INTRODUÇÃO
Conhecido como o “Grande Pai do Purgatório”, Agostinho de Hipona – junto com Gregório de Nissa – foi um dos primeiros padres da Igreja a tratarem extensamente esta doutrina em seus escritos. De forma peculiar, ele detalha diversos aspectos da doutrina que formam hoje a definição doutrinária da Igreja em relação ao purgatório. Neste presente texto, desejamos apresentar ao leitor, as definições de Agostinho, bem como sua fundamentação bíblica a respeito do purgatório.
Nossa análise será acompanha dos comentários do historiador francês Jacques LeGoff, retirados do seu livro “O Nascimento do Purgatório”. Legoff como ele mesmo declara, não é patrologista, nem teólogo, nem historiador eclesiástico, mas seus comentários serão úteis como “fonte imparcial” para a interpretação dos escritos de Santo Agostinho em relação ao purgatório. A exposição do texto será feita de forma cronológica, para mostrar todo o pensamento de Agostinho através dos anos.
A DEFINIÇÃO DE PURGATÓRIO NO CATECISMO DA IGREJA E NOS CONCÍLIOS ECUMÊNICOS
Antes de analisar o ensinamento de Agostinho, é necessário estudar a doutrina do Purgatório nos documentos da Igreja, para saber o que é “purgatório”, caso contrário, nada poderá ser compreendido. É necessário que o leitor leia com atenção o que os documentos da Igreja dizem, para quando lerem Agostinho, compararem os dois.
O Catecismo da Igreja Católica explica o Purgatório da seguinte maneira:
“1030. Os que morrem na graça e na amizade de Deus, mas não estão completamente purificados, embora tenham garantida sua salvação eterna, passam, após sua morte, por uma purificação, a fim de obter a santidade necessária para entrar na alegria do Céu.1031. A Igreja denomina Purgatório esta purificação final dos eleitos, que é completamente distinta do castigo dos condenados. A Igreja formulou a doutrina da fé relativa ao Purgatório sobretudo no Concílio de Florença e de Trento. Fazendo referência a certos textos da Escritura, a tradição da Igreja fala de um fogo purificador: ‘No que concerne a certas faltas leves, deve-se crer que existe antes do juízo [final] um fogo purificador, segundo o que afirma aquele que é a Verdade, dizendo, que, se alguém tiver pronunciado uma blasfêmia contra o Espírito Santo, não lhe será perdoada nem no presente século nem no século futuro (Mt 12,32). Desta afirmação podemos deduzir que certas faltas podem ser perdoadas no século presente, ao passo que outras, no século futuro’ (São Gregório Magno, Dial. 4,39)“. (Catecismo da Igreja Católica Parágrafos 1030 – 1031).
Aqui cabe ressaltar que a Igreja define o purgatório como “a purificação final”, não necessariamente “um lugar”. A menção do purgatório como um lugar na Igreja Católica vem de teólogos e muitos santos, o magistério da Igreja nunca definiu o purgatório como “um terceiro lugar” tal como céu ou inferno, veremos nos decretos dos concílios que o purgatório é tratado apenas como a “purificação final”, purgatório como lugar fica mais do campo das explorações teológicas.
Antes do Concílio Ecumênico de Florença dois outros Concílios Ecumênicos definiram dogmaticamente o doutrina do purgatório, foram eles os Concílios Ecumênicos de Lião I e II, em 1245 e 1274 respectivamente estabeleciam que:
“…Finalmente, afirmando a Verdade no Evangelho, que se alguém blasfemar contra o Espírito Santo não ser-lhe-á perdoada nem neste mundo nem no futuro [Mat. 12,32], o que dá a entender que algumas culpas são perdoadas no século presente e outras no futuro, bem como também disse o Apóstolo, que o fogo provará a obra de cada um; e aquele cuja obra arder sofrerá dano; ele, porém, se salvará, mas como quem passa pelo fogo [1Cor. 3,13.15]; e como os próprios gregos dizem que creem e afirmam verdadeira e indubitavelmente que as almas daqueles que morrem, recebida a penitência, porém sem cumpri-la; ou sem pecado mortal, mas apenas veniais e pequenos; são purificadas após a morte e podem ser auxiliadas pelos sufrágios da Igreja; visto que [os gregos] dizem que o lugar desta purificação não lhes foi indicado com nome certo e próprio por seus doutores, como nós que, de acordo com as tradições e autoridades dos Santos Padres, o chamamos ‘Purgatório’, queremos que daqui por diante também eles o chamem por este nome. Porque com aquele fogo transitório certamente são purificados os pecados, não os criminais ou capitais que antes não tenham sido perdoados pela penitência, mas os pequenos ou veniais, que pesam mesmo depois da morte, ainda que tenham sido perdoados em vida…“ (Concílio Ecumênico de Lião I, 13º Ecumênico).
“…Mas por causa dos diversos erros que alguns por ignorância e outros por malícia introduziram, devemos dizer e pregar que aqueles que depois do batismo caem no pecado não devem ser rebatizados, mas que obtêm pela verdadeira penitência o perdão dos pecados. E se verdadeiramente arrependidos morrerem em caridade antes de ter satisfeito com frutos dignos de penitência por seus atos e omissões, suas almas são purificadas após a morte com penas purgatórias ou catartérias, como nos explicou frei João; e para alívio dessas penas lhes aproveitam os sufrágios dos fiéis vivos a saber: os sacrifícios das missas, as orações e esmolas, e outros ofícios de piedade que, segundo as instituições da Igreja, alguns fiéis costumam a fazer em favor de outros. Mas aquelas almas que após terem recebido o santo batismo não incorreram em mancha alguma de pecado e também aquelas que após o contraírem se purificaram – quer enquanto permaneciam em seus corpos quer após deixá-los – como acima foi dito, são recebidas imediatamente no céu” (Concílio de Lião III, 14º Ecumênico).
