Mas por trás de tudo isso há uma questão de grande alcance, que tento expor agora. Cada vez estou mais convencido de que não há contradição no Magistério. Isto é, se lermos os textos papais do século XIX no seu contexto, sua interpretação não discorda com a Dignitatis humanae; simplesmente, neles ainda não havia sido explicitado o direito da liberdade religiosa, porque trabalhavam com outra conceituação. As considerações que seguem tentam diretamente lançar alguma luz sobre a natureza do direito de liberdade religiosa em Dignitatis humanae; acidentalmente, supõe um apoio em favor da tese da continuidade substancial do Magistério.
Minha tese é a seguinte: a noção de “direito” que tem diante os papas do século XIX e a que tem diante a Dignitatis humanae são distintas. Note-se bem: não só a noção de “direito de liberdade religiosa, mas a noção geral de direito. Tem antes noções distintas de direito, e dessas duas noções resultam, quando se aplicam a matéria religiosa, uma condenação em um caso e uma aprovação no outro.
Antes de seguir adiante, precisemos que nem os papas nem o Vaticano II fazem diretamente “filosofia de direito”. Porque tem em frente, e até mesmo elaboram quando lhes é necessário, noções jurídicas que podem depender – é inevitável – da cultura jurídica do momento em que se expressam e, em particular, das diversas filosofias jurídicas em presença.
A noção de direito que tem diante os papas quando condenam o direito de liberdade religiosa (e outros muitos) é a de uma certa “legitimação moral para atuar”, que se corresponde com a noção, clássica na modernidade, de “direito subjetivo”. Não vamos fazer aqui a história desta noção, nem discutir sobre sua mais que provável filiação no iusnaturalismo-racionalista (que, aliás, apenas no nome se parece ao iusnaturalismo clássico pré-moderno). Basta observar algumas coisas. Em primeiro lugar, é de conhecimento público que esta noção de direito subjetivo era a que triunfava na cultura jurídica contemporânea a esse Magistério. Todavia, hoje é a que encontramos com frequência nos manuais para uso dos estudantes nas faculdades de direito. Sobretudo necessito destacar que esta noção possui em princípio uma forte confusão entre direito e moral, e a este fato não são alheias as considerações que tivemos que fazer sobre o caráter jurídico da declaração.* Por último, é a noção de direito que tinham os defensores das “liberdades modernas”, e portanto, posto que os papas deviam responder às doutrinas realmente presentes, era a que manejavam quando davam suas respostas a essas “liberdades modernas”.
Tenho de notar agora algo muito importante. Com esta noção de direito, o indiferentismo religioso e o relativismo doutrinal e moral não eram só o “contexto externo” em que acidentalmente se defendia a liberdade de cultos (todos os cultos são moralmente iguais e tem o mesmo valor salvífico). Quero dizer: o fato de que os defensores das “liberdade modernas” o foram também do indiferentismo religioso e do relativismo não era uma “coincidência casual”. O indiferentismo religioso e o relativismo eram exigências doutrinais intrínsecas de umas liberdades concebidas como legitimação moral. Com efeito, a afirmação de que existe uma legitimação moral para render qualquer culto se assenta necessariamente sobre a indiferença moral entre os diversos cultos.
E, portanto, tampouco é casual que os defensores destas liberdades foram os autores do anti catolicismo, posto que não podiam ser pacíficos com uma Igreja que, ao auto compreender-se como “a verdadeira”, era necessariamente beligerante com esses pressupostos doutrinais indiferentistas e relativistas. Tudo isto, a propósito, deve fazer compreender que quando se pede que os textos papais na matéria sejam entendidos em seu contexto histórico, não se está dizendo algo parecido a: “uma vez que os defensores das liberdades eram ao mesmo tempo – que casualidade! – inimigos da Igreja por muitos conceitos, é compreensível que os papas condenaram em conjunto suas doutrinas”.
A contextualização leva ao invés a constatar que essas doutrinas, as liberdades, tal como estavam formuladas e fundamentadas, levam em si o indiferentismo e, com ele, o anti-clericalismo, e, em consequência, não podiam deixar de ser condenadas.
