Terça-feira, Maio 7, 2024

As dificuldades do diálogo e os problemas fundamentais

Na II Sessão do Concílio teve apenas início um diálogo sobre a liberdade religiosa: primeiro, de forma bastante sumária, na aula conciliar; e mais tarde, nos comentários, críticas e emendas enviadas ao Secretariado para a União dos Cristãos. Bastarão alguns exemplos para demonstrar as dificuldades em face da tentativa de iniciar um diálogo entre a primeira e a segunda posição.

A primeira posição pergunta se um homem tem um direito natural de fundar uma religião falsa, e responde negativamente, pensando assim ter infligido um golpe mortal na segunda posição.

Pena é que a segunda posição não responda afirmativamente à pergunta. Na realidade, nem gostaria de responder de forma alguma. A mesma maneira de colocar a pergunta, abstraindo de qualquer realidade histórica, não se refere concretamente ao problema da liberdade religiosa em seu sentido contemporâneo, que supõe determinado contexto histórico-social. Eis por que o diálogo não é possível ou, ao menos, não é fácil.

A primeira opinião pergunta, além disso, se podemos conceder ao erro os mesmos direitos que à verdade. Responde negativamente, e pensa que desta maneira derrubou os fundamentos da segunda posição. Mas, na verdade, a segunda posição não se orienta por este fundamento simplista.

Ela expõe mais claramente a questão pondo a pergunta se o poder público pode autorizar positivamente a existência e propagação do erro religioso no mesmo nível em que positivamente autoriza a existência e propagação da liberdade religiosa. À pergunta assim formulada responde de novo que a própria pergunta não tem cabimento quanto ao problema contemporâneo da liberdade religiosa.

Exemplificando, a primeira emenda da Constituição dos EUA não autoriza positivamente a existência e propaganda das Testemunhas de Jeová. Felizmente, não autoriza nem a existência e propaganda da Igreja católica. Digo felizmente, pois tal autorização, por parte do poder público, seria uma monstruosa violação da liberdade da Igreja que não pede, nem tolera, semelhante autorização.

A instituição legal da liberdade religiosa, no sentido contemporâneo, não é uma autorização positiva nem da verdade nem do erro. Essa instituição não “concede” direitos, ou seja, não confere poderes em matéria de religião. Sua premissa essencial é que o poder público não tem competência para conferir semelhantes faculdades. Noutras palavras, é uma negação da proposição 39 do Syllabus.

A primeira emenda é simplesmente o reconhecimento de uma imunidade. Por ela, o povo dos Estados Unidos, inspirando-se na consciência pessoal e política, declara que o livre exercício da religião deverá ser isento de qualquer coerção, exercida pelo poder do Estado ou por qualquer outro poder constituído no seio da sociedade.

A primeira emenda representa uma limitação imposta por um povo livre ao poder público, e não tanto uma afirmação do poder do Estado sobre o povo, no sentido do liberalismo sectário continental. O problema, se ao erro se devem conceder os mesmos direitos que à verdade, simplesmente não é nem considerado. Eis por que, ainda uma vez, o diálogo não parece possível.

Diversidade de posição e dificuldade de entendimento.

Poderá ser útil um outro exemplo: a primeira posição coloca esta pergunta: tem a consciência errônea o direito do foro público? Para esclarecer sua resposta negativa, dá um exemplo: se, por erro, eu penso que tu me deves 10 mil cruzeiros, a minha consciência errônea me dará o direito de exigir-te esta soma? Por seu turno, a segunda posição declara que essa pergunta não é pertinente, e que o exemplo não cabe.

Em primeiro lugar, porque é tirado da esfera das relações jurídicas entre os homens, que são reguladas por deveres de justiça, ao passo que a liberdade religiosa diz respeito à relação do homem com Deus e, coisa ainda mais importante, confunde a noção de direito com a de faculdade ou imunidade. Minha consciência errônea não me confere direito para exigir de ti o dinheiro que não me deves.

Por outra parte, minha consciência religiosa, errônea ou não, confere-me uma imunidade da coerção legal e extralegal, nos limites definidos pelas exigências da paz pública. Eis por que, de novo, não poderá avançar o diálogo. A segunda posição, por seu lado, também põe algumas perguntas. Pergunta ela, por exemplo, se todo o problema dos direitos humanos deve basear-se na premissa que a natureza do homem é uma natureza histórica, cujas exigências racionais se manifestam progressivamente por efeito do estímulo do contexto social e político em contínua mudança e em resposta à consciência pessoal e política em contínuo desenvolvimento. Diante dessa pergunta, a primeira aposição tende ou a fechar um olho ou a formular a acusação de que isto é modernismo jurídico. Em todos esses casos não há diálogo.

