Quarta-feira, Maio 8, 2024

Concílio de Trento – Sessão VI – Decreto sobre a justificação

Sessão VI (13-01-1547)

Decreto sobre a justificação

792 a. Em vista da doutrina errada que nestes tempos se tem espalhado não sem dano para muitas almas e grave detrimento para a unidade da Igreja, para louvor e glória de Deus Onipotente, para tranqüilidade da Igreja e salvação das almas, o sacrossanto Concílio Ecumênico e Geral de Trento, legitimamente congregado no Espírito Santo…, tem a intenção de expor a todos os fiéis de Cristo a sã e verdadeira doutrina da justificação, ensinada pelo sol de justiça (Mal 4, 2), Cristo Jesus, autor e consumador de nossa fé (Hb 12, 2), transmitida pelos Apóstolos e sempre retida pela Igreja Católica sob a direção do Espírito Santo e manda mui severamente que para o futuro ninguém ouse crer, pregar ou ensinar de outro modo do que está determinado e declarado no presente decreto.

 

Cap. 1 – A insuficiência da natureza e da lei para justificar os homens

793. Declara em primeiro lugar o santo Concílio que, para se entender de modo correto e puro a doutrina da justificação, é necessário cada um reconheça e confesse que, tendo todos os homens pela prevaricação de Adão, perdido a inocência (Rom 5, 12; 1 Cor 15, 22) e se tornado imundos (Is 64, 6) e (como diz o Apóstolo) por natureza filhos da ira (Ef 2, 3), conforme [o Concílio] expôs no decreto sobre o pecado original, de tal forma eram servos do pecado (Rom 6, 20) e sujeitos ao poder do demônio e da morte, que não só os gentios por força da natureza [cân. 1], mas também os judeus pela força da letra da lei de Moisés não podiam livrar-se ou levantar-se [daquele estado], posto que neles o livre arbítrio de modo algum fosse extinto [cân. 5], [tiveram] contudo as suas forças atenuadas e inclinadas [ao mal].

 

Cap. 2 – O mistério da vinda de Cristo

794. Assim o Pai celestial, o Pai das misericórdias e o Deus de toda a consolação (2 Cor 1, 3), quando veio aquela feliz plenitude dos tempos (Ef 1, 10), enviou aos homens Jesus Cristo, seu Filho, que foram anunciado e prometido a muitos Santos Padres antes da Lei e sob a Lei, a fim de remir os judeus que viviam sob a lei e [para] que os povos, que não seguiam a justiça, alcançassem a justiça (Rom 9, 30) e todos recebessem a adoção de filhos (Gal 4, 5). A este propôs Deus como propiciação pela fé no seu sangue pelos nossos pecados (Rom 3, 25), não só pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo (1 Jo 2, 2).

 

Cap. 3 – Quem é justificado por Cristo

795. Embora tenha ele morrido por todos (2 Cor 5, 15), não obstante nem todos recebem o benefício de sua morte, mas somente aqueles aos quais é comunicado o merecimento de sua Paixão. Porque assim como os homens de fato não haveriam de nascer na injustiça, se não tivessem tido origem em Adão – pois, por meio dele e em conseqüência desta origem contraem na conceição a injustiça que lhes é própria – assim também jamais seriam justificados, se não renascessem em Cristo [cân. 2 e 10]. Pois é por este renascimento, em virtude do mérito da Paixão, que a graça, por meio da qual são justificados, lhes é concedida. Por este benefício o Apóstolo exorta a rendermos sempre graças ao Pai, que nos fez dignos de participar da sorte dos santos na luz (Col 1, 12) e nos tirou do poder das trevas e nos transferiu ao reino de seu amado Filho, no qual temos redenção e remissão dos pecados (Col 1, 13 s).

 

Cap. 4 – A justificação do pecador

796. Nestas palavras se descreve a justificação do pecador, como sendo uma passagem daquele estado em que o homem, nascido filho do primeiro Adão, [passa] para o estado de graça e de adoção de filhos (Rom 8, 15) de Deus por meio do segundo Adão, Jesus Cristo, Senhor Nosso. – Esta transladação, depois da promulgação do Evangelho, não é possível sem o lavacro da regeneração [cân. 5 sobre o Batismo] ou sem o desejo do mesmo, segundo a palavra da Escritura: se alguém não tiver renascido da água e do Espírito Santo, não poderá entrar no reino de Deus (Jo 3, 5).

