Sexta-feira, Novembro 15, 2024

Refutando o suposto cânon da divisão da Bíblia hebraica.

Alegação protestante:

Cristo declara o cânone hebraico da palavra de Deus.

Lucas 24,44-45 E disse-lhes: São estas as palavras que vos disse estando ainda convosco: Que convinha que se cumprisse tudo o que de mim estava escrito na lei de Moisés, e nos profetas e nos Salmos. Então abriu-lhes o entendimento para compreenderem as Escrituras.

Aqui, no versículo acima, Jesus divide a palavra de Deus escrita em três categorias. O hebraico bíblico, conhecido pelo acrônimo Tanakh, tem esta três divisões: em primeiro lugar a Torá, os primeiros cinco livros de Moisés. Segundo a Nevi’im ou profetas, terceiro da Ketuvim ou Escritos. Cristo estava expondo o testemunho das Escrituras sobre Si, a partir de um termo da Bíblia para o outro. Desde o princípio, passando por Moisés, ao lado dos profetas, e, em seguida, sobre a última divisão que começou com Salmos; Cristo explica a partir do hebraico bíblico, o Tanakh, que ele era o Messias.

Resposta:

Apreciemos melhor os fatos. Veremos que Jesus não divide a Palavra de Deus em três, mas apenas em duas categorias…

1º) Cerca de 300 das 350 citações ao Antigo Testamento feitas pelo Novo Testamento, são retiradas da Septuaginta. Isto é fato, ponto pacífico entre católicos, ortodoxos e grande parte dos protestantes não-fundamentalistas!

Entretanto, convém observar que não são apenas os 4 Evangelistas que citam a Septuaginta (ainda quando esta discorda do texto hebraico); eles também apontam categoricamente o próprio Jesus citando-a diretamente, inclusive nos Evangelhos de Mateus e João (estes dois Evangelistas, ressalte-se, são palestinos e testemunhas oculares dos eventos); eis alguns casos: Mateus 13,10-15; 15,1-9; 21,14-17; Marcos 4,10-12; 7,5-7; Lucas 4,16-21; Lucas 8,9-10; João 12,36b-41.

Mas como se divide a Septuaginta?

Não há uma resposta exata para isso; academicamente, há quem a divida em duas (legislação+história e poetas+profetas), em três (legislação+história=Lei, poetas e profetas) e em quatro categorias (legislação, história, poetas e profetas).

A divisão em duas categorias, estritamente técnica, é bastante respeitável por ter sido proposta por ninguém menos que Alfred Ralphs, um dos maiores e mais respeitados especialistas na Septuaginta.

Já divisão em quatro categorias é deduzida da forma como o teor de cada livro pode ser classificado, e segue mais ou menos a ordem como se encontram esses livros nos códices mais antigos. Nesta forma de classificação, teríamos então:

a) Lei: Gênesis – Êxodo – Levítico – Números – Deuteronômio

b) História: Josué – Juízes – Rute – 1Reis=1Samuel – 2Reis=2Samuel – 3Reis=1Reis – 4Reis=2Reis – 1Paralipômenos=1Crônicas – 2Paralipômenos=2Crônicas – Esdras+Neemias – Ester (com adições em grego) – Judite – Tobias – 1Macabeus – 2Macabeus

c) Poetas: Salmos – Jó – Provérbios de Salomão – Eclesiastes – Cântico dos Cânticos – Sabedoria de Salomão – Eclesiástico=Sabedoria de Sirac

d) Profetas: Isaías – Jeremias – Baruc – Lamentações – Epístola de Jeremias=Baruc 6 – Ezequiel – Daniel (com adições em grego) – Oséias – Amós – Miquéias – Joel – Abdias – Jonas – Naum – Habacuc – Sofonias – Ageu – Zacarias – Malaquias.

Praticamente todas as Bíblias que conhecemos seguem esta 3ª classificação (incluindo as Bíblias Protestantes, que tão somente omitem os livros deuterocanônicos e alteram a ordem de apenas um ou outro livro).

Há ainda uma quarta forma de classificação, tida por “mista”: consiste em manter a tripla classificação tradicional “lei – profetas – escritos” e a ordem dos livros segundo a Bíblia hebraica, introduzindo-se os deuterocanônicos, conforme seu teor, entre os Escritos ou entre os Profetas e os Escritos.