Com efeito, o Concílio de Florença simplesmente reafirmava o que estes outros Concílios Ecumênicos já tinham definido alguns séculos antes:
“…Desta forma, se os verdadeiros penitentes deixarem este mundo antes de terem satisfeito com frutos dignos de penitência pela ação ou omissão, suas almas são purgadas com penas purificatórias após a morte; e para serem aliviadas destas penas, lhes aproveitam os sufrágios dos fiéis vivos, tais como o sacrifício da missa, orações e esmolas, e outros ofícios de piedade que os fiéis costumam praticar por outros fiéis, segundo as instituições da Igreja. E que as almas daqueles que após receberem o batismo não incorreram absolutamente em mancha alguma de pecado e também aquelas que, após contrair mancha de pecado, a purgaram, quer enquanto viviam em seus corpos quer após o deixarem, segundo o que foi dito acima, são imediatamente recebidas no céu…” (Concílio de Florença, 17º Ecumênico).
O mesmo reafirma o Concílio de Trento (de 1545 a 1563):
“Tendo a Igreja Católica, instruída pelo Espírito Santo, segundo a doutrina da Sagrada Escritura e da antiga tradição dos Padres, ensinado nos sagrados concílios e atualmente neste Geral de Trento, que existe Purgatório, e que as almas detidas nele recebem alivio com os sufrágios dos fiéis e em especial com o aceitável sacrifício da missa, ordena o Santo Concílio aos Bispos, que cuidem com máximo esmero que a santa doutrina do Purgatório, recebida dos santos Padres e sagrados concílios, seja ensinada e pregada em todas as partes, e que seja acreditada e conservada pelos fiéis cristãos. Excluam-se, todavia, dos sermões pregados em língua vulgar à plebe rude, as questões muito difíceis e sutis que a nada conduzem à edificação e com as quais raras vezes se aumenta a piedade. Também não se permita que sejam divulgadas e tratadas as coisas incertas, ou que tenham vislumbres ou indícios de falsidade. Ficam proibidas, por serem consideradas escandalosas e que servem de tropeço aos fiéis, as que tocam em certa curiosidade ou superstição, ou tem resíduos de interesse ou de sórdida ganância. Os bispos deverão cuidar para que os sufrágios dos fiéis, a saber, os sacrifícios das missas, as orações, as esmolas e outras obras de piedade que costumam fazer pelos defuntos, sejam executados piedosa e devotadamente segundo o estabelecido pela Igreja, e que seja satisfeita com esmero e exatidão, tudo quanto deve ser feito pelos defuntos, segundo exijam as fundações dos entendidos ou outras razões, não superficialmente, mas sim por sacerdotes e ministros da Igreja e outros que têm esta obrigação” (Concílio de Trento, 19º Ecumênico – Sessão 25: Decreto sobre o Purgatório).
Além de tudo, muito antes destas definições conciliares, a doutrina do Purgatório era ensinada por Agostinho e por toda a Igreja, como bem demonstram as evidências de suas obras que serão vistas a seguir.
O ENSINAMENTO DE AGOSTINHO
Começaremos nossa exposição a partir do ano 388.
388 D.C
No Comentário ao Génesis contra os Maniqueistas, de 388, ele distingue o fogo da expurgação do da condenação eterna:
“Quem cultiva este reino interior da alma e a si mesmo, mas com trabalho, seu pão, pode suportar esse trabalho até o fim da vida; mais depois desta vida não lhe verá na precisão do sofrimento. Em vez disso, aqueles que não cultivam o campo e permitem que os espinhos sufoquem-no, nesta vida terá a maldição da terra em todas as suas obras, e depois desta vida ou o fogo da purificação ou punição eterna; portanto, ninguém escapa esta frase; portanto, ele tem que agir para que, pelo menos, se mantenha em pé nesta vida.” (Comentário ao Génesis contra os Maniqueistas – Livro II, 30)
Do Latim:
“Qui enim coluerit agrum istum interius, et ad panem suum quamvis cum labore pervenerit, potest usque ad finem vitae huius hunc laborem pati: post hanc autem vitam non est necesse ut patiatur. Sed qui forte agrum non coluerit, et spinis eum opprimi permiserit, habet in hac vita maledictionem terrae suae in omnibus operibus suis, et post hanc vitam habebit, vel ignem purgationis vel poenam aeternam. Ita nemo evadit istam sententiam: sed agendum est ut saltem in hac tantum vita sentiatur.”
397 D.C
Em sua famosa autobiografia chamada de “Confissões” que foi escrita após a morte de sua mãe Mónica, ele faz uma grande exposição de como suas orações ajudarão sua mãe entrar no Paraíso mais rápido:
Sem dúvida, uma vez vivificada em Cristo, mesmo antes de ser liberta dos laços da carne, ela viveu de maneira a fazer louvar o teu nome na sua fé e na sua conduta; e no entanto, não ouso dizer que a partir do momento em que a regeneraste pelo baptismo nenhuma palavra contrária aos teus preceitos saiu da sua boca. Foi dito pela Verdade, pelo teu filho: «Se alguém disser ao seu irmão” Louco”, esse será passível da geena do fogo.»
