Sexta-feira, Maio 3, 2024

Reflexões sobre a Quaresma


A QUARESMA

A palavra quaresma com que designamos os dias entre a Quarta-feira de Cinzas e a Páscoa não diz nada do que a Igreja quer com esse tempo. Originariamente era o tempo da administração do batismo, quer dizer, o tempo de tornar-se cristão, o que não se acreditava ser possível realizar num breve momento, mas apenas por um caminho de transformação, de “conversão” que o homem deve percorrer passo por passo. Se mais tarde nesse caminho foram incluídos os penitentes e finalmente toda a Igreja, então se exprime a convicção de que esse caminho não se pode percorrer de uma vez até o fim; ele abrange toda a nossa vida, deve ser percorrido sempre de novo. Assim, a quaresma quer conservar presente na nossa lembrança e na nossa vida que o ser cristão sempre se pode realizar apenas como novo tornar-se cristão, que nunca é um processo terminado que fique atrás de nós, mas exige sempre um novo exercício.

Perguntemos portanto: Que significa tornar-se cristão? Como se processa?

NÃO É SOZINHOS QUE NOS TORNAMOS CRISTÃOS

Em primeiro lugar, parece-me importante que a Igreja não conceba o processo de nos tornarmos cristãos como o resultado de um acontecimento doutrinal ou pedagógico, mas como sacramento. Isso quer dizer que não nos tornamos cristãos só por nosso próprio esforço. Não podemos fazer-nos cristãos a nós mesmos. Não é tarefa e capacidade do homem elevar-se como que a homem superior e, finalmente, a cristão. Pelo contrário, apenas se começa a ser cristão quando se abandona a ilusão da autarquia e da autossuficiência; quando se reconhece que o homem não se pode criar nem produzir-se a si mesmo, mas deve abrir-se, deixar-se conduzir até chegar a ser ele mesmo.

Ser cristão, portanto, significa em primeiro lugar que reconhecemos a nossa insuficiência, que deixamos que ele, o Deus que é outro, disponha de nós. Louis Evely observou com muita razão que o pecado de Adão não constituiu propriamente em querer ser semelhante a Deus – pois esta era a vocação do homem, dada por seu criador. O seu erro consistiu antes no caminho falso pelo qual procurava a semelhança com Deus e na ideia mesquinha que Dele fazia; no pensamento de que seria como Deus existisse só por próprio poder, se se desse a vida a si mesmo, de modo autônomo e sem precisar de ninguém. Na realidade, tal vontade de uma divindade imaginada leva à autodestruição, pois também Deus, como o mostra a fé cristã, não é o autossuficiente fechado em si, mas aquele que no diálogo do amor é infinitamente necessitado e receptor; Ele é plenamente divino apenas na medida em que se dá e se entrega. O homem se torna semelhante a Deus somente unindo-se a esse movimento, desistindo de querer criar-se a si mesmo, deixando-se criar por Deus, pois sempre ainda é verdade que o homem não é criatura do homem mesmo; só Deus pode criá-lo, de modo que seja homem para si mesmo.

Isso talvez pareça muito antiquado. Contudo, creio que precisamente no nosso tempo poderíamos descobrir de modo inteiramente novo esta verdade e perceber quanto vale também em relação à humanidade toda o que aqui foi dito apenas do indivíduo. Esta humanidade que hoje se afirma a si mesma como o maior conjunto da realidade total, que se quer criar a si mesma como a humanidade integral, não querendo mais confiar em outro auxílio senão naquele que ela se dá a si mesma, precisamente assim se destrói na sua humanidade. Precisamente anunciando a humanidade total e pura, ela dissolve a humanidade do homem, como o estamos experimentando de todos os modos. Também a humanidade como um todo não é autárquica, mas orientada para além de si.

Não é por nós mesmos que nos tornamos cristãos nem homens; não é pela própria realização. Por mais estranho que nos possa parecer, hoje estamos necessitados de nos abrir com fé à ação de Deus.