No capítulo primeiro deste trabalho* temos considerado os documentos magisteriais mais importantes nesta questão. Uma leitura do conjunto de todos eles põe de forma clara uma constante linha de argumentação para a condenação de todos os direitos de liberdade que se desprezam. Como todos os argumentos, são, em sua essência, muito simples. Ele diz o seguinte: como pode alguém estar moralmente legitimado para o mal, para pecar? Efetivamente, é um absurdo, uma contradição. Com isto se põe de manifesto que o Magistério se enfrentava com um direito concebido como legitimação moral. É paradigmático este texto de Leão XIII, em que se condenam as liberdades de expressão e de imprensa:
“Digamos agora algumas palavras sobre a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa. É quase desnecessário afirmar que não existe o direito a esta liberdade quando se exerce sem moderação alguma, ultrapassando todo freio e todo limite. Porque o direito é uma faculdade moral que, como temos dito já e convém repetir com insistência, não podemos supor concedida pela natureza de igual modo a verdade e ao erro, a virtude e o vício. Existe o direito de propagação na sociedade, com liberdade e prudência, todo o verdadeiro e todo o virtuoso para que possa participar das vantagens da verdade e do bem o maior número possível de cidadãos. Porém, as opiniões falsas, que são para o entendimento humano a maior peste, e os vícios corruptores do espírito e da moral pública devem ser reprimidos pelo poder público para impedir sua paulatina propagação, a fim de impedir que o mal alastre para ruína da sociedade (…) Porém, nas matérias opináveis, deixadas por Deus a livre discussão dos homens, está permitido a cada um ter a opinião que lhe agrade e expor livremente a própria opinião. A natureza não se opõe a ele, porque esta liberdade nunca leva o homem a oprimir a verdade”¹
Esta rejeição para uma legitimação moral para o mal é o que está detrás da condenação das chamadas “liberdades de perdição”, as que classificam com frequência, logicamente, de “loucura”.²
Desnecessário dizer que este conceito de direito leva necessariamente a confusão entre os planos moral e jurídico de que antes falávamos. A afirmação do direito de liberdade religiosa necessita de outra lógica, isto é, necessita superar a lógica do direito subjetivo. Uma noção distinta de direito. Vamos procurar desenvolver brevemente. Faremos primeiro um desenho histórico dessa noção de direito, e depois comprovaremos se a declaração guarda relação com ela.
Comecemos constatando que pertence à essência do direito a presença de uma relação intersubjetiva. Se não há dois, não há direito. Isto é, não é uma mera ocasião para sua manifestação ou para seu exercício. Não é que se não há dois não me servem os direitos, porque não tenho ocasião de exercitá-los, mas que, se não há dois, não há direitos. Robinson Crusoe (que é uma pessoa totalmente só no mundo, ou uma pessoa considerada com abstração das demais) carece absolutamente de direitos.
Agora, em que consiste essa relação intersubjetiva? Qual é seu objeto? Consiste em condutas. Em condutas do titular passivo. Vejamos: meu direito é uma relação intersubjetiva (de conteúdo jurídico, obviamente: não qualquer relação). O objeto desse direito são sempre condutas alheias que me são devidas em justiça. O conteúdo de tais condutas é variadíssimo, mas podemos reduzi-las a abstenções e prestações (condutas negativas e positivas); e os titulares passivos – que me devem a conduta – são também variados: pessoas individuais, grupos, a inteira sociedade, o poder público…
Diz-se que o direito é a resiusta, o devido. Precisamente é devido, estão não consiste na coisa material (uma quantidade de dinheiro, uma fazenda…), mas no único que os homens em seu poder – no único que, portanto, podem ser devido/exigível -, que é sua próprio atuar. Dizer que alguém “me deve mil euros”, é dizer que “deve entregar-me mil euros”. Ao que tenho direito não é “os mil euros” – que, na realidade, não tem nada que ver comigo, não guardam relação comigo – se não a que o sujeito passivo “me entregue” mil euros. E quando já as tenho em meu poder, meu direito consistirá meramente em condutas alheias: para colocar de forma simples, meu direito será a que os demais “não me as tirem”: isso é o que me “devem” e, portanto, meu direito³.
Em definitivo, os direitos só são seriamente conceituáveis como “condutas devidas”. Se concebermos o direito à vida como um “direito a viver”, então qualquer enfermidade mortal ou qualquer catástrofe mortal são uma injustiça: a negação de um direito que é inviolável e que é o primeiro entre os direitos. O direito a vida consiste em uma complexa estrutura de condutas alheias – abstenções e prestações – que me são devidas em relação com minha vida e minha saúde.
Certamente, estas condutas devidas configuram – segundo os diversos direitos – âmbitos dentro dos quais eu posso atuar. Se possuo uma fazenda, a série de condutas devidas em respeito a mim em relação com a fazenda configura uma esfera dentro da qual tenho diversas possibilidades de atuação. Essas possibilidades podem conceitualizar-se tecnicamente como faculdades, legitimações, etc.