[….] Pois por mim, oh meu louvado e minha vida, oh Deus do meu coração, deixando por um instante de lado as suas boas acções, pelas quais te rendo graças em alegria, agora é pelos pecados de minha mãe que te imploro. Atende-me, por aquele que, suspenso do madeiro, foi o remédio para as nossas feridas e que, sentado à tua direita, intercede por nós! Eu sei que ela praticou a misericórdia e que de todo o coração perdoou as dívidas aos seus devedores. Perdoa-lhe tu também as suas dívidas, que ela própria contraiu durante tantos anos depois da ablução da salvação! Perdoa, Senhor, perdoa-lhas, suplico-te! Não a julgues! Que a misericórdia passe por cima da justiça, pois as tuas palavras são verdadeiras e tu prometeste misericórdia aos misericordiosos! Se eles o foram é a ti que o deveram, a ti que terás piedade de quem quiseres ter piedade, que concederás misericórdia a quem quiseres conceder misericórdia. Mas, creio, já terás feito o que te peço. No entanto, estes votos espontâneos que vêm da minha boca, aceita-os, Senhor! E é verdade que, ao aproximar-se o dia da sua libertação, ela não teve nenhuma ideia de envolver sumptuosamente o seu corpo ou de o mandar embalsamar com aromas, nem o desejo de um monumento especial, nem a preocupação de um túmulo na sua terra. Não, não foi isso que ela nos recomendou, mas apenas que invocássemos a sua memória no teu altar; foi este o seu desejo. Pois, sem falhar um só dia, ela serviu esse altar, sabendo que nele se dita a sorte da vítima santa que afastou a sentença a que fomos condenados e triunfou do inimigo, aquele que avalia os nossos pecados ao procurar com que nos inculpar, mas nada encontra n’Aquele em quem somos vencedores. Quem lhe resgatará o seu sangue inocente? Do preço por que ele nos comprou, quem o reembolsará para nos arrancar a ele? A esse mistério do preço da nossa compra, a tua serva ligou a sua alma pelo laço da fé. Que ninguém a arranque à tua protecção! […]
Que ela esteja, pois, em paz juntamente com o seu marido: antes dele ninguém e depois dele ninguém a teve como esposa; ela serviu-o oferecendo- te o fruto da sua paciência, para o levar para ti, a ele também! E depois inspira, meu Senhor, meu Deus, inspira os teus servos meus irmãos, os teus filhos meus pais, a cujo serviço ponho o meu coração, a minha voz e os meus escritos, todos de entre eles que lerem estas linhas, inspira-os para que no teu altar se recordem de Mônica, tua serva, e de Patricio que foi seu esposo, aqueles por cuja carne tu me puseste nesta vida, sem que eu saiba como. Que, num sentimento de piedade, se recordem deles, meus pais nesta luz passageira, meus irmãos em ti, nosso Pai e na Igreja católica nossa Mãe, meus concidadãos na Jerusalém eterna pela qual suspira o teu povo em peregrinação, desde o ponto de partida ao ponto de chegada! Assim, o voto supremo que ela me dirigiu será mais abundantemente cumprido pelas preces de muitos, graças a estas com fissões, do que somente pelas minhas preces.” (Confissões, IX, XIII, 34-37)
O texto é claro em afirmar que as orações dos vivos ajudam a alma dos mortos a entrarem no céu, logo só é possível isso ser coerente com um local ou estado intermediário, antes da entrada no céu. Sobre este texto, assim comenta Jacques LeGoff:
“Este texto admirável não é uma exposição doutrinal, mas é possível extrair dele alguns dados importantes para a eficácia dos sufrágios pelos mortos.
A decisão de colocar ou não Mónica no Paraíso, na Jerusalém eterna, só pertence a Deus. Apesar de tudo, Agostinho está convencido de que as suas preces podem comover Deus e influenciar a sua decisão. Mas o julgamento de Deus não será arbitrário, e a sua prece não será absurda nem absolutamente temerária. É porque Mónica, apesar dos seus pecados – pois todo o ser humano é pecador – mereceu em vida a salvação, que a misericórdia de Deus poderá exercer-se e a prece do seu filho ser eficaz. Sem que seja dito, o que se pressente é que a misericórdia de Deus e os sufrágios dos vivos podem apressar a entrada dos mortos no Paraíso e não fazê-los transpor as suas portas, se foram grandes pecadores cá em baixo.” (Jacques LeGoff – O Nascimento do Purgatório. Pg 88)
Uns anos mais tarde (entre 400 – 414 d.C), no seu comentário do Salmo XXXVII, Agostinho pede a Deus por si próprio, que o corrija nesta vida para que não tenha de suportar, depois da morte, o fogo corretivo (ignis emendatorius”:
“Senhor, não me interpeles na tua indignação. Não me encontres entre aqueles a quem haverás de dizer: ‘ide para o fogo eterno que está preparado para o diabo e seus anjos’. Nem me corrijas em teu furor, mas purifica-me nesta vida e torna-me tal que já não necessite do fogo corretor, atendendo aos que hão de salvar-se, ainda que, não obstante, como que através do fogo. Por que acontece isto se não é porque edificam aqui sobre o cimento, lenha, palha e feno? Se tivesse edificado sobre o ouro, a prata e as pedras preciosas, estariam livres de ambas as classes de fogo, não apenas daquele eterno, que atormentará os ímpios para sempre, mas também daquele que corrigirá aos que hão de salvar-se através do fogo” (Comentário ao Salmo 37,3)
Perceba se aqui a diferença entre as penas temporárias dadas com fogo para os que vão se salvar, mas que ainda tem alguma mancha de pecado, e as penas eternas pelo fogo dadas aos ímpios. Logo, para Agostinho, o fogo corretor irá corrigir os salvos que necessitam de alguma purificação, isto é claramente o purgatório. Mais adiante veremos esse ensinamento de Agostinho se repetindo.
Na continuação deste mesmo parágrafo ao Salmo XXXVII, avança com uma afirmação que confirma ainda mais seu firme posicionamento a respeito do purgatório:
“Se bem que alguns sejam salvos pelo fogo, esse fogo será mais terrível do que tudo o que um homem pode suportar nesta vida!’.”
Do Latim
«Ira plane quamuis salui per ignem, gravior tamen erit iIIe ignis, quam quidquid potest homo pati in hac vita» (Enarratio in Ps. XXXVII, 3).
