Alegação protestante: Romanos 3, 1 – 2 Qual é logo a vantagem do judeu? Ou qual a utilidade da circuncisão? Muita, em toda a maneira, porque, primeiramente, as palavras de Deus lhe foram confiadas.
Portanto, a palavra de Deus foi confiada inicialmente aos judeus. Designada como a custódia da palavra inspirada de Deus, eles sabiam quais eram os livros canônicos, e quais não eram, e eles sabiam isso antes da Igreja Católica aparecer. |
Resposta:
1º) Sobre o quê, precisamente, São Paulo está tratando aqui? Sobre o cânon bíblico? Não! O versículo se insere numa longa discussão sobre a necessidade ou não de os cristãos observarem costumes judaicos (como, p.ex., a circuncisão, bem pontuada no versículo acima citado). Como expressa o protestante Gerhara Hörster:
“A carta [aos Romanos] nos mostra em todas as partes que Paulo — o apóstolo aos gentios, como ele mesmo se denomina — está em constante debate com os judeus fiéis à lei. Seja no assunto da necessidade da salvação, ou na discussão da salvação em si, seja na libertação do pecado para uma nova vida ou no assunto da eleição de Deus e da vida moldada pela fé, ele sempre fala aos dois grupos: judeus e gentios. O leitor tem a impressão de que Paulo está constantemente conversando com um judeu fiel à lei sobre o conteúdo do evangelho. Isso significa que a igreja de Roma era constituída principalmente de cristãos-judeus, aos quais Paulo presta contas do seu evangelho aos gentios? Isso é pouco provável, pois Paulo tinha clareza de que era o apóstolo aos gentios e intencionalmente tinha deixado a responsabilidade de cuidar dos judeus a Pedro (Gl 2.7ss). Por isso mesmo ele se apresenta aos Romanos explicitamente como apóstolo aos gentios (1.5; 1.13; 15.15ss). Mas acima de tudo ele se dirige aos seus leitores como a cristãos-gentios (11.13,17-24! cf 9.3ss; 10.1s). Está claro: Paulo está falando a não-judeus sobre o povo judeu (11.23,28,31). […] Nisso cabe bem a ênfase que Paulo dá à responsabilidade dos judeus e dos gentios diante de Deus (1.16; 2.9ss; 3.29; 10.12). O estilo da carta em forma de diálogo, principalmente os capítulos 9 a 11, também prova a existência desse grupo [de cristãos-judeus] na igreja de Roma” (Introdução e Síntese do Novo Testamento, ed. Esperança, 1996 – grifos nossos).
Com efeito, quando o Apóstolo afirma que “as palavras de Deus” (observe-se o plural!) foram confiadas aos judeus, ele não está querendo se referir, nem de longe, ao cânon bíblico, mas às ordens expressas por oráculo divino ao povo judeu, isto é, seus mandamentos, disciplinas e costumes particulares, mediante Moisés e os Profetas.
Daí as duas perguntas de Paulo: “Qual é logo a vantagem do judeu? Ou qual a utilidade da circuncisão?”. Por isso, o próprio Apóstolo esclarece um pouco mais adiante: “Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas” (Romanos 3,21), desconsiderando assim aquela parte da Bíblia que os judeus chamam de “Escritos” (ou sejam: Salmos, Jó, Provérbios, Rute, Cântico dos Cânticos, Eclesiastes, Lamentações de Jeremias, Ester, Daniel, Esdras/Neemias e Crônicas).
Em suma: Está claro que Paulo, aqui, não confere um significado determinado e integral à expressão “as palavras de Deus” (Lei + Profetas + Escritos = Bíblia), mas apenas significado acidental e parcial (Lei + Profetas = Obras da Lei). Como se vê, Paulo não apenas “esquece” os Escritos, como também os livros (e trechos) que dentro da Lei e dos Profetas não guardam uma relação direta com o assunto que ele está tratando: a conveniência ou não das obras da lei pelos cristãos-gentios naquela exata forma que exigem certos cristãos-judeus.
Em nenhum momento nesta Carta, nem de leve, passa pela cabeça de Paulo quantos ou quais livros especificamente formam o Antigo Testamento: 22, 24, 39, 46 ou qualquer outro número que pudesse – ou ainda possa ser – aventado…
Por outro lado, o que faz o artigo-resposta? Entende particularmente a expressão de Paulo, isto é, em sentido integral e determinado e, assim, do plural “as palavras de Deus” – ou “os oráculos de Deus”, como também traduzem algumas versões, inclusive protestantes como a Almeida Revista e Atualizada e a do Rei Tiago [King James Version] -, passa para o singular “a palavra de Deus”, entendendo – erroneamente – que aí Paulo se referiria a todos e apenas aqueles livros que formam o cânon sagrado do Antigo Testamento (coincidentemente, só aqueles 39 que o artigo protestante admite!!!).
