Sábado, Maio 18, 2024

A ortodoxia do Ordo de São Paulo VI

Introdução

1. Sobre a natureza sacrifical da Santa Missa

1.1. Explicação

1.2. A natureza sacrifical da Santa Missa no Novo Ordo

– O Sacrifício em sentido verdadeiro e próprio é demonstrado pelo uso da expressão “sacrifício”

– O Sacrifício em sentido verdadeiro e próprio é demonstrado pela ideia de oblação de Cristo

– O Sacrifício em sentido verdadeiro e próprio é demonstrado pelas expressões hóstia (Vítima) e imolação

– O Sacrifício em sentido verdadeiro e próprio é demonstrado pelas expressões “que será entregue por vós”/ “que será derramado por vós” na fórmula da Consagração do pão e do vinho

– O Sacrifício em sentido verdadeiro e próprio é demonstrado pela separação das espécies (dupla consagração)

– O Sacrifício em sentido verdadeiro e próprio é demonstrado pela elevação das espécies na Doxologia final

2. Sobre a presença real e substancial de Cristo na Eucaristia

2.1. Explicação

2.2. A presença real e substancial de Cristo na Eucaristia no Novo Ordo

– A presença real e substancial de Cristo é demonstrada pela epiclese “consacratória”

– A presença real e substancial de Cristo é demonstrada pelas genuflexões diante do Sacramento

– A presença real e substancial de Cristo é demonstrada por conta de que os fiéis ficam de joelhos durante a Consagração

– A presença real e substancial de Cristo é demonstrada pela elevação em cada consagração

– A presença real e substancial de Cristo é demonstrada pelas orações rezadas pelo padre no Rito de Comunhão

– A presença real e substancial de Cristo é demonstrada pela oração dos fiéis no Rito da Comunhão

– A presença real e substancial de Cristo é demonstrada pelo que é dito aos comungantes no momento da Comunhão

– A presença real e substancial de Cristo é demonstrada nas Orações Eucarísticas

3. Sobre a distinção essencial entre os sacerdócios ministerial e comum

3.1. Explicação

3.2. A distinção essencial entre os sacerdócios ministerial e comum demonstrada no Novo Ordo

– A distinção essencial entre o sacerdócio ministerial e comum é demonstrada pelo diálogo entre o padre e os fiéis no Orate fratres

– A distinção essencial entre o sacerdócio ministerial e comum é demonstrada pelas orações em silêncio do padre

– A distinção essencial entre o sacerdócio ministerial e comum é demonstrada pelas Orações Eucarísticas

– A distinção essencial entre o sacerdócio ministerial e comum é demonstrada pela recitação da fórmula da Consagração de forma clara e distintamente e não meramente narrativa

– A distinção essencial entre o sacerdócio ministerial e comum é demonstrada pelo fato de que as Orações Eucarísticas II, III e IV sublinham a oferta do sacrifício pela Igreja após a consagração

4. Sobre o fim expiatório (propiciatório e satisfatório) do sacrifício da Santa Missa

4.1. Explicação

4.2. O fim expiatório (propiciatório e satisfatório) do sacrifício da Santa Missa no Novo Ordo

– O fim expiatório (propiciatório e satisfatório) do sacrifício da Santa Missa é demonstrado pela Oração sobre as oblatas

– O fim expiatório (propiciatório e satisfatório) do sacrifício da Santa Missa é demonstrado pelas Orações Eucarísticas

– O fim expiatório (propiciatório e satisfatório) do sacrifício da Santa Missa é demonstrado pelas orações contidas no Rito de Comunhão

5. Respondendo objeções

– Lutero anunciou o plano de destruir a Santa Missa para destruir o catolicismo

– Seis pastores protestantes ajudaram a fazer o Novo ordo

– Mons. W.W. Baum diz que os protestantes convidados não eram meros observadores

– Jean Guitton diz que a intenção de Paulo VI é fazer a Missa se assemelhar ao culto protestante

– Pe. Ferdinando Antonelli diz que o Consilium concedeu muito à mentalidade protestante

– Os testemunhos de protestantes sobre o Novo ordo

– Mons. Bugnini era maçom

– Mons. Bugnini diz que a reforma litúrgica pretende eliminar do Ordo os aspectos da teologia católica que desagradassem os protestantes

– O Breve Exame Crítico do Novus Ordo Missae dos cardeais Ottaviani e Bacci

– Paulo VI corrigiu a Institutio, admitindo a justeza de parte das críticas do Exame Crítico

– Os erros da Institutio generalis missalis romani

– O Ofertório do Novo ordo retira a oblação da vítima no Sacrifício da Santa Missa

– As orações do Ofertório do Novo ordo tomam como base a teologia modernista de Pierre Teilhard de Chardin ou o humanismo integral do filósofo Jacques Maritain

– A tradução “por vós e por todos” da consagração é um erro, e retira o fim expiatório da forma da consagração

– A ausência “Mistério da fé” da forma do vinho na consagração é contrária à lei divina

Introdução

Os argumentos do tradicionalismo que se voltam contra a Nova Ordem da Missa se empenham em tentar provar que o Missal de São Paulo VI é heterodoxo, ou em razão desse conter uma teologia protestante ou em razão desse ser “protestantizado”, expressão esta que quer dizer que há uma ambiguidade intrínseca nos ritos e orações do Novo Missal fazendo com que possam ser interpretados de maneira protestante, embora a interpretação católica não esteja teoricamente excluída. A teoria por trás de tais conclusões é que São Paulo VI e/ou os principais promotores da reforma litúrgica, membros da Comissão Consilium, pretendiam minar a teologia católica sobre a Santa Missa para que esta se aproximasse à noção protestante e/ou pudesse ser interpretada nesse sentido, quer dizer, a composição de suas orações e ritos foram conscientemente equívocas. Por vezes, isso é somado pela acusação de que alguns dos preominentes membros do Consilium eram maçons, donde derivaria sua motivação maléfica para destruir a ortodoxia da Santa Missa em nome do ecumenismo. Uma frase de Lutero que é sempre reiterada para formar o imaginário tradicionalista sobre o assunto é a seguinte: “Se queremos destruir a Igreja temos que destruir a Santa Missa”. Assim, o Missal de São Paulo VI seria a culminação exitosa do antigo plano protestante. Não deixaremos de comentar sobre essas acusações às autoridades eclesiásticas e sobre essa frase de Lutero nesse artigo.

Quais seriam os defeitos alegadamente presentes na teologia da Nova Ordem da Missa referidos pelos tradicionalistas? São, basicamente, quatro: (1) Sobre a natureza sacrifical da Santa Missa; (2) Sobre a presença real de Cristo na Eucaristia; (3) Sobre a distinção essencial entre os sacerdócios ministerial e comum; (4) Sobre o fim expiatório (propiciatório e satisfatório) do sacrifício da Santa Missa.

A pretensão desse estudo é justamente combater tais alegações, comprovando a ortodoxia do Missal de São Paulo VI nesses pontos principais. O estudo pretende ser uma fonte robusta para que o católico possa responder qualquer narrativa dos tradicionalistas sobre o assunto toda vez que tiver que enfrentá-la. Esperamos deixar o artigo o mais organizado possível e de fácil entendimento. É possível que, mesmo depois de publicado, o artigo seja editado para que novos dados e informações sejam adicionados.

Queremos explicar o itinerário desse estudo para que o caminho trilhado seja fácil. Os tópicos tratados serão justamente sobre os quatro pontos que os tradicionalistas pretendem como defeituosos, antes mencionados. Faremos, portanto, o inverso que os nossos adversários. Demonstraremos que o Missal de São Paulo VI é explícito sobre esses quatro pontos. Não conhecemos outras provas para manejar sobre a matéria senão o que, eventualmente, (a) teólogos tradicionais diziam a respeito das orações e ritos presentes no antigo Ordo, desde que seja possível encontrar os mesmos elementos presentes em orações e ritos do Novo Ordo; (b) os autores materiais das Orações eucarísticas e demais pensadores, que influíram na estrutura do Missal, diziam a respeito da reforma litúrgica a realizar ou já realizada; (c) os Papas, reguladores da liturgia pelo poder de governo e autores formais dos ritos aprovados, destacaram sobre a matéria. Deixamos as confusas ilações e teoria da conspiração para os tradicionalistas. Antes da apresentação dessas provas, será realizada uma explicação sobre a teologia católica e sua distinção para com a teologia protestante com relação aos quatro pontos para que não fique pedra sobre pedra, pois na nossa visão muitas narrativas tradicionalistas se ancoram em visões distorcidas sobre o assunto. Por fim, responderemos certas objeções sobre os vários assuntos discutidos.
 

1. Sobre a natureza sacrifical da Santa Missa

1.1. Explicação

De acordo com a fé católica o sacríficio da Missa é, substancialmente, o mesmo sacrifício da Cruz. Isso porque “uma e mesma é a vítima e aquele que agora oferece pelo ministério dos sacerdotes é o mesmo que, outrora, se ofereceu na Cruz” (Conc. Trid., Sess. XXII. c, 2). Somente há distinção no “modo de oferecer” (Ibid.).

Sacrifício, em seu sentido geral, é definido por São Roberto Bellarmino como “oblação externa feita somente a Deus, por meio da qual por uma profissão de fraqueza humana e uma profissão da majestade divina, alguma matéria sensível e permanente é consagrada e alterada por um ministro legítimo em um rito místico”. (De Missa, L. I, cap. II).

Declinemos esses elementos da definição de Sacrifício.

Oblação é a oferta de alguma coisa a Deus. Assim, Abel ofereceu os primeiros frutos a Deus (Gen. 4,4). Noé ofereceu holocaustos (Gen. 8,20). Para o entendimento católico na Missa há, pelo menos, três oblações: oblação do pão e do vinho, da Igreja e do próprio Cristo como vítima imolada de maneira incruenta. Somente essa terceira oblação entra no ato sacrifical da Missa, e é o que, sobretudo, interessa aqui.

Oblação externa distingue-se da oblação interna. Explica São Roberto Bellarmino:

“Em segundo lugar, dizemos que o sacrifício é uma oblação externa. Uma oblação é dupla e, em termos gerais, podemos distinguir dois tipos de sacrifício, assim como Santo Agostinho o distingue (loc. Cit.), Como invisível (interno), e visível (externo). Invisível é uma vontade piedosa, que se oferece e todas as suas coisas à majestade divina, enquanto um sacrifício visível é uma demonstração externa solene de uma inclinação para dentro. É por isso que na mesma passagem, quando Agostinho está definindo um sacrifício visível, ele fala de um sacramento invisível de sacrifício, a saber, o sinal sagrado. … Da mesma forma, o nome e a noção de um sacrifício não se adequam propriamente a uma oblação invisível, mas apenas a uma oblação visível e externa, como colocamos em nossa definição. Pois uma oblação invisível é sempre secreto e privado, ao passo que pela palavra sacrifício, todos entendem adequadamente uma honra pública e manifesta mostrada a Deus por um ministro comum e público. Portanto, para um sacrifício propriamente dito, é necessariamente requerido que seja uma oblação exterior.” (De Missa, L. I, cap. II).

A maneira que uma oblação se realiza pode ser, por exemplo, pela efusão real de sangue ou pelo consumo da vítima por fogo que a transforma em doce odor e fragrância, como se dava nos sacrifícios na Antiga Aliança. Na Santa Missa o ato sacrifical se realiza pela imolação da vítima. Mas natureza desse ato sacrifical écontrovertida entre os teólogos. Francisco Suárez e Scheeben defenderam que se realiza pela real transformação dos dons sacrificais, que se efetua pela destruição dos elementos eucarísticos, em virtude da transubstanciação, através de sua conversão no Corpo e sangue de Cristo. Gabriel Vasquez e Perrone defenderam que o sacrifício da Missa, sendo um sacrifício relativo, apenas representa visivelmente o sacrifício da Cruz pela separação do Corpo e do Sangue no Altar. Billot, rechaçando a noção de destruição da vítima, defendeu que esse sacrifício se realiza pela imolação mística da vítima (sacrifício absoluto) e pela separação do Corpo e do Sangue (sacrifício relativo). Billuart vê a destruição da vítima na imolação mística. De Lugo e Franzelin defenderam que isso é encontrado na redução voluntária de Cristo à condição de alimento, em virtude da qual o Salvador, à maneira de comida sem vida, deixa-se à mercê da humanidade. Bellarmino que isso se realiza pela destruição da vítima através da comunhão. Para Maurice de la Taille a imolação na Santa Missa é a mesma imolação sangrenta do Calvário

(Para o estudo das diferentes teses sobre o assunto indicamos: https://www.newadvent.org/cathen/10006a.htm; http://www.strobertbellarmine.net/wilhelm_scannell_2_8.html; Dom Paul Nau – Le mystère du corps et du sang du Seigneur : la messe d’après saint Thomas d’Aquin, son rite d’après l’histoire).

Dentro da definição geral de Sacrifício, antes proposta, poderíamos incluir holocausto, sacrifício propiciatório, sacrifício eucarístico, sacrifício impetratório. O holocausto é oferecido em reverência da divina majestade, enquanto o sacrifício propiciatório (hóstias pelos pecados) é oferecido para a remissão dos pecados. O sacrifício eucarístico (louvor e ação de graças) é oferecido para agradecer a Deus qualquer favor considerável que fosse recebido. Sacrifício impetratório era feito para pedir qualquer graça importante. No sacrifício da Santa Missa estão presentes essas quatro finalidades.

Os protestantes, por outro lado, não admitem que na Missa ou Culto se efetive um sacrifício verdadeiro e próprio, mas apenas sacrifício em sentido amplo e inadequado. O protestante Melanchthon (Apologia da Confissão de Augsburgo) define sacrifício como “uma cerimônia ou obra, que prestamos a Deus e mantemos sua honra”. Essa mesma ideia é defendida por Lutero. Para Melanchthon não se realiza um sacrifício propiciatório (que reconcilia o homem com Deus) na Missa, mas um sacrifício de ação de graças que é um ato de ação de graças que aqueles que se conciliaram com Deus mostram a Deus em razão dos benefícios que receberam. Assim, a pregação do Evangelho, as orações, as mortificações e todas as outras boas obras poderiam ser chamadas de sacrifícios pelo qual o louvor se eleva a Deus. A partir desses fundamentos ele conclui que a Missa pode ser chamada de Sacrifício porque a recepção da Eucaristia pode ser feita em louvor a Deus, assim como outras boas obras. Calvino define sacrifício como “algo totalmente oferecido a Deus”. (Institutos 4, 18). Ele sustenta que na Missa se realiza um sacrifício de ação de graças e também de culto e veneração. Diferentemente de Melanchthon, Calvino entende que a oblação é necessária para a existência de um sacrifício.  Assim, temos (até aqui) que o que diferencia o entendimento católico e protestante sobre o que é sacrifício é ou a existência oblação ou da alteração.

Os protestantes não admitem que o corpo e sangue de Cristo se ofereçam a Deus, mesmo a corrente do protestantismo que reconheça a consubstancialidade. Nesse sentido Cayetano diz: “De modo que aunque admiten que en el altar está el verdadero cuerpo de Cristo, niegan sin embargo que se ofrezca a Dios este verdadero Cuerpo”. (Sobre el Sacrificio de la Misa y su Rito contra los Luteranos ). O próprio Lutero diz: “Nós não oferecemos a Cristo, senão que é Cristo quem nos oferece (a Deus). Dessa forma é lícito e mesmo útil chamar a cerimônia de sacrifício. Dito de outra forma: apoiamo-nos em Cristo, com uma fé firme na sua aliança e nos apresentamos ante Deus com nossa oração, nosso louvor e nosso sacrifício só em nome de Cristo e por sua intercessão […] sem duvidar de que ele é nosso sacerdote no céu diante de Deus. Cristo nos acolhe, apresenta-nos (a Deus), a nós, juntamente com nossa oração e nosso louvor, também se oferece por nós no céu e nos oferece com ele (1520, ed. Weimar VI, 369)

Calvino defende que na Missa só existe a oblação interna (Institutas 4, 12, 31).

Os protestantes, especialmente, não admitem que na Missa exista sacrifício propiciatório e impetratório. A Confissão de Augsburgo (1530) afirma que “o santo sacramento foi instituído não para com ele estabelecer um sacrifício pelo pecado… mas a fim de que por ele se nos desperte a fé e se consolem as consciências, as quais pelo sacramento percebem que Cristo lhes promete a graça e a remissão dos pecados”. O Catecismo Menor de Lutero fala de forma similar.