Mas o fato de que não nos tornamos cristãos por nós mesmos também significa que  só podemos sê-lo na comunidade dos que creem conosco, dando e recebendo da comunidade de fé e de oração. Não há dúvida de que, como acabamos de ouvir no Evangelho, faz parte do cristianismo também o “quartinho silencioso”, o isolamento no qual se põe perante Deus quem luta e crê por sua pessoa. Mas o cristianismo não é só isso. Ele também exige a comunidade. Deus vem aos homens só por meio de homens. Também no âmbito espiritual, é verdade que nós homens só podemos subsistir uns pelos outros e uns para os outros. Parece-me que neste ponto deveríamos finalmente chegar a superar a ilusão moderna de que a religião é o mais íntimo, sobre o qual devemos decidir só nós mesmos e que não pode entrar na esfera da publicidade. Com essa fuga da fé para uma espiritualidade irreal, tornamos irreal em primeiro lugar essa mesma fé, tirando também à comunidade humana o que ela tem de mais precioso. Origina-se de um lado o indivíduo só por si e do outro o mero coletivo. Onde o homem reserva só para si o que ele tem de mais profundo, não se forma uma comunidade na qual o indivíduo continua sendo ele mesmo e ao mesmo tempo se dá o encontro com aquilo que é verdadeiramente humano nos outros homens. E, contudo, o homem precisa de tal comunidade para poder ser ele mesmo. Assim surge daqui para nós a tarefa de tornarmos público também o nosso mais íntimo, levando-o como força transformadora para o mundo ao redor de nós. Depende de nós não deixarmos o mundo ser ateu, mas mediar-lhe Deus pela nossa fé.

TEMPO DE JEJUM

Ao lado dessa incumbência do caráter público da fé, continua certamente existindo sem diminuição aquela da sua interioridade. Aqui, finalmente, chegamos àquela tarefa que é indicada pela palavra alemã para a quaresma: Fastenzeit, tempo de jejum. Para que alguém se torne cristão, também é necessária a força da renúncia, o opor-se à força natural do deixar-se levar. Faz pouco, alguém definiu a vida no sentido mais geral como “trabalho contra a gravidade”. Só onde há trabalho contra a gravidade haveria vida e onde ele acaba também a vida estaria apagada. Se isto é verdade no âmbito biológico, muito mais o é no âmbito espiritual. O homem  é o ente que não se torna ele mesmo por seu próprio ser. Não se constitui deixando-se levar simplesmente, entregando-se à gravidade natural do seu mero ir vivendo, mas vem a constituir-se sempre apenas no esforço contra a gravidade do mero andar vivendo, na força da disciplina que sabe libertar-se das imposições de cada dia, que se eleva acima da coação dos fins e dos instintos. O nosso mundo está de tal modo atravancado de coisas superficiais e de primeiro plano que sempre estamos em perigo de só vermos ainda as partes e não mais o todo. É preciso vencer a si mesmo, para ver ainda as partes e não mais o todo. É preciso vencer a si mesmo, para ver mais fundo e tornar-se livre da ditadura das coisas só de primeiro plano.

No prefácio da quaresma, a Igreja usa a expressão estranha: Jejunio mentem elevas – “pelo jejum elevais os vossos sentimentos”. Quando todos tínhamos de guardar o jejum, sentíamos esta palavra quase como uma ironia. Sentíamos como o jejum impedia o espírito de ser livre para si mesmo. Mas se hoje nos lembramos disso, comparando-nos na nossa saciedade com a fome de então, vemos como essa palavra é verdadeira. Damo-nos conta de que naquele tempo, sob muitos aspectos, víamos melhor do que hoje. Notamos que o homem inteiramente saciado, que não sente mais fome nenhuma se torna cego e surdo. Acaba só vendo ainda a si mesmo. Se uma vez nos conscientizamos disso, talvez também comecemos a entender de modo novo as imagens da Sagrada Escritura que foram incluídas na liturgia do batismo: a imagem do homem que é cego perante Deus; do homem que é surdo-mudo, não podendo perceber nem a si nem o mundo. Verificamos que precisamos daquela realidade que está indicada pela palavra “jejuar”.