Esta quarta forma de classificação também seria possível porque a tríplice divisão não era desconhecida dos judeus de Alexandria! Ora, é justamente o Prefácio do Eclesiástico que testemunha claramente, pela 1ª vez na História, a tríplice divisão das Escrituras dos judeus palestinos, pois já era observada pelo avô hebraico (que, aliás, possui o mesmo prenome do Salvador!) e tal dado já era de conhecimento do seu neto, que traduziu a obra para o grego:

Meu avô Jesus, depois de dedicar-se intensamente à leitura da Lei, dos Profetas e dos outros livros [=parte dos Escritos] dos antepassados (Eclesiático, Prefácio,7-10).

Tal fato é reconhecido também pelo autor protestante Edgar J. Goodspeed, em sua obra “Como nos veio a Bíblia?”:

A mais antiga referência a esta ampliação das Escrituras judaicas pela adição de um terceiro corpo de livros está no prefácio à Sabedoria de Sirac [=Eclesiástico]. Josué ou Jesus, filho de Sirac foi um sábio judeu que compôs sua Sabedoria lá pelo fim do terceiro século antes de Cristo, ou no começo do segundo. Ele escreveu em hebraico, mas cincoenta anos depois seu neto, no Egito, traduziu seu livro em grego, prefixando a este poucas linhas de explicação. Neste prefácio, ele fala da Lei, das Profecias e do resto dos livros, como já traduzidos para o grego, como que para ilustrar a dificuldade para traduzir o hebraico para aquela língua.

Assim a terceira parte do Velho Testamento já estava tomando forma e sendo acrescentada à Lei e aos Profetas no segundo século antes de Cristo; de fato ela estava sendo já traduzida para o grego, para o uso dos judeus no Egito que conheciam melhor o grego que o hebraico, e também para fins missionários.

Esta terceira porção das Escrituras judaicas não havia ainda sido finalmente fixada e incluída no cânon até cerca do fim do primeiro século depois de Cristo, quando no Sínodo Judaico de Jâmnia, cerca de 90 A.D., algumas dificuldades que ainda haviam a seu respeito foram eliminadas” (grifos nossos).

Por isso, não é de se estranhar que embora a tríplice divisão “lei – profetas – escritos” fosse de conhecimento dos judeus palestinenses e dos judeus alexandrinos, a ordem exata dos livros que compunha estas duas últimas categorias nunca tenha sido estabelecida como “dogma” a ser seguido. É o que atesta, por exemplo, a “TEB-Tradução Ecumênica da Bíblia” (1ª ed,, 1994, p.4), que contou com a colaboração de judeus, católicos, ortodoxos e protestantes:

As edições da Bíblia hebraica agrupam os livros sob três títulos: a ‘Lei’, os ‘Profetas’, os ‘Escritos’. Esse uso é anterior à era cristã (cf. Sirácida [Eclesiástico] Prólogo) e é bastante estável; algumas listas e manuscritos apresentam divergências no modo de agrupar os livros no interior da seção ‘Profetas’ (p.ex. Isaías pode vir depois de Jeremias e Ezequiel), ou da seção ‘Escritos’” (grifo nosso).

Logo, ao contrário do que diz o artigo, não é Jesus quem divide a palavra de Deus escrita em três categorias. Na melhor das hipóteses Ele estaria usando a tripla divisão tradicional, conhecida de ambos os judeus, palestinos e alexandrinos!

2º) Mas estaria mesmo Jesus empregando a tripla divisão?

Ora, quando Jesus não utiliza os termos “Escritura” (ex.: Marcos 12,10; João 7,38), “Escrituras” (ex.: Mateus 22,29; Lucas 24,27), qual outra expressão utiliza?

Não penseis que vim abolir a lei e os profetas. Não vim para abolir, mas para cumprir” (Mateus 5,17).

Tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles. Esta é a lei e os profetas” (Mateus 7,12).

Porque todos os profetas e a lei profetizaram até João” (Mateus 11,13).

Nesses dois mandamentos se resumem toda a lei e os profetas” (Mateus 22,40)

A lei e os profetas duraram até João. Desde então é anunciado o Reino de Deus, e cada um faz violência para aí entrar” (São Lucas 16,16).

Isso mesmo: a expressão “a lei e os profetas”! Exatamente aquela mesma expressão cunhada pelo livro… deuterocanônico de 2 Macabeus (um dos últimos a ser escrito), única ocorrência em todo o Antigo Testamento:

Encorajou-os citando a lei e os profetas, lembrou-lhes os combates outrora sustentados e inflamou-os desse modo com um novo ardor” (2Macabeus 15,9).