Outra distinção entre o entendimento protestante de sacrifício e o católico é que para o primeiro se trata de um sacrifício espiritual, em benefício somente daqueles que recebem o sacramento. A ideia de um sacrifício, que beneficia outras pessoas que não participam da Eucaristia é combatida pelos protestantes, pois induz a ideia de sacrifício propiciatório. O benefício pela recepção do sacramento seria apenas preservação da vida espiritual daqueles que o recebem, mediante a fé, na visão protestante. Referências protestantes nesse sentido, citada por S. Roberto Bellarmino: Lutero de cap. Babyl., 1, Apologia Confess. August., in art. De Missa; Wittenberg Confession, cap. 16, (which is on the Eucharist). João Calvino (Instit. 4, 18 §13-16), Chemnitz (Exam. Conc. Trid. 2 part, sess. 22 cap. de Missa). Lutero diz: “O batismo de um não beneficia o outro nem pode um ser batizado por outro; consequentemente a recepção da Eucaristia não pode ser feita por um homem para outro. Portanto, a Missa não é um sacrifício propiciatório…”. (cap. Babyl., 1). Nesse sentido, diz a liturgia luterana: “Que estas ofertas sirvam para o bem-estar das pessoas que as receberem” (veja-se aqui).

  

1.2. A natureza sacrifical da Santa Missa no Novo Ordo

– O Sacrifício em sentido verdadeiro e próprio é demonstrado pelo próprio uso da expressão “sacrifício”

A natureza sacrifical da Santa Missa é demonstrada pelo uso da expressão sacrifício, contextualmente localizada. Os tradicionalistas argumentam que os protestantes admitem tal expressão, desde que se entenda como sacrifício de louvor e ação de graças ou sacrifício espiritual. O Dr. Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira argumentava que o “que está em causa, na disputa secular dos católicos com os protestantes sobre o assunto, não é propriamente o caráter sacrifical da Missa, mas é o seu caráter propiciatório”. (Considerações sobre o “Ordo Missae” de Paulo VI). Não poderíamos discordar mais do autor! Como referimos no item “Explicação”, os católicos entendem sacrifício em sentido próprio e verdadeiro, enquanto os protestantes em sentido amplo e inadequado, não estando a divergência pendente apenas sobre os fins desse sacrifício, mas inclusive sobre a natureza do sacrifício. Portanto, o nosso argumento não é tão somente que a palavra sacrifício está presente nas orações do Novo Ordo, mas que essa expressão está presente no sentido próprio e verdadeiro, contextualizada pela ideia de oblação externa de uma matéria sensível, com a imolação de uma vítima, e não de uma simples cerimônia dedicada a Deus ou de uma oblação interna (oblação de nós mesmos) ou de uma  simples representação do sacrifício da Cruz, razão pela qual os protestantes evitaram o uso de tal palavra na celebração de sua Ceia. Vejamos as menções no Novo Ordo:

“Orai, Irmãos, para que o nosso sacrifício seja aceito por Deus Pai Todo-Poderoso”. (Ofertório)

“Receba de tuas mãos este sacrifício para louvor e glória de seu nome, para nosso bem e de toda a sua santa Igreja” (Ofertório)

“Em espírito de humildade e coração contrito sejamos por Vós recebidos, Senhor, e assim se faça hoje este nosso sacrifício em vossa presença, de modo que Vos agrade, ó Senhor Deus”. (Ofertório)

“abençoai estes dons, este sacrifício santo e puro que te compete” (OE I) “Por eles nós Vos oferecemos e também eles Vos oferecem este sacrifício de louvor por si e por todos os seus, pela redenção das suas almas, para a salvação e segurança que esperam, ó Deus eterno, vivo e verdadeiro”. (OE I) “Recebei, ó Pai, esta oferenda, como recebestes a oferta de Abel, o sacrifício de Abraão e o que Vos ofereceu vosso sumo sacerdote Melquisedec, sacrifício santo, hóstia imaculada”. (OE I)

“Celebrando agora, ó Pai, a memória do vosso Filho, da sua paixão que nos salva, da sua gloriosa ressurreição e da sua ascensão ao céu; e enquanto esperamos a sua nova vinda, nós vos oferecemos em ação de graças este sacrifício de vida e santidade”. (OE III) “Na verdade, vós sois santo, ó Deus do universo, e tudo o que criastes proclama a vosso louvor, porque, por Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor nosso, e pela força do Espírito Santo, dais vida e santidade a todas as coisas e não cessais de reunir o vosso povo para que vos ofereça em toda parte, do nascer ao pôr-do-sol, um sacrifício perfeito”. (OE III)

“Celebrando agora, ó Pai, a memória da nossa redenção, anunciamos a morte de Cristo e sua descida entre os mortos, proclamamos a sua ressurreição e ascensão à vossa direita, e, esperando a sua vinda gloriosa, nós vos oferecemos o seu Corpo e Sangue, sacrifício do vosso agrado e salvação do mundo inteiro”. (OE IV)

As menções do sacrifício em sentido próprio e verdadeiro é, continuamente, presente nas orações sobre as oblatas, com variadas preces nesse sentido. Citamos três a título exemplificativo:

“Nós vos oferecemos, ó Deus, este sacrifício de reconciliação e pedimos, pela intercessão da virgem mãe de Deus e do bem-aventurado são José , que firmeis nossas famílias na vossa graça, conservando-nos na vossa paz. Por Cristo, nosso Senhor”. (Oração sobre as oferendas, Domingo dentro da Oitava de Natal ou 30 de Dezembro)

“Recebei, ó Pai, as oferendas que vos apresentamos o dia em que revelastes vosso filho, para que se tornem o sacrifício do Cordeiro que lavou, em sua misericórdia, os pecados do mundo. Por Cristo, nosso Senhor”. (Oração sobre as oferendas, Domingo depois do dia 6 de janeiro festa do batismo do Senhor)

“Acolhei, ó Deus, este sacrifício de reconciliação e louvor e fazei que, purificados por ele, possamos oferecer-vos um coração que vos agrade. Por Cristo, nosso Senhor”. (ORAÇÃO SOBRE AS OBLATAS – XII DOMINGO DO TEMPO COMUM)

Segundo São Roberto Bellarmino esse modo de expressar necessariamente indica um sacrifício em sentido próprio e verdadeiro: “Em quarto lugar, se a celebração da Eucaristia não fosse uma oblação nova, real e verdadeira feita a Deus, mas apenas uma imagem e representação da oblação realizada na cruz, não poderíamos verdadeiramente dizer a Deus: “Eu ofereço isto a ti”, Ou, “Recebe, ó Senhor, este sacrifício”. Quem diz a alguém: “Eu ofereço a você;” ou: “Receba”, então realmente oferece a ele algo que apenas representa uma oferta, exceto talvez porque ele quisesse zombar do homem a quem fingia honrar? É por isso que nossos adversários, embora entendam isso muito bem, evitam termos desse tipo em sua celebração da Ceia e, especialmente, nos repreendem por eles”. (De Missa, L. I, cap. XVI)

Jungmann sobre isso comenta:

“Se o sacrifício de nossa redenção se torna presente na Eucaristia, então é evidente que a Missa é o sacrifício de Cristo. Esse ensino tem hoje aceitação até mesmo entre os teólogos protestantes. E, no entanto, os mesmos teólogos parecem encontrar dificuldades intransponíveis com o “Offerimus” (oferecemos) da liturgia católica, que ao mesmo tempo traz à tona sua natureza de sacrifício da Igreja. A Igreja, eles argumentam, só pode receber; pode receber, possivelmente, com oração e ação de graças. Mas perece a mínima sugestão de que a Igreja, por sua vez, ofereça o sacrifício da Cruz entre nós!” (THE MASS an historical, theological, and pastoral survey, THE LITURGICAL PRESS, 1975, p. 111)

Notamos que na Oração Eucarística I se roga para que Deus receba uma oferenda, como recebera a oferta  de Abel, o sacrifício de Abraão e o sacrifício de Melquisedeque. Ou seja, pede para que receba uma oferenda tal qual outros sacrifícios em sentido próprio e verdadeiro. Hervé utiliza a mesma passagem para provar que a Missa é um sacrifício em sentido próprio e verdadeiro:

“Afirmação: Na Missa, é oferecido a Deus um verdadeiro e próprio sacrifício (De fide definita); Prova-se a tese: (…) II – Testemunhos da Escritura: 1º argumento, extraído do Salmo 109. Contudo, no Salmo 109, 4, que é de fato messiânico, diz-se a respeito de Cristo: ‘Tu és sacerdote eternamente segundo a ordem de Melquisedeque.’ O bem-aventurado Melquisedeque ofereceu verdadeiro sacrifício. (…) A partir do cânone da Missa tira-se outra demonstração: nele se roga que Deus digne-se aceitar nossos dons, como se dignou aceitar os de Abel, o sacrifício de Abraão e o que lhe ofereceu o sumo sacerdote Melquisedeque, sacrifício santo e hóstia imaculada”. (Manuale Theologiae Dogmaticae, vol. IV, Parissis, 1957, p. 80-83).

Observa-se que a Oração Eucarística III ao fazer menção da Missa como sacrifício faz referência a profecia de Malaquias: “porque desde o oriente até o ocidente, meu nome é grande entre as nações e, em toda parte, se sacrifica e se oferece uma oblação pura”. (Ml 1,10-11). Ora, a ideia de que essa profecia se refere a Santa Missa é uma interpretação tipicamente católica, inclusive presente no Concílio de Trento, enquanto os protestantes historicamente disseram que essa passagem fala apenas do Sacrifício de Cristo na cruz ou das orações e boas obras. Vejamos o que comenta Frei Martinho de Cochem sobre essa profecia:

“A profecia de Malaquias também não pode ser aplicada, como o querem os hereges, ao sacrifício cruento, oferecido sobre a cruz por Nosso Senhor, porque este sacrifício foi oferecido uma só vez e em um único lugar: no Calvário. Nem podem se aplicar estas palavras às nossas orações e boas obras que nem sempre são ofertas puras. É, pois, evidente que esta profecia se refere unicamente ao Sacrifício do Novo Testamento, Sacrifício infinitamente puro que a indignidade do sacrificador não pode contaminar. Jesus Cristo é o pontífice deste Sacrifício, os sacerdotes são apenas os ministros; por suas mãos e sua boca oferece, de maneira visível, o Deus Invisível que se imola sobre o altar, todos os dias, até a consumação dos tempos”. (A Santa Missa para Leigos: Uma Explicação do Santo Sacrifício da Missa, 1704)

O próprio Lutero diz nesse sentido:

“Vamos, portanto, repudiar tudo que cheira a sacrifício, junto com todo o cânon e reter apenas o que é puro e santo, e assim ordenar nossa missa” (Formula missae et communionis pro ecclesia Vuittembergensi (1523))

As palavras de Lutero contra o cânon romano, substancialmente preservado na oração eucarística I, são fortíssimas, demonstrando como ele entendia as menções de sacrifício: “Estou falando do cânone, aquela mistura abominável tirada do esgoto e fossa de todos. A missa se tornou um sacrifício”. (Ibid).

E além disso:

“É crença comum que a missa é um sacrifício, que é oferecido a Deus. Até mesmo as palavras do cânon tendem nessa direção, quando falam de “esses dons”, “essas ofertas”, “este sacrifício sagrado” e, mais adiante, “esta oferta”. A oração também é feita, em tantas palavras, “para que o sacrifício seja aceito até mesmo como o sacrifício de Abel”, etc., e, portanto, Cristo é denominado o “Sacrifício do altar”. (De captivitate Babylonica ecclesia, 1520).

Tudo indica, portanto, que Lutero veria as menções de sacrifício, presentes nas orações eucarísticas e outros lugares do Novo Ordo, no sentido próprio e verdadeiro.

Vale a pena a leitura das principais Liturgias protestantes para se certificar do nosso argumento. Assim, por exemplo, a Liturgia de Calvino (1545, 1542, 1566) sequer menciona a expressão “sacrifício” (veja-se aqui). O mesmo pode se dizer da Liturgia de Zwingli (1525) (veja-se aqui).

Das  menções encontradas de sacrifício na Liturgia tradicional Luterana vemos que não se referem a uma oferta de algo sensível a Deus: “Os sacrifícios de Deus são um espírito quebrantado”; “Eu te oferecerei o sacrifício de ação de graças”; “Suba a minha oração como incenso diante de ti; e o levantar das minhas mãos como o sacrifício da tarde”. (veja-se aqui).

A Liturgia de Cranmer faz menção ao sacrifício da Cruz como único e suficiente: “Toda a glória e ações de graças te sejam dadas, ó Deus Pai de infinito poder e amor, por toda a criação e por nos teres feito à tua própria imagem; e porque, tendo nós caído em pecado, enviaste misericordioso, em nosso socorro, teu único Filho Jesus Cristo, o qual, para nossa redenção, tomou sobre si a natureza humana e sofreu morte de cruz; e porque Ele, pela oblação única de si mesmo, realizou um sacrifício perfeito, completo e suficiente pelo pecado de todo o mundo”. Há menção ao sacrifício de louvor e ação de graças: “Ó Senhor e Pai celestial, nós Teus humildes servos desejamos inteiramente tua misericórdia paternal para aceitar este nosso sacrifício de louvor e ação de graças”. O sentido desse sacrifício é explicado na mesma oração: “E aqui nós oferecemos e apresentamos a ti, ó Senhor, nós mesmos, nossas almas e corpos, para ser um sacrifício razoável, santo e vivo a Ti” (veja-se aqui)

Até mesmo a Liturgia da Comunidade ecumênica de Taizé utiliza a expressão no sentido protestante, vejamos:

“Apresentamos a Ti, Senhor da glória, como nossa ação de graças e nossa intercessão, os sinais do sacrifício eterno de Cristo, único e perfeito, vivo e santo, o pão da vida que desce do céu”. Ainda:  “Em seu amor e misericórdia, receba nosso louvor e nossa oração em Cristo, pois você teve a gentileza de aceitar as dádivas de seu servo Abel, o justo, o sacrifício de nosso pai Abraão e o de Melchsedech…”.

– O Sacrifício em sentido verdadeiro e próprio é demonstrado pela ideia de oblação de Cristo

Esclarecemos no item Explicação que a única oblação que os protestantes admitem é de nós mesmos, a chamada oblação interna. Citamos Lutero falando explicitamente sobre essa distinção entre católicos e protestantes. As citações das liturgias protestantes logo acima não deixam de ilustrar a matéria. Basta que o leitor retome o item Explicação em caso de dúvida. Seguem citações claras no Novo Ordo sobre a oblação de Cristo:

“Recebei, ó Pai, com bondade, a oblação dos vossos servos e de toda a vossa família; dai-nos sempre a vossa paz, livrai-nos da condenação e acolhei-nos entre os vossos eleitos” (OE I) “Nós vos pedimos, ó Deus, que esta oblação seja por vós em tudo, abençoada, aprovada, ratificada, digna e aceitável a vossos olhos, afim de que se torne para nós o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo, vosso diletíssimo Filho e Senhor Nosso. (OE I) “Celebrando, pois, a memória da paixão do vosso Filho, da sua ressurreição dentre os mortos e gloriosa ascensão aos céus, nós, vossos servos, e também vosso povo santo, vos oferecemos, ó Pai, dentre os bens que nos destes, o sacrifício perfeito e santo, o pão da vida eterna e cálice da salvação”. (OE I)

“Santificai, pois, estas oferendas, derramando sobre elas o vosso Espírito, a fim de que se tornem para nós o Corpo e (+) o Sangue de Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor nosso. T: Santificai nossa oferenda, ó Senhor!”. (OE II) “Celebrando, pois, a memória da morte e ressurreição do vosso Filho, nós vos oferecemos, ó Pai, o pão da vida e o cálice da salvação; e vos agradecemos porque nos tornastes dignos de estar aqui na vossa presença e vos servir. T: Recebei, ó Senhor, a nossa oferta!” (OE II)

“Na verdade, vós sois santo, ó Deus do universo, e tudo o que criastes proclama o vosso louvor, porque, por Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor nosso, e pela força do Espírito Santo, dais vida e santidade a todas as coisas e não cessais de reunir o vosso povo, para que vos ofereça em toda parte, do nascer ao pôr-do-sol, um sacrifício perfeito”. (OE III) “Celebrando agora, ó Pai, a memória do vosso Filho, da sua paixão que nos salva, da sua gloriosa ressurreição e da sua ascensão ao céu; e enquanto esperamos a sua nova vinda, nós vos oferecemos em ação de graças este sacrifício de vida e santidade. T: Recebei, ó Senhor, a nossa oferta!”. (OE III) “Olhai com bondade a oblação da vossa Igreja, e reconhece nela a Hóstia (Vítima), por cuja imolação quisestes ser aplacado, e concedei que, alimentando-nos com o Corpo e o Sangue do vosso Filho, sejamos repletos do Espírito Santo e nos tornemos em Cristo um só corpo e um só espírito”. (OE III)

E agora, ó Senhor, lembrai-vos de todos pelos quais vos oferecemos esta oblação: o vosso servo o Papa (N.), o nosso bispo (N.), os bispos do mundo inteiro, os presbíteros e todos os ministros, os fiéis que, em torno deste altar, vos oferecem este sacrifício, o povo que vos pertence e todos aqueles que vos procuram de coração sincero. (OE IV) Olhai, com bondade, a hóstia (vítima) que destes à vossa Igreja e concedei aos que vamos participar do mesmo pão e do mesmo cálice que, reunidos pelo Espírito Santo num só corpo, nos tornemos em Cristo uma hóstia viva para o louvor da vossa glória. (OE IV)

“Aceitai benignamente, Senhor, a oblação que nós, vossos servos, com toda a vossa família, Vos apresentamos. Nós Vo-la oferecemos também por aqueles que fizestes renascer da água e do Espírito Santo, concedendo- -lhes o perdão de todos os pecados. Dai a paz aos nossos dias, livrai-nos da condenação eterna e contai-nos entre os vossos eleitos. [Por Cristo, nosso Senhor. Amen]” (Vigília Pascal até ao Domingo II da Páscoa)

Nesse sentido, é muito interessante ler a avaliação do teólogo protestante K. H. Bieritz, que refere que para “uma teologia derivada dos reformadores” e sua Cristologia, o contraste oferecido pela liturgia católica ainda existe na Nova Ordem da Missa e “se tornou ainda mais claro e nítido”. O artigo do teólogo protestante tem o título: Oblatio Ecclesiae. Bemerkunger zu den neuen eucharistischen Hochgebeten der römischen Liturgie, publicado em ThLZ, no ano de 1969. Ele utiliza justamente as passagens que citamos da Oblação de Cristo para comprovar a distinção entre as Orações Eucarísticas e a teologia protestante.