 

Cap. 5 – A necessidade de os adultos se prepararem para a justificação

797. Declara ainda [o Santo Concílio]: o início da justificação dos adultos deve brotar da graça proveniente de Deus [cân. 3] por Jesus Cristo, a saber, de sua vocação, pela qual são chamados, sem qualquer merecimento da parte deles. Assim, aqueles que estavam afastados de Deus pelos pecados, se dispõem [amparados] pela sua graça, que excita e auxilia (per eius excitantem atque adiuvantem gratiam), a alcançarem a conversão e a própria justificação, consentindo livremente nesta graça e livremente cooperando com ela [cân. 4 e 5]; de forma que, tocando Deus o coração do homem com a iluminação do Espírito Santo, fica o homem por um lado não totalmente inativo, recebendo aquela inspiração, que poderia também rejeitá-la; por outro lado, não pode ele de sua livre vontade, sem a graça de Deus, elevar-se à justificação [cân. 3] diante de Deus. Por isso, quando nas Sagradas Escrituras se diz: Convertei-vos a mim e eu me converterei a vós (Zac 1, 3), somos lembrados de nossa liberdade; quando, porém, respondemos: Convertei-nos, Senhor a vós, e seremos convertidos (Lam. Jer 5, 21), confessamos que a graça de Deus nos previne.

 

Cap. 6 – O modo de preparação

798. A preparação para a justificação se efetua do seguinte modo: excitados e favorecidos pela graça divina, recebem a fé pelo ouvido (Rom 10, 17) e erguem-se livremente paras Deus, crendo ser verdadeiro o que foi revelado e prometido por Deus [cân. 12-14] especialmente, que o pecador é justificado por meio da graça de Deus, pela redenção, que está em Jesus Cristo (Rom 3, 24). Quando eles então, reconhecendo-se pecadores, são abalados proveitosamente pelo medo da justiça divina [cân. 8], lembram-se da misericórdia de Deus e firmam-se confiantes na esperança de que Deus lhes há de ser propício por amor de Cristo. Então começam a amá-lo como fonte de toda a justiça e a se insurgir por isso contra os pecados com ódio e detestação [cân. 9], isto é, pela penitência, que se deve fazer antes do Batismo (At 2, 38); finalmente, se propõem a receber o Batismo, a começar uma nova vida e a cumprir os mandamentos de Deus. Sobre esta disposição está escrito: Quem se achega de Deus, deve crer que ele existe e que é remunerador dos que o buscam (Heb 11, 6); e: confia, filho, os teus pecados te são perdoados (Mt 9, 2; Mc 2, 5); e: o temor de Deus expulsa o pecado (Ec 1, 27) e mais: fazei penitência e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo, para a remissão dos vossos pecados e recebereis o dom do Espírito Santo (At 2, 38) e ainda: Ide, pois, ensinai a todas as gentes, batizando-as em nome do Padre, e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a observar tudo o que vos tenho mandado (Mt 28, 19) e finalmente: Preparai ao Senhor os vossos corações (1 Rs 7, 3).

 