3º) Por outro lado, a passagem de Lucas 24,44-45, lê-se assim, literalmente, no “Novo Testamento Interlinear Grego-Português”, da Sociedade Bíblica do Brasil (dispostas as palavras ordenadamente):

E disse-lhes: ‘Estas minhas palavras vos falei ainda estando convosco: que é preciso que todas as coisas escritas na lei de Moisés e nos profetas E salmos acerca de mim sejam cumpridas’. Então abriu a mente deles para entenderem as Escrituras

Repare-se a ausência de preposição/artigo entre “Profetas” e “Salmos”, ao contrário do que ocorre antes de “lei” e antes de “profetas”, em que a preposição/artigo aparecem. Com efeito, “Salmos” aqui:

a) OU está ligado a “Profetas” por uma simples cláusula aditiva “e” (“kai”, em grego), de modo que ambos se encontram em um mesmo conjunto (o que seria plenamente compatível caso se adotasse a divisão em 2 categorias, proposta por Ralphs).

b) OU confere certa autonomia ao livro dos Salmos (apontado nominalmente) que, embora de fato pertença ao grupo dos  “Escritos”, não é efetivamente a este grupo e muito menos quanto a quais livros o compõem (e sua respectiva ordem interna) a que Jesus se refere! Jesus o cita simplesmente por causa da especial importância que o livro dos Salmos tem para os judeus (incluindo Jesus e os Apóstolos), como demonstram estas outras ocorrências explícitas (e únicas nos Evangelhos):

Depois do canto dos Salmos, dirigiram-se eles para o monte das Oliveiras” (Mateus 26,30).

Terminado o canto dos Salmos, saíram para o monte das Oliveiras (Marcos 14,26).

Pois o próprio Davi, no livro dos Salmos, diz: Disse o Senhor a meu Senhor: Senta-te à minha direita

Isto apenas para não apontar os casos em que Jesus citou implicitamente (ex. Mateus 23,39 = Salmo 118,26) ou certamente fez uso prático dos Salmos (p.ex.: muito provavelmente durante a Última Ceia, cantou o Hillel – Salmos 113 a 118 – como qualquer bom judeu).

Mas por que então Jesus Ressuscitado, em Lucas 24,44-45, faria questão de recordar aos discípulos o livro dos Salmos especificamente? Ora, basta ler Lucas 20,41-44, quatro capítulos, em que faz referência explícita aos Salmos (citando-o também nominalmente), questionando os escribas diante de seus discípulos:

Lucas 20, 41. Jesus perguntou-lhes: Como se pode dizer que Cristo é filho de Davi? 42. Pois o próprio Davi, no livro dos Salmos, diz: Disse o Senhor a meu Senhor: Senta-te à minha direita, 43. até que eu ponha os teus inimigos por escabelo dos teus pés (Sl 109,1). 44. Portanto, Davi o chama de Senhor! Como, pois, é ele seu filho?

Com isto, o Senhor Ressuscitado apresenta aos discípulos a prova final de que Ele é de fato o Cristo, o Filho de Davi, o Supremo Rei a quem foi dada toda a autoridade no céu e na terra (Mateus 28,18), com todas as demais consequências que isto significa para os judeus, para eles mesmos, para a Igreja e para o mundo, que a partir de então deve ser conquistado segundo a Nova Aliança (Mateus 28,19-20; Marcos 16,19-20; Lucas 24,46-51).

Repare-se, por derradeiro, na íntima relação que existe entre essas duas passagens (Lucas 20,41-44 <-> Lucas 24,44-45), que só encontramos em Lucas, não se registrando nem mesmo paralelos implícitos! Eis aí o “link” bilateral e único que ao mesmo tempo confere autonomia e isolamento à expressão anterior do Senhor “a lei e os profetas”, em Lucas 24,44!

4º) Continuando: Para quais Escrituras Cristo abriu a mente dos Apóstolos?

Isto é mais que óbvio e independe da adoção do cânon curto (palestinense) ou do cânon longo (alexandrino):  Para todas, evidentemente, inclusive as obras deuterocanônicas, pois fazem parte integrante da Bíblia adotada pelos Apóstolos e seus sucessores (=Septuaginta), indiscutivelmente, histórica e cientificamente falando!

E já vimos que até sociedades bíblicas e autores protestantes admitem que a Septuaginta era o Antigo Testamento oficial da Igreja Apostólica e Primitiva.

Logo, não precisamos perder muito tempo com este ponto.