A propósito, esse erro que artigo comete aqui é muitíssimo semelhante àquele outro que muitos irmãos-separados cometem quando tentam justificar a doutrina da “Sola Scriptura” (=apenas e unicamente a Bíblia é norma de fé para o cristão) fazendo uso de João 5,39, Atos 17,11 e 2Timóteo 3,15-16, que se limitam exclusivamente ao Antigo Testamento (de modo que um judeu poderia muito bem contrapor que o Novo Testamento não possui a mesma autoridade) e que, ainda assim, só serviriam para demonstrar que as Escrituras Sagradas têm autoridade (como sempre afirmou a Mãe da Bíblia, isto é, a Igreja Católica), NÃO que ela seja A autoridade única e exclusiva para o cristão (v. 1Timóteo 3,15), como alegam os seguidores da Reforma.
2º) Ainda no que tange a São Paulo, sabemos muito bem que ele, embora pregasse aos gentios, era judeu de nascimento, discípulo do rabi Gamaliel, instruído em todo o rigor da Lei Mosaica e, antes de se converter ao Cristianismo, zeloso defensor da causa judaica (cf. Atos 22,3). Não há dúvidas, portanto, de que bem conhecia as Escrituras… Mas qual cânon ele pessoalmente adotava? O mais curto (palestinense) ou o mais longo (alexandrino)?
Embora o cânon judaico só tenha sido estabelecido, em Jâmnia, no final do século I DEPOIS DE CRISTO (ou seja, já depois da morte de São Paulo), é de conhecimento exegético que Paulo adotava a LXX/Septuaginta (=cânon alexandrino).
Com efeito, aqui mesmo na Epístola aos Romanos, encontramos o Apóstolo citar muitas vezes o Antigo Testamento conforme a Septuaginta, mesmo quando ela difere do texto hebraico (portanto, não acidentalmente). Eis alguns exemplos, conforme apontados pela “Bíblia na Linguagem de Hoje”, publicada por uma editora reconhecidamente protestante:
Romanos 2,24 = Isaías 52,5 (LXX); Romanos 3,4 = Salmo 51,4 (LXX); Romanos 3,10-12 = Salmos 14,1-3; 53,1-3 (LXX); Romanos 3,13a = Salmo 5,9 (LXX); Romanos 3,14 = Salmo 10,7 (LXX); Romanos 9,16 = Êxodo 9,16 (LXX); Romanos 9,27-28 = Isaías 1,9 (LXX); Romanos 9,33 = Isaías 28,16 (LXX); Romanos 10,11 = Isaías 28,16 (LXX); Romanos 10,16 = Isaías 53,1 (LXX); Romanos 10,18 = Salmo 19,4 (LXX); Romanos 10,20 = Isaías 65,1 (LXX); Romanos 10,21 = Isaías 65,2 (LXX); Romanos 11,9-10 = Salmo 69,22-23 (LXX); Romanos 11,26 = Isaías 59,20-21 (LXX); Romanos 11,27 = Isaías 27,9 (LXX); Romanos 11,34 = Isaías 40,13 (LXX); Romanos 12,20 = Provérbios 25,21-22 (LXX); Romanos 14,11 = Isaías 45,23 (LXX); Romanos 15,12 = Isaías 11,10 (LXX); Romanos 15,21 = Isaías 52,15 (LXX).