É verdade que hoje há jejum de muitas modalidades: por motivos de medicina, estética e outros. Isso é bom. Entretanto, tal jejum não basta para o homem, pois seu fim continua sendo o próprio eu. Não liberta o homem de si próprio, mas novamente existe só para ele memo. Ora, precisamos de um jejum, uma renúncia que nos liberte de nós mesmos, nos liberte para Deus, tornando-nos livres para os outros. O apelo que o tempo da quaresma nos dirige é sem dúvida incômodo. Mas quem de algum modo atende à situação do homem de hoje – à sua própria situação – também sabe quanto esse apelo nos é necessário para um jejum real não ordenado para nós mesmos.

O fato de que o jejum cristão tem de ser um sair libertador do próprio eu incluiu sempre a exigência de que o tempo do jejum também fosse um tempo de fecundidade em boas ações. “Boas ações” – se hoje ouvimos estas palavras, facilmente, conforme o nosso temperamento, nos virá um sorriso ou um franzir da testa. Mas também aqui não deveríamos simplificar demais as coisas. Deveríamos olhar para os povos famintos ao redor de nós, em todo o mundo; talvez então o sorriso morreria depressa nos nossos lábios, pois então nos daríamos conta de que não podemos encontrar um Deus misericordioso, estando fartos, enquanto os outros ao redor de nós sofrem fome.

A IGREJA EM PEREGRINAÇÃO PELO DESERTO

Permitam que como conclusão ainda acrescente a estas reflexões que partem do batismo um outro modo de ver. Na sua linguagem litúrgica, a Igreja chama o tempo em que entramos na Quarta-feira de Cinzas Quadragesima, tempo de quarenta dias. Assim por meio da interpretação tipológica da Escritura, a liturgia nos quer enquadrar num contexto espiritual. Israel peregrinou quarenta anos pelo deserto; Elias caminhou quarenta dias até o monte de Deus, Horeb; Jesus jejuou quarenta dias no deserto. Nestes números quarenta, manifesta-se um contexto espiritual que não pode terminar com o tempo da Bíblia, mas que continua significativo para além dele, de modo que a Igreja precisamente por esses dias cada vez mais procura introduzi-lo no seu presente, tentando assim torna-lo presente para nós.

Perguntemos, portanto: que está sendo visado com essa série de quarenta? Na época tardia de Israel, os quarenta anos de peregrinação no deserto foram considerados como que o tempo do primeiro amor entre Deus e Israel; o tempo da grande revelação fundadora; o tempo em que Deus ainda estava face a face com seu povo, falava-lhe, indicando-lhe dia por dia o seu caminho. Via-se nesse período o tempo em que Deus como que ainda habitava no meio de Israel, precedendo-o como nuvem e coluna de fogo, alimentando cada dia o povo com o maná e dando-lhe água do rochedo. Assim os anos do deserto apareciam como a época da eleição especial, da vizinhança particular de Deus e da união direta com Ele. Haverá muito de verdadeiro nisso também do ponto de vista da história da religião, pois parece que a vida nômade no deserto foi o primeiro lugar da descoberta da fé monoteísta. Dá a impressão de que precisamente um mundo em que o homem só tem o deserto ao redor e o céu acima de si, um mundo em que ele não se pode retirar a nenhum abrigo e refúgio, para diviniza-lo e adorá-lo, mas que em cada dia está exposto ao vazio e ao desconhecido, precisamente esse mundo o obriga a procurar unicamente aquele Deus que tem todo o mundo na mão, que em toda a parte pode estar com o homem, conhecê-lo e ajuda-lo com seu poder criador, onde quer que ele se encontre.

Tempo do deserto – tempo de especial proximidade de Deus. Contudo, quem lê na Bíblia o relato da peregrinação de Israel no deserto chega a uma outra imagem. O tempo do deserto aparece como a época do extremo perigo e da tentação; como o tempo no qual Israel murmura contra seu Deus, no qual está descontente com ele, quereria voltar ao paganismo, como o período no qual anda errante, movendo-se em círculo, sem encontrar o caminho; como o tempo no qual chega a construir para si os seus deuses, porque o Deus distante não lhe pode bastar.