Cap. 7 – A essência da justificação do pecador e suas causas

799. A esta disposição ou preparação se segue a própria justificação. Ela é não somente a remissão dos pecados [cân. 11], mas ao mesmo tempo a santificação e renovação do homem interior pela voluntária recepção da graça e dos dons. Por este meio, o homem de injusto se torna justo e de inimigo, amigo, de modo a ser herdeiro da vida eterna segundo a esperança (Tit 3, 7). As causas desta justificação são as seguintes: a [causa] final: a glória de Deus e a de Cristo, bem como a vida eterna; a eficiente: o misericordioso Deus, que sem merecimento nosso lava e santifica (1 Cor 6, 11), assinalando e ungindo com o Espírito Santo da promessa que é o penhor de nossa herança (Ef 1, 13 ss). A [causa] meritória, porém, é seu muito amado Filho Unigênito, Nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo nós inimigos (Rom 5, 10), pela nímia caridade com que nos amou (Ef 2, 4), nos mereceu a justificação e satisfez por nós ao Eterno Pai, com sua santíssima Paixão no lenho da cruz [cân. 10]. A [causa] instrumental é o sacramento do Batismo, isto é, o “sacramento da fé”1, sem o qual jamais alguém alcançou a justificação. Enfim, a causa única formal é “a justiça de Deus, não enquanto ele mesmo é justo, mas enquanto nos torna justos”2 [cân. 10 e 11], quer dizer, enquanto por ele enriquecidos, fica a nossa alma espiritualmente renovada, e não só passamos por justos, mas verdadeiramente nós nos denominamos e somos justos. Pois recebemos em nós a justiça, cada qual a sua, conforme a medida que o Espírito Santo distribui a cada um como ele quer (1 Cor 12, 11) e segundo a disposição e cooperação de cada qual.

800. Assim, ninguém pode ser justo, senão aquele a quem se comunicam os merecimentos da Paixão de nosso Senhor Jesus Cristo. Mas isto assim sucede nesta justificação do pecador, precisamente pelo fato de o amor de Deus se difundir pelo Espírito Santo, por força dos merecimentos desta sagrada Paixão, nos corações (Rom 5, 5) dos que são justificados, aderindo-lhes intimamente [cân. 11]. Por isso, na justificação é infundido no homem por Jesus Cristo, a quem está unido, ao mesmo tempo, tudo isto: fé, esperança e caridade. Porque a fé nem une perfeitamente com Cristo, nem faz membro vivo de seu corpo, se não se lhe ajuntarem a esperança e a caridade. Daí a razão de se dizer com toda a verdade: a fé, sem obras, é morta (Tgo 2, 17 ss) e ociosa [cân. 19]; e em Jesus Cristo nem a circuncisão nem o prepúcio valem coisa alguma, mas a fé que obra pela caridade (Gal 5, 6; 6, 15). Esta é a fé que os catecúmenos, segundo a Tradição apostólica, suplicam à Igreja cantes do batismo, quando pede a “fé que lhes outorga a vida eterna”3, [mas] que, sem a esperança e a caridade, a fé não pode conceder. Por isso ouvem logo em resposta as palavras de Cristo: Se queres entrar para a vida, guarda os mandamentos (Mt 19, 17) [cân. 18-20]. E após terem os neófitos recebido a justificação verdadeira e cristã, exige-se deles que guardem branca e imaculada esta [veste], como sua veste mais preciosa (Luc 15, 22), que lhes foi concedida por Cristo em vez daquela, que pela desobediência de Adão for a perdida para si e para nós, a fim de chegar com ela ante o tribunal de Nosso Senhor Jesus Cristo e obter a vida eterna.

(1) S. Ambrósio, De Spiritu Sancto, 1, 3, 42 (PL 16, 714); S. Agostinho, Ep. 98, ad Bonif. 9 s (PL 33, 36, 4).
(2) “Iustitia Dei, non qua ipse iustus est, se qua nos justus facit”. Cfr. S. Agostinho, De Trin. 14, 12, 15 (PL 42, 1048).
(3) Rit. Rom. Ordo Baptismi, n. I s.

 

Cap. 8 – Como se deve entender a justificação gratuita do pecador pela fé

801. O Apóstolo diz que o homem é justificado pela fé e sem merecimento (Rom 3, 22. 24). Estas palavras devem ser entendidas tais como sempre concordemente a Igreja Católica as manteve e explicou. “Nós somos justificados pela fé”: assim dizemos, porque “a fé é o princípio da salvação humana”4, o fundamento e a raiz de toda justificação, sem a qual é impossível agradar a Deus (Heb 11, 6) e alcançar a companhia de seus filhos. Assim, pois, se diz que somos justificados gratuitamente, porque nada do que precede à justificação, nem a fé, nem as obras, merece a graça da justificação. Porque se ela é graça, já não procede das obras; do contrário a graça, como diz o Apóstolo, já não seria graça (Rom 11, 6).