5º) Recorde-se, mais uma vez, que ainda que Jesus adotasse em Lucas 24,44 a “divisão tripartida” tradicional dos judeus palestinenses (o que é bem diferente de adotar exatamente os mesmos livros definidos em Jâmnia, cerca de 1 século depois, e ainda na mesmíssima ordem em que se encontram na Bíblia hebraica desde então), isto de maneira nenhuma excluiria os deuterocanônicos, porque estes – como parte integrante da Bíblia adotada pelos Apóstolos -, poderiam ser fácil e naturalmente classificados dentro do grupo dos Escritos e Proféticos (tal como os protocanônicos), e talvez numa disposição que preservasse a ordem de primeiro e último livros dentro de cada divisão (logo, seria possível abrigar facilmente os 46 livros dentro da divisão tradicional), pois, como já vimos, os livros que compunham estas duas categorias ainda suscitavam fortes discussões entre os judeus em plena Era Cristã, quando a Antiga Aliança já tinha sido superada pela Nova!

Principalmente, também, porque os diversos livros do Antigo Testamento não estavam unidos em um volume único, como temos hoje na nossa Bíblia (e que só foi possível pela criação dos “códices”); na verdade, cada livro era um ***rolo distinto***, guardados juntos tendo em vista sua sacralidade. Quanto a isto, esclarece a “TEB-Tradução Ecumênica da Bíblia” (1ª ed., 1994, p. 4):

Antes da aparição da forma codex (=páginas encadernadas em sequência como nos livros atuais), os livros eram rolos; sendo necessários uns vinte rolos para escrever todo o Antigo Testamento. Os bibliotecários os ordenavam em cofres, para protegê-los e classificá-los. O caráter eminentemente sagrado do Pentateuco vetava guardar outra coisa no cofre que lhe era reservado, mas quanto à disposição dos outros rolos, não havia nenhuma ordem rigorosa.” (grifos nossos).

A propósito, convém ressaltar que, quanto a um “cânon certo e indiscutível”, a única certeza consensual entre os diversos grupos judaicos (saduceus, fariseus, essênios, samaritanos, alexandrinos etc), é que os Cinco Livros de Moisés (Pentateuco: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) formavam a “Lei” em sentido estrito e que aqui nenhum outro livro deveria ser acrescentado, ainda que anteriormente se falasse de “Heptateuco” (=7 livros), que  acrescentava à Lei também os livros de Josué e Juízes!

É por isso que vemos Jesus discutir com os saduceus usando apenas argumentos tirados da Lei pois, para estes, o que estivesse fora do Pentateuco (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) não era de fato Escritura Sagrada! Por que Jesus não aproveitou a oportunidade para um debate ou esclarecimento “mais aprofundado”, já que adotava um cânon “certo e mais longo” que o dos saduceus??

6º) Que Jesus não criou uma categorização própria já o livro do Eclesiástico (escrito originariamente por um judeu-palestinense) demonstra com cerca de dois séculos de antecedência, como vimos.

E poderiam ser acrescentados livros (=rolos) ao cânon do Antigo Testamento depois destes “antepassados” lidos pelo avô do tradutor? Certamente que sim, pois o cânon ainda não estava definitivamente encerrado e o livro protocanônico de Daniel é um bom exemplo disso: sua redação final, tal como se encontra em nossas Bíblias, é do período macabaico (entre 167 e 164 a.C.).

Ademais, os critérios adotados pelo Sínodo de Jâmnia, no séc. I d.C. (nunca custa lembrar este detalhe!) eram claramente nacionalistas (os livros deveriam ser redigidos e conservados em hebraico ou originados na Palestina).

Ora, se havia, com toda a certeza, judeus fiéis a Deus fora da Palestina, porque só os residentes neste último território seriam privilegiados por Ele? Os judeus residentes em Alexandria, cumpridores da fé judaica, não fariam também parte do Povo Santo, do Povo Eleito? Por que Deus se calaria, em claro prejuízo para estes?

Por outro lado, se a língua hebraica era imprescindível, porque o livro de Daniel possui significante parte (2,4 a 7,28) redigida em aramaico? E ainda no de Esdras (4,8 a 6,18) e de Jeremias (10,11)? E se se aceita esta outra língua, por que não aceitar também o grego? E se – como alguns irmãos separados fazem questão de argumentar – o problema era a língua grega em si (por não ser nem o hebraico nem o aramaico do Antigo Testamento, violando assim a clara determinação de Jâmnia) por que essa a mesma língua grega não teria contaminado 100% do Novo Testamento (salvo o original aramaico de Mateus, que se perdeu)?

Constata-se, assim, quão insólitos e frágeis são os argumentos do artigo ora refutado.

FONTE


NABETO, Carlos. Refutando o suposto cânon da divisão da Bíblia hebraica.  Disponível em: <http://www.catolicoporque.com.br/index.php/colaboradores/carlos-martins-nabeto/respostas-a-leitores-cmn/1280-canon-qual-o-canon-do-antigo-testamento-considerado-pelo-novo-testamento>. Acesso em: 18/08/2012

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