Surpreendentemente, tornamos a encontrar a mesma ambivalência em Jesus. Depois do seu batismo, no qual tomou sobre si o destino do servidor de Deus, o destino daquele que arrancado de si mesmo está no lugar dos outros, vai para o deserto, para a união imediata com o Pai, a fim de nessa união receber a liberdade de si mesmo e para os outros. Em toda a sua vida, este processo repete-se sempre de novo: uma e outra vez, vai para o deserto, para a solidão com o Pai, voltando dali para junto dos homens. Mas também para Ele esse tempo da proximidade especial é um período em que está exposto, no qual a tentação se aproxima Dele: a tentação de preferir renunciar à palavra impotente e ao amor indefeso, dando aos homens o que eles mesmos não querem: pão, sensação e o triunfo do poder político que são os únicos que parecem poder garantir a salvação do homem.

Quando ouvimos tudo isso, devemos dizer que aí está descrita também a nossa situação. Hoje a Igreja, de modo inteiramente novo, está remetida para os quarenta dias, para o tempo do deserto. Ela perdeu muitas habitações e garantias terrenas. Nada daquilo que parecia sustenta-la está resistindo. Ao redor de si, só parece ter o deserto que continuamente a obriga à peregrinação; Deus mesmo parece apenas uma nuvem distante que se dissipa, quando a queremos tocar. E as alucinações do deserto, as suas tentações, também se aproximam da Igreja do nosso tempo, da Igreja no deserto. Já que Deus distante se tornou tão intocável, também ela se sente inclinada a fazer uma tentativa com o que está mais próximo, até o ponto de declarar a mundaneidade mesma como o cristianismo, de explicar a absorção no mundo, como o verdadeiro serviço de Jesus Cristo – assim como também o bezerro de ouro foi declarado uma imagem de Javé, como se com ele tivesse sido encontrado finalmente o culto verdadeiro do Deus distante agora tornado próximo. Também à Igreja se impõe sempre mais ruidosamente e sem com mais insistência a tentativa de trocar a salvação tão distante e irreal, obtida por meio da palavra, pela salvação mais sólida por meio do pão e o caminho seguro da politização.

A Igreja no deserto, a Igreja na Quadragesima, é a nossa experiência: exposição no vazio, num mundo que religiosamente parece ter-se tornado sem palavra, nem imagem, nem som. Exposição a um mundo no qual o céu acima de nós é escuro, distante e intangível.

E, contudo, também para nós, também para a Igreja de hoje, esse tempo do deserto se pode tornar tempo da graça, no qual da tribulação da distância cresce um novo amor. Se, por vezes, temos a impressão angustiante de que o maná da nossa fé apenas pode bastar para o dia de hoje, pensemos que a fé cada dia no-lo dará novo, se deixarmos que no-lo dê. E se devemos viver num mundo novo em que parece que Deus só pode ser encontrado como morto, não esqueçamos que Ele pode fazer brotar água viva também da rocha morta.

Igreja na Quadragesima, nos “quarenta dias” do deserto. Penso que nesse tempo do jejum deveríamos deixar-nos animar de novo a aceita com paciência e fé esta nossa situação, seguindo sem temor o Deus envolvido em trevas. Se continuarmos a peregrinar com paciência e fé, também para nós destas trevas poderá originar-se um dia novo. E o mundo luminoso de Deus, o mundo perdido das imagens e do som como que nos será concedido de novo: um amanhecer novo na boa criação de Deus. Amém.

 

FONTE:

RATZINGER, J. Dogma e Anúncio. São Paulo : Editora Loyola. 2013. p. 275-281.

PARA CITAR


RATZINGER, Joseph. Reflexões sobre a Quaresma. Disponível em: <http://apologistascatolicos.com.br/index.php/catequese/espiritualidade/847-reflexoes-sobre-a-quaresma>. Desde 05/02/2016.

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