(4) S. Fulgêncio, De fide, ad Petrum n. 1 (PL 65, 671).

 

Cap. 9 – Refutação da falsa confiança dos hereges

802. É necessário crer que não se perdoam pecados nem jamais foram perdoados, senão pela misericórdia divina, por causa de Cristo e sem merecimento próprio. Não obstante, a ninguém é lícito dizer que se perdoam ou foram perdoados os pecados àqueles que presume confiada e seguramente de perdão dos pecados e tão somente com isto se tranqüiliza. Pois, [também] nos hereges e cismáticos pode encontrar-se esta confiança vã e alheia a toda a piedade [cân. 12]. Sim, ela aí existe em nossos dias e com grande empenho é pregada contra a Igreja Católica. Também não se deve afirmar que os verdadeiramente justificados devem estar firmemente, sem sombra de qualquer dúvida, convencidos de sua justificação, e que ninguém é absolvido e justificado, a não ser aquele que seguramente crer que foi absolvido e justificado, e que somente por esta fé se efetua a absolvição e a justificação [cân. 14], como se aquele que não cresse nisto, duvidasse das promessas de Deus, da eficácia da morte e da ressurreição de Cristo. Porque, assim como nenhum [homem] pio deve duvidar da misericórdia de Deus, dos merecimentos de Cristo, bem como da virtude e eficácia dos sacramentos, assim também, quando cada qual olha para si mesmo e para sua fraqueza e falta de preparação, pode recear e temer pela sua remissão [cân. 13], visto ninguém poder saber com certeza de fé, a qual não pode estar sujeita a erro algum, que sele conseguiu a graça de Deus.

 

Cap. 10 – O aumento da justificação recebida

803. Justificados deste modo e feitos amigos e familiares de Deus (Jo 15, 15; Ef 2, 19), indo de virtude em virtude (Sl 83, 8), são renovados (como diz o Apóstolo) de dia para dia (2 Cor 4, 16), isto é, mortificando os membros da própria carne (Col 3, 5), tornando-os armas de justiça (Rom 6, 13. 19) para santificação por meio da observância dos mandamentos de Deus e da Igreja, crescem nesta justificação recebida pela graça de cristo, cooperando na fé com a boas obras (Tg 2, 22), são justificados ainda mais [cân. 24 e 32], como está escrito: O que é justo, seja justificado ainda mais (At 22, 11); e outra vez: Não receies justificar-te até a morte (Ecli 18, 22); e de novo: Vedes, pois, que o homem é justificado pelas obras, e não pela fé somente (Tgo 2, 24). Este aumento de justiça pede-o a Igreja quando reza: Dai-nos, Senhor, aumento de fé, esperança e caridade (XIII domingo depois de Pentecostes).

 