APÓS 413 D.C
As afirmações de Santo Agostinho são tão claras e óbvias que alguns protestantes, não tendo o que falar ou retirar de suas obras para fazer livre exame, resolveram apelar para a desonestidade intelectual. Resolveram recortar e montar trechos da obra de Jacques LeGoff, que aqui utilizamos, para defenderem que Santo Agostinho “mudou de opinião”, ou que deixou o purgatório de lado após 413, como que o purgatório para ele era apenas uma “especulação”. A citação que utilizam é a seguinte:
Essa citação que é montada a partir de duas frases em contextos e páginas diferentes da obra de LeGoff surgiu de um site em inglês, alguns protestantes brasileiros traduziram e agora usam como “trunfo” para dizer que Santo Agostinho mudou de opinião supostamente ancorados na afirmativa de Jacques LeGoff. Já não fosse hilário usarem um livro que nunca leram, ainda usam uma citação que não fazem a mínima ideia se está correta. Vamos ver a citação em seu real contexto, a primeira parte é retirada da página 85:
“No seu excelente estudo sobre a Evolução da doutrina do Purgatório em Santo Agostinho (Évoiution de Ia doctrine du Purgatoire chez saint Augustin), de 1966, Joseph Ntedika recenseou o conjunto dos numerosos textos agostinianos que constituem o processo do problema. Destacou, a maioria das vezes com acerto, o lugar de Agostinho na pré-história do Purgatório, e mostrou o facto fundamental: a posição de Agostinho não só evoluiu, o que é normal, mas também se modificou consideravelmente a partir de determinado momento que Ntedika situa em 413 e a que ele atribui a causa da luta contra os laxistas do além, os «misericordiosos » (misericordes), luta a que Agostinho se entrega apaixonadamente a partir dessa data. Contentar-me-ei com citar, situar e comentar os principais textos agostinianos respeitantes ao Purgatório. Fá-lo-ei numa dupla perspectiva: o conjunto do pensamento e da ação agostinianos e a génese do Purgatório a longo prazo.”
O que LeGoff quis dizer com “a posição de Agostinho não só evoluiu, o que é normal, mas também se modificou”, nem de longe foi que ele “deixou de crer no purgatório”, como diz o site em inglês, e paroleiam protestantes brasileiros, e sim que ele passou a ser mais rígido em relação as penas dos maus e dos meio bons, contra os laxistas ou “misericordiosos” que pregavam que até mesmo os homicidas poderiam ser purificados no purgatório, e contra isso Santo Agostinho rebate que só poderão ser purificados aqueles que em vida tiveram fé, fizeram o bem e acumularam boas obras que foram úteis para, após sua morte, se ainda rest6ar alguma mancha, serem purificados.
LeGoff volta a falar sobre isso e explica esses parágrafos nas páginas 90 e 91:
“Depois de 413: duras penas purgatórias entre a morte e o Julgamento para aqueles que não são inteiramente bons.
A partir de 413 as convicções de Agostinho sobre a sorte dos mortos e em particular sobre a possibilidade de redenção depois da morte tornam-se mais precisas e evoluem para posições restritivas. A maioria dos especialistas do pensamento agostiniano, e especialmente Joseph Ntedika, viu a justo título neste endurecimento uma reação às ideias dos laxistas «misericordiosos» que Agostinho considerava muito perigosos, e nele se viu também a influência das concepções milenaristas que teriam movido Agostinho por intermédio dos cristãos espanhóis. Creio que também aí se deve ver o reflexo do grande acontecimento do ano de 410: a tomada de Roma por Alarico e os Ostrogodos que parece marcar o fim não só do Império Romano e da invulnerabilidade de Roma, mas também anunciar o fim do mundo para certos cristãos, enquanto grande parte da aristocracia romana culta e ainda pagã acusava os cristãos de terem minado a força de Roma e de serem responsáveis por uma catástrofe sentida como, se não o fim do mundo, pelo menos o fim da ordem e da civilização. Foi para responder a esta situação, a estas conjecturas e a estas acusações que Agostinho escreveu a Cidade de Deus.
[parágrafo explicando sobre os “misericordiosos” omitido para abreviar…]
Reagindo, Agostinho vai afirmar que existem mesmo dois fogos, um fogo eterno destinado aos condenados para os quais qualquer sufrágio é inútil, e no qual insiste com veemência; e um fogo purgatório em reação ao qual tem mais hesitações. O que interessa pois a Agostinho, se assim se pode dizer, não é o futuro Purgatório mas sim o Inferno.” (Jacques Le Goff – O Nascimento do Purgatório Pg. 90-91)
Esta parte refuta qualquer alegação protestante. Fica claro que quem faz uso da citação montada, nunca leu a obra de Jacques LeGoff. Será que sujeitos que fazem uso de tais artifícios têm alguma credibilidade para falar sobre o pensamento de Santo Agostinho em um tema tão complexo?
Sobre a última parte retirada da página 93 e seu contexto é o seguinte:
“A oposição de Agostinho aos «misericordiosos» e a evolução do seu pensamento sobre a sorte dos mortos surgem no seu tratado Sobre a fé e as obras (De fide et operibus) de 413, mas exprimem-se sobretudo no seu Manual, o Enchiridion, em 421, e no livro XXI da Cidade de Deus, em 426-427.
Entretanto fizera certas precisões a pedido de amigos. Na Carta a Dardanus, em 417, esboçava uma geografia do além na qual não havia lugar para o Purgatório. Voltando à história do pobre Lázaro e do rico mau distinguia, com efeito, uma região de tormentos e uma região de repouso mas não as situava às duas nos Infernos, como alguns, porque a Escritura diz que Jesus desceu aos Infernos mas não que visitou o seio de Abraão. Este não é senão o paraíso, nome genérico que não designa o Paraíso terrestre onde Deus colocara Adão antes do pecado‘”.” (Jacques Le Goff – O Nascimento do Purgatório Pg. 93)
Não há qualquer registro aqui que desabone o purgatório no pensamento de Agostinho. Jacques LeGoff explica apenas que ao descrever o além, Santo Agostinho esboçava uma geografia do além no qual não havia um purgatório como “lugar”, e isso é simples. Muitos autores e teólogos da antiguidade e até mesmo da atualidade, não veem o purgatório como um “lugar” ou têm incertezas sobre isso. Como mostramos no início do texto, nem os concílios, nem mesmo catecismo da Igreja definiram o purgatório como um “lugar”, o catecismo no parágrafo 1031 diz somente:
“A Igreja denomina Purgatório esta purificação final dos eleitos, que é completamente distinta do castigo dos condenados”.
