Sábado, Maio 18, 2024

O Ministério da Hierarquia

Extraído do artigo do Cardeal Charles Journet, Le Mystère de L’Église selon Vatican II, publicado em Revue Thomiste, ano 1965, pp. 5-51.

 

5. O MINISTÉRIO DA HIERARQUIA

Deve-se dizer da Igreja, assim como de todos os vivos, que ela é a causa dela mesma e de sua própria vida. Para o ministério da hierarquia ela é, sob a moção do Espírito Santo, como um sacramento, como um instrumento da plenitude da salvação evangélica. Ela traz aos homens as coisas mais preciosas, a graça, colorida por sua passagem através dos sacramentos e orientada pelas diretrizes recebidas dos poderes de ensinar e reger. Mas aquelas coisas que ela gera pelos poderes hierárquicos não são exteriores a ela. São muito pelo contrario e por esta razão, – abstração feita dos poderes hierárquicos que podem ou não ter, – o melhor dela mesma, seu fim, sua razão de ser. Pois, ainda mais do que instrumento ou sacramento da salvação, a Igreja é residência plenária da graça, da caridade, e do próprio Espírito Santo. As grandezas da hierarquia, que são em si o privilégio de alguns, estão ao serviço das grandezas da caridade e da santidade, que são oferecidas a todos.

“São, diz Paulo VI no seio da terceira sessão, dois os elementos que Jesus Cristo prometeu e enviou de maneira diversa, ambos destinados à continuação da sua obra, à extensão no tempo e no espaço do reino por ele fundado. Da humanidade remida farão a sua Igreja, o seu Corpo místico, a sua plenitude, na expectativa do seu regresso definitivo e triunfal na consumação dos séculos: estes elementos são o apostolado e o Espírito. O apostolado é o agente externo e objetivo, forma o corpo por assim dizer material da Igreja, dá-lhe as suas estruturas visíveis e sociais; o Espírito Santo é o agente interno, que influi no interior de cada pessoa, como influi na comunidade inteira, animando, vivificando e santificando. Estes dois agentes, o apostolado, hoje exercido pela sagrada Hierarquia, e o Espírito de Jesus, que a torna instrumento ordinário seu no ministério da Palavra e dos Sacramentos, exercem ao mesmo tempo a sua atividade: no Pentecostes viram-se maravilhosamente associados no princípio da grande obra de Jesus, que agora é invisível, mas está perpetuamente presente nos seus apóstolos e nos seus sucessores[1]”.

A plenitude suprema dos poderes hierárquicos é conferida por Cristo aos Doze apóstolos que ele mesmo escolheu. Eles formam um grupo, um conjunto que as Escrituras chamam os Doze, e cujo Pedro é constituído chefe. Isto é, um “colégio”, o “colégio apostólico”, – não no sentido e em razão de uma igualdade perfeita de todos os membros sob todas as relações, uma vez que Pedro sozinho é pastor das ovelhas, mas em razão da vontade de Cristo que unindo-lhes os uni entre eles. Eles são enviados primeiro aos filhos de Israel, depois à todas as nações. Eles são confirmados em sua missão no dia do Pentecostes em conformidade à promessa do Senhor: Vós recebereis a força do Espírito Santo que descerá sobre vós. Vós sereis então minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e em Samaria e até aos confins da terra (At. 1, 8). Sua missão privilegiada é antes de tudo “fundar esta Igreja universal, que Cristo edifica sobre o bem-aventurado Pedro, seu chefe, e cuja pedra angular é ele mesmo[2]”.