É revelador o que diz Max Thurian o co-fundador da ecumênica Comunidade de Taizé: “Recentemente, uma comissão litúrgica protestante recebeu a tarefa de rever as orações para a Ceia do Senhor. Foi que proposta a segunda Oração Eucarística Católica (inspirada na anáfora de Hipólito) deveria ser adotada. Esta proposta não teve êxito. Pois considerou-se que a doutrina implícita nesta oração não correspondiam à fé comum dos protestantes. Dois problemas, acima de tudo estava no caminho da adoção desta oração: o seu caráter sacrificial foi tido como inaceitável (“oferecemos-lhe o pão da vida e o cálice da salvação” ) e a invocação do Espírito Santo sobre o pão e o vinho implica transubstanciação. ESTE EXEMPLO MOSTRA CLARAMENTE QUE A LITURGIA CATÓLICA CONSERVOU A DOUTRINA TRADICIONAL DO SACRIFÍCIO EUCARÍSTICO E DA PRESENÇA REAL.” (Max Thurian, citado em La Croix (Paris), 15 de junho de 1977.)

– O Sacrifício em sentido verdadeiro e próprio é demonstrado pelas expressões hóstia (Vítima) e imolação

Explicamos que no conceito católico de Sacrifício há uma vítima a ser imolada, coisa que os protestantes não admitem. Portanto, o sacrifício em sentido verdadeiro e próprio é demonstrado pela expressão hóstia, que quer dizer vítima, ou imolação. É de se considerar que o uso de tais expressões foi considerada como suficiente para provar o Sacrifício em sentido católico no entendimento de São Roberto Bellarmino: “O primeiro título ou argumento, é tirado a partir das palavras sacrifício, hóstia e vítima, bem como dos verbos oferecer,  imolar e sacrificar” (De Missa, Lib. I, cap. XV)

“hóstia pura, hóstia santa, hóstia imaculada” (OE I) “Sobre estas ofertas, dignai-Vos lançar olhar propício e complacente; aceitai-as, assim como Vos dignastes aceitar os dons do justo Abel, vosso servo, o sacrifício de Abraão, nosso pai, e que vos ofereceu o vosso sumo sacerdote Melquisedeque, sacrifício santo, hóstia imaculada”. (OE I).

“Olhai com bondade a oblação da vossa Igreja, e reconhece nela a Vítima, por cuja imolação quisestes ser aplacado. e concedei que, alimentando-nos com o Corpo e o Sangue do vosso Filho, sejamos repletos do Espírito Santo e nos tornemos em Cristo um só corpo e um só espírito”. (OE III) “E agora, nós vos suplicamos, ó Pai, que esta hóstia da nossa reconciliação estenda a paz e a salvação ao mundo inteiro.” (OE III)

“Olhai, com bondade, a hóstia (vítima) que destes à vossa Igreja e concedei aos que vamos participar do mesmo pão e do mesmo cálice que, reunidos pelo Espírito Santo num só corpo, nos tornemos em Cristo uma hóstia viva para o louvor da vossa glória”.(OE IV)

“ao instituir o sacrifício da eterna aliança, ofereceu-se a si mesmo como vítima de salvação e nos mandou perpetuar essa oferta em sua memória. Sua carne, imolada por nós, é alimento que nos fortalece; seu sangue, derramado por nós, é bebida que nos purifica”. (I Prefácio Da Santíssima Eucaristia)

– O Sacrifício em sentido verdadeiro e próprio é demonstrado pelas expressões “que será entregue por vós”/ “que será derramado por vós” na fórmula da Consagração do pão e do vinho

A primeira expressão, contida na fórmula da consagração do pão, pode ser considerada um acréscimo benéfico do Novo Ordo que exprime o valor sacrifical da Missa na fórmula do cânone romano para consagração do pão (ausente na Missa Tridentina). Vejamos que o Mons. Bugnini, secretário da Congregação do Culto Divino e o principal nome da reforma lítúrgica, diz sobre a matéria:

“3º. A fórmula do cânone romano para a consagração do pão (Hoc est enim corpus meum), aceita também pelo cânone ambrosiano da Quinta-Feira Santa:

– É isolada na tradição litúrgica, quer histórica quer atual. A molárabe acrescenta quod pro vobis tradetur (a galicana não é conhecida exatamente). Todas as três acrescentam algo: quod pro vobis datur ou traditur; quod pro vobis confringetur; frangitur; frangitur et disgribuitur.

Por si mesma, é notavelmente incompleta do ponto de vista da teologia da Missa. Com efeito, a fórmula hoc est enim corpus meum, tomada em si mesma, DIZ APENAS DA PRESENÇA REAL, MAS NÃO EXPRIME O VALOR SACRIFICAL DO RITO. ESTE ÚLTIMO, NO CÂNONE ROMANO, NO QUE DIZ RESPEITO À PRIMEIRA CONSAGRAÇÃO, DEVE SER OBTIDO DO CONTEXTO.

– É solicitação insistente de muitos bispos e pastores de todo o mundo, não menos de liturgistas e teólogos, que à fórmula Hoc est enim corpus meum seja acrescentado: quod pro vobis tradetur, segundo a Vulgata em 1 Cor 11,24. Seria uma não pequena desilusão se tal pedido não fosse acolhido nas novas anáforas”. (BUGNINI, Annibale. A Reforma Litúrgica (1948-1975), Pia Sociedade Filhas de São Paulo, 2018, p. 391) (grifos meus).

Isso também é confirmado pelo padre Pierre Jounel, membro do Consilium:

“retomamos o texto do cânone romano, acrescentando às palavras faladas no pão as palavras quod pro vobis tradetur, que explicam o caráter sacrificial da Eucaristia”. (Les nouvelles prières eucharistiques, La Maison-Dieu : cahiers de pastorale liturgique, n. 94, 1968)

Sobre a segunda expressão, contida na fórmula da consagração do vinho, Doronzo comenta: Derramar-se o Sangue de Cristo, e fazê-lo efetivamente para a remissão dos pecados, é uma expressão sacrificial e significa que Cristo oferece o sacrifício de Seu Sangue para remissão dos pecados. Com efeito, no Antigo Testamento, derramar sangue pelo delito significa oferecer um sacrifício (Lev. 14, 17; 17, 11; Num. 18, 17; Deut. 12, 27; Hebr. 9, 22); no Novo Testamento, frequentemente se anuncia, pela efusão do Sangue de Cristo, o sacrifício da cruz (Act. 20, 28; Rom. 3, 25; 5, 9; Ephes. 1, 7; 2, 13; Coloss. 1, 14. 20: 1 Petr. 1,2. 19; 1 Joan. 1, 7; Hebr. e Apoc. passim). (Tractatus dogmaticus De Eucharistia, tom. II, De Sacrificio, 1948, p. 874).

 

– O Sacrifício em sentido verdadeiro e próprio é demonstrado pela separação das espécies (dupla consagração)

A separação das espécies consagradas significa mística e sacramentalmente a morte de Cristo, enquanto representa a morte de Cristo na Cruz. Nesse sentido Pe. Penido:  

“Se assim é, não bastaria transubstanciar um dos elementos? Por que consagrar separadamente o pão e o vinho? — Porque a Eucaristia é Sacramento: não exclusivamente símbolo e figura, mas também símbolo e figura. Ora, a dupla consagração figura e simboliza maravilhosamente a separação do Corpo e do Sangue no Calvário. E deve figurar esta separação, em virtude de sua índole sacrifical. Não apenas Sacramento é a Eucaristia, mas ainda Sacrifício”. (Iniciação Teológica II, O Mistério dos Sacramentos, II edição, 1961, p. 249)

 

– O Sacrifício em sentido verdadeiro e próprio é demonstrado pela elevação das espécies na Doxologia final

O significado da elevação das espécies no momento da pronúncia da Doxologia tem o sentido de oblação, como explica o padre Francesc M. Espinar Comas: “De todos os modos, aqui sobretudo, o gesto da elevação reveste o caráter de oferta, em harmonia com o sentido pouco antes expressado da oração Suplices te rogamos, com a qual Cristo se oferece sobre o altar celeste como vítima ao Pai. A este significado alude um texto da vida de São Euperto, bispo de Orleáns, escrito pelo subdiácono Lucifer:  De todos modos, aquí sobre todo, el gesto de la elevación reviste el carácter de oferta, en armonía con el sentido expresado poco antes de la oración Supplices te rogamos (4), con la cual Cristo se ofrece sobre el altar celeste como víctima al Padre. A este significado alude un texto de la vida de San Euperto, obispo de Orleáns, escrito por el subdiacono Lucifer: E eis aqui a hora da partição do pão celeste, enquanto oferecia a hóstia segundo o costume sacerdotal com as mãos elevadas para que Deus a abençoasse pela terceira vez, apareceu sobre sua cabeça uma espécie de nuvem resplandecente, e uma mão saiu da nuvem, com os dedos estendidos, abençoou a oblata”. (Os gestos litúrgicos)

2. Sobre a presença real e substancial de Cristo na Eucaristia

2.1. Explicação

Sabemos pela fé católica que Cristo está presente de forma real e substancial na Eucaristia pela Consagração das espécies. Os acidentes do pão e do vinho (cor, cheiro, formato, sabor, localização, superfície) continuam presentes, enquanto que a substância muda para o Corpo e Sangue de Cristo. Isso é chamado de transubstanciação. Está presente na Eucaristia, portanto, Corpo e Sangue, Alma e a Divindade de Nosso Senhor. A maioria dos protestantes nega a presença real de Cristo na Eucaristia, embora possam crer na presença espiritual de Cristo. Os luteranos, no entanto, defendem a doutrina da consubstanciação, ou seja, a substância do pão e do vinho permanecem na Eucaristia, embora o Corpo e o Sangue de Cristo também. A matéria não precisa de demais explicações, pois é conhecida dos leitores.
 

2.2. A presença real e substancial de Cristo na Eucaristia no Novo Ordo

– A presença real e substancial de Cristo é demonstrada pela Epiclese “consacratória”

As passagens abaixo se chamam epiclese, isto é, onde “a Igreja implora por meio de invocações especiais a força do Espírito Santo, para que se os dons oferecidos pelo ser humano sejam consagrados, isto é, se tornem o Corpo e o Sangue de Cristo” (IGMR nº. 43). Os protestantes, geralmente, reconhecem que ela revela a noção católica de transubstanciação. Deve-se notar que na liturgia de Santo Hipólito a epiclese pré-consacratória estava ausente, sendo uma construção benéfica do Consilium. É certo que Thomas Cranmer retira o “fiat” do cânon de sua “igreja”, de modo a tentar excluir a idéia de conversão.

“Nós Vos pedimos, ó Deus, que esta oblação seja por Vós em tudo abençoada, aprovada, válida, digna e agradável a vossos olhos, a fim de que se torne/converta (Fiat) para nós Corpo e Sangue de Jesus Cristo, vosso diletíssimo Filho, Nosso Senhor”. (OE I)

«Santificai estes dons, derramando sobre eles o Vosso Espírito, de modo que se convertam/tornem(fiant), para nós Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo» (OE II)

“santificai pelo Espírito Santo as oferendas que vos apresentamos para serem consagradas, a fim de que se tornem o Corpo e (+) o Sangue de Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor nosso, que nos mandou celebrar este mistério’. (OE III)

“ Por isso, nós vos pedimos que o mesmo Espírito Santo santifique estas oferendas, a fim de que se tornem o Corpo e + o Sangue de Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor nosso, para celebrarmos este grande mistério que ele nos deixou em sinal da eterna aliança”. (OE IV)

Nesse sentido diz Dom Antonio Coelho:

“5. QUAM OBLATIONEM. Esta oração, ligada artificialmente pela palavra’ Quam à oração precedente, mas, de facto, Intimamente conexa, pelo sentido e pela sua história, com o Qui pridie, tem por fim alcançar a graça da transubstanciação. Encontram-se nas liturgias orientais e galicanas invocações semelhantes, ora dirigidas ao Pai, ora ao Verbo, mas mais frequentemente ao Espírito Santo. Tem por fim não negar a virtude das palavras da Consagração que, proferidas pelo sacerdote em nome de Cristo, operam a transubstanciação, mas sim proclamar, invocando-o, o poder de Deus santificador que converte a substância do pão e do vinho na substância do Corpo e Sangue de Jesus. O lugar próprio e tradicional destas orações, a que se dá o nome de Epiclese, é antes da Consagração. Porém nas liturgias orientais, na época talvez das controvérsias dos macedonianos acerca da divindade do Espírito Santo, passaram para depois da Consagração, para o lugar em que a ordem cronológica relata o acontecimento do Pentecostes”. (Dom Antonio Coelho, Curso de liturgia romana, tomo II, ano 1943, pp. 179-180).

O Padre Iosepho Mors apresenta o trecho da Oração Eucarística I (Cânon Romano) como prova da presença real de Cristo:

“Artigo IV. A real presença de Cristo é provada a partir da antiga tradição…. 328. Apresentamos outros exemplos: … LITURGIA ROMANA… Nós Vos pedimos, ó Deus, que esta oblação seja por Vós em tudo abençoada, aprovada, válida, digna e agradável a vossos olhos, a fim de que se torne/converta (Fiat) para nós Corpo e Sangue de Jesus Cristo, vosso diletíssimo Filho, Nosso Senhor”. (Theologia Dogmatica, De sacramentis in genere. De baptismo. De Confirmatione. De Eucharistia. Tomus V, Editorial Guadalupe, 1951, pp. 182, 190, 192).

Citamos novamente Max Thurian sobre o assunto:

“Recentemente, uma comissão litúrgica protestante recebeu a tarefa de rever as orações para a Ceia do Senhor. Foi que proposta a segunda Oração Eucarística Católica (inspirada na anáfora de Hipólito) deveria ser adotada. Esta proposta não teve êxito. Pois considerou-se que a doutrina implícita nesta oração não correspondiam à fé comum dos protestantes. Dois problemas, acima de tudo estava no caminho da adoção desta oração: o seu caráter sacrificial foi tido como inaceitável ( “oferecemos-lhe o pão da vida e o cálice da salvação” ) e a invocação do Espírito Santo sobre o pão e o vinho implica transubstanciação. ESTE EXEMPLO MOSTRA CLARAMENTE QUE A LITURGIA CATÓLICA CONSERVOU A DOUTRINA TRADICIONAL DO SACRIFÍCIO EUCARÍSTICO E DA PRESENÇA REAL.” (Max Thurian, citado em La Croix (Paris), 15 de junho de 1977.)
 

– A presença real e substancial de Cristo é demonstrada pelas genuflexões diante do Sacramento

A genuflexão indica adoração e, por isso, sempre esteve relacionada à doutrina da presença real de Cristo na Eucaristia.

Após a consagração do pão, o sacerdote mostra ao povo a hóstia consagrada e faz uma genuflexão para adorá-la.

Após a consagração do vinho, o sacerdote mostra o cálice ao povo, e faz genuflexão para adorá-lo.