Ainda na interpretação dos documentos papais, a segunda posição pergunta, a propósito de Leão XIII, por exemplo, se o contexto histórico do documento e suas intenções doutrinais, políticas e pastorais, não devem considerar-se como condicionados historicamente e, portanto, possíveis em circunstâncias diversas e sobretudo quando se trata de novos problemas que tocam as perspectivas em que se considera a verdade de ulteriores desenvolvimentos, quanto à sua concepção e quanto à sua formulação.

Responde a primeira posição que Leão XIII não falou num contexto histórico e que, seja como for, suas expressões transcendiam o contexto. O importante é o que ele disse, as proposições postas no papel. Tais proposições são expressas de uma vez para sempre: são verdadeiras, certas, imutáveis. A segunda posição leva adiante o problema, citando a afirmação de Pio XII que a doutrina de Bonifácio VIII sobre o sol e a lua e as duas espadas era historicamente condicionada e devia considerar-se superada (cf. Alocuação Vous avez voulu, de 7-9-1955, AAS 7, 1955).

Em resposta, a primeira posição muda de assunto, suscitando com citações acomodadas o problema da autoridade doutrinal das Encíclicas papais. É importante este problema; mas suporia uma resposta ao problema anterior. De novo as duas partes não conseguem entabular o diálogo.

Este diálogo parece indicar onde reside de fato o problema. A primeira e a segunda posição não se chocam entre si como a afirmação se choca com a negação. Suas divergências se acham num nível mais profundo, tão profundo que é difícil aprofundá-lo ainda mais. Representam o choque contemporâneo entre a mentalidade clássica e consciência histórica. Mas o assunto é tão amplo que não é possível discuti-lo aqui. Bastará mostrar-lhes a posição, considerando as objeções que uma posição opõe à outra.

A primeira posição acusa a outra de erros doutrinários: liberalismo e neoliberalismo, subjetivismo, relativismo, indiferentismo, rousseauismo, laicismo, modernismo social e jurídico, personalismo humanístico, existencialismo, ética da situação, falso irenismo. Estas as acusações contra a versão, um tanto anêmica, falha e mal posta, da segunda posição, tal como apareceu no texto original do quinto capítulo do Decreto sobre o Ecumenismo. E havia outras. Mas não é difícil demonstrar que todas essas acusações se baseiam num mal-entendido.
Basta que a segunda posição esclareça sua argumentação, para demonstrar que as acusações de erros doutrinais não têm fundamento. A segunda posição mostra-se menos drástica em seu juízo. Não acusa a primeira posição de erros doutrinários, mas teológicos.

Primeiro, o do fixismo: julga que o ensinamento da Igreja e o modo de formular sua fé e as doutrinas de razão conexas com a fé podem e devem encerrar-se num momento particular, negando a possibilidade e legitimidade de um ulterior desenvolvimento. A primeira vítima história da falácia foi Eusébio de Cesaréia, durante a controvérsia sobre a nova fórmula nicena das fé da Igreja quanto ao Filho e ao Verbo. As fórmulas bíblicas – diziam ele e seus partidários – são definitivas; não é lícito ir além. Esses homens se recusavam a considerar o fato de Ário ter colocado uma nova pergunta que esperava resposta, sem ambiguidade, com fórmulas bíblicas. Da mesma forma, a primeira opinião fixaria a doutrina da Igreja, sobre a liberdade religiosa, no momento particular de concepção e formulação atingido no século XIX, recusando-se a considerar o fato de que o estado da questão se veio alterando e que a resposta dada no século passado não é adequada.

O segundo erro, irmão do primeiro, é o arcaísmo. Consiste em refutar, por princípio, a síntese ou impostação mais recente, no esforço de aderir ou regressar à síntese ou impostação de um época anterior, que se considera mais simples e pura. A história, na reforma protestante original, conheceu o arcaísmo bíblico; o arcaísmo patrístico, em Baio e Jansênio; o arcaísmo medieval em muitos tipos talmudismo escolástico.

A primeira posição é uma espécie de arcaísmo político. Assim como a doutrina de Bonifácio VIII se tornou arcaica depois da aparição, no século XIX, do Estado-nação autônomo, do mesmo modo a primeira posição é arcaica em relação ao aumento da consciência pessoal e política do século XX. Com esse aumento da convicção do homem quanto à sua atitude de homem livre numa sociedade livre, a doutrina católica da liberdade religiosa deve formar-se igualmente para a existência de si mesma.

Pio XII entreviu essa necessidade e levou-a em conta na sua doutrina sobre o Estado jurídico, mas, com sua habitual prudência, retraiu-se diante das consequências plenas. Com toda a penetração de sua extraordinária visão, João XXIII viu o problema em plena luz. Seu modo de ver encontrou expressão na articulada concepção da liberdade do povo como objetivo e método político e no correspondente conceito da liberdade religiosa como elemento necessário e integrante da liberdade do povo.