Mas é até aos confins da terra e até ao fim do mundo que eles deverão propagar esta Igreja fundada por eles, esta segunda missão, que ultrapassa suas possibilidades, só poderá ser realizada por meio dos poderes divinos que eles transmitirão a seus sucessores por uma corrente ininterrupta[3]. É preciso, portanto, reconhecer nos apóstolos duas sortes de poderes hierárquicos: de um lado poderes extraordinários e intransmissíveis que lhes foram dados para fundar a Igreja quanto a sua aparição no tempo, à maneira como os obreiros fundam um edifício que lhes sirva de abrigo, e neste sentido, todos e cada um dispunham igualmente, por exemplo, o poder de fundar Igrejas locais, os carismas da revelação e da inspiração escriturística, etc.; do outro lado os poderes ordinários e transmissíveis necessários para continuar, conservar, mostrar, propagar e fundar a Igreja quanto a sua permanência na duração, à maneira como os alicerces suportam o edifício, e neste sentido a igualdade cessa, um só é estabelecido como rocha, isto é, como base visível, não única, certo, mas última, sobre a qual a Igreja não cessará de repousar aqui em baixo, um só é constituído pastor de todas as ovelhas de Cristo. Por consequência, a Igreja é dita apostólica de duas maneiras: enquanto fundada pelos poderes extraordinários dos apóstolos, e enquanto herda os poderes ordinários dos apóstolos; e falar-se-á igualmente de uma “colegialidade dos apóstolos” em si próprios, e de uma colegialidade dos sucessores dos apóstolos”, papa e bispos.

Uma das grandes preocupações do concílio era, depois de ter recordado as prerrogativas do sucessor de Pedro, de continuar a tarefa começada no primeiro concílio do Vaticano, determinando os poderes dos bispos e sua relação ao poder do soberano pontificado.

Ao papa e aos bispos, sucessores de Pedro e dos outros apóstolos, é confiada por instituição divina o cargo de apascentar a Igreja. Cristo mesmo, pontífice supremo, que senta à direita do Pai, está presente no mundo pelos bispos, para anunciar por eles a Palavra de Deus à todas as nações, dispensar por eles aos crentes os sacramentos da fé, dirigir e conduzir por eles o povo do Novo Testamento na sua peregrinação rumo à beatitude eterna. “Para cumprir com estas funções divinas, os apóstolos tinham recebido de Cristo a efusão do Espírito Santo. Eles comunicaram este dom espiritual a seus sucessores pela imposição das mãos. Este dom foi transmitido e chegou até nós pela consagração episcopal. O santo concílio ensina que a consagração episcopal confere a plenitude do sacramento da ordem; aquela que é chamada sumo sacerdócio e suma do sagrado ministério na tradição litúrgica e nos santos Padres. Com o cargo (munus) de santificar, a consagração episcopal confere os cargos (munera) de ensinar e de governar, que, no entanto, por razões de sua natureza, só podem ser exercidos em comunhão hierárquica com o chefe e os membros do colégio. Segundo a tradição, que aparece, sobretudo, nos ritos litúrgicos e usos da Igreja tanto no Oriente como no Ocidente, é manifesto que a imposição das mãos e as palavras da consagração conferem aos bispos uma graça do Espírito Santo e imprimi-lhes um caráter sagrado de tal natureza que os Bispos representam de forma eminente e conspícua o próprio Cristo, mestre, pastor e pontífice, e de agir em seu nome. Como resultado Pertence aos Bispos assumir novos eleitos no corpo episcopal por meio do sacramento da Ordem[4]”.

Dois pontos desta importante passagem, que parece acentuar na Igreja do Ocidente uma proximidade com a Igreja do Oriente, são enfatizados.

1. É a consagração episcopal que confere aos bispos os seus poderes de ensinar e de governar. A distinção especifica entre os poderes da ordem dos quais depende a validade do culto cristão, e os poderes jurisdicionais ou anunciadores do magistério e governo, cujo cargo é de apresentar aos espíritos as coisas para crer e as coisas para fazer, fica claramente intacta. Além disso, os poderes do magistério e do governo que possuem os bispos são por natureza poderes subordinados aos poderes do soberano pontífice. Mas até aqui duas opiniões partilhavam a preferência dos teólogos. Para alguns, a consagração episcopal só conferia o poder da ordem. Este poder era considerado como uma disposição normalmente pré-requisita à recepção do poder de jurisdição.

Os bispos possuíam seu poder de jurisdição sem dúvida com direito divino, mas lhes era conferido por delegação expressa ou tácita do soberano pontífice.