O sacerdote faz genuflexão e eleva a hóstia sobre a patena e diz em voz alta “Felizes os convidados para o Banquete nupcial do Cordeiro”.

O significado da genuflexão não pode restar dúvida que é afirmar a presença real de Cristo na Eucaristia. Nesse sentido a própria Instrução geral do Missal Romano diz:

“A genuflexão, que se faz dobrando o joelho direito até ao solo, significa adoração; é por isso reservada ao Santíssimo Sacramento e à santa Cruz desde a solene adoração na Ação litúrgica da Sexta-Feira da Paixão do Senhor, até ao início da Vigília pascal. Na Missa, o sacerdote celebrante faz três genuflexões: após a ostensão da hóstia, após a ostensão do cálice e antes da Comunhão. As peculiaridades a observar na Missa concelebrada indicam-se nos lugares respectivos (cf. nn. 210-251)”.

A rubrica contida no Ordo indica sobre cada momento da genuflexão: “et genuflexus adorat” (fazendo genuflexão para adorá-la).

Jungmann sobre a matéria referiu:

“No final da Idade Média, surgiu, do mesmo zelo por honrar o Santíssimo Sacramento, um rito que penetrou em todos os lugares e mudou a imagem externa da liturgia da Missa entre a consagração e a Comunhão, ornamentando-a e avivando-a de maneira notável- a genuflexão antes e depois de cada toque no Santíssimo Sacramento. Isso não era conhecido antes do século XIV”. (Jungmann, The Mass of the Roman Rite: ITS ORIGINS AND DEVELOPMENT (Missarum Sollemnia), 1955, pp. 122-123)
 

– A presença real e substancial de Cristo é demonstrada por conta de que os fiéis ficam de joelhos durante a Consagração

O sentido de adoração a Cristo presente na Eucaristia também é visto aqui. O Catecismo da Igreja Católica no seu parágrafo 1378 é muito claro sobre a matéria:

“Na liturgia da Missa, exprimimos nossa fé na presença real de Cristo sob as espécies do pão e do vinho, entre outras coisas, dobrando os joelhos, ou inclinando-nos profundamente em sinal de adoração do Senhor(…)”.

Nesse sentido, novamente, Jungmann: “Decididamente, o movimento eucarístico do século XIII fez triunfar até os dias atuais o costume de permanecer de joelhos durante a consagração”. (El sacrificio de la Misa, Tratado historico-liturgico, 1949, p. 318)
 

– A presença real e substancial de Cristo é demonstrada pela elevação em cada consagração

Historicamente, a elevação é motivada pela devoção ao Santíssimo Sacramento. Impossível, portanto, dissociar esse gesto da crença na presença real de Cristo na Eucaristia.

Nesse sentido, Fr. Amiot explica:

“A elevação logo após a consagração é um rito da Idade média que realça o momento essencial do sacrifício, apresentando as sagradas espécies à adoração dos fiéis. Em todas as liturgias, existe uma elevação antes da comunhão, para fazer com que os fiéis adorem o Santíssimo Sacramento antes de recebê-lo… No século XII, tomando o pão para consagrá-lo, o sacerdote elevava-o o bastante para que o povo o pudesse ver. Alguns bispos, em particular Eudes, de Paris, pelo ano 1210, ordenaram conservar a hóstia à altura do peito somente, só a elevando mais alto após as palavras da consagração, de modo a evitar que o povo a adorasse cedo demais. Trata-se pois, da regulamentação e do realce de um gesto já usado, realce provocado pelo valor religioso especial atribuído então à visão da hóstia. O desejo de ver a hóstia é uma devoção característica da época, ligada ao amor então muito desenvolvido à santa Humanidade do Cristo e à prática nascente da comunhão espiritual, uma vez que a comunhão sacramental se havia tornado, infelizmente, muito rara: S. Luiz, que assistia todos os dias a uma ou várias missas, só comungava seis vezes por ano. Certos milagres eucarísticos exerceram a mesma influência”. (A Missa e sua História, Editora Flamboyant, 1958, p. 84)

Também o Padre Réus refere:

“521. 3, A atual elevação das santas espécies, para serem adoradas, foi introduzida pouco a pouco pelos fins do século XII. Por muito tempo só a santa hóstia se elevava e era adorada pelo povo corn a inclinação da cabeça; na primeira metade do século XIV, também o cálice começou a ser venerado do mesmo modo. A genuflexão com sinal de adoração é conhecida desde o princípio do século XVI. A grande elevação, mesmo durante a consagração, generalizou-se também pelo motivo de tornar a consagração centro visível da missa. A incensação do SS. Sacramento durante a elevação apareceu no século XIII, e generalizou-se nos séculos XIV e XV”. (Padre Réus, Curso de Liturgia, segunda edição, Editora Vozes, 1944, p. 254).
 

– A presença real e substancial de Cristo é demonstrada pelas orações rezadas pelo padre no Rito de Comunhão

A primeira oração é recitada em silêncio quando o sacerdote toma a hóstia e parte-a sobre a patena e deita um fragmento no cálice:

“Esta união do Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, que vamos receber, nos sirva para a vida eterna”.

As orações alternativas rezadas pelo padre em silêncio, de mãos juntas, após o Agnus Dei:

“Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, que, por vontade do Pai e com o poder do Espírito Santo, destes a vida ao mundo pela vossa morte, livrai-me de todos os meus pecados e de todo o mal, por este vosso santíssimo Corpo e Sangue; conservai-me sempre fiel aos vossos mandamentos e não permitais que eu me separe de Vós”.

“A comunhão do vosso Corpo e Sangue, Senhor Jesus Cristo, não seja para meu julgamento e condenação, mas, pela vossa misericórdia, me sirva de protecção e remédio para a alma e para o corpo”.

A oração rezada em voz alta quando o padre genuflecte, toma a hóstia e levanta-a um pouco sobre a patena e, voltado para o povo, diz:

“Felizes os convidados para a Ceia do Senhor. Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”.

As últimas orações que o padre diz em silêncio ao comungar no Rito de Comunhão:

“O Corpo de Cristo me guarde para a vida eterna”.

“O Sangue de Cristo me guarde para a vida eterna”.

Não pode restar dúvida de que tais orações são claras sobre a presença real e substancial de Cristo na Eucaristia.
 

– A presença real e substancial de Cristo é demonstrada pela oração dos fiéis no Rito da Comunhão

Com efeito, quando o sacerdote eleva a hóstia e diz “Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”, os fiéis dizem:

“Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei salvo”.
 

– A presença real e substancial de Cristo é demonstrada pelo que é dito aos comungantes no momento da Comunhão

O padre se aproxima do comungante, eleva um pouco a hóstia, mostrando-a a cada um deles, e diz: “O Corpo de Cristo”, pelo que é respondido com o “Amém”.

O Padre Jungmann diz:

“562. A distribuição da comunhão ia acompanhada desde os primeiros tempos de uma fórmula apropriada. A mais corrente era: Σώμα Χριστού, Corpus Christi. Equivalia a uma profissão de fé, como o diz expressamente o Testamentum Domini, árabe: unicuique, cum panem gratiarum actionis partipat, sacerdos testimonium perhibeat id esse corpus Christi; por isso se tinha especial interesse em que o comungante respondesse: Amém”. (El sacrificio de la Misa, Tratado historico-liturgico, 1949, p. 1.100).

É interessante notar o que diz o Padre Manuel Pinto sobre o rito anglicano:

“Como a antiga «Corpus Christi», à qual o comungante respondia «Amen», também a fórmula contemporânea «Corpus Domini N. J . C. custodiat…» era expressão clara da presença real. Alteraram-na, pois, de maneira que ficasse ao sabor das duas opiniões, e modificaram-na nestes termos na primeira edição do «Book of Common Prayer», de 1549: «O Corpo de N. S. J. C., que por ti se deu, guarde o teu corpo e a tua alma para a vida eterna». E para a comunhão do cális: «O sangue de N. S. J. C., que por ti foi derramado, guarde a tua aima para a vida eterna». Prevaleceram depois os que negavam a presença real, e na segunda edição, três anos depois, cm 1552, aquele texto aparece já assim mudado: «Toma e come isto em memória de que Cristo morreu por ti, e nutre-te dele no teu coração pela fé, com acção de graças». «Bebe isto em memória de que por ti foi derramado o Sangue de Cristo, e dá graças». É a expressão fiel da doutrina a que já se tinha chegado. (O Valor Teológico da Liturgia, 1952, 147-148)

 

– A presença real e substancial de Cristo é demonstrada nas Orações Eucarísticas

Na Oração Eucarística I, após a Consagração, o padre diz: “Nós vos suplicamos que ela seja levada à vossa presença, para que, ao participarmos deste altar, recebendo o Corpo e o Sangue de vosso Filho, sejamos repletos de todas as graças e bênçãos do céu. Por Cristo, Senhor nosso. Amém”.

Na Oração Eucarística II, após a Consagração, o padre diz: “E nós vos suplicamos que, participando do Corpo e Sangue de Cristo, sejamos reunidos pelo Espírito Santo num só corpo”.

Na Oração Eucarística III, após a Consagração, o padre diz: “Olhai com bondade a oferenda da vossa Igreja, reconhecei o sacrifício que nos reconcilia convosco e concedei que, alimentando-nos com o Corpo e o Sangue do vosso Filho, sejamos repletos do Espírito Santo e nos tornemos em Cristo um só corpo e um só espírito”.

Na Oração Eucarística IV, após a Consagração, o padre diz: “Celebrando agora, ó Pai, a memória da nossa redenção, anunciamos a morte de Cristo e sua descida entre os mortos, proclamamos a sua ressurreição e ascensão à vossa direita, e, esperando a sua vinda gloriosa, nós vos oferecemos o seu Corpo e Sangue, sacrifício do vosso agrado e salvação do mundo inteiro”.
 

3. Sobre a distinção essencial entre os sacerdócios ministerial e comum

3.1. Explicação

A doutrina católica nos ensina que o sacerdócio ministerial e o sacerdócio comum dos fiéis distinguem-se não somente por grau, mas por essência.  O sacramento da ordem capacita o sacerdote para o sacrifício, em pessoa de Cristo, e os sacramentos, poder este que os leigos não receberam. O sacerdote faz as vezes do povo porque representa a pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo enquanto é Cabeça de todos os membros e se oferece a si mesmo por eles: por isso vai ao altar como ministro de Cristo, inferior a ele, mas superior ao povo. O povo não representando por nenhum motivo a pessoa do divino Redentor, nem sendo mediador entre si próprio e Deus, não pode de nenhum modo gozar dos poderes sacerdotais, como explica a Encíclica Mediator Dei.

O povo católico pelo batismo participa do Sacerdócio de Cristo, o chamado sacerdócio comum ou sacerdócio impropriamente dito, uma vez que também se pode dizer que os fiéis oferecem a vítima divina, embora num sentido diverso. Nesse sentido, São Roberto Bellarmino diz:

“O sacrifício é oferecido principalmente na pessoa de Cristo. Por isso a oblação que segue à consagração atesta que toda a Igreja consente na oblação feita por Cristo e oferece juntamente com ele” (De Missa, I. cap. 27).

Sem dúvida, os ritos e as orações do sacrifício eucarístico significam e demonstram que a oblação da vítima é feita pelos sacerdotes em união com o povo. Devemos admitir com Pio XII:

 “Nem é de admirar que os fiéis sejam elevados a uma tal dignidade. Com a água do batismo, com efeito, os cristãos se tornam, a título comum, membros do corpo místico de Cristo sacerdote, e, por meio do “caráter” que se imprime nas suas almas, são delegados ao culto divino, participando, assim, de modo condizente ao próprio estado, do sacerdócio de Cristo”. (Mediator Dei).

Mas há de se precisar que a imolação incruenta por meio da qual, depois que foram pronunciadas as palavras da consagração, Cristo está presente no altar no estado de vítima, é realizada só pelo sacerdote enquanto representa a pessoa de Cristo e não enquanto representa a pessoa dos fiéis.

O protestantismo, no geral, só admite o sacerdócio comum dos fiéis, assim, não haveria distinção entre clérigos e leigos. Não haveria nenhum sacerdócio especial, externo, litúrgico e hierárquico para santificação dos fiéis instituído por Cristo de forma visível.
 

3.2. A distinção essencial entre os sacerdócios ministerial e comum demonstrada no Novo Ordo

– A distinção essencial entre o sacerdócio ministerial e comum é demonstrada pelo diálogo entre o padre e os fiéis no Orate fratres

“P: Orai, Irmãos, para que o nosso sacrifício seja aceito por Deus Pai Todo-Poderoso.

T: Receba o Senhor de tuas mãos este sacrifício para louvor e glória de seu nome, para nosso bem e de toda a sua santa Igreja” (Ofertório)

O sacrifício é oferecido pelas mãos do sacerdote. Além disso, o Orate frates marca perfeitamente a distinção da oferta dos fiéis e o sacrifício oferecido pelo sacerdote; a clara distinção que esta oração estabelece entre o sacerdote e os fiéis significa que o sacrifício é reservado apenas para o sacerdócio consagrado.

Nesse sentido N.-K. Rasmussen:

“Na sua formulação atual, a resposta do povo indica claramente que é pelas mãos do sacerdote que a comunidade oferece a Eucaristia (pensamento retomado no documento conciliar sobre os sacerdotes 38)”. (Les Rites de Présentation du pain et du vin, La Maison-Dieu, nº. 100, 1969, p. 56)
 

– A distinção essencial entre o sacerdócio ministerial e comum é demonstrada pelas orações em silêncio do padre

As nove orações rezadas em silêncio pelo padre, sem dúvida, são um indicativo do sacerdócio ministerial.

Nesse sentido a Instrução Geral do Missal Romano diz no n. 33: “o sacerdote não somente pronuncia as orações como presidente de toda comunidade, mas, por vezes, também o faz em nome pessoal para despertar maior atenção e piedade no exercício do seu ministério. Estas orações, propostas para antes da leitura do Evangelho, na preparação dos dons, e antes e depois da comunhão do sacerdote, são ditas em silêncio (“secreto”)”.
 

 – A distinção essencial entre o sacerdócio ministerial e comum é demonstrada pelas Orações Eucarísticas

Na Oração Eucarística I, após a aclamação do Mistério da Fé, o sacerdote diz: “Celebrando, pois, a memória da paixão do vosso filho, e da sua ressurreição dentre os mortos, e gloriosa ascensão aos céus, nós, vossos servos, e também vosso povo santo vos oferecemos, ó Pai, dentre os bens que nos destes, o sacrifício perfeito e santo, pão da vida e cálice da salvação”.

Após o Communicántes, diz: “Recebei, ó Pai, com bondade, a oferenda dos vossos servos e de toda a vossa família; dai-nos sempre a vossa paz, livrai-nos da condenação e acolhei-nos entre os vossos eleitos”.

Na Oração Eucarística II, após a aclamação do Mistério da fé, o sacerdote diz: “Celebrando, pois a memória da morte e ressurreição do vosso Filho, nós vos oferecemos, ó Pai, o pão da vida e o cálice da salvação; e vos agradecemos porque nos tornastes dignos de estar aqui na nossa presença e vos servir (tibi ministráre)

A interpretação do Papa Bento XVI é clara: “O Cânone II do nosso Missal, que provavelmente foi redigido já no final do século II em Roma, descreve a essência do ministério sacerdotal com as mesmas palavras com as quais, no Livro do Deuteronómio (18, 5.7), era descrita a essência do sacerdócio veterotestamentário: astare coram te et tibi ministrare. Portanto, são duas as tarefas que definem a essência do ministério sacerdotal: em primeiro lugar o “estar diante do Senhor”. No Livro do Deuteronómio isto deve ser lido no contexto da disposição precedente, segundo a qual os sacerdotes não recebiam porção alguma de terreno na Terra Santa eles viviam de Deus e por Deus. Não se ocupavam dos normais trabalhos necessários para o sustento da vida quotidiana. A sua profissão era “estar diante do Senhor” olhar para Ele, estar com Ele”. (Homilia de 20 de março de 2008).

