Sábado, Maio 18, 2024

O sentido do sagrado

O sentido do sagrado

Quem hoje visita a restaurada catedral de Santo Estevão em Viena e mantém uma imagem mental da mesma catedral antes de sua destruição durante a guerra ficará agradavelmente impressionado com o brilho alegre que agora enche o vasto interior, trazendo todas as suas proporções e seus quadros e estátuas em destaque. Mas é outra questão se seu arquiteto do século XIV teria ficado igualmente satisfeito com uma restauração tão luminosa.

   Como outras catedrais daquele período, a de Santo Estêvão foi projetada para transmitir uma sensação de reverência por meio de sua iluminação sombria. Quem entrasse da luz do dia para essa aparente escuridão precisaria de alguns momentos para se ajustar à sua atmosfera. Os vitrais sozinhos brilhavam como uma luz de outro mundo, e em cores fortes e pesadas contavam sua história sobre os eventos da história sagrada.

   Tudo isso correspondia à atitude mental e às formas litúrgicas do período em que a catedral foi construída. Naqueles dias, ninguém, exceto o sacerdote no altar e os oficiantes nas Horas canônicas, pensaria em ler um livro. Até os cônegos cantavam seus salmos de memória. Olhávamos e ouvíamos, e a obscuridade mística dirigia-se à alma piedosa em uma linguagem tão impressionante quanto o Latim estrangeiro das orações e dos hinos. Anunciava: Aqui é terra santa; estamos na presença de Deus.

   O que dizia respeito à religião estava de preferência envolto em uma escuridão misteriosa. Os mistérios da natureza nas montanhas, florestas e planícies também eram com maravilha admirados como obras de Deus, e não teria ocorrido a ninguém pesquisar suas origens ou causas mais profundas.

   Os tempos mudaram. A mente humana foi tomada por uma sede de conhecimento que não conhece limites. Tudo está sendo investigado, até a composição final da matéria sem vida e a última fibra de cada organismo. Florestas primitivas são penetradas e desertos são atravessados; cada caco de cerâmica e cada pedaço de papel que fala de tempos antigos é minuciosamente examinado; e mesmo os reis do Egito que tentaram proteger seus túmulos contra intrusos por meio de túneis tortuosos sob as enormes pilhas de pedra das pirâmides tiveram que revelar seus segredos.

   Um novo espírito domina. O homem aprendeu a fazer uso de suas faculdades dadas por Deus de uma maneira bem diferente.

   Também as formas de culto divino, que sempre aderiram com mais tenacidade às antigas tradições, não escaparam a essa mudança de mentalidade. O homem da era moderna busca a clareza: já não se contenta meramente em admirar, ele quer ver e compreender.

   Assim, a igreja Barroca é inundada de luz. Os hinos vernaculares já há vários séculos são habituais em nossos cultos divinos. E uma coroa de devoções populares, imediatamente inteligíveis, foi tecida sobre o santuário mais íntimo do culto oficial da Igreja. Mesmo este último tornou-se mais acessível: a participação na oferta do santo Sacrifício foi alcançada através de várias formas de missas comunitárias, até então desconhecidas. O santuário de Deus escancarou as suas portas, e quem quiser pode entrar, pode aproximar-se até ao pé do altar.

   Mas deve-se reconhecer que existem certos limites que não podem ser cruzados. Quando Moisés se aproximou do espinheiro em chamas, ouviu a voz: “Tira as sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é terra santa”. (Ex. 3,5). Onde o homem encontra Deus, ali seu pé deve parar. Dos coros de anjos é dito que eles adoram a majestade de Deus com tremor. O homem deve: reconhecer que diante de Deus ele é apenas pó e cinzas. O que é sagrado exige reverência.

   Mesmo as nações pagãs tinham uma consciência viva desse princípio. Por isso, separam um espaço particular para o exercício das religiões. Os romanos o chamavam de templum (ou seja, algo cortado ou separado) e sobre ele erguiam suas estruturas de templo. Eles fizeram uma distinção nítida entre o lugar santo (fanum) e o espaço fora dele (profanum). Não raro, uma placa de advertência era afixada na entrada da área do antigo templo, com o aviso público de que nenhum pé profano poderia pisar ali.

   As religiões do Extremo Oriente também têm esse sentido do sagrado. Isso foi trazido para mim de forma muito vívida em um filme, retratando a entrada em um templo chinês. Há primeiro uma porta alta, depois um longo espaço aberto, depois outra porta, e só então os degraus que levam ao templo da divindade.

   Onde quer que haja elementos de real religião, encontramos esse temor do povo diante da santidade de Deus. O Antigo Testamento, especialmente, está repleto de exemplos da reverência própria do homem quando está na presença de Deus. Os salmos preservaram para nós muitas orações nas quais esta atitude de humilde prostração diante da majestade de Deus é expressa de forma impressionante.