Para os outros teólogos, a consagração episcopal confere simultaneamente o poder da ordem e o poder jurisdicional de ensinar e de governar; é unicamente o exercício  deste último poder que, para ser válido, requer o consentimento expresso ou tácito do colégio episcopal unido a seu chefe. É a estes últimos que a Constituição parecia aqui dar razão, por preocupação de ter em conta os textos litúrgicos de consagração, conferindo aos bispos não somente a missão de santificar o povo cristão, mas ainda de ensinar-lhe e de reger-lhe[5]. Contudo, esta primeira impressão é considerada como derrotada e atenuada, diremos neste momento, pelas precisões dadas na Nota explicativa prévia, fixando o seguinte sentido do qual deve-se interpretar a doutrina do capitulo III, e que permite distinguir, entre os efeitos da consagração episcopal, de uma parte um poder de santificar (munus sanctificandi), de outra parte um cargo de ensinar e de reger (munus docendi, munus regendi), que só pode passar ao ato e tornar-se poder (potestas) em virtude de uma determinação canônica da autoridade hierárquica[6]. A intenção não é de orientar para uma opção, mas para uma síntese.

2. A consagração episcopal confere aos bispos uma graça do Espirito Santo, imprime-lhes um caráter sagrado, em uma só palavra, confere-lhes a plenitude do sacramento da ordem. Os três graus do poder cultual da ordem são o diaconato, o presbiterado, o episcopado.  É certo que o mais extraordinário destes poderes é o poder de consagrar o pão e o vinho ao corpo e ao sangue de Cristo, e que os padres o possuem. Na linha cultual da ordem, o único complemento que pode trazer aqui o episcopado é um poder não mais elevado, mas mais vasto, um poder lateral que faz o Corpo místico reunir à volta de Cristo pela administração da confirmação e de todas as ordens sagradas sem exceção. Uma questão fica aberta, esta da validade das ordenações episcopais per saltus. O episcopado supõe necessariamente a recepção prévia do presbiterado, ele não é capaz de completar o presbiterado? Ou então o episcopado consiste de si mesmo e em si mesmo a plenitude dos poderes da ordem, seria ele capaz de conferir imediatamente, por exemplo, a um diácono ou a um leigo, a plenitude do sacerdócio, na linha tanto do poder cultual como dos poderes jurisdicionais? É este ultimo ponto que é desde agora fixado. A Constituição apostólica sobre as ordens sagradas do diaconato, do presbiterado, do episcopado, promulgada por Pio XII no dia 30 de novembro de 1947, preparava a atual declaração do concílio.

O poder supremo jurisdicional (magistério e governo) na Igreja universal consiste na vontade de Cristo e, portanto, em direito divino, num duplo sujeito: 1. no papa sozinho, 2. no papa ligado ao colégio episcopal. Portanto, por um mesmo poder, dois sujeitos, dois exercícios, que só se distinguem inadequadamente, a presença do soberano pontífice sendo aqui e ali requisito. Por que este duplo exercício de um mesmo poder? É preciso, sem nenhuma dúvida, procurar a razão na estreita unidade de uma parte, e na universal catolicidade de outra parte, que o Salvador quis dar à sua Igreja, em toda parte uma e em toda parte presente.

O livre exercício do poder supremo na Igreja universal pelo papa sozinho é sempre reconhecido pela Constituição. “O pontífice romano tem na Igreja em virtude do seu cargo de vigário de Cristo e de pastor da Igreja inteira um pleno, supremo e poder universal, que ele pode sempre livremente exercer[7].” A proclamação de sua infalibilidade, feita no primeiro concilio de Vaticano, é aqui retomada e explicada: “A infalibilidade cujo divino Redentor quis prover à sua Igreja quando ela define a doutrina da fé ou da moral garante tudo o que concerne o depósito da Revelação divina que ela deve guardar santamente e expor fielmente. Em virtude do seu cargo, o pontífice romano, chefe do colégio dos bispos, é protegido pela infalibilidade quando,  com o seu título supremo de pastor e doutor de todos os cristãos fiéis e para confirmar seus irmãos na fé, ele proclama por um ato definitivo a doutrina da fé ou a moral. As suas definições com razão se dizem irreformáveis ex sese et non ex consensu Ecclesiae, pois foram pronunciadas sob a assistência do Espírito Santo, que lhe foi prometida na pessoa do bem-aventurado S. Pedro; Não precisam, por isso, de qualquer alheia aprovação, nem são susceptíveis de apelação a outro juízo. Pois, nesse caso, o Romano Pontífice não fala como pessoa privada, mas expõe ou defende a doutrina da fé católica como mestre supremo da Igreja universal, no qual reside de modo singular o carisma da infalibilidade da mesma Igreja[8].” Chama a atenção também sobre o respeito devido ao ensino não mais absoluto, mas prudencial do papa: “Uma submissão religiosa da vontade e da inteligência é devida ao magistério autêntico do Romano Pontífice, mesmo quando ele não fala ex cathedra. Seu magistério supremo pede um acolhimento com reverência, as decisões que ele toma reclamam adesão sincera, conforme o seu pensamento e sua vontade, tais como se manifestam seja pelo caráter dos documentos, seja pela insistência em retomar uma mesma doutrina, seja pela sua maneira de falar[9]”.