Há de se levar em conta que o padre Bernard Botte, responsável pela confecção da reconstrução do Cânon de Hipólito, havia traduzido no seguinte sentido tal trecho do original: “et de te servir comme prêtres”. (B. BOTTE, La Tradition apostolique de saint Hippolyte, 9, Münster Westfalen, 1963, p. 17). A versão etíope do Cânon de Hipólito, muito anterior ao Concílio, emprega a palavra “sacerdócio”. (cf. Pierre Jounel, La composition des nouvelles prières eucharistiques, La Maison-Dieu : cahiers de pastorale liturgique, nº. 94, p. 51)

Além disso, Oração Eucarística II usa a expressão de agradecimento do sacerdote “porque nos tornastes dignos de estar aqui” que deve ser entendido como uma referência do sacerdócio ministerial. Nesse sentido, Pierre Jounel (um dos membros do Consilium, como já referido), diz:

“A oração correspondente ao Memento dos Vivos do Cânon Romano é muito curta. Ela talvez pudesse ter se beneficiado de receber algum desenvolvimento. Notaremos a expressão: quam tibi adstare voluisti, que utiliza os termos da anamnese de Hipólito. O fato de o Senhor nos ter admitido estar diante dele no exercício do sacerdócio é uma graça cujo preço devemos reconhecer”. (Ibid., p. 60).
 

– A distinção essencial entre o sacerdócio ministerial e comum é demonstrada pela recitação da fórmula da Consagração de forma clara e distintamente e não meramente narrativa

São Paulo VI foi bem claro que as palavras consecratórias não deveriam ser proferidas “ad modum narrationis”, pois o sacerdote age em pessoa de Cristo, vejamos:

“7) Como já foi observado, as palavras consecratórias não devem ser recitadas como mera narração, com o acento especial e consciente do celebrante que adverte falar e agir “in persona Cjhrsti””. (Observações entregues ao padre Bugnini na Audiência de 22 de janeiro de 1968, cf. Annibale Bugnini, A Reforma Litúrgica (1948-1975), 2018 (originalmente em 1977), p. 321).

Mons. Bugnini escreveu ao grupo de estudo 10, comunicando o pensamento do Papa que, entre outras coisas, pedia:

“Em todas as Orações Eucarísticas, antes da consagração, haja uma rubrica que lembra ao sacerdote que as palavras da consagração não devem ser proferidas “ad modum narrationis”, mas “clara e distintamente, como é exigido pela natureza delas”” (Ibid., p. 324).

A referida rubrica de fato constou no Ordinário, vejamos: “Nas fórmulas que se seguem, as palavras do Senhor sejam proferidas de modo distinto e claro, como requer a natureza das mesmas”.

Os teólogos são claros que o pronunciar assertativamente demonstra que o sacerdote age na pessoa de Cristo, vejamos:

Cardeal Cayetano diz:

“Comparando entre si estes dois modos de pronunciar, o segundo (o significativo) prevalece sobre o primeiro (o recitativo) por duas razões: seja porque no modo recitativo se tomam as palavras materialmente; seja porque com o modo narrativo o sacerdote não obra na pessoa de Cristo, mas que relata a Cristo agindo” (in III, q. 78, a. 1, ad. 4, ed leonina, Romae, 1906)

Cardeal Billot diz:

“Justamente acontece que entre nós a palavra effundetur é de futuro; portanto não se profere assertivamente, mas tão somente narrativamente; pelo mesmo motivo, todo o inciso não pertence à essência da forma, posto que é necessário que a forma significa o que aqui e agora se realiza no momento presente. Sobre o qual deves observar que as palavras consecratórias podem ser proferidas, ao mesmo tempo, histórica e assertivamente; as demais, contudo, em forma meramente histórica. Digo que as palavras nas quais reside a eficácia da consagração são proferidas historicamente, como consta pelo contexto do canon da missa em todas as liturgias, e, ao mesmo tempo, assertivamente, posto que de outro modo não seriam prática, nem se aplicariam à matéria presente, e, por conseguinte, não realizariam o sacramento”. (De Ecclesa Sacramentis, Tomus Prior, Editio sexta, Romae, 1934, Quaest. 78, Thesis XLIX, §2, p. 540)

Padre Garrigou-Lagrange:

“Na primeira parte do corpo do artigo santo Tomás exclui em primeiro lugar três opiniões. A primeira opinião é: Estas palavras se dizem somente recitativamente, não significativamente. Responde-se: Deste modo não se realizaria agora o sacramento, mas que se recitaria somente a conversão realizada por Cristo, como na pregação da instituição da Eucaristia. Ademais, esta opinião não resolve as dificuldades propostas. Estas palavras ditas agora pelo sacerdote, são ditas não só recitativamente, referindo-se somente ao passado, mas significativamente, significando, então, que algo se realiza aqui e agora”. (De Eucharistia, Angelicum, Desclée de Brouwer, Paris, 1943, Q. LXXVIII, a. 5, p. 185)

O Padre Roguet, membro do Consilium, defende que a epiclese, acompanhada da imposição das mãos do sacerdote, que antecede as palavras da consagração é prova de que não se trata de uma simples narração:

“Estas quatro epicleses, incluída a Quam oblationem do Cânon romano, são acompanhadas da imposição das mãos, gesto tradicional dos dons do Espírito Santo em todos os sacramentos: batismo, confirmação, penitência, ordenação. Nas quatro Orações eucarísticas, esta epiclese com imposição das mãos, precede imediatamente o relato da Instituição. É, pois, evidente, que este não é uma simples narração, uma recordação dirigida somente à memória e, sim, uma ação consecratória eficaz”. (A Missa de hoje a mesa de todos, edições Loyola, 1972, p. 134).

A principal demonstração que é significativo e não meramente narratório é que o padre repete os gestos de Jesus ao pronunciar a fórmula. Toma o pão e o sustenta um pouco elevado ao altar; toma o cálice e o sustenta um pouco elevado ao altar; eleva os olhos em ação de graças. Isso é explicado pelo cardeal Billot para provar que a forma essencial do sacramento é dita também assertativamente:

“Por isso, como observou Belarmino com beleza, o sacerdote, até o momento em que pronuncia ‘Ele, na véspera de Sua Paixão’, age em sua própria pessoa e na pessoa da Igreja, pois até este ponto ele confessa seus pecados, ora e louva. Das referidas palavras até o fim da consagração, no entanto, age em sua pessoa e na de Cristo, pois tem intenção de recitar o que Cristo fez e disse e de imitar tudo que Ele fez in persona Christi, como se Cristo, pelo ministério do sacerdote, tudo novamente fizesse e dissesse – pois é isso que realmente sucede de modo invisível. Assim, pois, quando diz ‘tomou o pão’, igualmente toma o pão; quando diz ‘elevando os olhos ao céu’, também eleva seus olhos ao céu; quando diz ‘abençoou’, ele próprio abençoa; quando diz ‘isto é o Meu Corpo’, tem a mesma intenção que tinha Cristo quando Ele tomou o pão e disse tais palavras. Como Cristo, dizendo, fez que o pão fosse Seu Corpo, assim também sobre o pão que agora se toma o mesmo Cristo diz as mesmas coisas pela boca do Seu ministro, e, dizendo-o, opera a mudança. Sendo necessário que tais palavras sejam ditas de maneira não apenas narrativa, mas também assertiva e com intento de alterar o presente (original: practice de praesenti); se entre tais palavras encontram-se algumas que não têm natureza de locução prática, fica por esse mesmo fato demonstrado não serem constitutivas da forma, mas unicamente dizerem respeito à narração daquilo que o Senhor fez no passado e que mandou serem em Seu nome repetidas para sempre. Desse tipo são as palavras que em nosso Cânon que tratam do tempo futuro: ‘Que será derramado por vós e por muitos para a remissão dos pecados.’”. (De Ecclesiae Sacramentis, commentarius in tertiam partem S. Thomae, tomus prior, editio quinta aucta et emendata, Romae, 1914, pp. 540-541).

Segundo o Pe. Adrian Fortescue a cláusula “hunc praeclarum calicem” (este precioso cálice) é indicativo de que o texto da consagração não é meramente narratório, vejamos:

“O “hunc praeclarum” é gelasiano. Entendo que a dramática identificação do cálice que usamos com o que Nosso Senhor realmente utilizou é um sinal da insistência romana nas palavras da Instituição como fórmula da Consagração. Isso torna impossível entender o texto como meramente uma declaração histórica, de maneira exigida pela rubrica ortodoxa neste momento”. (A Missa um estudo sobre a Liturgia romana, Flos Carmeli, 2021, p. 250)​

É de ser observar que a fórmula de consagração da liturgia de “Ambrósio” é bem similar com a do Novo ordo, pois ausente a cláusula “Mistério da fé” e se pontua com dois pontos e não ponto afirmativo antes de dizer as palavras essenciais da forma (cf. De Sacramentis, cfr. Anton Hdnggi – Irmgard Pahl, Prex Eucari- stica. Textus e variis Liturgiis Antiquioribus selecti. Editions Universitaires Fribourg Suisse, 1968, p. 421). É significativo que o autor do De Sacramentis refira que está retratando o uso romano de seu tempo: “cujo modelo e forma [da Igreja romana] em tudo seguimos”. (III, 5). Alguns autores costumam atribuir o escrito ao próprio Santo Ambrósio no século IV, outros a São Máximo de Turim no século V, e ainda outros entendem que o autor é incerto e que seria escrito no século V ou VI (cf. Adrian Fortescue, A Missa um estudo sobre a Liturgia romana, Flos Carmeli, 2021, p. 62).

Ademais, como explica a citação de Billot, as palavras “que será derramado por vós e por muitos para a remissão dos pecados” não é dita assertativamente, mas apenas narrativamente, uma vez que o verbo se emprega no futuro. Para evitar equívocos deve ser esclarecido que toda a fórmula da consagração é dita em parte tanto narrativamente quanto assertativamente, e em outra parte apenas narrativamente.
 

– A distinção essencial entre o sacerdócio ministerial e comum é demonstrada pelo fato de que as Orações Eucarísticas II, III e IV sublinham a oferta do sacrifício pela Igreja após a consagração

Como  ensina o Papa Pio XII, na Mediator Dei, a “imolação incruenta por meio da qual, depois que foram pronunciadas as palavras da consagração, Cristo está presente no altar no estado de vítima, é realizada só pelo sacerdote enquanto representa a pessoa de Cristo e não enquanto representa a pessoa dos fiéis”. Após a referida consagração é que se dá a participação dos fiéis na oferta: “Colocando, porém, no altar a vítima divina, o sacerdote a apresenta a Deus Pai como oblação à glória da SS. Trindade e para o bem de todas as almas. Dessa oblação propriamente dita os fiéis participam do modo que lhes é possível e por um duplo motivo: porque oferecem o sacrifício não somente pelas mãos do sacerdote, mas, de certo modo ainda, junto com ele; e ainda porque com essa participação também a oferta feita pelo povo pertence ao culto litúrgico”.

Como explica Dom Paul Nau se é somente após a consagração que os fiéis podem oferecer, por sua vez, o sacrifício, é aconselhável, para evitar toda confusão entre o sacerdócio do padre agindo in persona Christi, e aquele que é comum a todos os fiéis, reservar os textos que se seguem à consagração, a menção da oferta do sacrifício pela Igreja (cf. Dom Paul Nau, le mystère du corps et du sangue du Seigneur, Solesmes, 1976, p. 180)
 

4. Sobre o fim expiatório (propiciatório e satisfatório) do sacrifício da Santa Missa

4.1. Explicação

O fim principal da Santa Missa é, sem dúvida, a adoração de Deus, pois é a glória de Deus que é almejada e nada pode ser maior que isso. O sacrifício como tal, portanto, está diretamente relacionado com o culto a Deus (fim lautrênico). Por outro lado, a Santa Missa é, secundariamente, um meio de salvação para o homem. Tal fim é o expiatório, que divide-se em propiciatório e satisfatório.

O Sacrifício da Missa perdoa os pecados? Não é, como alguns pensam, que Deus perdoa nossos pecados mortais ou veniais, imediatamente, diretamente e infalivelmente. Se fosse assim, o sacrifício da Santa Missa se tornaria um sacramento e deixaria de ter o caráter de sacrifício. O homem só pode obter o perdão dos pecados de forma imediata por meio dos sacramentos do batismo e penitência, ou por meio de um ato de contrição perfeita.

Para explicar o efeito propiciatório é necessário que mesclemos a explicação do efeito satisfatório. Como sacrifício propiciatório, a Santa Missa apazigua a justa cólera de Deus, desarma a Sua Justiça, faz com que o olhar da misericórdia divina se volte novamente para o pecador e que Deus já não se irrite, que já não castigue mas, pelo contrário, esteja disposto a remeter a pena merecida pelo culpado, total ou parcialmente. A Santa Missa contribui para o perdão dos pecados porque é um meio muito poderoso para obter a graça do arrependimento e da conversão sincera, em sua dupla propriedade de sacrifício expiatório e impetratório. Estando a justiça de Deus apaziguada, a sua misericórdia concede ao pecador graças especiais para o conduzir ao verdadeiro arrependimento e à conversão sincera. Este fruto propiciatório do santo sacrifício da Missa é produzido ex opere operato, mas de forma mais ou menos extensa, dependendo sobretudo da vontade de Deus, bem como das disposições do pecador. Satisfação com relação aos castigos devidos pelo pecado, que ocorre de forma infalível e imediata, eis o fim satisfatório. A concessão de graças que trarão o homem de volta ao caminho da salvação e da virtude, eis o fim propiciatório.
 

4.2. O fim expiatório (propiciatório e satisfatório) do sacrifício da Santa Missa no Novo Ordo

– O fim expiatório (propiciatório e satisfatório) do sacrifício da Santa Missa é demonstrado pela Oração sobre as oblatas

As orações sobre as oblatas expressam não somente a natureza sacrifical da Missa, mas também o seu fim expiatório. Na realidade, antes do século XII, só a oratio super oblatio demarcava a noção da natureza sacrifical da Missa e de seu fim expiatório no Ofertório do Rito Romano, cuja existência se dá a partir do século V ou VI. Essa oração corresponde a oratio secreta do Ordo antigo. Vamos indicar, a título exemplificativo, algumas dessas orações, que segundo teólogos tradicionais expressam de fato o fim expiatório da Santa Missa, vejamos:

“Ó Deus, pelas oferendas que vos apresentamos, possamos ser reconciliados convosco, e nossas vontades mesmo rebeldes, sejam reconduzidos a vós. Por Cristo. N. S”. (Oração sobre as oblatas, Tempo da Quaresma, Sábado da 4ª semana)

Lépicier e Billot apontam como prova do sacrifício propiciatório a oração supracitada, constante na na Secreta do Sábado da IV semana da Quaresma:

5. – Liturgia – Que esse seja o perpétuo sentir da Igreja, consta primeiramente do manifesto testemunho das mais antigas liturgias… Igualmente se lê na liturgia romana: ‘Aplaca-Te, Senhor, nós Te pedimos, com nossas oblações que recebeste, e conduz a Ti nossas vontades rebeldes.’” (Fr. Alexio Maria Lépicier, Tractatus de sacrosancto sacrificio eucharistico, Parisiis, 1916, p. 136-137).

“A missa é também propiciatória pelos pecados, devendo tudo isso ser entendido conforme as exposições já apresentadas. – Tal caráter consta, em primeiro lugar, das palavras de instituição, nas quais se afirma que o Sangue de Cristo é no sacramento oferecido para a remissão dos pecados. Consta, ainda, de muitos outros lugares da liturgia; com efeito, nada nela ocorre com mais frequência do que estas palavras e outras que lhes são similares: … ‘Aplaca-Te com as nossas oferendas, que recebeste…’”(Billot, De Ecclesia sacramentis: commentarius in tertiam partem S. Thomae, tomus prior, Romae, 1914, p. 638)

“Nós vos pedimos, ó Deus, que este sacrifício salvador nos purifique do pecado e dê glória a vosso nome. Por Cristo N.S” (Oração sobre as oblatas, Terça-feira da 3ª Semana do Tempo da Quaresma)

Billot considera essa oração como demonstrativa do fim propiciatório, presente na Secreta do XIV Domingo depois de Pentecostes do Ordo antigo:

“A missa é também propiciatória pelos pecados, devendo tudo isso ser entendido conforme as exposições já apresentadas. – Tal caráter consta, em primeiro lugar, das palavras de instituição, nas quais se afirma que o Sangue de Cristo é no sacramento oferecido para a remissão dos pecados. Consta, ainda, de muitos outros lugares da liturgia; com efeito, nada nela ocorre com mais frequência do que estas palavras e outras que lhes são similares: …Concede que estahóstia salutar nos purifique de nossos delitos e nos torne propícia vossa poderosa Majestade’” (Billot, De Ecclesia sacramentis: commentarius in tertiam partem S. Thomae, tomus prior, Romae, 1914, p. 638)

Indicamos ainda:

“Nós vos oferecemos, ó Deus, este sacrifício de reconciliação e pedimos, pela intercessão da virgem mãe de Deus e do bem-aventurado são José , que firmeis nossas famílias na vossa graça, conservando-nos na vossa paz. Por Cristo, nosso Senhor”. (Oração sobre as oblatas, Domingo dentro da Oitava de Natal ou 30 de Dezembro)

“Recebei, ó Pai, as oferendas que vos apresentamos o dia em que revelastes vosso filho, para que se tornem o sacrifício do Cordeiro que lavou, em sua misericórdia, os pecados do mundo. Por Cristo, nosso Senhor”. (Oração sobre as oblatas, Domingo depois do dia 6 de janeiro festa do batismo do Senhor)

“Acolhei, ó Deus, este sacrifício de reconciliação e louvor e fazei que, purificados por ele, possamos oferecer-vos um coração que vos agrade. Por Cristo, nosso Senhor”. (Oração sobre as oblatas – XII DOMINGO DO TEMPO COMUM).
 