Tal “fenômeno”, por não ser acidental, ocorre ainda em outras epístolas de Paulo (1Coríntios, 2Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses etc.), inclusive em Hebreus (admitindo-se que tenha sido escrita pelo Apóstolo ou, como querem outros, por algum discípulo direto), a qual é uma Epístola especialmente dirigida a cristãos de origem judaica e que, como ex-judeus praticantes, também conheciam muito bem as Escrituras de modo que não aceitariam “deturpações escriturísticas” quanto ao Antigo Testamento!!! Eis alguns exemplos, retirados da mesma fonte apontada acima:
Hebreus 1,6 = Deuteronômio 32,43 (LXX); Hebreus 1,7 = Salmo 104,4 (LXX); Hebreus 1,10-12 = Salmo 102,25-27 (LXX); Hebreus 2,13a = Isaías 8,17 (LXX); Hebreus 3,7-11 = Salmo 95,7-8 (LXX); Hebreus 4,7 = Salmo 95,7-8 (LXX); Hebreus 8,8-12 = Jeremias 31,31-34 (LXX); Hebreus 10,5-7 = Salmo 40,6-8 (LXX); Hebreus 10,27 = Isaías 26,11 (LXX); Hebreus 10,37-38 = Habacuque 2,3-4 (LXX); Hebreus 11,21b = Gênesis 47,31 (LXX); Hebreus 12,5-6 = Provérbios 3,11-12 (LXX); Hebreus 12,12 = Isaías 35,3 (LXX); Hebreus 12,13 = Provérbios 4,26 (LXX); Hebreus 12,26 = Ageu 2,6 (LXX); Hebreus 13,6 = Salmo 118,6 (LXX).
E, para que não restem quaisquer dúvidas, a Sociedade Bíblica do Brasil, esclarece em sua introdução ao Novo Testamento (da Bíblia na Linguagem de Hoje):
“Nas referências de rodapé aparece às vezes, entre parênteses, “LXX” (ver Mateus 3,3). Isso quer dizer que a passagem do Antigo Testamento citada nesse versículo não segue o texto hebraico, mas a antiga versão grega chamada de Septuaginta (LXX)” (grifo nosso).
Reconhece, por sua vez, a Bíblia de Referência Thompson (também protestante; ed. Vida, 1996):
“Na Igreja Primitiva, era essa [ou seja: a Septuaginta] a versão conhecida de todos os crentes” (p.1377).
E isto ocorria, inclusive, em Jerusalém onde existiam diversas sinagogas edificadas por judeus de fala grega e helenistas (e que, evidentemente, adotavam a Septuaginta), permitindo que os judeus de cada nação pudesse vir cultuar o Senhor Javé no centro religioso do Judaísmo!!! O melhor exemplo disso encontramos em Atos 6,9:
“Mas alguns da sinagoga chamada ‘dos Libertos’, cirenenses, alexandrinos e os da Cilícia e da Ásia se levantaram para discutir com Estevão”.
E o uso que faziam da Septuaginta era muito bem aceito pelas autoridades religiosas da Terra Santa, como também testemunha Atos 7,14: aqui vemos Estêvão (diácono instituído para os cristãos de língua grega, cf. Atos 6,1-6), discursar diante do Sumo Sacerdote (suprema autoridade religiosa palestinense) e afirmar claramente que “José mandou buscar Jacó, seu pai, e todos os parentes, 75 ao todo“, tal como declara textualmente a Septuaginta e não o texto hebraico de Gênesis 46,27, que diz “70 ao todo”. Em nenhum momento o sumo sacerdote corrige o número…
No tocante aos deuterocanônicos, a mesma Bíblia de Referência Thompson (p. 1375) observa:
“Os judeus da dispersão no Egito revelaram alta estima por esses escritos [=deuterocanônicos] e os incluíram na tradução do Antigo Testamento para o grego, chamada Septuaginta, mas esses mesmos escritos foram eliminados do cânon hebraico pelos judeus da Palestina [=ou seja, no Concílio de Jâmnia, no século I d.C.]” (grifo nosso).
Outra fonte de referência protestante, o “Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento” (ed. Vida Nova, 1ª ed., 1981, p. 77), faz o mesmo, reconhecendo:
“Septuaginta (lat. septuaginta, setenta) – A tradução gr[ega] do AT e da maioria dos apócrifos [=deuterocanônicos] que, segundo a lenda judaica, foi feita por setenta (ou setenta e dois) estudiosos judeus da Diáspora em Alexandria no século III a.C. (cf. Carta de Aristéias). Daí, é comumente designada pelo número romano LXX. Na realidade, o AT foi vertido para o gr[ego] por vários tradutores no decurso de um certo período de tempo, começando com o Pentateuco nos séculos III e II a.C. O propósito era ajudar judeus da dispersão a ler as Escrituras numa língua familiar. Ocorreram numerosas alterações e mudanças de sentido em comparação com o heb[raico]. Mas, quanto ao tempo, a LXX é mais antiga que o Texto Massorético heb[raico] e, às vezes, as suas leituras são preferíveis. Na igreja primitiva, a LXX era a forma normativa do AT” (grifos nossos).