Como acabamos de dizer, o interesse principal da Constituição fazia referência aqui sobre o exercício simultâneo do poder supremo pelo papa e o colégio episcopal. “Nosso presente concílio, ecumênico como o precedente, prepara-se a confirmar, com certeza, o ensino do primeiro concilio de Vaticano sobre as prerrogativas do pontífice romano, mas terá igualmente, – e será seu objetivo principal, – precisar e honrar as prerrogativas do episcopado[10].”

Estas prerrogativas são tradicionais. O papel do concílio será de tomar uma consciência nova, de os designar à atenção e sobretudo de precisar, em vista de uma descentralização, os modos canônicos de seu exercício. Além do pontificado supremo do sucessor de Pedro, existe desde sempre na Igreja, em direito divino, um episcopado subordinado. Neste último ha dois poderes a distinguir: 1. O poder colegial dos bispos enquanto associados ao soberano pontífice para reger a Igreja universal, seja quando eles se encontram normalmente dispersos no mundo, seja quando eles encontram-se excepcionalmente reunidos à volta de seu chefe em concílio ecumênico; 2. O poder pessoal de cada bispo em sua Igreja particular: Tito é colocado em Creta e Timóteo em Éfeso. Tendo chegado a este último ponto, a Constituição em seguida, brevemente falará dos “cooperadores da ordem episcopal”, a saber os padres e os diáconos.

O corpo episcopal, diz ela, enquanto ligado a seu chefe o pontífice romano, é com ele, mas jamais sem ele, sujeito do poder supremo do magistério e do governo sobre a Igreja inteira. Pois, não é somente Pedro, mas a todo o colégio dos apóstolos, que Cristo confia os poderes de ligar e desligar na terra o que será no céu. Os vínculos de comunhão que unem entre si os bispos, seu costume tradicional de reunir-se em sínodos para deliberar resoluções a tomar, a celebração sobretudo dos concílios ecumênicos, testemunham na história do caráter colegial do episcopado. A função do colégio episcopal como tal é assegurar a permanência desta Igreja que Cristo quis não somente una, mas espalhada em toda parte. A expressão solene do poder colegial aparece nos concílios ecumênicos que cabe ao papa convocar, presidir, confirmar nas suas decisões. Fora do concílio, o poder colegial exerce-se quando o papa o suscita, ou quando o papa o aprova e aceita uma ação coletiva dos bispos promovida deste fato à dignidade de ação colegial[11]. O corpo episcopal exercendo com o papa o magistério supremo é infalível quando ele decide o conteúdo da revelação divina[12]. A união colegial aparece igualmente nas relações mútuas entre as Igrejas locais e a Igreja universal; Além disso, dos corpos episcopais ou conferências episcopais podem no plano local contribuir a pôr em pratica o espirito colegial. O bispo, tomado individualmente, não tem jurisdição na Igreja universal, mas, sendo membro do colégio, ele deve partilhar as preocupações gerais da Igreja e principalmente sua preocupação missionaria[13].

A doutrina de um poder supremo residindo inteiramente no papa sozinho e inteiramente no papa unido ao corpo episcopal merece ser estudada à fundo para prevenir todo desprezo, preparar sem alterar suas próximas aplicações, e responder assim às exigências pastorais de um mundo em plena evolução técnica, social, politica. Uma nota explicativa prévia comunicada aos Padres pela autoridade superior fixa a intenção e o sentido dos ensinos do capitulo III[14].

Os bispos, diz-se, formam um colégio, esta palavra não sendo no sentido estritamente jurídico de um grupo de iguais delegando seu poder a um presidente, mas no sentido de um grupo estável cuja estrutura e a autoridade devem ser deduzidas da revelação. Este colégio não pode ser semelhante a aquele dos apóstolos, pois, ele não implica a transmissão a seus sucessores de seu poder extraordinário, nem a igualdade entre o chefe e os membros.