– O fim expiatório (propiciatório e satisfatório) do sacrifício da Santa Missa é demonstrado pelas Orações Eucarísticas

“Lembrai-vos, ó Pai, dos vossos filhos e filhas (N.N.) e de todos os que circundam este altar, dos quais conheceis a fidelidade e a dedicação em vos servir. Eles vos oferecem conosco este sacrifício de louvor por si e por todos os seus e elevam a vós as suas preces para alcançar o perdão de suas faltas, a segurança em suas vidas e a salvação que esperam“. (OE I) “Lembrai-vos, ó Pai, dos vossos filhos e filhas N. N. que partiram desta vida, marcados com o sinal da fé. A eles, e a todos os que adormeceram no Cristo, concedei a felicidade, a luz e a paz”. (OE I) “Recebei, ó Pai, favoravelmente, a oferenda dos vossos servos e de toda a vossa família; dai-nos sempre a vossa paz, livrai-nos da condenação e acolhei-nos entre os vossos eleitos” (OE I)

“Lembrai-vos, ó Pai, da vossa Igreja que se faz presente pelo mundo inteiro: que ela cresça na caridade, com o Papa (N.), com o nosso Bispo (N.), e todos os ministros do vosso povo. Lembrai-vos também dos (outros) nossos irmãos e irmãs que morreram na esperança da ressurreição e de todos os que partiram desta vida: acolhei-os junto a vós na luz da vossa face”. (OE II)

“Por este sacrifício de reconciliação, dai, Senhor, a salvação e a paz ao mundo inteiro; confirmai a vossa Igreja na fé e na caridade, ao longo da sua peregrinação na terra, com o vosso servo o Papa N., o nosso Bispo N. e todos os Bispos e ministros sagrados, e todo o povo por Vós redimido… Lembrai-Vos dos nossos irmãos defuntos e de todos os que morreram na vossa amizade. Acolhei-os com bondade no vosso reino, onde também nós esperamos ser recebidos, para vivermos com eles eternamente na vossa glória, por Jesus Cristo, nosso Senhor… Lembrai-Vos do vosso servo [da vossa serva] N., que [hoje] chamastes para Vós: configurado [a / os / as] com Cristo na morte, com Cristo tome[m] parte na ressurreição, quando Ele vier ressuscitar os mortos e transformar o nosso corpo mortal à imagem do seu Corpo glorioso. Lembrai-Vos também dos nossos irmãos defuntos e de todos os que morreram na vossa amizade. Acolhei-os com bondade no vosso reino onde também nós esperamos ser recebidos, para vivermos com eles eternamente na vossa glória, quando enxugardes todas as lágrimas dos nossos olhos; e, vendo-Vos tal como sois, Senhor nosso Deus, seremos para sempre semelhantes a Vós e cantaremos sem fim os vossos louvores, por Jesus Cristo, nosso Senhor. (OE III)

“Lembrai-Vos agora, Senhor, de todos aqueles por quem oferecemos este sacrifício: o vosso servo o Papa N., o nosso Bispo N. e todos os Bispos e ministros sagrados, os fiéis que Vos apresentam as suas ofertas, os membros desta assembleia, todo o vosso povo santo e todos aqueles que Vos procuram de coração sincero. Lembrai-Vos também dos nossos irmãos que adormeceram na paz de Cristo e de todos os defuntos cuja fé só Vós conhecestes. E a todos nós, vossos filhos, concedei, Pai de misericórdia, a graça de alcançarmos a herança do Céu, com a Virgem Santa Maria, Mãe de Deus, São José, seu esposo, os Apóstolos e todos os Santos, para que, no vosso reino, com a criação inteira liberta do pecado e da morte, cantemos eternamente a vossa glória, por Jesus Cristo, nosso Senhor”. (OE IV)

O Tratado De Eucharistia de Doronzo considera que o primeiro e terceiro trechos do cânon romano, apontados acima, expressam o fim propiciatório da Missa. A oração eucarística I é substancialmente idêntica ao cânon romano. Vejamos:

“Todas as liturgias exprimem os quatro fins (da Missa) em suas orações.
Canon Missae Romanae (…)
“Lembrai-vos, ó pai, dos vossos filhos e filhas …  e de todos os que circundam este altar, dos quais conheceis a fidelidade e a dedicação em vos servir. Eles vos oferecem conosco este sacrifício de louvor por si e por todos os seus, e elevam a vós as suas preces para alcançar a redenção, a segurança em suas vidas e a salvação que esperam… “Recebei, ó Pai, favoravelmente, a oferenda dos vossos servos e de toda a vossa família; dai-nos sempre a vossa paz, livrai-nos da condenação e acolhei-nos entre os vossos eleitos”. (Emmanuel Doronzo, O.M.I, Tractatus Dogmaticus. De Eucharistia. Tom. II. De Sacrificio., 1948, p. 1054)

Billot também considera que o segundo trecho do cânon romano – “pela redenção de suas almas, pela esperança de sua salvação e de sua conservação” – expressa o fim propiciatório:

“A Missa é propiciatória em favor dos vivos, primeiramente, quanto à imputação das culpas, e provam-no de maneira evidente as palavras de instituição: ‘Que será derramado por vós para a remissão dos pecados…’ Por tal razão é que no Cânon, após as palavras ‘pela redenção de suas almas’, seguem-se estas: ‘pela esperança de sua salvação e segurança’.” (De Ecclesia sacramentis : commentarius in tertiam partem s. Thomae, tomus prior, editio quinta, 1914, p. 639-640)

Cipriano Vagaggini também refere que as Intercessões do cânon remetem a ideia do sacrifício propiciatório. Tais intercessões encontram-se em todas preces eucarísticas do Novo Ordo:

 “Mas as alegações de que essas intercessões duplicam as da Oração dos Fiéis não podem, parece-me, ser aceitas. A diferença essencial é que no cânon se ora por aqueles que oferecem o sacrifício e por quem o sacrifício que está sendo celebrado é oferecido, enquanto este não é o caso na Oração dos Fiéis. As intercessões do cânone pressupõem a ideia do sacrifício, da oferta do sacrifício e da oferta por alguém; isto é, pressupõem a ideia do valor propiciatório do sacrifício eucarístico. Essas idéias são desenvolvidas em relação estrita à ênfase dada às idéias da oferta dos dons e dos ritos reais da oferta. As intercessões no cânon são, por natureza, uma oração eucarística; mas isso não é verdade para o Oratio fidelium, que entre outras coisas pode fazer parte de qualquer liturgia da palavra e, na verdade, de qualquer outro rito. Mesmo na tradição galicana e moçárabe, onde as intercessões permaneciam fora do cânone, eram, no entanto, concebidas como orações da liturgia eucarística propriamente dita. Eles estavam intimamente ligados à oferta dos fiéis e à oração Post nomina, que corresponde à oração Super oblata da tradição romana. Se as intercessões fossem completamente eliminadas, a ideia da Eucaristia como um sacrifício que pode ser oferecido e oferecido por alguém e, portanto, a ideia da natureza propiciatória do sacrifício, desapareceria do cânon”. (The Canon of the Mass and Liturgical Reform, 1967 (originalmente 1966), p. 92)

O Papa Pio XII diz que a a intercessão pelos mortos no Cânon romano, a saber, “por todos aqueles que repousam em Cristo, os quais nos precederam com o sinal da fé, e dormem o sono da paz”, indica a ideia de redenção e libertação das almas, ou seja o fim propiciatório. Essa forma de intercessão, Memento dos mortos, encontra-se em todas as preces eucarísticas do Novo Ordo:

“O terceiro fim é a expiação e a propiciação. Certamente ninguém, fora Cristo, podia dar a Deus onipotente satisfação adequada pelas culpas do gênero humano; ele, pois, quis imolar-se na cruz, “propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas ainda pelos de todo o mundo”. Nos altares se oferece igualmente cada dia pela nossa redenção, afim de que, libertados da eterna condenação, sejamos acolhidos no rebanho dos eleitos. E isso não somente por nós que estamos nesta vida mortal, mas ainda “por todos aqueles que repousam em Cristo, os quais nos precederam com o sinal da fé, e dormem o sono da paz”,(Missal Rom., Cânon.) pois, quer vivamos, quer morramos, “não nos separamos do único Cristo”. (Pio XII, Mediator Dei)

“Recebei, ó Pai, favoravelmente, a oferenda dos vossos servos e de toda a vossa família; dai-nos sempre a vossa paz, livrai-nos da condenação e acolhei-nos entre os vossos eleitos”. (OE I)

Essa oração do cânon romano também é tida como comprovante do fim propiciatório no cânon romano por Doronzo:

“Todas as liturgias exprimem os quatro fins (da Missa) em suas orações. Canon Missae Romanae (…)
“Recebei, ó Pai, favoravelmente, a oferenda dos vossos servos e de toda a vossa família; dai-nos sempre a vossa paz, livrai-nos da condenação e acolhei-nos entre os vossos eleitos”.. (Emmanuel Doronzo, O.M.I, Tractatus Dogmaticus. De Eucharistia. Tom. II. De Sacrificio., 1948, p. 1054)

“Dirige teu olhar sobre a oferta de tua Igreja, e reconhece nela a vítima por cuja imolação quiseste devolver-nos tua amizade (ser apaziguado, aplacado, ser reconciliado)”(Oração Eucarística III)

Cipriano Vagaggini indica que a Oração Eucarística III, que teve seu próprio influxo na confecção, apresenta o supracitado trecho que tem origem e finalidade claramente propiciatória. Essa oração é inspirada nas preces da liturgia moçárabe que destaca o fim propiciatório da Missa. Vejamos:

‘Ut agnoscens victimam cuius voluisti intercessione placari’. Os seguintes dois textos do Mozraic. liturgia são pertinentes aqui: “Deus Todo-Poderoso, reconhecendo esta vítima por cuja intercessão fostes apaziguados (LLib. Moz. Sacr., n. 645, Post pridie); “Nós vos oferecemos, ó Deus, este imaculado vítima que foi trazida ao mundo pelo ventre materno de uma virgem imaculada, que nasceu pela pureza, engendrada pela santidade e gerada pela integridade. Ou essa vítima ainda vive, e a vida é continuamente sacrificada. Esta é a única vítima que poderia apaziguar a Deus, visto que ela mesma é Deus. É isto que te oferecemos, Pai Todo-Poderoso, em nome da tua Santa Igreja, para perdão de um mundo pecador, para o melhoramento de nossas almas, para a cura de todos os que estão enfermos, e para a paz e o perdão dos fiéis partidários “(ibid., n. 112, Post nomina). (Cipriano Vaggagini, The Canon of the Mass and Liturgical Reform, 1967 (originalmente 1966), p. 176)

Franzelin mesmo utilizou a referida expressão como demonstração de que a liturgia oriental expressava explicitamente a noção de sacrifício propiciatório, vejamos:

“No mais, em todas as liturgias é explícita a afirmação do sacrifício propiciatório (…) ‘vítima de aplacação (original: hostia placationis; optamos por ‘aplacação’ para aproximar do original)’, sacrifício propiciatório; sacrifício por cuja imolação Tu quiseste ser aplacado’” (terminologia amplamente encontrada nas liturgias orientais e ocidentais)” (Tractatus de S.S. eucharistiae : sacramento et sacrificio, Editio Quarta, Romae, 1837, p. 366).

O Papa São Paulo VI indica, explicitamente, no Proêmio do Novus ordo, que dois trechos da Oração Eucarística III indicam o fim propiciatório da Missa:

“A natureza sacrificial da Missa, solenemente afirmada pelo Concílio de Trento, de acordo com toda a tradição da Igreja, foi mais uma vez formulada pelo Concílio Vaticano II, quando, a respeito da Missa, proferiu estas significativas palavras: “O nosso Salvador, na Última Ceia, instituiu o sacrifício eucarístico do seu Corpo e Sangue, com o fim de perpetuar através dos séculos, até à sua vinda, o sacrifício da cruz e, deste modo, confiar à Igreja, sua amada Esposa, o memorial da sua Morte e Ressurreição”. Esta doutrina do Concílio, encontramo-la expressamente enunciada, de modo constante, nos próprios textos da Missa. Assim, o que se exprime de forma concisa nesta frase do Sacramentário Leoniano “todas as vezes que celebramos o memorial deste sacrifício, realiza-se a obra da nossa redenção” – aparece-nos desenvolvido com toda a clareza e propriedade nas Orações Eucarísticas. Com efeito, no momento em que o sacerdote faz a anamnese, dirigindo-se a Deus em nome de todo o povo, dá-Lhe graças e oferece-Lhe o sacrifício vivo e santo; isto é, a oblação apresentada pela Igreja e a Vítima por cuja imolação quis o mesmo Deus ser aplacado; e pede que o Corpo e Sangue de Cristo sejam sacrifício agradável a Deus Pai e salvação para o mundo inteiro. Deste modo, no novo Missal, a norma da oração (lex orandi) da Igreja está em consonância perfeita com a sua ininterrupta norma de fé (lex credendi). Esta ensina-nos que, para além da diferença no modo como é oferecido, existe perfeita identidade entre o sacrifício da cruz e a sua renovação sacramental na Missa, a qual foi instituída por Cristo Senhor na Última Ceia, quando mandou aos Apóstolos que o fizessem em memória d’Ele. Consequentemente, a Missa é ao mesmo tempo sacrifício de louvor, de acção de graças, de propiciação, de satisfação”.

“Te pedimos, Pai, que esta Vítima de reconciliação traga paz e a salvação do mundo inteiro”. (OE III)

O sentido é o mesmo que o trecho anterior. Segundo o teólogo protestante Philipp Melanchthon o conceito de reconciliação não pode estar unido à noção protestante de sacrifício de ação de graças, vejamos:

“Além disso, as espécies próximas de sacrifício são duas, e não há mais. Um é o sacrifício propiciatório, ou seja, uma obra que dá satisfação pela culpa e punição, ou seja, aquele que reconcilia Deus, ou apazigua a ira de Deus, ou que merece a remissão dos pecados para os outros. A outra espécie é o sacrifício eucarístico, que não merece a remissão dos pecados ou a reconciliação, mas é prestado por aqueles que foram reconciliados, a fim de que possamos dar graças ou retribuir a gratidão pela remissão dos pecados que foi recebida, ou para outros benefícios recebidos”. (The Apology of the Augsburg Confession / Art. XXIV (XII): Of the Mass)

“Celebrando agora, Senhor, o memorial da nossa redenção, recordamos a morte de Cristo e a sua descida à mansão dos mortos; proclamamos a sua ressurreição e ascensão aos Céus; e, esperando a sua vinda gloriosa, nós Vos oferecemos o seu Corpo e Sangue, o sacrifício do vosso agrado e de salvação para todo o mundo” (OE IV).

Também expressa o fim propiciatório, segundo São Paulo VI conforme citação do Proêmio do Novus ordo, acima citada.

“Na véspera da sua paixão, Ele tomou o pão em suas santas e adoráveis mãos e, levantando os olhos ao céu, para Vós, Deus, seu Pai todo-poderoso, dando graças, abençoou-o, partiu-o e deu-o aos seus discípulos, dizendo: Tomai, todos, e comei: isto é o meu Corpo, que será entregue por vós. De igual modo, no fim da Ceia, tomou este sagrado cálice em suas santas e adoráveis mãos e, dando graças, abençoou-o e deu-o aos seus discípulos, dizendo: Tomai, todos, e bebei: este é o cálice do meu Sangue, o Sangue da nova e eterna aliança, que será derramado por vós e por todos, para remissão dos pecados. Fazei isto em memória de Mim”.