Cap. 11 – A observância dos mandamentos de Deus, sua necessidade e possibilidade

804. Mas ninguém, posto que justificado, se deve julgar eximido da observância dos mandamentos [cân. 20]. Ninguém deve pronunciar estas palavras temerárias, condenadas pelos Padres com anátema: é impossível ao homem justificado observar os preceitos de Deus [cân. 18 e 22]. “Porque Deus não manda coisas impossíveis, mas quando manda, adverte que faças o que possas e peças o que não possas, e ajuda a poder”5. Os seus mandamentos não são pesados (1 Jo 5, 3), o seu jugo é suave e o seu peso é leve (Mt 11, 30), pois os que são filhos de Deus, amam a Cristo, mas os que o amam guardam (como ele testifica) as suas palavras (Jo 14, 23), e podem seguramente executar isso com o auxílio de Deus. Pois, também eles nesta vida mortal, por mas santos e justos que sejam, caem às vezes pelo menos em pecados leves e quotidianos, chamados também “veniais” [cân. 23], mas com isto não deixam de ser justos. Pois é verdadeira e humilde aquela oração dos justos: Perdoai-nos as nossas dívidas (Mt 6, 12). E assim acontece que os justos tanto mais se sentem obrigados a andar pelo caminho da justiça, quanto estando já livres do pecado e feitos servos de Deus (Rom 6, 22), vivendo sóbria, justa e piedosamente (Tit 2, 12), podem progredir por meio de Jesus Cristo, por quem tiveram acesso a esta graça (Rom 5, 2). Porque Deus, os que uma vez foram justificados pela sua graça, “não os desampara a não ser que seja primeiro abandonado por eles”6. Assim, portanto, ninguém deve lisonjear-se com a fé somente [cân. 9, 19, 20], julgando estar pela fé somente constituído herdeiro e que conseguirá a herança ainda que não padeça com Cristo para ser glorificado com ele (Rom 8, 17). Pois o mesmo Cristo, (como diz o Apóstolo), embora fosse Filho de Deus, praticou, contudo, obediência pelo sofrimento, e depois de consumado, se tornou para todos os que lhe obedecem autor da salvação (Hb 5, 8 s). Por isso o mesmo Apóstolo admoesta os justificados, dizendo: Não sabeis que os que correm no estádio, correm, sim, todos, mas um só é que alcança o prêmio? Correi, pois, de modo que o alcanceis. Quanto a mim, corro, não como quem não tem meta certa, combato não como quem açoita o ar, mas castigo o meu corpo e o reduzo à escravidão, para que não suceda que, tendo eu pregado aos outros, venha eu mesmo a ser réprobo (1 Cor 9, 24 ss). De modo semelhante, fala o Príncipe dos Apóstolos, S. Pedro: Ponde cada vez mais cuidado em tornardes certa a vossa vocação e eleição por meio do boas obras, porque fazendo isto, não pecareis jamais (2 Ped 1, 10). Donde se infere que impugnam a doutrina da religião ortodoxa aqueles que dizem que o justo em todas as obras boas peca ao menos venialmente [cân. 25] ou, (o que é ainda mais intolerável), merece penas eternas; e [erram] também os que afirmam que os justos pecam em todas as obras, se, despertando de sua indolência e animando-se a correr no estádio, pondo seu intento primeiramente na glória de Deus, olham também para o prêmio eterno [cân. 26, 31], como está escrito: inclinei o meu coração para executar as vossas justificações, por amor da retribuição (Sl 118, 112); e de Moisés diz o Apóstolo: que olhava para a remuneração (Hb 11, 26).

 

(5) “Nam Deus imposibilia non iubet, sed iubendo monet, et facere quod possis, et petere quod non possis” Cfr. S. Agostinho, De nat. et gratia, c. 43, n. 50 (PL 44, 271).
(6) Deus “non deserit, nisi ab eis prius deseratur”. Cfr. S. Agostinho, Op. Cit. C. 26, n. 29 (PL 44, 261).

Cap. 12 – Presunção temerária de ser predestinado

805. Ninguém, enquanto peregrina por esta vida mortal, deve querer penetrar tanto no mistério oculta da predestinação divina, que possa afirmar com segurança ser ele, sem dúvida alguma, do número de predestinados [cân. 15], como se o justo não pudesse mais pecar [cân. 23] ou, que se tiver pecado, poderá com certeza prometer-se a si mesmo uma nova conversão. Pois, sem uma revelação toda especial de Deus, não se pode saber quais os que Deus escolheu para si [cân. 16].

 

Cap. 13 – O dom da perseverança

806. O mesmo se deve entender a respeito do dom da perseverança [cân. 16], do qual está escrito: O que perseverar até o fim, este será salvo (Mt 10, 22. 24. 13). Este dom não pode ser obtido senão daquele que é poderoso para sustentar o que está de pé (Rom 14,4) a fim de que continue de pé até o fim, e para erguer novamente aquele que cai. Ninguém se prometa coisa alguma com certeza absoluta, posto que todos devem por e colocar a sua firmíssima esperança no auxílio de Deus. Porque Deus – a não ser que eles mesmos faltem à sua graça – assim como iniciou a obra boa, também a levará a bom termo, operando o querer e o executar (Filip 2, 13) [cân. 22]7. Porém, os que julgam estar de pé, vejam que não caiam (1 Cor 10, 12) e trabalhem em sua salvação com temor e tremor (Filip 2, 12) nos trabalhos, vigílias, esmolas, orações, oblações, jejuns e na castidade (cfr. 2 Cor 6, 3 ss). Sabendo que renasceram na esperança (1 Ped 1, 3) da glória, e não na glória, devem temer a peleja que lhes resta com a carne, com o mundo e com o demônio, peleja da qual não podem sair vencedores, se não obedecerem, com a graça de Deus, à palavra do Apóstolo: Não somos devedores à carne, para que vivamos segundo a carne. Pois, se viverdes segundo a carne, morrereis. Se, porém, com o espírito mortificardes as obras da carne, vivereis (Rom 8, 12 s).