Torna-se membro do colégio em virtude:  1. Da consagração episcopal e 2. Da comunhão hierárquica com o chefe do colégio e seus membros.  Pela consagração é dada a participação ontológica dos cargos sagrados (sacrorum mune ru), como realça-se indubitavelmente da Tradição, mesmo litúrgica. É propositadamente que emprega-se o termo cargo (munera) e não poderes (potestates), porque este ultimo termo poderia ser compreendido de um poder apto a exercer-se (ad actum expedita). É preciso, para constituir um tal poder, que intervenha uma determinação canônica ou jurídica da autoridade hierárquica; determinação exprimida seja pela concessão de um ofício particular, seja pela designação dos sujeitos que serão submetidos a este poder; determinação dada segundo as normas aprovadas pela Autoridade suprema. A necessidade de uma tal norma resulta da natureza das coisas: trata-se com efeito, de cargos exercidos por uma pluralidade de pessoas chamadas segundo a vontade de Cristo a cooperar hierarquicamente. Uma tal comunhão não é simplesmente da ordem do sentimento, ela é uma realidade orgânica que exige uma forma jurídica e  que deve ser animada pela caridade. Sem uma tal comunhão hierárquica com o chefe e os membros da Igreja, o cargo sacramental-ontológico (munus sacramentale ontologicum), que é preciso distinguir do aspecto canônico-jurídico (aspectus canonico-juridicus), não pode ser exercido[15].

Seria talvez possível precisar ainda estes dados tendo em conta os trabalhos de R. P. Bertrams[16]. Recordar-se-ia que, segundo a Constituição, a consagração episcopal confere com o cargo (munera) de santificar, o duplo cargo de ensinar e de reger. O cargo (munus) de santificar, que pode sempre passar validamente a ato, é em si e por natureza um poder (potestas). O cargo de ensinar e de reger consiste numa qualidade interna e ontológica, – relevando, diríamos, da segunda espécie de qualidade, a potentia dos anciãos, ordenada à ação. Não confere por ele mesmo a comunhão com o corpo episcopal e seu chefe, nem a determinação concreta dos seus súditos. Para que possa desenvolver seus efeitos para exercer validamente e se tornar um poder (potestas), deve além disso ser “reconhecido” pela comunhão hierárquica com o chefe e os membros da Igreja[17]. Este reconhecimento, que aumenta à sua natureza interior-ontológica um elemento exterior-canônico, é requerido de direito divino, em virtude da natureza mesmo da Igreja. Parece que assim um progresso foi  realizado no conhecimento do carisma do episcopado.

Os poderes que os bispos têm nas suas respectivas dioceses são “próprios, ordinários, imediatos”, ainda que o exercício seja limitado pelo soberano pontífice em vista da utilidade da Igreja ou dos fiéis. A responsabilidade pastoral, habitual e quotidiana de reger sua diocese sendo-lhe confiada plenamente, os bispos não podem ser considerados como simples vigários do soberano pontífice. Longe de ser contrariado pela autoridade suprema, seu poder é no lugar proclamado, confirmado, defendido por ela. A defesa da independência, da liberdade, da dignidade da hierarquia nos diversos países é, diz Paulo VI abrindo a terceira sessão, um dos deveres mais frequentes e mais importante do soberano pontífice[18].

Os cooperadores imediatos do corpo episcopal são em primeiro lugar o presbitério, cujo os membros são afetados aos diversos ofícios que lhes permitem, cada um, de seu lado e em seu lugar, tornar visível a Igreja universal e de formar o Corpo de Cristo. Unidos entre eles por laços de íntima fraternidade, devem agir como pais dos fiéis que eles geram espiritualmente pela celebração do sacrifício eucarístico, a dispensação dos sacramentos, a pregação do Evangelho, e levar a todos, crentes e incrédulos, católicos e não católicos, justos e pecadores, o testemunho do Evangelho[19]. Em seguida são os diáconos que poderão ser restaurados no Ocidente como uma ordem permanente, e dos quais podem ser confiadas as funções de administrar o batismo, conservar e distribuir a eucaristia, abençoar os casamentos, levar o viático aos moribundos, instruir o povo, pregar e administrar os sacramentos, etc[20].