Se trata, insistamos, de conceituações técnicas, que tem seu lugar no momento posterior à pergunta filosófica sobre o que é direito – quid ius -. Antes que estas consequências práticas e conceituações técnicas no terreno da essência do jurídico meu direito consiste nas condutas alheias que me são devidas.⁴
Insistamos na relação intersubjetiva. A existência da relação impede considerar, como temos visto, que o direito seja simplesmente algo que está no titular ativo; mas também impede considerar que se trate de algo que está puramente no titular passivo, enquanto seu objeto sejam condutas devidas por este. Existe um título, que reside no titular ativo. Um título pelo qual condutas tornam-se exigíveis: o titular pode exigi-las; e o ordenamento jurídico proverá as complexas vias desta exigibilidade e os caminhos para a tutela dos direitos.
Com estas considerações sobre a essência do direito não estamos fazendo um trabalho de política jurídica, não estamos falando de um projeto do ordenamento jurídico, mas tratando questões de conceituação. Penso inclusive que desta abordagem é possível fundamentar teoricamente uma renovada sensibilidade pelas questões de justiça, toda vez que o sentido do respeito aos direitos dos demais – e precisamente como direitos, isto é como exigência de justiça – passa para o primeiro plano.
Que transcendência tem isto em nosso tema? Simplesmente que, conceituado o direito como conduta a outro devida, desaparece toda possível perplexidade a respeito do pecado: um “direito a algo que é pecaminoso”⁵ deixa de ser um absurdo, uma contradição. Já não necessitaremos acudir à teologia da consciência errônea para fundamentá-lo. Pelo contrário, concebido o direito como faculdade moral de agir, um “direito a algo que é pecaminoso” se converte em contraditório consigo mesmo: consiste em estar moralmente legitimado para fazer algo moralmente ilegítimo. E então só podemos fazer voltas acudindo à doutrina da consciência inculpavelmente errônea.
Agora vamos a segunda parte deste excursus. Em que medida esta superação do direito subjetivo, e esta noção alternativa de direito estão presentes na Dignitatis humanae? A meu modo de ver, a declaração, ao optar pela formulação negativa não está dando ao direito de liberdade religiosa uma natureza negativa: está afastando-se do direito subjetivo e aproximando-se ao direito como “conduta a outro devida em justiça”. Certamente, a Dignitatis humanae não faz filosofia de direito, nem formula categorias conceituais, mas se demonstra, ao longo de todo seu texto, confortavelmente legíveis desde as categorias que acabamos de expor, ou desde categorias próximas a elas.
Uma das relationes aponta isto. Quero dizer, explica a opção pela formulação negativa de um modo que acerca da declaração faz estas categorias. Vejamos este texto fundamental:
“A palavra direito pode tomar-se em dois sentidos. Primeiro, enquanto que é uma faculdade moral de fazer algo, isto é, uma faculdade em virtude da qual alguém goza de uma autoridade positiva ab intrínseco (empowerment, Ermachtigung, autorizzazione) para fazer. Na Declaração não se utiliza a palavra “direito” neste sentido, para não dar lugar a questões que não fazem ao caso, como por exemplo, a questão especulativa dos direitos da consciência errônea, que cai fora da questão jurídica da liberdade religiosa, tal como se trata dela na Declaração. O outro sentido é aquele, segundo o qual entende-se por direito a faculdade de exigir que alguém não seja obrigado a fazer, não seja proibido de atuar. Neste sentido, direito significa imunidade para obrar e exclusão de coações, sejam eles de força ou de impedimento. A palavra direito na presente Declaração é entendida somente neste sentido.
Se segue de tudo isto que, ao afirmar que a liberdade religiosa é um verdadeiro direito pertencendo ao homem, não se quer dizer que todas as religiões tem a mesma autoridade positiva, aprovada por um certo indiferentismo religioso. Nem tampouco se quer dizer que seja lícito a autoridade pública conceder autorização positiva a todas e a cada uma das Religiões, de tal maneira que se encontram em paridade de direitos. Longe está também isto de nós. Soaria, a um péssimo totalitarismo de Estado, mais bem próprio do laicismo. Pelo contrário a Declaração trata das pessoas humanas, entendidas seja privada, seja coletivamente, e em consequência, exigem, com paridade de direito, ser livres em matérias religiosas, ou, o que é o mesmo, imunidade de qualquer coação.”⁶
Neste texto resulta evidentemente que o relator entende a formulação negativa como um meio de superar o direito subjetivo, isto é como um meio de superar no texto a noção de direito como faculdade moral de agir, ao menos quando se aplica à liberdade religiosa.