As palavras da Consagração, presentes em todas orações eucarísticas, expressam o fim propiciatório segundo Billot e Santo Afonso de Ligório:

“A missa é também propiciatória pelos pecados, devendo tudo isso ser entendido conforme as exposições já apresentadas. – Tal caráter consta, em primeiro lugar, das palavras de instituição, nas quais se afirma que o Sangue de Cristo é no sacramento oferecido para a remissão dos pecados. Consta, ainda, de muitos outros lugares da liturgia; com efeito, nada nela ocorre com mais frequência do que estas palavras e outras que lhes são similares: ‘Aplaca-Te com as nossas oferendas, que recebeste…’”. (Billot, De Ecclesia sacramentis : commentarius in tertiam partem s. Thomae, tomus prior, editio quinta, 1914, p. 638)

“A Missa é propiciatória em favor dos vivos, primeiramente, quanto à imputação dasculpas, e provam-no de maneira evidente as palavras de instituição: ‘Que será derramado porvós para a remissão dos pecados…’ Por tal razão é que no Cânon, após as palavras ‘pelaredenção de suas almas’, seguem-se estas: ‘pela esperança de sua salvação e segurança’”. (Billot, De Ecclesia sacramentis : commentarius in tertiam partem s. Thomae, tomus prior, editio quinta, 1914, p. 639-640)

“Pode-se deduzir já da instituição da Sagrada Eucaristia que a Santa Missa é verdadeiramente um sacrifício propiciatório, ou seja, que inclina Deus a nos perdoar a pena e a culpa dos pecados, que foi feita especialmente para a remissão dos pecados: Este é o meu, sangue, que será derramado por muitos, para remissão dos pecados, disse Jesus Cristo (Mt 26, 28). (Santo Afonso de Ligório, Escola da Perfeição Cristã).
 

– O fim expiatório (propiciatório e satisfatório) do sacrifício da Santa Missa é demonstrado pelas orações contidas no Rito de Comunhão

“Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo tende piedade de nós”/ “Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo Dai-nos vossa paz”

O Padre Garrigou-Lagrange diz que ao dizermos “Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo tende piedade de nós” refere a remissão dos pecados, enquanto que a parte “Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo Dai-nos vossa paz” refere a satisfação das penas temporais. Duas características do fim expiatório:

“2) Os pecados, sejam mortais ou veniais, são de fato remidos ex opere operato (ou seja, pelos méritos de Cristo, sem se considerarem os méritos daquele que realiza a obra), mas apenas de forma mediata (isto é, suplicando-se o divino auxílio para o ato de penitência). Ainda, tal remissão não sucede infalivelmente, pois tal infalibilidade não consta da promessa divina e pode haver algum óbice… Desta conclusão segue-se este corolário aos que não colocam óbices – isto é, de maneira infalível: a graça da penitência é conferida pelo sacrifício da Missa aos pecadores que lhe assistem com sincero desejo de conversão, recebendo eles, então, neste instante, a inspiração de se aproximar do sacramento da penitência. Assim, mostram-se verdadeiras aquelas palavras ditas na Missa: “Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo, tem piedade de nós.”

(…) 3) A pena temporal devida pelos pecados já perdoados é remida de imediato, infalivelmente, ex opere operato, mediante o sacrifício da Missa. Isso consta de Trento, pelo qual se definiu ser a Missa oferecida “pelos vivos e defuntos, pelas penas e satisfações”. As penas, contudo, não podem ser remidas aos defuntos senão ex opere operato, uma vez que são incapazes de merecer e satisfazer ativamente. Igualmente se aplica a Missa aos vivos, aos quais nenhuma razão impede de, ao menos, equipararmos aos defuntos. Ainda, a pena temporal é remida de imediato tanto aos vivos quanto aos defuntos – ou seja, unicamente pelo perdão extrínseco e gratuito (original: per meram condonationem extrinsecam) decorrente dos méritos satisfativos de Cristo, porque se trata de pena devida por pecados já perdoados. Por fim, tais penas são remidas infalivelmente, uma vez que não é requisito outra condição além da remissão da culpa; nem sempre, porém, são remidas integralmente, mas conforme a disposição da divina Providência. Assim é que se mostram verdadeiras as palavras “Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo, dá-nos a paz”. (Reginaldus Garrigou-Lagrange, O. P., De Eucharistia, 1948, pp. 304-306).

“Quais são, em particular, os efeitos que a Missa produz em nós? É tanto que nos obtém a graça do arrependimento, facilita-nos o perdão dos pecados. Do mesmo modo que o sacrifício da Cruz obteve essa graça ao bom ladrão, o sacrifício da Missa a obtém aos que a desejam; não se dizem em vão estas palavras antes da Comunhão: Agnus Dei, qui tolis peccata mundi, miserere nobis” (…)

O sacrifício da Missa não somente perdoa nossos pecados, mas a pena devida aos pecados, seja se trate de vivos ou mortos por quem se oferece o sacrifício. Este efeito é inclusive infalível; contudo, a pena nem sempre se perdoa em sua totalidade, mas segundo a disposição da Providência e o grau de nosso fervor. Assim se verificam as palavras: Cordeiro de Deus, que quitas o pecado do mundo”. (Reginald Garrigou-Lagrange, El Salvador y su amor por nosotros, Madrid, 1977 (originalmente 1952), páginas 463 e 465)

5. RESPONDENDO OBJEÇÕES

– Lutero anunciou o plano de destruir a Santa Missa para destruir o catolicismo

Resposta: Essa visão viria bem a calhar na narrativa tradicionalista de que houve um plano orquestrado para tornar a Missa equívoca e ecumênica, inclusive com a contribuição de pastores protestante. No entanto, tudo indica que seja uma falsidade essa atribuição a Lutero. Na realidade, o que Lutero referiu é que refutar doutrinalmente a Missa é triunfar sobre todo o papado: “Tendo triunfado sobre a missa, acho que triunfamos sobre todo o papado”. O sentido é que tendo supostamente desmascarado a doutrina católica da Santa Missa, segue-se que se destrua todo o resto, pois “sobre a missa, como sobre uma rocha, está construído todo o papado com seus mosteiros, seus bispados, seus colégios, seus altares, seus ministros, suas doutrinas, e se apoia nele com todo o seu peso”. (Martinus Lutherus contra Henricum Regem Angliæ, WA 10: 2, 220)

Seis pastores protestantes ajudaram a fazer o Novo ordo, o que se evidencia pela fotografia que Paulo VI tirou com eles

Resposta: Os seis pastores protestantes eram meros observadores no Consilium, assim como, o Concílio de Trento e o Concílio Vaticano I convidaram protestantes para assistirem suas assembléias. Vale referir que foram alguns membros da Igreja anglicana, ocupados com a revisão da liturgia de sua própria, que deram a conhecer que estavam interessados em acompanhar os trabalhos do Consilium, o que foi repassado pelo cardeal Lercaro ao Papa São Paulo VI em 02 de dezembro de 1965 (cf. Annibale Bugnini, Ibid., p. 189). Podemos  indicar vários testemunhos no sentido de que os pastores eram meros observadores.

O primeiro é de Mons. Bugnini, secretário da Comissão, que disse: “Que papel tiveram os “observadores” no “Consilium”? Nenhum outro senão o de … “observadores”. A atitude deles nas reuniões do “Consilium” foi de uma discrição incomparável. Jamais intervieram nas discussões, jamais solicitaram a palavra”. (Ibid., p. 190).

O segundo testemunho está na Notitiae, jornal oficioso da Sagrada Congregação do Culto divino, onde se encontram os termos de Mons. Bugnini acima transcritos, bem como a seguinte resposta sobre a Oração Eucarística III: “E o terceiro prelúdio eucarístico? Não foi feito com a colaboração dos protestantes? Nada de nada. A redação do esquema-base da terceira anáfora foi realizada em três meses de trabalho (verão de 1965), na biblioteca da abadia de Mont-César di Lovaina, por um dos mais valorosos consultores do ‘Consilium’, agora membro da Comissão teológica internacional, ao qual todos reconhecem competência teológica de primeira ordem, unida a um raro conhecimento da liturgia. Sucessivamente, o esque foi minuciosamente examinado e aperfeiçoado, em mais de uma ocasião pelo Grupo de estudo encarregado da reforma do rito da Missa. Cada um pode ver os nomes do Elenchus do pessoal do ‘Consilium’. Mudanças posteriores foram feitas quando o esquema passou para os Padres do ‘Consilium’ (sessão VIII, abril de 1967). Houve, a seguir, a análise por parte dos outros organismos interessados e competentes da Santa Sé. Desta quádrupla fase criadora, saiu o texto da terceira Oração Eucarística que, finalmente, aprovada pelo Santo Padre Paulo VI, entrou no Missal romano. Cada afirmação diferente é fruto de fantasia, de prejuízo ou de maldosa insinuação, e não tem nenhum fundamento de verdade”. (Notitiae, 95-96, ano 1974, p. 252).

O terceiro testemunho é da própria a Sagrada Congregação para o Culto Divino, em 4 de Julho de 1976, que declarou: “Os observadores protestantes não participaram na composição dos textos do novo Missal”.  

O quarto testemunho é de Mons. Bernard Botte, então membro do Consilium e formulador da Oração Eucarística II, que diz: “Saliente-se que não se deve dar muita importância a esta presença de observadores não-católicos. Ao contrário do que afirma Monsenhor Lefebvre, eles nunca tiveram o poder de falar em sessão pública.  Eles assistiam as discussões. Não mais do que em outras questões, também não podiam opinar sobre as novas orações”. (“La Libre Belgique”, 15 de setembro de 1976). Ademais, Bernard Botte, que participou ativamente nas reuniões para a confecção das novas orações eucarísticas diz claramente  que durante a “a sessão em que redigimos as novas orações eucarísticas não se tratou dos protestantes”.

O quinto testemunho é de Max Thurian, um dos teólogos protestantes convidados, na revista Catholic World Report de 1993 (na época já sacerdote católico), onde enfatiza que nenhum dos seis observadores protestantes teve qualquer idéia de impor a liturgia de suas próprias denominações aos católicos, diz: “Pelo contrário, estávamos lá para aprender como a Igreja Católica estava efetuando seu retorno as primitivas e ricas tradições da Igreja e como ela as aplicaria em nosso tempo. Na verdade, éramos agentes do catolicismo em nossas próprias confissões ”.

O sexto testemunho é Raymond George, outro protestante convidado, que corrobora que não houve uma influência indevida dos observadores nas deliberações e qualifica a teoria contrária como “insinuações maliciosas”: “O Consilium era um órgão grande e impressionante, composto quase inteiramente por cardeais e bispos, mas com muitos peritos presentes, que podiam ser chamados para falar, mas não podiam votar. Éramos seis observadores, e o livro do Arcebispo Bugnini defende nosso papel contra insinuações maliciosas de que havíamos influenciado indevidamente as deliberações, especialmente a composição da terceira oração eucarística. Não participamos das discussões, mas o Arcebispo Bugnini relata: ‘Eles foram os primeiros a chegar às reuniões, os últimos a sair do salão. Eles sempre foram afáveis, educados, econômicos com as palavras e prontos para participar amigavelmente de qualquer conversa que fosse solicitada.’ Isso certamente descreve muito bem o estilo de Ronald”. (Liturgy in dialogue : essays in memory of Ronald Jasper, 1993, p. 5)

Segundo o testemunho do Mons. Bugnini, somente uma vez o Consilium decidiu pedir a opinião dos observadores protestantes, quanto aos ciclos de leituras na celebração eucarística. Admitido o ciclo trienal das leituras, surgiu a questão se se devia conservar instaco o que existia no Missal romano ou refazer tudo. A primeira opinião inclinava-se um grupo tendo a frente o cardeal Agostinho Bea, por motivações ecumênicas, pois a ordem tradicional das leituras na celebração eucarísticas é usada em muitas comunidades não católicas. A favor da segunda opinião estava o grupo de estudos que dirigia os trabalhos do Lecionário, encabeçado pelo padre Vagaggini. A maioria estava a favor dessa segunda solução. A resposta dos observadores, se deu na reunião de 10 de outubro de 1966, no Palácio Santa Maria, no início da sessão plenária, quando o cônero Jasper, anglicano, leu uma declaração dos observadores que dizia, entre outras coisas, “não queriam que razões ecumênicas impedissem o abandono do Lecionário tradicional. Também eles, de fato, desejavam semelhante revisão e esperavam os resultados da venerável Igreja romana”. Todos esses fatos são narrados por Mons. Bugnini em sua obra A Reforma Litúrgica, p. 190, da edição utilizamos. Vemos, portanto, que a única questão dirigida aos protestantes foi sobre uma questão prática e comum entre a Igreja e as comunidades não católicas, e que a opinião que detinha uma motivação ecumênica foi descartada pela maioria do Consilium e inclusive pelos observadores protestantes. O mesmo Mons. Bugnini refere que, no âmbito dos grupos, pediu-se a colaboração dos observadores somente quanto as preces do Ofício para que eles dessem a conhecer a experiência das igrejas deles, “tratando-se de uma coisa nova, da qual, no entanto, se tinha experiência na comunidade de Taizé, o grupo de estudo 12 bis usufruiu da consulta competente e amável do rev. Max Thurian”. (Ibid., p. 190).

O testemunho de Mons. W.W.Baum, “diretor executivo” dos assuntos ecumênicos da Conferência Episcopal Americana, é claro que “eles não estão lá como simples observadores, mas também como consultores, e participam plenamente das discussões sobre a renovação litúrgica católica. Não faria muito sentido caso se contentassem em ouvir, mas contribuem de fato” (Detroit News, 27 de junho de 1967).

Resposta: O então padre William Wakefield Baum não era membro do Consilium, tampouco consultor ou conselheiro (cf. Annibale Bugnini, Ibid., p. 765-770).Quando ele diz que os observadores participavam “plenamente das discussões” sem dúvida exagerou. Os testemunhos dos membros do Consilium e dos próprios observadores protestantes são claros de que eles não tinham direito à palavra e voto nas reuniões do Consilium. Contudo, há duas formas de entender a alegação de Baum de uma certa contribuição protestante:

1. Restou demonstrado que houve consulta aos protestantes sobre as questões do Lecionário e do Ofício. Esse é um ponto que não toca o Ordo da Missa e a resposta dos observadores foi contra a tese ecumênica da ocasião, que pretendia manter o Lecionário tradicional. Além disso, a maioria do Consilium pretendia a reforma do Lecionário e, portanto, a opinião dos observadores não foi decisiva. O grupo de estudo 12 bis consultou o protestante Max Thurian sobre a questão das preces do Ofício. Novamente, não tocava o Ordo da Missa e se tratava de uma matéria nova, e a experiência da Comunidade de Taizé poderia ajudar. Ambos assuntos podem ser considerados neutros, pois não estão envoltos a divisões teológicas entre as confissões.

2. Sem dúvida, os pastores protestantes tinham liberdade para falar em reuniões informais com certos estudiosos do Consilium, como testemunhou o cônego Jasper ao próprio Michael Davies (ao mesmo tempo que reafirmava que os Observadores não foram autorizados a participar no debate da comissão Consilium) (veja-se aqui). O que também foi testemunhado pelo protestante convidado Raymond George (que ao mesmo tempo qualificava de “insinuações maliciosas” as alegações de que os observadores teriam influenciado indevidamente nas deliberações do Consilium) (cf. Liturgy in dialogue : essays in memory of Ronald Jasper, 1993, p. 6). Assim como não ocorreu no Concílio Vaticano II, ninguém imagina que os estudiosos do Consilium simplesmente ignoravam a existência dos protestantes em Roma. Ninguém duvida que um colóquio informal entre os especialistas e os protestantes ocorreu em reuniões não formais. Até mesmo se o Consilium não tivesse esses observadores, ninguém poderia impedir a comunicação entre teólogos católicos e protestantes em âmbito pessoal. Se essa troca de experiência é chamada de contribuição é possível aceitar a afirmação de Baum, mas isso não demonstra qualquer influência no Ordo da Missa, que é negada inclusive pelos próprios observadores como já vimos.

Além disso, não é razoável pensar que o Consilium, composto de 2 presidentes, 58 membros, 121 consultores e 73 conselheiros, todos católicos, estivessem a serviço de reproduzir as opiniões dos seis observadores protestantes ou serem influídos por seus pensamentos. E é difícil encontrar qualquer mudança no Missal que não tivesse antes da reforma sido defendida por liturgistas católicos.

Jean Guitton, amigo pessoal de Paulo VI, testemunhou em 19 de dezembro de 1993, num debate Lumière 101, a rádio dominical de Radio-Courtoisie, que “a intenção de Paulo VI” era fazer a liturgia católica coincidir o quanto possível com a liturgia protestante – “apesar do Concílio de Trento”. Ele insistiu, quando questionado, que houve uma intenção ecumênica em Paulo VI de mudar, corrigir ou atenuar o que havia de por demais católico e fazê-la se aproximar da missa calvinista.

