sobre este Sacramento.
Mas como, dizem eles, os acidentes do pão e do vinho podem existir sem a sua substância ou matéria, como é chamado? Respondemos a questão de saber se os acidentes são distintos da matéria já foi debatida; a opinião mais geral é afirmativa; os Concílios de Latrão, Florença e Trento, entretanto, mantendo-se longe da controvérsia, chamam as espécies de acidentes. No curso normal das coisas, esses acidentes, ou espécies, não podem existir sem a matéria, mas podem de maneira sobrenatural e extraordinária. No curso normal das coisas, a humanidade não pode existir sem sua subsistência adequada (subsistentia); mas, não obstante, a fé nos ensina que a humanidade de Cristo não tinha subsistência humana, mas divina, isto é, a Pessoa da Palavra. Como a humanidade de Cristo, unida à Palavra hipostaticamente, subsiste sem a pessoa humana, assim, na Eucaristia, a espécie pode existir sem a matéria, isto é, sem a substância do pão, porque a sua substância é transformada em o corpo de Cristo. Estas espécies, portanto, nada têm da realidade, mas pelo poder Divino elas representam sua antigo matéria, e parecem ainda reter a substância do pão e do vinho, e podem até se corromper, e vermes podem ser gerados neles, mas, então, é de uma nova matéria, criada pelo Todo-Poderoso, que esses vermes surgem e que Jesus Cristo não está mais presente, como ensina São Tomás[3]. No que diz respeito às sensações de nossos órgãos, o corpo de Cristo na Eucaristia não é visto ou tocado por nós imediatamente em si mesmo, mas apenas por meio daquelas espécies sob as quais ele está contido, e é assim que devemos entender palavras de São João Crisóstomo (3): “Ecce eum vides, Ipsum tangis, Ipsum manducas.”[4]
Como se vê não há fundamento para afirmar que Santo Tomás estaria em contradição com a explicação aristotélica, muito menos para defender a tese de que a transubstanciação é contrária à razão. É verdade, porém, que Santo Tomás corrigiu e purificou Aristóteles em outros assuntos. Como bem observa o Padre Francisco Lemes Lopes:
“Mas o ARISTÓTELES em que o Doutor de Aquino se vai inspirar, é um ARISTÓTELES purificado de seus erros básicos – desconhecimento da Providência, teoria da existência do mundo ab aeterno, tendência para negar ou ignorar a imortalidade da alma em cada ser humano. Um ARISTÓTELES como que batizado”. (Introdução à Filosofia, AGIR, 1958, p. 90).
Uma outra objeção contra a transubstanciação, um tanto mais pueril, é que a substância na física e biologia modernas seria a combinação de átomos, portanto, não há conversão de substância na Consagração.
Resposta: É um absurdo o autor da objeção misturar o conceito de substância na metafísica geral com a que tratam os físicos ou biólogos. A substância na ontologia só é perceptível pela inteligência. Dom Estevão Bittencourt já havia tratado desse tema:
“A doutrina exposta não sofre contestação por parte da Física moderna.
Na verdade, a linguagem e a conceituação desta não interferem na linguagem e na conceituação da Filosofia e da Teologia. Ao falar de substância e matéria, por exemplo, o físico não tem em mira a mesma realidade que o filósofo e o teólogo. O físico descreve substância, matéria e, em geral, os corpos (a massa) de acordo com as reações dos mesmos ou os fenômenos que ele pode observar com os sentidos. O filósofo, ao contrário, entende por substância das coisas materiais uma entidade muito real, mas só perceptível pela inteligência. Os fenômenos, objeto único de que se ocupa o físico, são, para o filósofo, acidentes da substância; por conseguinte, as teorias da Física moderna, com as suas grandes inovações, se referem àquilo que em Filosofia se chama «acidentes», ao passo que a doutrina eucarística tem por objeto a substância, elemento de que as ciências naturais não tratam, porque não é objeto imediato de observação empírica”. (PERGUNTE E RESPONDEREMOS 009 – setembro 1958)
Outra objeção é que os sentidos e a pesquisa científica julgam os acidentes para a inteligência conhecer a substância, mas se a transubstanciação é verdadeira o intelecto humano seria enganado sobre a substância, uma vez que os acidentes do pão e vinho permanecem, e assim os céticos e os idealistas estariam corretos sobre a impossibilidade de conhecer algo. Inclusive isso impediria a certeza científica.