(7) Cfr. A oração da Igreja “Actiones nostras, quaesumus Domine, aspirando praeveni et adiuvando prosequere, ut cuncta nostra oratio et operatio a te semper incipiat et per te coepta finiatur“.

 

Cap. 14 – A queda no pecado e a sua reparação

807. Aqueles que pelo pecado perderam a graça da justificação, que haviam recebido, poderão novamente ser justificados [cân. 29] se, excitados por Deus, procurarem recuperar a graça perdida por meio do sacramento da Penitência, em virtude do merecimento de Cristo. Este modo de justificação é a reparação do que caiu, sendo com muito acerto denominada pelos Santos Padres de “segunda tábua depois do naufrágio da graça perdida”8. Pois, para os que depois do Batismo caem em pecados, instituiu Jesus Cristo o sacramento da Penitência com as palavras Recebei o Espírito Santo; àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados, e àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos (Jo 20, 22-23). Por onde se deve ensinar que a Penitência do cristão depois da queda muito se distingue do Batismo, e que nela está contida não só a renúncia e a detestação dos pecados, ou o coração contrito e humilhado (Sl 50, 19), mas também a confissão sacramental dos mesmos, ao menos em desejo [in voto], que se há de cumprir a seu tempo, a absolvição sacerdotal e anda a satisfação por jejuns, orações, esmolas e outros piedosos exercícios da vida espiritual, não em lugar do castigo eterno, que é com a culpa perdoado pela recepção do sacramento ou pelo desejo de recebê-lo, mas em lugar do castigo temporal [cân. 30], que, como ensinam as Sagradas Letras, nem sempre é perdoado todo – como sucede no Batismo – àqueles que, ingratos à graça de Deus, contristaram o Espírito Santo (Ef 4, 30) e não recearam violar o templo de Deus (1 Cor 3, 17). Desta Penitência está escrito: Lembra-te donde caíste, faze penitência e volta às tuas primeiras obras (Apoc 2, 5); e noutro lugar: A tristeza que é segundo Deus produz uma penitência estável para a salvação (2 Cor 7, 10); e outra parte: Fazei penitência (Mt 3, 2; 4, 17), e ainda: Fazei dignos frutos de penitência (Mt 3, 8).

(8) Cfr. Tertuliano, De poenit. 4. 7. 9. 12 (PL 1, 1238 ss); S. Jerônimo, Ad Demetrium ep. 130, 9 (PL 22, 1115); In Isaiam 2, 3, 56 (PL 24, 65 D); S. Paciano, Ep. 1, 5 (PL 13, 1056 A); De lapsu virg. Consecr. 8, 38 (PL 16, 379 A).

 

Cap. 15 – A graça, e não a fé, se perde com qualquer pecado mortal

808. Também contra fraudulentos espíritos de certos homens, que com doces palavras e benção seduzem os corações dos inocentes (Rom 16, 18), se deve assegurar que a graça da justificação, uma vez recebida, não se perde só pela infidelidade [cân. 27], por meio da qual se perde a própria fé, mas também por qualquer outro pecado mortal, mesmo quando não se perca a fé [cân. 28]. Por ali se deve defender a doutrina da lei divina que exclui do reino de Deus não só os infiéis, mas também os fiéis fornicadores, adúlteros, efeminados, sodomitas, ladrões, avarentos, beberrões, maldizentes, gatunos (1 Cor 6, 9 s) e todos os que cometem pecados mortais, dos quais se podem abster com o auxílio da graça divina, e pelos quais se separam da graça de Cristo [cân. 27].