Portanto, a Igreja denomina como purgatório a purificação final, não necessariamente “um lugar”, logo, se em sua geografia do além Agostinho não menciona o purgatório, segue o mesmo sentido dos concílios e do catecismo, sendo assim em nada esta afirmação de LeGoff vai contra a doutrina católica, nem mesmo é sinal de Santo Agostinho ter desacreditado no purgatório. É bom lembrar também que ele também fala de várias dificuldades levantadas pela existência de um “fogo expurgatório” depois da morte, se seria, literal, fictício ou espiritual, nisso ele diz é uma «questão obscura» (obscura quaestio). Outro ponto é que Agostinho na carta a Dardano estava apenas falando de céu e inferno, ou seja, condenação e salvação, a purificação final dos eleitos não era o objetivo da sua explanação neste momento, a purificação foi objeto de explicação nas obras posteriores que veremos a seguir.
Vale deixar registrado que muitos teólogos da Igreja e até santos veem sim o purgatório como um lugar, mas isso são conjecturas e esboços teológicos do além, muito explorados principalmente na baixa idade média, porém não existe nada definitivo nas decisões do Magistério da Igreja Católica.
Vamos analisar agora as obras apontadas por Jacques LeGoff nesta mesma citação, e demonstraremos tanto no pensamento de Agostinho, quanto na obra do próprio LeGoff que a única mudança que houve, foi para afirmações ainda mais claras sobre o purgatório após 413.
421 d.C ENCHIRIDIUM
Na sua Obra Enchiridium palavra grega para “Manual”, reafirma categoricamente a existência do fogo purificador para os eleitos que morreram com alguma mancha de pecado:
Aqui Agostinho é ainda mais claro na sua exposição sobre a purgação das manchas dos fiéis após sua morte.
Alguns tentam usar estas palavras de Agostinho “Que algo semelhante aconteça igualmente depois desta vida, não é impossível. Será de facto assim? É lícito investigá-lo, seja ou não para o descobrir. “ para dizer que ele estava “especulando” sobre o purgatório e que não tinha em si uma doutrina. Esse argumento de desespero, além de refutado em todas as obras de Agostinho já demonstradas anteriormente, é também refutado pelo fato que Agostinho não está duvidando da purgação após a morte, mas sim sobre como seria este fogo, por esta razão ele diz “certo fogo” do qual não tem certezas ou definição, e não sobre purgação post mortem que está recheada em suas obras. Muito estranha esta “especulação” ser defendida em inúmeras obras e lugares das obras de Agostinho, este ponto é tratado extensamente para ser mera especulação.
Assim comenta Jacques LeGoff:
“Na passagem precedente, Agostinho sublinhara que, para se ser salvo pelo fogo, era preciso ter reunido, na vida terrena, a fé e as obras. Aqui (Enchiridton, 69-70) é ainda mais conciso. Não se deve apenas ter dado esmolas, é preciso «mudar a vida para melhor» (in melius quippe est vila mutanda) e, em especial, é preciso entregar-se a uma penitência conveniente e dar satisfação, isto é, cumprir uma penitência canónica. Neste caso a remissão poderá ser conseguida após esta vida (post hanc vitam) graças a «um certo fogo purgatório» (per ignem quemdam purgatorium ) sobre o qual Agostinho parece não ter certezas, mas que é diferente do fogo eterno, do fogo do Inferno. Retomará a distinção entre os dois fogos, aquele que atormenta eternamente e aquele que expurga e salva, no capítulo XVI do livro XXI da Cidade de Deus. A penitência, em todo o caso, pode ser tão eficaz que, com excepção dos crimes infames, possa até resgatar os pecados que, sem serem infames (infanda), são no entanto designados como «crimes» (crimina). O fogo expurgatório é destinado quer aos fiéis não submetidos à penitência canónica quer àqueles que lhe são submetidos mas não a concluíram. Em compensação aqueles que, estando sujeitos à penitência, não lhe foram submetidos, não pode ser purificados pelo fogo.” (Jacques Le Goff – O Nascimento do Purgatório Pg 95)
Nos capítulos seguintes Agostinho continua o que protestantes chamam de “especulação”:
“No intervalo entre a morte do homem e a ressurreição suprema, as almas são retidas em depósitos secretos onde conhecem ou o repouso ou a pena de que são dignas, segundo a sorte que talharam para si enquanto viviam na carne.
Não se pode, porém, negar que as almas dos defuntos sejam aliviadas pelas preces dos seus próximos ainda vivos, quando por elas é oferecido o sacrifício do Mediador ou na Igreja são distribuídas esmolas. Mas estas obras servem apenas para aqueles que, enquanto viviam, mereceram que elas pudessem servir-lhes mais tarde.
Com efeito, existem homens cuja vida não é sufícientemente boa para não terem necessidade desses sufrágios póstumos, nem suficientemente má para que eles não possam ajudá-los. Ao contrário, há-os que viveram suficientemente bem para os dispensar e outros suficientemente mal para não poderem tirar deles proveito depois da morte. Pelo que é sempre aqui em baixo que se adquirem os méritos que podem assegurar a cada um, depois desta vida, alívio ou infortúnio. Aquilo que foi desprezado neste mundo, que ninguém espere obter de Deus após a morte.