Em conclusão, podemos dizer que cada vez que a declaração fala em negativo, tem que interpretar que se está sugerindo: “não entendemos legitimações morais, mas condutas a outrem devidas”.
Abordaremos agora um último aspecto da questão.
Ao longo de todo o iter redacional está presente a preocupação de deixar clara a obrigação moral do homem a respeito da verdade especialmente no que se refere à Igreja de Cristo, que subsiste na Igreja católica. Está presente nos textos, nas relationes e nas intervenções dos padres. Isto não se deve principalmente ao desejo de aproximar-se no possível á unanimidade, para o qual era necessário atender as resistências daqueles padres que eram especialmente sensíveis a uma eventual desautorização do magistério anterior. Também este elemento tático está presente, mas a razão principal não é essa, mas uma lógica de fidelidade a Deus, a Verdade, a identidade da Igreja, e ao homem.
Como é dado o caminho a esta preocupação? Nos primeiros schemata, nos que o moral não está distinguido do jurídico e se lida um conceito de direito encerrado ao “direito subjetivo”, canalizado através do conceito da consciência errônea: como o que agir com consciência invencivelmente errônea age bem, está em seu direito. Por isso, além da confusão entre o moral e o jurídico, tinha outros inconvenientes; entre outros, talvez o principal era que, em rigor lógico, estava implícito o absurdo – contrário a intenção do documento, denotador de uma aberração conceitual acerca do que é o direito, e que havia removido toda a sua virtualidade à declaração – de que só ao homem de consciência honrada se lhe reconhecia o direito.
Com efeito, se a titularidade do direito se baseia sobre a honradez da consciência errônea, se é esta honradez a que confere a titularidade do direito, se segue inevitavelmente (salvo que nos enganos, o que ocorre com frequência) que o homem que não tem uma consciência honrada, o que está em erro chamado “vencível”, carece deste direito; o qual é um absurdo jurídico, e esvazia o conteúdo da declaração.
Pouco a pouco se opera um processo complexo porém unitário: se reforçar o caráter jurídico da declaração; se distingue o moral do jurídico; e se desvincula a titularidade do direito a respeito do tema da consciência “errônea porém honrada”. Desvincula-se não só porque desaparece o parágrafo que a vinculava, mas porque no texto definitivo se inclui uma passagem que nega essa vinculação: o direito permanece inclusive naqueles que não satisfazem a obrigação de buscar a verdade, afirmar o número 2. Deste modo, se dispõe com objetividade – o qual é imprescindível – a titularidade do direito.
Mas, então, pode-se dizer: não implica isto na prática em negar a obrigação de buscar a verdade? A todas luzes, não: porque se tem demarcado o direito da legitimação moral. Precisamente quando o direito se confundia com uma legitimação interior era necessário essa insuportável intromissão da teologia moral. Porem, agora já não é o caso.
Desta consideração se pode tentar desfazer – saindo já do tema da declaração em si – um complexo nó histórico. O nó consiste em que a noção do direito subjetivo como faculdade moral de agir – criticada por Lachance – se introduz na polêmica do século XIX e a contaminou de modo insolúvel. Evidentemente, só superando essa noção substituindo pela relação de justiça entre pessoas era possível admitir a liberdade religiosa sem cair no indiferentismo mais crasso.
Os primeiros schemata não superavam o direito subjetivo. Portanto, não desvinculavam o direito da moral, e se viam obrigados a amplos recursos sobre a teologia da consciência errônea⁷.
Que dúvida cabe de que a teologia moral tem que seguir expondo a teologia da consciência errônea? Posto que a consciência é a norma próxima da moralidade, toda ação é subjetivamente reta (e o que conta em definitivo é a retitude subjetiva, não esqueçamos) contanto que esteja detrás uma consciência honrada. Porém, todo esse excursus tem muito pouco a ver com a natureza e a titularidade do direito de liberdade religiosa (a antropologia da consciência ocupa um lugar, e o tem em Dignitatis humanae 2 e 3, mas não a reflexão específica sobre a consciência errônea). As construções sobre o papel moralmente legitimador da consciência errônea tampouco guardam parentesco com o indiferentismo nem com o relativismo moral, embora historicamente podem ter sido impulsionadas com ocasião destas doutrinas. E isto porque essas construções não esquecem que, por sua vez, a consciência está regulada pela verdade. Ela não cria a verdade, nem decide sem mais o critério moral de atuação: os busca e os encontra. É nesta tarefa de busca de uma verdade objetiva onde se levanta o problema do possível erro invencível.