Resposta: Falso. O intelecto, que tem por objeto a substância, não é enganado, pois conhece pela fé que a substância é o corpo e sangue de Cristo. A fé não se opõe aos sentidos, mas visa a uma realidade que os sentidos não atingem. O milagre, como já dito, é um fenômeno que está fora da alçada das leis naturais. Padre Pedro Cerruti, referindo-se a esse ponto sobre os milagres de modo geral, explica “Por “leis naturais” entendemos aqui, não somente as leis físicas, químicas e biológicas que regem os fenômenos dos seres sensíveis e materiais, mas também as leis psicológicas que regem a atividade da inteligência na aquisição dos seus conhecimentos…” (A Caminho da Verdade Suprema, os preâmbulos da fé, tomo II, 1956, p. 664). Se um homem acatólico pela pesquisa científica dos acidentes chega a uma conclusão errônea sobre a substância isso é um erro de juízo por ignorar ou negar a existência do milagre, que está além das leis psicológicas que regem a atividade da inteligência na aquisição dos seus conhecimentos. Isso seria o mesmo que um cientista ao estudar o DNA (acidentes) de Jesus Cristo concluir erroneamente que se trata do DNA de uma pessoa humana (substância individual de natureza racional). Além disso, a certeza própria da ciência não é impedida, “pois o milagre constitui um fato excepcional, muito raro relativamente ao número dos fatos naturais. Donde, quando nas circunstâncias não aparecer um motivo positivo para suspeitar a intervenção divina, podemos ter certeza física de que Deus não intervirá: sei, por ex., com certeza física que, largando eu este lápis que estou sustentando, ele cairá sem dúvida alguma. Logo, o milagre não impede a certeza própria da ciência, nem a nossa segurança no prever e prover. Assim, nenhum médico deixa de abrir consultório ou de aplicar remédios convenientes, por causa das curas milagrosas verificadas em Lourdes, Fátima ou alhures; nem os homens deixam de cultivar videiras por causa do vinho milagroso de Caná, ou de semear trigo por causa das duas multiplicações dos pães…”. (Ibid., p. 681)
Por fim, outra objeção é que jamais um milagre pode ser não verificável.
Resposta: A palavra milagre pode ser tomada em sentido amplo, significando uma intervenção sobrenatural e extraordinária divina, acima da natureza, é nesse sentido que utilizamos nesse artigo ao chamar a transubstanciação de milagre. Se se quer utilizar a palavra milagre em sentido estrito não deveremos chamar a transubstanciação de milagre, pois não impressiona os sentidos corpóreos e está dentro do curso normal da Providência sobrenatural divina. Mas é falso afirmar que é impossível Deus fazer obras extraordinárias, acima da natureza, que não impressionem os sentidos corpóreos. Os teólogos sempre disseram que a santificação de São João Batista no ventre de sua mãe, a justificação do pecador, a Encarnação e o fato da humanidade de Cristo não ter subsistência humana foram obras extraordinárias ou milagrosas em sentido amplo, ou seja, além da eficiência das forças naturais. No entanto, não são verificáveis em si mesmas.
Além disso, São João Crisóstomo chama de milagre os mistérios eucarísticos: “Do mesmo modo este se turbam, dizendo: “como pode este dar-nos a comer sua carne?” (Jo 6,52). Então se perguntas o como, por que acerca dos pães não perguntavas, como multiplicou os cinco em tantos outros? Porque então somente atendiam a ficar fartos, não a ver o milagre (θαύμα). Mas então, dirás, ensinou-os a experiência. Logo pela aquela experiência deveriam dar crédito também ao de agora. Posto que por isso fez de antemão aquele milagre extraordinário, para que, instruídos com ele, não fossem incrédulos ao que depois lhes dissera. Mas eles, ao fim, não tiraram fruto das palavras; e nós, por outro lado, gozamos do benefício das obras. Em razão disso é necessário que nos informemos do milagre (θαύμα) dos mistérios, a saber, em que consistem, por que se deram e qual é sua utilidade. Um corpo nos fazemos, diz (o Apóstolo), e membros de sua carne e de seus ossos (Ef. 5,30). Sigam os iniciados este raciocínio” (Homilia 46)
[1] Pohle, J. (1909). The Real Presence of Christ in the Eucharist. In The Catholic Encyclopedia. New York: Robert Appleton Company. Retrieved June 17, 2019 from New Advent: http://www.newadvent.org/cathen/05573a.htm
[2] S. Tomás, Suma Teológica, p. III, q. 76, a. 1: Quanto ao terceiro, deve-se dizer que depois da conversão do pão no corpo de Cristo ou do vinho no sangue, os acidentes de ambos permanecem. Daí se segue evidentemente que as dimensões do pão e do vinho não se convertem nas dimensões do Corpo de Cristo, mas uma substância em outra substância. Assim, pela força do sacramento, está presente nele a substância do corpo de Cristo ou do sangue de Cristo. Por isso, é claro que o corpo de Cristo está neste sacramento segundo o modo da substância e não segundo o modo da quantidade. No entanto, a própria totalidade da substância está presente indiferentemente numa quantidade pequena ou grande; assim como toda a natureza do ar está numa quantidade grande ou pequena dele ou toda a natureza humana está num homem grande ou pequeno. Por isso, toda a substância do corpo de Cristo e do sangue está presente nesse sacramento depois da consagração, como antes dela estava aí a substância do pão e do vinho.
[3] S. Tomás, Suma Teológica, p III, q 76, a. 5, ad. 3: …, deve-se dizer que os acidentes do corpo de Cristo estão neste sacramento, como se disse, por concomitância real. Por isso, estão neste sacramento os acidentes do corpo de Cristo que lhe são intrínsecos. Ora, estar num lugar é um acidente em relação ao continente extrínseco. Portanto, o corpo de Cristo não está neste sacramento como num lugar.
[4] https://sensusfidelium.us/apologetics/history-of-heresies-their-refutation-st-alphonsus/the-philosophical-objections-of-the-sacramentarians-answered/
Nelson Sarmento.