E conclui a autora protestante Mary Batchelor (“A Bíblia em Foco”, Melhoramentos, 1995, p. 96):
“Os primeiros cristãos encontraram esses livros [=deuterocanônicos] quando adotaram a Septuaginta como sua Bíblia e os incluíram nela” (grifos nossos).
Não é, pois, à toa que os primeiros autores pós-apostólicos (Didaqué, Clemente de Roma, Policarpo de Esmirna, Inácio de Antioquia, Justino de Roma, Atenágoras de Atenas etc.) também considerassem seguramente inspirados os deuterocanônicos!
3º) Aliás, constitui caso especialmente interessante – e de muito valor aqui – o que lemos em Hebreus 11,35:
“Mulheres receberam pela ressurreição os seus mortos. Uns foram torturados, não aceitando o seu livramento, para alcançar superior ressurreição”.
Quem seriam essas pessoas?
“Normalmente os irmãos separados indicam a viúva de Sarepta, cujo filho ressuscitou por intermédio do profeta Elias (1Reis 17,17-23) e a sunanita, cujo filho foi ressuscitado pela intercessão de Eliseu (2Reis 4,8-37)” (Alessandro Ricardo Lima, “O Cânon Bíblico”, Ed. ComDeus, 2007).
Mas onde estaria a tortura e a perseguição em ambos os casos? Inexistem… Estaria Paulo (ou seu discípulo direto) fazendo referência a algum evento extrabíblico? Não! A solução encontra-se evidenciada na Septuaginta, em 2Macabeus 7,1-40: trata-se dos irmãos macabeus que foram torturados e martirizados por não quererem renegar a sua fé, certos de que Deus lhes daria a graça da ressurreição! Com efeito, os judeus-cristãos, destinatários da Epístola aos Hebreus, compreenderam muito bem a clara referência feita a estes mártires da fé judaica; porém, se o cânon curto fosse o correto, jamais saberíamos a quem se referia o Autor Sagrado e, para manter também o erro da “Sola Scriptura”, teríamos que “passar uma borracha” sobre a perseguição e a violência indicados no versículo de Hebreus para apontarmos “sem erro” 1Reis 17,17-23 e 2Reis 4,8-37!
No mesmíssimo sentido, reconhece o autor protestante Edgar J. Goodspeed categoricamente:
“A história terrível dos mártires macabeus (II Macabeus 7), reflete-se em Hebreus 11.35-38” (obra citada).
4º) Por outro lado, o fato de não haver citações explícitas aos Deuterocanônicos no Novo Testamento não depõe contra eles, pois se esse critério fosse realmente válido para estabelecer os livros do Antigo Testamento, deveriam certamente ficar de fora alguns protocanônicos que nunca foram citados (alguns nem mesmo implicitamente!): Abdias, Naum, Cântico dos Cânticos, Eclesiastes, Ester, Esdras, Neemias e Rute.
Fora que esse critério exigiria também a inclusão de outras obras, como as poesias de Epimênides de Cnossos (+séc. IV a.C.; cf. Tito 1,12s) e Arato de Sicília (+séc.III a.C; v. Atos 17,28), e os apócrifos judaicos “Assunção de Moisés” (v. Judas 1,9) e “Apocalipse de Henoc” (v. Judas 14), além de vários outros escritos que o Antigo Testamento cita nominalmente mas que não estão no cânon (cerca de 30!).
5º) Devemos ainda considerar o “cânon hebraico”, a que faz referência do artigo. Embora existam irmãos que apontem Esdras (~400 a.C.) como “responsável” pela determinação do “cânon judaico”, tal assertiva não tem respaldo escriturístico suficiente (no máximo, ele foi responsável pela compilação final do Pentateuco!) e, muito menos, histórico. Se tal fosse verdade, pelo menos o livro de Daniel (para não citar outros) teria ficado de fora, pois escrito muito depois, entre 175 e 150 d.C.
Com relação a isso, reconhece o professor protestante J. Albert Soggin, da Faculdade Valdense de Teologia de Roma:
“Um elemento desconcertante [do livro de Daniel] é dado pelo fato de que os acontecimentos conectados com o Exílio da Babilônia são extremamente vagos e imprecisos, enquanto os dados são extremamente exatos à medida que se aproximam da época dos macabeus, na primeira metade do século II a.C.: para a época mais antiga as dúvidas surgem especialmente em torno à cronologia, em torno à imprecisão dos personagens descritos (por exemplo: Daniel teria sido deportado aproximadamente no ano 607 a.C.; em 5,11 Baltazar é apresentado como filho de Nabuc