Para concluir, vamos referir a um caso paradigmático. O número 6e da declaração afirma que não é lícito aos poderes públicos impedir que alguém abandone uma comunidade religiosa. Isto é, afirma o direito a abandonar uma comunidade religiosa como o direito contido no direito da liberdade religiosa. É evidente que a expressão “uma comunidade religiosa” inclui por hipótese a Igreja católica como a qualquer outra confissão, no caso de que a pessoa em questão seja católica. Em resumo, se reconhece o direito a apostatar.
Mas – poderíamos dizer escandalizados – como é possível isto? Como é possível que o que não só é um gravíssimo pecado, mas que é um dos mais graves delitos no ordenamento canônico, seja reconhecido como um direito – e um direito de liberdade religiosa -, precisamente pela autoridade suprema no ordenamento canônico? Não temos enlouquecido? Não: na realidade, a expressão “direito a apostatar” soa mal na medida em que estamos ainda condicionados pela compreensão de direito como legitimação moral. Mas se entendemos corretamente o direito, o direito “a apostatar” consiste tão só em uma série de condutas a outros (sobre tudo abstenções) exigíveis a propósito da eventual apostasia de uma pessoa, o qual não causa nenhum problema: nem moral, nem teológico, nem de relações entre ordenamentos.
Este exemplo nos obriga a concluir que a declaração é inteligível se lhe atribuímos um afastamento do direito subjetivo e uma aproximação a uma noção de direito a cerca ao que aqui temos exposto.⁸
Fonte: Iglesia y Estado em El Vaticano II, pág. 136 – 146. Do Sacerdote, doutor em Direito e em Direito Canônico, e Bacharel em Teologia, Carlos Soller.
NOTAS:
¹. Leão XIII, Libertas praestantissimum
². Para resumir, a questão que temos levantado nestas páginas é: que ideia de direito há detrás da convicção de que só se tem direito ao moralmente bom, ao que não é moralmente mau? Que ideia de direito há destras desta convicção? É uma ideia que faz absurda a ideia de ter direito a algo moralmente mau. É a ideia do direito como faculdade de atuar, que implica necessariamente uma legitimação moral desse atuar, sobretudo, se trata de um direito natural.
³. Evidentemente, estamos simplificando muito, porque fazemos abstração de aspectos que não interessam a nossa matéria. Que dúvida cabe de que o feixe de direitos que surgem da posse de um dinheiro é muito mais complexo que o direito a que não me retirem o dinheiro. O que nos interessa aqui é somente exemplificar – neste caso com o dinheiro – que o conteúdo dos direitos consiste sempre em condutas alheias.
⁴. A declaração define o direito de liberdade religiosa como imunidade de coação, para adicionar o seguinte ato: e isto de tal maneira que nem se obrigue nem se impeça, etc. Isto pode interpretar-se confortavelmente destas categorias. A primeira parte definiria a essência, e a segunda parte se preocuparia em explicitar a consequência prática do direito, iluminando-o em sentido inverso: o assinalar da consequência prática da não-coação joga luz sobre como deve ser essa não-coação.
⁵. Notemos que aqui estamos utilizando uma etimologia usual , que não corresponde com o plano de noção que estamos fazendo, mas que é legitimamente utilizável.
⁶. Veja também AS, IV/I, 192: “O direito conota imediata e formalmente uma relação intersubjetiva, isto é, uma relação entre pessoa e pessoa. Em toda relação jurídica há sempre duas pessoas ou dois sujeitos; está o sujeito ativo, que tem o direito, e está o sujeito passivo, que deve dar o que é objeto do direito, seja fazendo algo, seja omitindo uma ação.” (traducción mia).
⁷. Entendendo o direito (subjetivo) como legitimação moral (para agir), o direito de liberdade religiosa significa que alguém está moralmente legitimado para idolatrar, isto é, que idolatrar está bem, o que é o maior absurdo. Compreende-se que, em meio desta confusão, a titularidade do direito se fundamente – nos primeiros schemata – sobre uma reflexão que reconhecia a teologia da consciência errônea. Com efeito, se eu estou em erro “invencível/incupável”, estou moralmente justificado em minha ação, e estou moralmente legitimado para essa ação.
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