Assim, as práticas observadas pela Igreja tendo em vista recomendar a Deus as almas dos defuntos não são contrárias à doutrina do Apóstolo, que dizia: «Todos nós compareceremos perante o tribunal do Cristo» (Romanos, XIV, 10), para lá recebermos, «cada um segundo o que fez durante a vida, seja para o bem, seja para o mal» (11Coríntios, V, 10). Pois é durante a sua vida terrena que cada um se torna merecedor do beneficio eventual das preces em questão. Nem todos tiram dele vantagem; e porque será que o proveito que dele advém não é o mesmo para todos, se não por causa da vida diferente que tiveram cá em baixo?
Os sacrifícios do altar ou da esmola que são oferecidos em intenção de todos os defuntos baptizados, para aqueles que foram inteiramente bons, são acções de graças; para aqueles que não foram inteiramente maus, são meios de propiciação; para aqueles cuja maldade foi total, por não terem aliviado os mortos, servem para consolar, mesmo assim, os vivos. O que eles asseguram àqueles que deles aproveitam é ou a amnistia completa ou, pelo menos, uma forma mais suportável de condenação aos Infernos.” (Enchiridium 109-110)
Onde estariam os fiéis defuntos, que toda a Igreja oferecia sacrifício e esmolas? Para que oferecerem esmolas e sacrifícios por quem já morreu se isso não implicasse em uma purificação ou limpeza após a morte?
Seu livro do cuidado devido aos mortos feito em resposta aos questionamentos de São Paulino de Nola, dispensam quaisquer comentários:
“De fato, a sentença do Apóstolo exorta-nos que é antes da morte que podemos fazer o que seja útil para depois dela e não depois que ela ocorre, quando recolhemos os frutos que praticamos durante a vida.
A questão então é resolvida da seguinte maneira: enquanto vivemos neste corpo mortal, há uma certa forma de viver que permite, após a morte, obter certo alívio através das obras pias feitas em seu sufrágio. Porém, tal ajuda será proporcional ao bem que cada um de nós fizemos durante a vida.” (Do Cuidado devido aos Mortos 1, 2)
“Lemos nos livros dos Macabeus que foi oferecido um sacrifício pelos falecidos. E apesar de não podermos ler isto em nenhum outro lugar do Antigo Testamento, não é pequena a autoridade da Igreja universal que reflete este costume, quando nas orações que o sacerdote oferece ao Senhor, nosso Deus, sobre o altar encontra seu momento especial na comemoração dos falecidos” (Do Cuidado devido aos Mortos 1,3)
“Já que o sepultamento é, por si mesmo, uma obra religiosa, a escolha do local não poderia ser estranha ao ato religioso. É consolo para os vivos, uma forma de testemunhar sua ternura para com os familiares desaparecidos. Não enxergo, porém, como os mortos podem encontrar aí alguma ajuda, a não ser quando o lugar onde descansam é visitado e são encomendados, pela oração [dos visitantes], à proteção dos santos junto ao Senhor. Contudo, isso pode ser feito ainda quando não é possível sepultá-los em tais lugares santos…” (Do Cuidado devido aos Mortos 4, 2)
“Não se pode duvidar de que essas súplicas, feitas pelos fiéis em nome dos seus caros defuntos, são úteis a estes caso apenas tenham merecido – durante a vida – beneficiar-se após a morte. Ainda que se suponha que alguma circunstância impediu o sepultamento ou que não foi dada a autorização para sepultar num desses locais sagrados, não será por isso que deveremos negligenciar as orações pelos falecidos.
A Igreja tomou para si o encargo de orar por todos aqueles que morreram dentro da comunhão cristã e católica. Ainda que não conheça todos os nomes [de seus fiéis defuntos], ela os inclui numa comemoração geral. Dessa forma, aqueles que não possuem mais pais, filhos ou outros parentes e amigos para auxiliá-los, são amparados pelo sufrágio dessa piedosa Mãe comum.
Julgo, porém, que caso esses sufrágios pelos mortos sejam feitos sem verdadeira fé e piedade, de nada valeria ao espírito deles que seus corpos sem vida se encontrassem sepultados nos lugares mais santos.” (Do Cuidado devido aos Mortos 4, 4)
422 D.C DAS 8 QUESTÕES DE DULCÍCIO
Em 422 em sua obra chamada “De VIII Dulcitii quaestionibus”, isto é “Das 8 Questões de Dulcício” continua a fazer largo ensinamento do purgatório. Dulcício foi um oficial romano do século V que em 420 foi enviado para a África para suprimir a heresia donatista. Neste ano, Agostinho respondeu uma carta de Dulcício a respeito do tratamento dos heréticos e em 422, escreveu um tratado em resposta a suas oito perguntas.
A segunda pergunta de Dulcício é pertinaz a nosso texto, ela foi:
“Será que a oferta feita pelos defuntos se aproveita algo a seu favor? É evidente que somos aliviados ou punidos de acordo com nossas obras; e, certamente, lemos que ninguém pode louvar ao Senhor no inferno. Ao que muitos respondem que, se após a morte pode haver algum lugar em alívio, a alma, confessando os seus pecados, procuraria um refrigério muito maior do que aquele que buscam os demais com os sufrágios”
Agostinho responde a essa pergunta, mostrando sua resposta a Paulino de Nola (Do Cuidado Devido Aos Mortos) e a Lorenzo (Enchiridium) sobre o mesmo assunto. O fim da sua resposta a Lorenzo, resume a questão:
“Não se pode negar que as almas dos falecidos são aliviadas pela piedade dos parentes vivos, quando oferecem por elas o sacrifício do Mediador ou quando praticam esmolas na Igreja. Porém, estas coisas aproveitam aquelas [almas] que, quando viviam, mereceram que se lhes pudessem aproveitar depois. Pois há um certo modo de viver, nem tão bom que aproveite destas coisas depois da morte, nem tão mal que não lhes aproveitem; há tal grau no bem que o que possui não aproveita de menos; ao contrário, há tal [grau] no mal que não pode ser ajudado por elas quando passar desta vida. Portanto, aqui o homem adquire todo o mérito com que pode ser aliviado ou oprimido após a morte. Ninguém espere merecer diante de Deus, quando tiver falecido, o que durante a vida desprezou.