   Mas tem tal atitude alguma validade para nós hoje? Pois no Novo Testamento nossas relações com Deus foram basicamente alteradas. O Filho de Deus se fez homem, um de nossa raça. Ele viveu nesta nossa terra, Ele andou por nossas ruas, para que o homem pudesse se aproximar DEle diariamente. E pela última hora de sua vida, quando sobre Ele acumulava toda miséria humana, predisse: "E eu, quando for levantado sobre a terra, atrairei a mim todas as coisas” (João 12,32). Cada barreira parece removida. Este é também o pensamento expresso pelo Apóstolo na sua carta às jovens comunidades cristãs: “Viestes ao monte Sião, à cidade do Deus vivo, à Jerusalém celeste, e à companhia de muitos milhares de anjos… a Deus, o juiz de todos" (Heb. 12,22).

   Temos nossa cidadania no céu, pertencemos à família de Deus; somos irmãos e irmãs de Cristo, o Filho de Deus, e podemos nos dirigir a Deus como nosso Pai. Podemos com razão nos chamar de povo santo e, portanto, temos direitos familiares no santuário. Há, portanto, uma diferença fundamental entre o cristianismo e a religião do Antigo Testamento, para não mencionar as outras religiões. A distinção é notavelmente indicada pelo fato de que nosso "templo" não é mais uma casa onde somente Deus habita e à qual não temos acesso; a casa Cristã de Deus é ao mesmo tempo a casa do povo de Deus.

   Por esta razão, também, o culto cristão, devidamente entendido, tem um caráter diferente. Não é um serviço que é realizado única e exclusivamente por pessoas especialmente designadas para ele, que se aproximam da presença de Deus em nome de uma população profana. Em vez disso, todo o povo é chamado a se aproximar de Deus, embora sob a liderança e liderança de um sacerdócio escolhido. "Nós, Teus servos e Teu povo santo" oferecemos o santo Sacrifício – assim diz nas orações da Missa no momento mais solene, imediatamente após a consagração.

   No entanto, certos limites e restrições permanecem também aqui. Existe acima de tudo a lei da reverência pelo que é sagrado. Em primeiro lugar, no sentido de que somente o cristão batizado, ou seja, o cristão crente, é membro do povo de Deus.

   A Igreja primitiva deixou isso muito claro e definido por meio de sua disciplina arcani, a “disciplina do segredo”. Aos pagãos era permitido assistir à leitura da Sagrada Escritura e à pregação dos Evangelhos, mas não ao serviço divino em si. Os mistérios reais, as palavras sacramentais, o Pai Nosso e o Credo, não podiam ser comunicados a eles.

   Mesmo os candidatos ao batismo, que tiveram que passar por um período de provação de dois ou três anos, receberam o Pai Nosso e o Credo apenas nas últimas semanas de sua preparação. Tampouco lhes foi permitido colocar essas fórmulas sagradas no papel com pena e tinta; só podiam escrevê-los com a memória nas tábuas do coração. As coisas sagradas deviam ser guardadas contra toda profanação.

   Pode ser que nessa prática da Igreja as atitudes religiosas contemporâneas do mundo pagão tenham desempenhado seu papel. Os cultos de mistério eram correntes que praticavam uma estrita exclusão de estranhos, admitindo apenas os “iniciados”. Isso explica por que a “disciplina do segredo” em sua forma estrita, tal como tinha por volta do século IV, novamente desapareceu de cena. Outra razão para seu desaparecimento foi o fato de que na Idade Média praticamente toda a população era cristã. Não havia ninguém, além dos pequenos grupos de judeus, que teriam de ser excluídos. Assim, o mundo e a Igreja, o profano e o sagrado, em grande medida se fundiram.

   Enquanto a antiguidade cristã construía regularmente suas basílicas de tal maneira que não se podia entrar no interior sagrado a não ser passando por um espaçoso átrio ou pátio, a Idade Média podia e dispensava todos os pátios externos. As portas das catedrais góticas com seus amplos arcos de portal convidavam toda a cidade para o lugar sagrado.

   Bem diferente é a situação em nossos dias; estamos novamente frente a frente com um novo paganismo. Mesmo entre os batizados há muitos apóstatas, incrédulos. A respeito disso, as palavras severas do Senhor prevalecem: “Não deis aos cães o que é santo” (Mt 7,6).