Daí se segue, simplesmente, a mais ampla e premente conceitualização da liberdade religiosa como faculdade civil e direito humano (pessoal e coletivo) e como instituição legal. Segue-se também a demonstração de que a primeira posição é arcaica, por ser totalmente desprovida de qualquer sensibilidade diante da consciência pessoal e política.

Outro erro é a abstração inadequada, ou o contrário da famosa concreteza inadequada, especificada por Alfred North Whitehead. Essa é que cria as ideologias. Diante desta, a primeira posição se apresenta como uma teoria concebida em plena abstração, a pura criação da conscience survolante. É uma apologia do Estado-nação, de população predominantemente católica, que começou a tomar forma, sob governos mais ou menos absolutistas, após o Concílio de Trento, e tomou o choque tanto no plano religioso como no político, da Revolução Francesa.

Esta realização especial, político-legal, começou a ser reconhecida numa série de concordatas no século XIX, a primeira das quais foi a estipulada em 1818, com o Reino das Duas Sicílias. Sem dúvida, é legítimo tecer uma argumentação a favor dessa criação histórica. Todavia, dever-se-ia tecer uma argumentação, como fez o Papa Leão XII, isto é, de forma concreta e com realismo histórico.

O erro se introduz quando o argumento leonino é transferido a uma tese abstrata, que propõe um tipo ideal abstrato de lei constitucional, de per si e em linha de princípio obrigatória numa abstração chamada “Estado”.

O “Estado católico” é o ideal. Aqui reside o ponto nevrálgico do diálogo intra muros sobre a liberdade religiosa. Pode acontecer que a parte inter-eclesial do diálogo não seja mais importante, hoje, dado o caráter universal do problema. Mas o diálogo dentro da Igreja tem prioridade. Enquanto não se resolver, tomando a forma de um “consensus”, é possível o diálogo ecumênico, e menos ainda o diálogo entre cristãos e não-cristãos. Notou-se, muitas vezes, que se a primeira posição se enrijece a ponto de tornar-se a única expressão católica, todo diálogo morre antes mesmo de nascer.

Afirmou-se que a segunda posição implica na rejeição do conceito clássico do Estado confessional católico. Em sua forma genérica, esta afirmação é falsa. Evidentemente que o Estado católico não é um conceito unívoco. Tal fato será admitido por qualquer um que conheça bem a história política e o conteúdo diferente das Concordatas. O conceito abrange toda uma variada gama de realizações históricas, desde o ancien regime, com sua união galicanizada do trono e do altar, até o Portugal contemporâneo onde, segundo alguns juristas, existe uma espécie de separação entre Igreja e Estado. Nem se deve descurar o fato de algumas dessas realizações históricas serem bastante ambíguas. Seja como for, todo o problema exige que os argumentos sejam bem colocados e levem em conta todas as distinções necessárias.

A religião como ato público exige um Estado confessional? A primeira distinção é entre sociedade, ou povo, e Estado ou ordem da lei e administração pública. Desta distinção se deriva uma outra imediata, entre a profissão pública da religião feita pela sociedade (officium religionis publicae) e a solicitude pela religião a cargo do poder público (cura religionis). Nenhuma dessas distinções foi clara e consistentemente mantida por Leão XIII. Daí a confusão.

Sem dúvida, a segunda posição reconhece, como também todos os católicos, que a obrigação de professar a fé em Deus e adorá-lo repousa na sociedade: no povo e nos indivíduos. Essa obrigação, todavia, não se cumpre com uma ação legislativa ou executiva do poder público. Cumpre-se por meio de eventuais atos públicos de culto, como por exemplo na ocasião da abertura do período legislativo ou do ano judiciário, dias nacionais de ação de graças e súplicas, etc.

Estes atos de cultos são organizados pela Igreja, não pelo governo, que não tem competência em matéria litúrgica. Ou, melhor, devem ser atos voluntários, pois são formalmente atos religiosos, e não se pode utilizar a força, com tal objetivo, sobre os indivíduos ou sobre o povo.

A segunda posição aceita a noção da sociedade cristã, descrita nas modernas Encíclicas papais. O desenvolvimento da consciência social cristãs é um dever altíssimo. Igualmente o é o esforço por penetrar todas as instituições da sociedade, econômicas, sociais, culturais, embebendo-as do espírito cristão de verdade, justiça, amor e liberdade. O mesmo se diga do aumento da consciência pessoal e política no seio dos povos.

A abandonada e inerte imperita multitudo, do tempo de Leão XIII, não era um povo cristão no sentido mais alto da palavra. A segunda posição rejeita a noção da sociedade laicizada, no sentido do liberalismo sectário continental. Particularmente, considera a unidade religiosa duma sociedade ou dum povo determinado como um bem de altíssima ordem, tão alta que transcende a ordem política. E é também evidente que o aparecimento de semelhante soci

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