Estas coisas, frequentemente praticadas na Igreja para ajudar os seus mortos, não se opõem a aquela sentença apostólica que disse: “Porque todos devemos comparecer ante o tribunal de Cristo, para que cada um receba o pagamento devido, ao bom aos pelo bem que fez ou ao mau pelas más ações, enquanto estavam na carne”. […] Assim, os sacrifícios, e os Sacrifícios do altar, e as esmolas de qualquer espécie, que são oferecias para todos os mortos, para os muito bons, são ações de graças;[…]”. (Das Oito Questões de Dulcício – II, 1-4)
426 – 427 d.C A CIDADE DE DEUS
O livro cidade de Deus é mais um dos livros que deixam claro o pensamento de Agostinho a respeito do destino dos fiéis com algum resquício de pecado, e a eficácia da oração dos fiéis vivos em seu favor. Maiores comentários são desnecessários:
“Quanto a nós, confessamos que, mesmo nesta vida mortal, há penas purgatórias; não são atormentados por elas aqueles cuja vida não melhora ou até se torna pior, mas são purgatórias para aqueles que, castigados por elas, se corrigem. Todas as outras penas, quer temporárias quer eternas, conforme a maneira como cada um deve ser tratado pela divina Providência, são aplicadas pelos pecados quer passados quer atuais, nos quais ainda vive aquele que é por elas atingido, seja para exercer ou pôr em evidência as virtudes, e isto por intermédio ou dos homens ou dos anjos bons e maus. Pois se alguém sofre qualquer mal por maldade ou em de outrem, este homem peca, na verdade, pois faz mal a outro por ignorância ou por injustiça; mas Deus, esse, não peca quando permite isso por um julgamento justo, mesmo que seja secreto. Mas uns sofrem as penas temporárias apenas nesta vida, outros depois da morte, outro tanto durante como depois desta vida: de qualquer modo, antes desse julgamento muito severo e o último de todos. Mas não caem nas penas eternas que virão depois desse julgamento aqueles que suportaram as penas depois da morte. Pois para uns aquilo que não é remido neste século será remido o século futuro, quer dizer evitar-lhes-á serem punidos pelo suplício eterno desse século futuro: já o dissemos atrás.” (A Cidade de Deus 21,13).
No capítulo XVI repete:
“A maior parte [das pessoas], uma vez conhecida a obrigação da lei, se veem vencidas primeiramente pelos vícios que chegam a dominá-las; tornam-se, assim, transgressoras da lei. Logo buscam refúgio e auxílio na graça, com a qual recuperarão a vitória, mediante uma amarga penitência e uma luta mais vigorosa, submetendo primeiro o espírito a Deus e obtendo depois o domínio sobre a carne. Quem quiser, pois, evitar as penas eternas não deve apenas se batizar; deve ainda se santificar seguindo a Cristo. Assim é como quem passa do diabo para Cristo. Quanto às penas expiatórias, não pense ninguém em sua existência se não será antes do último e terrível juízo”. (A Cidade de Deus 21, 16)
No capítulo XXIV Agostinho volta à eficácia das orações pelos mortos, mas para precisar com mais clareza os seus limites.
“A razão pela qual não se rezará pelos homens votados ao fogo eterno é a mesma razão pela qual, nem agora nem nunca, não se reza pelos maus anjos, e é ainda pela mesma razão que a partir de agora não se reza já pelos infiéis e ímpios defuntos, ainda que se reze pelos homens. Pois, a favor de certos defuntos, a prece da própria Igreja e de alguns homens piedosos é atendida, mas por aqueles que estão regenerados em Cristo, e cuja vida no seu corpo não foi tão má que sejam julgados indignos de tal misericórdia, nem tão boa que se suponha que uma tal misericórdia não lhes será necessário”: também depois da ressurreição dos mortos haverá aqueles a quem, após as penas que sofrerão as almas dos mortos, será concedida essa misericórdia que lhes evitará serem lançados no fogo eterno. Com efeito, a respeito de alguns não se poderá dizer com verdade que não lhes é perdoado nem no século presente nem no século futuro, pois existem aqueles a quem o perdão, se não Ihes é concedido neste século sê-lo-á no século futuro. Mas quando o juiz dos vivos e dos mortos disser: Vinde, os abençoados por meu Pai, possuí o reino que está preparado para vós desde a criação do mundo, e aos outros pelo contrário: [de para longe de mim, malditos, para o fogo eterno que foi preparado pelo diabo e pelos seus anjos e eles tiverem ido, estes para o suplício eterno, mas os justos para a vida eterna'”, é presunção excessiva dizer que o suplício eterno não terá lugar para algum daqueles a quem Deus declara que irão para o suplício eterno e, graças à convicção de uma tal conjuntura, fazer com que se desespere mesmo desta vida ou que se duvide da vida eterna.” (Cidade de Deus– XXI, 24)
Assim comenta Jacques LeGoff:
“Enfim, em 426-427 na Cidade de Deus (XXI, 24), Agostinho volta à eficácia das orações pelos mortos, mas para precisar com mais clareza os seus limites. Os sufrágios são inúteis pelos demónios, pelos infiéis e os impios, portanto pelos condenados ao inferno. Só podem ser válidos para uma certa categoria de pecadores não nitidamente definida mas em todo o caso caracterizada de maneira especial: aqueles cuja vida não foi muito boa nem muito má.” (Jaques LeGoff – O Nascimento do Purgatório pg. 89)
No Capítulo seguinte Agostinho volta a afirmar o purgatório:
“Após a morte deste corpo, até que chegue o dia que se seguirá à ressurreição dos corpos e que será o dia supremo da condenação e da remuneração, se se afirma que, neste intervalo de tempo, as almas dos defuntos suportam esta espécie de fogo, não o sentem aqueles que nos seus corpos não tiveram durante a vida costumes e amores tais que o seu feno, a sua madeira e a sua palha sejam consumidos; mas os outros sentem-no, aqueles que trouxeram consigo construções de materiais semelhantes; encontram o fogo de uma atribulação passageira que queimará completamente essas construções que vêm do século, seja apenas aqui, seja aqui e lá em baixo, ou mesmo lá em baixo e não aqui e que não são, aliás, passíveis de condenação aos Infernos; pois bem, não repilo esta opinião, pois talvez seja verdadeira. De facto, dessas atribulações pode fazer parte a própria morte da carne, que foi concebida pela perpetração do primeiro pecado; de tal modo que o tempo que se segue à morte é sentido por cada um segundo a sua própria construção. Também as perseguições que coroam todos os mártires e as que sofrem todos os cristãos põem à prova os dois géneros de construções, como o fogo; consomem umas juntamente com os construtores, se não encontram nelas o Cristo como alicerce; outras sem os construtores se o encontram, pois são salvos mas não sem dor; mas não consomem outras porque vêem que elas podem subsistir para sempre. Haverá também no fim do século, na época do Anticristo, uma atribulação tal que nunca houve outra igual antes. Como serão então numerosas as construções quer de ouro quer de feno edificadas sobre o mais sólido alicerce que é Jesus Cristo; umas e outras, esse fogo pô-las-à à prova, a umas dará alegria, a outras prejuízo; não destruirá, no entanto, nem uns nem outros daqueles em que encontrar essas construções, em virtude do estável alicerce. Mas quem quer que coloque antes do Cristo, já nem digo a esposa com quem estabelece a união recíproca da carne por causa da volúpia carnal, mas os outros laços de afeição habituais entre os homens, mas estranhos àquelas volúpias, amando-os de uma maneira carnal; esse não tem o Cristo como alicerce; por consequência, não será salvo pelo fogo; não será mesmo salvo simplesmente, porque não poderá estar com o Salvador que diz muito claramente ao falar nisso: Aquele que ama o seu pai ou sua mãe mais do que a mim, não é digno de mim; e aquele que ama o seu filho ou sua filha de preferência a mim, não é digno de mim. Mas aquele que ama os seus próximos de uma maneira carnal mas sem no entanto os colocar antes de Cristo Senhor, de modo a preferir ser privado deles a ser privado do Cristo, se a provação o levar a esse extremo, esse será salvo pelo fogo, pois é necessário que, pela perda dos seus próximos, a dor o queime em proporção com a força do seu amor. Além disto, aquele que amar o pai, a mãe, o filho ou a filha segundo Cristo, de tal modo que se ocupa deles para os fazer atingir o seu reino e ficar unidos a Ele, ou que amar neles o facto de serem membros do Cristo: queira Deus que esse amor não seja de molde a ser classificado entre as tais construções de madeira, de feno e de palha, para ser queimado! então será reconhecido como uma construção de ouro, de prata e de pedras preciosas. Como pode ele amar mais do que o Cristo aqueles que ama, de facto, em intenção do Cristo?” (Cidade de Deus – XXI, 26)
Tal qual é entendido clara e objetivamente as palavras de Agostinho, assim também Jacques LeGoff Comenta:
“Agostinho retoma, finalmente, no fim do capítulo XXVI, a exegese do mesmo texto de S. Paulo e presta dois esclarecimentos. Primeiro, a confirmação nítida de que o fogo purgatório se exercerá entre a morte corporal e a ressurreição dos corpos «nesse intervalo de tempo» (hoc temporis intervallo). Depois uma definição das atitudes humanas que levam ou à condenação aos Infernos ou ao beneficio do fogo purgatório. O critério é a natureza do alicerce sobre o qual o homem construiu a sua vida. O único alicerce salutar é o Cristo. Se se preferir para alicerces as volúpias carnais em vez do Cristo, corre-se para a condenação aos Infernos. Se, pelo contrário, se sacrificou de mais a essas volúpias mas sem as colocar no lugar do Cristo, como alicerce, ser-se-á salvo «por essa espécie de fogo».” (Jacques LeGoff – O Nascimento Do Purgatório Pg 99)
CONCLUSÃO
Em todas as citações vistas aqui são claras as palavras de Santo Agostinho: poenae purgatoriae: as penas purgatórias (Cidade de Deus, XXI, XIII e XVI), tormenta purgatória: tormentos purgatórios (Cidade de Deus, XXI, 16), ignis purgatorius: fogo purgatório (Enchiridion. 69). Poenae temporariae: penas temporárias, opostas às poenae sempiternae, penas eternas (Cidade de Deus, XXI, 13). Poenae temporales , penas temporárias Cidade de Deus (XXI, XXIV) ignis purgationis: o fogo da purgação (De Genesi contra Manicheos, II, XX, 30) e ignis emendatorius: fogo corrector (Enarrationes in Psamos XXXVII, 3). Na passagem da Cidade de Deus, XXI, 13, onde se encontra por três vezes em doze linhas a expressão poenae purgatoriae, Agostinho emprega também como sinónimo a expressão poenae expiatoriae, penas expurgatórias.
PARA CITAR
RODRIGUES, Rafael. Santo Agostinho e o Purgatório. Disponível em: <http://apologistascatolicos.com/index.php/patristica/estudos-patristicos/874-santo-agostinho-e-o-purgatorio>. Desde 29/04/2016.
Gostei bastante, parabéns! Mas você irá lançar um estudo definitivo com respostas as objeções e etc?
Olá, iniciamos algumas respostas a objeções, porém por falta de tempo, ainda não foram finalizadas,ainda não temos data para concluir.