   Embora não possamos mais invocar a antiga disciplina do segredo, devemos proteger as coisas santas contra a profanação. É uma experiência dolorosa para os cristãos quando algumas das suas igrejas, visitadas por todo o mundo por seus tesouros artísticos, devem submeter-se à agitação mundana das multidões como se fossem estações ferroviárias, mesmo durante os momentos sagrados dos serviços divinos; ou quando as igrejas são transformadas em salas de concerto, onde o público pode tomar as liberdades do teatro público; ou quando os fotógrafos invadem o próprio santuário e perturbam as ações mais sagradas com seus clarões ofuscantes: o celebrante no momento da consagração, ou o primeiro comungante no momento de receber a Hóstia.

   Foi relatado que a rainha Elizabeth da Inglaterra permitiu a filmagem do rito de coroação apenas com a condição de que os clímax da função litúrgica fossem excluídos: a unção e a recepção da Última Ceia. Nobres sentimentos dignos de uma rainha!

   À luz desses princípios, pode ser proveitoso, também, reexaminar toda a questão de se e em que circunstâncias é realmente desejável transmitir a Santa Missa na televisão. Na Alemanha, um vivo debate sobre esse assunto ocorreu há pouco tempo [1].

   O sentido do sagrado deve afirmar-se, aliás – e mais importante – na conduta dos fiéis. Ainda que sejamos Seus filhos, com direitos de família na casa de Deus, e ainda que não fôssemos pobres pecadores, Deus continua sendo Deus e o homem continua homem, pobre criatura, parente do nada. Mesmo um cristão pode não se permitir aquela familiaridade antinatural que converte o mistério do Natal em brincadeira infantil, que se deleita na doce característica de certa arte religiosa, ou que canta “Boa Noite” ao Salvador.

   Em seus serviços divinos oficiais, a Igreja nos ensina uma lição bem diferente. Por quantos degraus ela não sobe na celebração da Santa Missa até encontrar Deus na consagração! Com que reverência ela não cerca até mesmo o Evangelho, especialmente quando cantado solenemente em uma missa cantada! De quantas maneiras ela não se esforça para dar a devida honra ao altar, o lugar do Sacrifício! E ela veste o sacerdote, o celebrante de seu Mistério, com vestimentas especiais que o elevam acima da vida cotidiana e o preparam para a entrada no mundo superior.

   Suas orações são formuladas com o maior cuidado, cada palavra como se moldada em bronze. Além disso, ela se apegou àquela língua que, no decorrer dos séculos, tornou-se a língua sagrada, e assim, até nossos dias, esteve disposta a sacrificar em grande medida a vantagem da própria inteligibilidade em nome de uma maior reverência. E mesmo nesta linguagem o ciclo mais íntimo de orações é falado silenciosamente – o santo silêncio deve cercar a misteriosa vinda do Senhor na promulgação do Sacrifício.

   Embora as mesmas formas de expressão não sejam exigidas dos fiéis, o mesmo espírito de reverência pelo que é santo deve, no entanto, animá-los. Este espírito já se manifestará na forma como alguém entra na casa de Deus; a água benta com que nos borrifamos deve nos lembrar da pureza e inocência que recebemos pelas águas do batismo, e que por si só nos tornam dignos de entrar na presença de Deus. Com a genuflexão com que exprimimos a nossa humildade, prestamos homenagem ao Verbo que se fez carne e que agora nos está presente no Santíssimo Sacramento. A oração em comum, o canto durante os ofícios divinos, sempre será marcado pela devida medida e contenção, pois estamos na presença do Senhor Altíssimo. Daí a legislação da Igreja, embora dando muita liberdade aos mestres da arte musical, sempre indicou que a música eclesiástica nunca pode ser a da sala de concertos.

   Em última análise, uma atitude de fé deve ser o fator determinante. Onde há uma fé viva, há prontidão para se curvar diante de Deus. Quando apreciarmos a dignidade celestial que Deus nos concede por Sua graça, saberemos a que esta dignidade real nos obriga. Quando percebemos a distância que separa o Criador e a criatura, a reverência surgirá sobre nós espontaneamente.

   No entanto, devemos salvaguardar constantemente uma atitude tão nobre contra o esquecimento – e contra o espírito do nosso tempo para o qual nada é santo. Como cristãos católicos, devemos cultivar e apreciar o sentido do sagrado.

NOTA:

[1] Opiniões críticas de peso estão reunidas na brochura Apparatur und Glaube. Ueberlegungen zur Fernsehuebertragung der heiligen Messe, por Romano Guardini, Clemens Muenster, Karl Rahner, S.J., Fritz Leist, Heinrich Kahlefeld (Christliche Besinnung, Vol. 8, Wuerzburg, 1955, Werkbundverlag)

FONTE: Josef A. Jungmann, S.J., Worship, May 1956, volume XXX:6, pp. 354-360.

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