Com o capítulo sobre a Constituição hierárquica da Igreja e em particular sobre o episcopado, conclui-se uma das tarefas atribuídas ao segundo concílio do Vaticano pelos próprios soberanos pontífices, tarefa anunciada por Paulo VI no limiar da terceira sessão: “A integridade da verdade católica, diz o papa, precisa atualmente de esclarecimentos que, em harmonia com a doutrina sobre o papado, façam resplandecer a figura e a missão do episcopado. O concílio projetará esta figura e esta missão, somente com a preocupação de interpretar em suas fontes e nos seus desenvolvimentos seguros o pensamento de Jesus Cristo. Cabe a nós, desde agora alegria reconhecer nos bispos Nossos Irmãos, chamando com o apóstolo Pedro seniores – anciãos -, e reivindicando por Nós, como uma apelação da qual Nós mantemos o título igual de consenior (I Pd V, 1). Cabe a nós o reconforto de dirigir-lhes as palavras do apostolo Paulo: companheiros nas tribulações e consolações (cf. II Cor. I,4, 7)… Cabe a nós o desejo expresso de assegura-lhes com Nosso respeito, com Nossa estima, com Nossa afeição e Nossa solidariedade. Cabe a nós o dever de reconhecer neles os mestres, os pastores, os santificadores do povo cristão, os dispensadores dos mistérios de Deus (I Cor. IV, 1), as testemunhas do Evangelho, os ministros do Novo Testamento, e como um reflexo da glória do Senhor (cf. II Cor. III, 6-18)[21]

                                                

 



[1] Discurso, III sessão, col. 1220.

[2] Const. III, 19 : ‘Apostoli autem praedicando ubique Evangelium (cf. Mc 16,20), ab audientibus Spiritu Sancto operante acceptum, Ecclesiam congregant universalem, quam Dominus in Apostolis condidit et supra beatum Petrum, eorum principem, aedificavit, ipso summo angulari lapide Christo Iesu (cf. Apoc 21,14; Mt 16,18; Eph 2,20)’

[3] Cf. Ibid. III, 20.

[4] Ibid. III, 21 ‘Ad tanta munera explenda, Apostoli speciali effusione supervenientis Spiritus Sancti a Christo ditati sunt (cf. Act 1,8; 2,4; Io 20,22-23), et ipsi adiutoribus suis per impositionem manuum donum spirituale tradiderunt (cf. 1Tim 4,14; 2Tim 1,6-7), quod usque ad nos in episcopali consecratione transmissum est. Docet autem Sancta Synodus episcopali consecratione plenitudinem conferri sacramenti Ordinis, quae nimirum et liturgica Ecclesiae consuetudine et voce Sanctorum Patrum summum sacerdotium, sacri ministerii summa nuncupatur. Episcopalis autem consecratio, cum munere sanctificandi, munera quoque confert docendi et regendi, quae tamen natura sua nonnisi in hierarchica communione cum Collegii Capite et membris exerceri possunt. Ex traditione enim, quae praesertim liturgicis ritibus et Ecclesiae tum Orientis tum Occidentis usu declaratur, perspicuum est manuum impositione et verbis consecrationis gratiam Spiritus Sancti ita conferri et sacrum characterem ita imprimi, ut Episcopi, eminenti ac adspectabili modo, ipsius Christi Magistri, Pastoris et Pontificis partes sustineant et in Eius persona agant. Episcoporum est per Sacramentum Ordinis novos electos in corpus episcopale assumere’.

[5] Cf. Le schéma conciliaire du 3 juillet 1964, P. 86.

[6] A Relatio super caput III textu emendati refere-se ao grande texto de santo Tomas, IIa-IIae, q. 39, s. 3 – O cargo, munus, de santificar, que já  é um poder, potesta, uma vez que pode sempre exercer validamente, é suficiente por ele mesmo para representar “o elemento ontológico” exigido pelo cargo, munus, de ensinar e de reger? Ou é preciso considerar que a consagração episcopal confere além disso uma nova qualidade ontológica, constituindo expressamente o cargo, munus, de ensinar e de reger? Esta é a questão debatida. Seja o que for, é do “elemento jurídico e canônico” requisito para que o cargo de ensinar e de reger possa exercer-se como poder, que devem enterder-se os documentos dos pontifices recentes que fazem derivar do papa a jurisdição episcopal (cf. A Igreja do Verbo incarnado, I, 1962, p. 737).