 

Cap. 16 — O fruto da justificação, isto é, o merecimento das boas obras e a razão do merecimento

809. Deste modo, portanto, devem ser propostas aos homens justificados, quer tenham conservado a graça recebida, quer a tenham recuperado depois de perdida, as palavras do Apóstolo: Sede ricos em todas as boas obras, sabendo que o vosso trabalho não é inútil no Senhor (l Cor 15, 58), pois não é Deus injusto para se esquecer da vossa obra e do amor que mostrastes ao seu nome (Hb 6, 10). E estas outras: Não queirais perder a vossa confiança, que tem uma grande remuneração (Hb 10, 35). E por isso aos que trabalham fielmente até ao fim (Mt 10, 22) e esperam em Deus, se há de propor a vida eterna como graça misericordiosamente prometida por Cristo aos filhos de Deus, e “como recompensa”9 que, segundo a promessa do próprio Deus, será fielmente concedida pelas suas obras e merecimentos [cân. 26 e 32]. Esta é, pois, aquela coroa de Justiça que — como dizia o Apóstolo — lhe estava reservada para depois de seu combate e carreira e que lhe seria dada pelo justo juiz, não só para si, mas também a todos que, amorosos, anseiam pelo seu advento (2 Tim 4, 7 s). Porquanto Jesus Cristo mesmo dá a sua força aos justificados como a cabeça aos membros (Ef 4, 15) e a vide aos ramos (Jo 15, 5). Esta força sempre antecede às suas boas obras, acompanha-as e as segue, e sem ela de modo nenhum poderiam ser agradáveis a Deus e meritórias [cân. 2]. Deve-se, por isso, crer que nada mais falta a estes justificados a fim de, com as ditas obras que foram feitas em Deus, poderem plenamente, segundo o estado de vida, satisfazer à lei divina e a seu tempo (morrendo em estado de graça) conseguir a vida eterna. Porquanto Cristo Nosso Salvador diz: Se alguém beber da água que eu lhe der, não terá sede eternamente, mas brotará dele uma fonte de água que corre para a vida eterna (Jo 4, 13 s). Assim, portanto, a nossa própria justiça não se estabelece como própria, como se de nós decorresse, e também não se ignora ou se repudia a justiça de Deus (Rom 10, 3). Esta Justiça é denominada a nossa, porque somos justificados por ela, que inere intimamente em nós [cân. 10 e 11]. E esta mesma é a de Deus, em vista dos merecimentos de Cristo infundida em nós.

810. Não se deve, todavia, omitir o seguinte: Embora na Sagrada Escritura se atribua tão grande valor às boas obras, que Cristo prometeu: Quem oferecer um copo de água fresca a um destes pequeninos, em verdade não ficará sem a sua recompensa (Mt 10, 14); e o Apóstolo testifique: O que presentemente é para nós uma tribulação momentânea e ligeira, produz em nós um peso de glória (2 Cor 4, 17); contudo, longe esteja o cristão de confiar ou se gloriar em si mesmo e não no Senhor (l Cor l, 31; 2 Cor 10, 17), cuja bondade é tanta para com todos os homens, que ele quer que estes seus próprios dons se tornem merecimentos deles [cân. 32]. E porque todos nós pecamos em muitas coisas (Tgo 3, 2) [cân. 23], cada qual deve ter diante dos olhos tanto a misericórdia e bondade de Deus, como a sua severidade e juízo, e não se julgar a si mesmo, embora nada lhe pese na consciência, porque a vida do homem há de ser toda examinada e julgada, não pelo tribunal humano, mas pelo de Deus, que há de alumiar as trevas mais recônditas e manifestar os desígnios dos corações, e então cada um receberá de Deus o louvor (l Cor 4, 4), que — como está escrito — dará a cada um conforme as suas obras (Rom 2, 6).

Depois desta doutrina católica da justificação [cân. 33], que cada qual deverá aceitar fiel e firmemente, se quiser ser Justificado, o santo Concilio resolveu ajuntar os seguintes cânones, para que todos saibam, não só o que devem aceitar e seguir, mas também o que evitar e fugir.

(9) Cfr. S. Agostinho, De gr. et lib. arb. c. 8, n. 20 (PL 44, 893).

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