[7] Ibid, III, 22: ‘Romanus enim Pontifex habet in Ecclesiam, vi muneris sui, Vicarii scilicet Christi et totius Ecclesiae Pastoris, plenam, supremam et universalem potestatem, quam semper libere exercere valet.’

[8] Ibid. III, 25: ‘Haec autem infallibilitas, qua Divinus Redemptor Ecclesiam suam in definienda doctrina de fide vel moribus instructam esse voluit, tantum patet quantum divinae Revelationis patet depositum, sancte custodiendum et fideliter exponendum. Qua quidem infallibilitate Romanus Pontifex, Collegii Episcoporum Caput, vi muneris sui gaudet, quando, ut supremus omnium christifidelium pastor et doctor, qui fratres suos in fide confirmat (cf. Lc 22,32), doctrinam de fide vel moribus definitivo actu proclamat. Quare definitiones eius ex sese, et non ex consensu Ecclesiae, irreformabiles merito dicuntur, quippe quae sub assistentia Spiritus Sancti, ipsi in beato Petro promissa, prolatae sint, ideoque nulla indigeant aliorum approbatione, nec ullam ad aliud iudicium appellationem patiantur. Tunc enim Romanus Pontifex non ut persona privata sententiam profert, sed ut universalis Ecclesiae magister supremus, in quo charisma infallibilitatis ipsius Ecclesiae singulariter inest, doctrinam fidei catholicae exponit vel tuetur’.

[9] Ibid. III, 25: “Hoc vero religiosum voluntatis et intellectus obsequium singulari ratione praestandum est Romani Pontificis authentico magisterio etiam cum non ex cathedra loquitur; ita nempe ut magisterium eius supremum reverenter agnoscatur, et sententiis ab eo prolatis sincere adhaereatur, iuxta mentem et voluntatem manifestatam ipsius, quae se prodit praecipue sive indole documentorum, sive ex frequenti propositione eiusdem doctrinae, sive ex dicendi ratione”.

[10] Discurso, III sessão, col. 1223.

[11] Cf. Const. III, 22.

[12] Cf. ibid. III, 25.

[13] Cf. ibid. III, 23.

[14] Cf. trad. fr. DC LXII, 1965, col. 80-82.

[15] A nota explicativa precisa ainda que o soberano pontífice pode realizar sozinho alguns atos que escapam totalmente a competência dos bispos, por exemplo convocar o concílio e dirigí-lo, etc. Enquanto pastor supremo da Igreja, ele pode exercer seu poder em todo tempo, a seu gosto, como o é requerido por seu cargo. O colégio  em contrapartida sempre existe, mas não age por essa razão de uma maneira estritamente colegial. Nem sempre está em pleno exercício (in actu pleno). É só por intervalos que realiza um ato estritamente colegial; e só pode agir assim com o consentimento do seu chefe, em virtude de um ato relevante de sua competência.

[16] Wilhelm BERTRAMS, S.J., De Relatione inter episcopatum et primatum: Principia philosophica et theologica quibus relatio juridica fundatur inter officium episcopale et primatiale, Rome, Université Grégorienne, 1963.

[17] Se o cargo (munus) lhe vem, ainda aqui, da consagração, este cargo só pode exercer-se e tornar-se um poder (potestas) em virtude de um mandato hierárquico. Este mandato, para os Orientais separados exercendo de fato o poder, pode ser significado por costumes legítimos não revogados pela autoridade suprema da Igreja. Mas o concilio não entrou nestas questões debatidas pelos teólogos.

[18] Cf. Discours, III° session, col. 1225.

[19] Cf. Const. III, 29.

[20] Cf. ibidem.

[21] Discurso, III sessão, col. 1223-1224.

 

PARA CITAR 


JOURNET, Cardeal Charles. O Ministério da Hierarquia. Disponível em <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/concilio-vaticano-ii/colegio-dos-bispos/870-o-misterio-da-hierarquia> Desde 04/04/2016. Tradução: Faustino Sassoma Muhongo.

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