Resposta: Jean Guitton estava fazendo uma avaliação pessoal sobre a intenção pessoal de São Paulo VI na reforma litúrgica, não estava testemunhando o que lhe foi confidenciado. Prova disso é que, na realidade, ele afirma “creio que não me engane ao dizer que a intenção de Paulo V” [“je crois ne pas me tromper en disant que l’intention de Paul VI”]. Esse trecho é normalmente omitido pelos tradicionalistas, e indica que Jean Guitton estava dando uma opinião, o que implica que não se tratava de um testemunho. Ninguém ao dar testemunho de um fato afirma uma crença em não se enganar. De qualquer forma, estamos longe de concordar com essa avaliação desse filósofo (que não se tratava de um teólogo e muito menos liturgista)! Esse pensamento contradiz as afirmações ortodoxas de São Paulo VI em sentido contrário. Em discurso aos membros do organismo do Consilium diz com muita clareza:

“Neste sentido não lhe és oculto que as fórmulas de oração pública não seriam dignas de Deus se não expressam fielmente a doutrina católica (…) Só assim as preces oficiais da Igreja se ajustarão à natureza e a condição da sagrada liturgia, e por meio delas poderá o povo cristão tributar a Deus a glória que lhe é devida” (A Reforma litúrgica em marcha, L’Osservatore Romano, 30 de outubro de 1964).

No ano seguinte, afirma em Discurso:

“Queremos torna-los a pensar em uma tentação que se insinua com facilidade nas almas boas e que poderia dar lugar a uma atitude menos boa e inútil na hora de suprimir a mais grave das dificuldades: a doutrinal. Referimo-Nos a tentação de contornar os pontos discutidos, de debilitar, de modificar, de diminuir, de negar, que diz respeito, os ensinamentos da Igreja católica que hoje em dia não são aceitos pelos irmãos separados (…) pretender eliminar as dificuldades tratando de desautorizar, ou de esquecer, ou de disfarçar afirmações que o magistério da Igreja declara comprometedoras e definitivas, não seria bom serviço.” (Discurso do Paulo VI no dia 20/01/1965, L’Osservatore Romano publicou integralmente no dia 21).

O então padre Ferdinando Antonelli, membro da Comissão Consilium e secretário da Congregação para as Causas dos Santos, afirma, quanto aos trabalhos do Consilium, que tinha “a impressão que se tenha concedido muito, sobretudo em matéria dos sacramentos, à mentalidade protestante. Não é que o Pe. Bugnini criou essas ideias – não, não é o caso. Ele usou os serviços de muitas pessoas e, não sei por que, ele admitiu neste trabalho tantas pessoas capazes de uma perspectiva teológica liberal. Ou ele não percebeu, ou simplesmente não se opôs a certas tendências como deveria”. (The Development of the Liturgical Reform as Seen by Cardinal Antonelli from 1948 to 1970, 2009, p. 196). Isso prova que o Ordo Novo é protestanizado.

Resposta: É muito improvável que Ferdinando Antonelli esteja se referindo ao Ordo da Missa. Na realidade, outras afirmações dele defendem claramente que o Novo Ordo é “inatacável do ponto de vista doutrinário” e que é “substancialmente bom”, expressões que são dificilmente conciliáveis com o pensamento de que no Novo Ordo se concedeu muito à “mentalidade protestante”, muito menos à noção de que o Ordo Novo seria “protestantizado”.

“Devemos dizer imediatamente que não há erros doutrinários na Institutio generalis e muito menos no Ordo Missae. O Ordo missae é um texto muito exaustivo e inatacável do ponto de vista doutrinário”. (The Development of the Liturgical Reform as Seen by Cardinal Antonelli from 1948 to 1970, 2009, p. 192). 

“Minhas impressões sobre a reforma litúrgica são substancialmente boas. O novo ordo Missae, que entrou em vigor em 30 de novembro de 1969, tem muitos elementos positivos. Como todas as coisas, poderia ter sido mais perfeito. Substancialmente, no entanto, é bom”. (p. 193)

Vale destacar que a impressão de Antonelli se aplica, segundo suas palavras, sobretudo à matéria dos sacramentos. Ora, os Grupos 22 e 23 é que estavam encarregados para a reforma dos ritos dos sacramentos, enquanto Grupo 10 estava encarregado à revisão do Ordo da Missa e para a confecção das novas orações eucarísticas. Portanto, são Grupos de estudos distintos, com especialistas diversos. Não se pode concluir, gratuitamente, que sua fala se aplica ao Ordo Novo.

O autor não define a expressão “mentalidade protestante”, mas em outro momento censura a mentalidade “de destruir e não de restaurar”, fruto da ausência de amor e veneração ao que foi transmitido (cf. p. 192), o que de fato é a mentalidade histórica do protestantismo quanto às formas litúrgicas. Possivelmente se trata disso, e não necessariamente a teses doutrinárias protestantes contrárias a natureza sacrifical da Missa, fim propiciatório da Missa, presença real e substancial de Cristo na Eucaristia e distinção essencial entre os sacerdócios ministerial e comum.

Além disso, trata-se da impressão de um membro do Consilium, que por mais proeminente que fosse, não reflete à visão de muitos outros membros tão eruditos e ortodoxos quanto no Consilium.

Vemos que vários pastores ou autoridades protestantes não viram escrúpulo em dizer que as suas comunidades poderiam celebrar com as preces do Novo ordo, que qualificavam como teologicamente aceitável. (1) Max Thurian, por exemplo, diz que “as comunidades não católicas poderão celebrar a Santa Ceia com as mesmas preces que a Igreja católica: teologicamente, isto é possível”; (2) Roger Schutz diz que “a noção de sacrifício não é de forma aguma expresso” no rito novo e que “as novas preces eucarísticas II e IV apresentam uma estrutura que corresponde à missa luterana” (3) Pasteur Viot diz que o que era intolerável no Missal de São Pio VI, a saber, que “a missa possa ser uma repetição do sacrifício de Jesus Cristo, que o padre possa oferecer o Corpo e o Sangue uma vez mais”, o Missal de Paulo VI “abriu um caminho” sobre o assunto. (4) O pastor Ottfried Jordahn confessa que se em sua paróquia se “utiliza normalmente a oração eucarística II, com a forma luterana das palavras da instituição, e omitindo a oração para o Papa”. (5) M. Siegvalt, professor de dogmática na Faculdade Protestante de Strasbourg, Carta ao Bispo de Strasbourg, diz que “não há nada na missa renovada, reformada, que pode realmente desgostar o cristão evangélico”. (6) No Consistório superior da confissão de Augsbourg e da Lorraine. Declaration de 8 dezembro de 1973 se diz que “a utilização das novas orações eucarísticas [da  Missa Nova de Paulo VI], nas quais nós nos reencontramos, e que têm o mérito de nebular a teologia do sacrifíco, que nós tínhamos o costume de atribuir ao catolicismo”. (7) Roger Mehl refere que houve “o apagamento da idéia segundo a qual a missa seria um sacrifício”.

Resposta: Como resposta geral dizemos que o católico não deve se guiar por comentários protestantes para entender um rito católico, ensinamentos do Magistério ou qualquer outro assunto de teologia. Os católicos que querem se debruçar sobre a Reforma Litúrgica devem seguir os Papas e liturgistas católicos ortodoxos, e não comentários dos irmãos separados. Nós católicos acreditamos que a teologia católica é superior, por onde não faz sentido se basear num assunto interno em opiniões de teólogos de denominações acatólicas, assim como, o católico não tenta entender a Bíblia pelas glosas de heréticos ou cismáticos.

Exemplo 1: O teólogo protestante Hans Asmussen, em 1949, escreveu um comentário sobre a Encíclica Mediator Dei de Pio XII (cf. . Nessa brochura, o autor é bastante elogioso a Encíclica Mediator Dei. Na realidade, esforça-se para mostrar que a doutrina da Encíclica está menos distante do que comumente se pensa das posições do verdadeiro luteranismo. Certa feita, chega até afirmar que o ensinamento do Papa sobre a cooperação dos fiéis no sacrifício de Cristo seria algo diferente do que foi ensinado antes pelo catolicismo e próximo à visão protestante (cf. Une présentation luthérienne de l’ encyclique ” Mediator Dei et hominum,, Author(s): J. M. Hanssens Source: Gregorianum, Vol. 31, No. 4 (1950), pp. 590-604. Mas que católico seria louco para impugnar a Encíclica de Pio XII baseado no comentário do teólogo protestante?

Exemplo 2: Certos anglicanos utilizaram o Missal de São Pio V em sua liturgia (cf. Dom Guy Oury, La Messe de S. Pie V à Paul VI, 1975, p. 124). Isso significa que consideraram aquele Missal teologicamente aceitável, dando as próprias interpretações para seus textos e ritos. Isso significa que o Missal de São Pio V é ambíguo ou equívoco formalmente falando? Claro que não. O Missal deve ser seguido de acordo com o ensinamento do Magistério e pela teologia aprovada pela Igreja, enquanto se alguma mente quiser trabalhar numa interpretação diversa ou expansiva (supondo figuras de linguagem ou distinções) não seria possível detê-los.

Exemplo 3: Uma reforma protestante na América em 1928 remodelou todo o seu rito eucarístico de acordo com padrões antigos, onde a liturgia protestante tinha uma semelhança geral com o Rito Romano. Os coroinhas que ajudavam o altar da Igreja Episcopal eram treinados para fazer quase as mesmas coisas que se fazia no Rito Romano. Foram acrescentadas as orações ao pé do altar, orações silenciosas do Ofertório e inclusive o Último Evangelho, realizando-se reiteradamente os sinais da cruz e as genuflexões. Era possível celebrar a Eucaristia Episcopal de forma quase igual do que o Rito Romano (cf. Worship points the way : a celebration of the life and work of Massey Hamilton Shepherd, Jr. Publication date 1981, p. 104:  https://archive.org/details/worshippointsway0000unse_c8i7/page/104).

Além disso, não se pode perder de vista a noção explicitada por Calvino de artigos fundamentais e não fundamentais da fé, pois o protestantismo convive com diferenças doutrinais que para o lado católico pareceriam sérias. Segundo o parecer protestante a divergência doutrinal não necessariamente acarreta o afastamento do fiel da Igreja de Cristo. Calvino diz: “…poderá insinuar-se algo de vício quer na ministração da doutrina, quer na ministração dos sacramentos, não devemos alienar-nos de sua comunhão. Pois, nem todos os artigos da doutrina verdadeira são de um só molde. Há certos artigos tão necessários de se conhecer que importa sejam a todos fixos e indubitados, como os princípios próprios da religião, quais são: que há um só Deus; que Cristo é Deus e o Filho de Deus; que a salvação se funda na misericórdia de Deus, e semelhantes. Há outros que, controvertidos entre as igrejas, entretanto não quebram a unidade da fé”.(Institutas IV). Assim, a rigor, não seria de se estranhar que protestantes digam que as orações eucarísticas podem ser recitadas por eles, pois as divergências teológicas pendentes podem ser consideradas aceitáveis. Esse modo de enxergar as coisas ganha ainda mais força com o ecumenismo protestante.

Mas vamos tratar de algumas dessas citações mais especificamente:

Max Thurian ao dizer que “as comunidades não católicas poderão celebrar a Santa Ceia com as mesmas preces que a Igreja católica”, certamente, tinha em mente a Comunidade de Taizé, que ele fundou. Essa Comunidade, de aspirações ecumênicas, na verdade, estava mais próxima da visão católica sobre a Santa Missa, o que explica a afirmação de Thurian.

Vejamos o que diz o padre Guy Oury sobre o tema: “Max Thurian admite, com efeito, que a celebração da Ceia do Senhor (que ele nomeia com os luteranos “a Santa Ceia”) nos restabelece todos os dias na aliança com Deus “obtendo-nos atualmente a remissão dos pecados”, o que não está em consonância com Lutero e que não pode ser teologicamente admitido por um número muito maior de teólogos de confissão luterana para os quais a remissão dos pecados é obtida somente por ato de fé do crente (ver em particular Th. Süss, L’aspect sacrificiel de la sainte Cène à la lumière de la tradition luthérienne, dans Eucharistie d’Orient et d’Ocddient, t. I, Le Cerf, 1970, p. 151-170, et son Etude critique : Sainte Cène et sacrifice, dans Positions luthériennes, t. XI-2, avril 1963, p. 113-125) (La Messe de S. Pie V à Paul VI, 1975, p. 124).

O padre Yves Congar também comenta: “A missa de Paulo VI seria protestante. O Arcebispo Lefebvre intitulou uma de suas publicações La messe de Luther (cf. A Bishop Speaks, p. 275 f.). Os oponentes não cessam de citar algo do fr. Max Thurian, de Taizé, disse que os protestantes podiam celebrar de acordo com o novo rito católico. Eles interpretam espontaneamente como significando que a crença da Igreja teria sido protestantizada, sem perguntar se certos protestantes pelo menos não teriam ressuscitado a sua depois do século XVI e não a teriam, portanto e nesse sentido, catolizado. No entanto, esta é a melhor hipótese: torna-se até uma certeza para quem leu o livro publicado pelo mesmo fr. Max Thurian antes do Concílio, A Eucaristia, memória do Senhor, sacrifício de ação de graças e intercessão (Delachaux e Niestlé, 1959)” (La crise dans l’Église et Mgr. Lefèbvre, 1977, pp. 36-37).

O padre M. P. Boyer reconheceu a proximidade da Obra “A Eucaristia” de Max Thurian com a doutrina católica já em 1959: “É muito significativo que a pesquisa independente, quase exclusivamente bíblica, tenha chegado a conclusões tão próximas do ensinamento católico… A concordância é notável com o dogma em pontos essenciais e não há necessidade de demonstrar ao Sr. Thurian que Cristo está realmente presente” (na Eucaristia, durante a missa). (L’Osservatore romano, Édit. française du 17 juillet 1959)

Além disso, Max Thurian tem um artigo onde discute a transubstanciação, e ele conclui que a doutrina não pretendia ser uma explicação racional do mistério, mas sim uma afirmação categórica da presença real de Cristo. Segundo sua opinião, essa intenção não era mais claramente compreendida pelos católicos e protestantes do século XVI. Thurian, que aceita ele mesmo a presença substancial, diz assim: “Assim, a transubstanciação é antes de tudo um nome usado para designar a realidade da presença de Cristo, ‘verdadeira, real e substancial’ presente na eucaristia. (La presence reelle” em Catholiques et Protestants, Paris, 1963, pp. 193-210, aqui p. 195).

Podemos encontrar a confirmação do argumento no próprio Max Thurian. Sabe-se que o Pe. Gerard Lafond enviou para o pastor Max Thurian a sua Nota doutrinária, onde se defende a continuidade doutrinal entre os Missais e inclusive se comenta a afirmação controversa de Thurian. Foi pedido a Thurian, na ocasião, que escrevesse se, em sua opinião, algo mudara na substância do Sacrifício eucarístico. Sua resposta de 6 de fevereiro de 1970 deu este testemunho: “Não tenho dificuldade em afirmar que, no novo Ordo Missae, nada mudou em relação à doutrina católica tradicional do Sacrifício Eucarístico”.

Para Guy Baret, que fez sua hipótese de que a reforma do ofertório seria a causa de sua aprovação, o pastor Thurian respondeu, também em 6 de fevereiro: “A hipótese que você levantou é bastante exata”. De fato, a remoção, no Ofertório, de qualquer fórmula que possa ser confusa sugerindo a ideia de sacrifício natural, quase autônomo em relação ao sacrifício da Cruz, não só satisfaz protestantes como também os católicos.

Como demonstramos acima houve certa aproximação do setor da ecumenista protestante em relação às doutrinas católicas. Isso é um ponto que merece destaque. As citações que os tradicionalistas utilizam são necessariamente desse grupo específico, e não do protestantismo clássico, que está longe de concordar com os avanços ecumenistas da teologia protestante. Nesse sentido o Dr. Gérard Siegwalt, famoso teólogo protestante, afirma: “…há, no entanto, um empobrecimento do culto protestante. A recusa do caráter sacrificial da Missa no chamado sentido (de sacrifício propiciatório) como atuado pelo sacerdote ministerial (e não como uma atualização do sacrifício “de uma vez por todas” de Cristo) leva ao mesmo tempo a uma incompreensão de seu caráter, sacrificial entendido no sentido de sacrifício de louvor (sacrificium eucharisticum), portanto de eucaristia. Este significado é expressamente reconhecido nos escritos simbólicos luteranos (particularmente na Apologia da Confissão de Augsburgo), mas logo foi esquecido depois. O que está em questão então é o sacramento como oração, é o movimento ascendente que vai da Igreja que celebra a Deus, e que é a resposta ao movimento “descendente” de Deus para a Igreja e para os humanos. É certo que não deixamos de insistir no protestantismo, sobretudo em Calvino, no “soli Deo gloria”, mas essa dimensão do louvor, da ação de graças (eucaristia significa “ação de graças”) não está muito presente na celebração protestante do Sacramento do Santo Comunhão”.  (Le défi ecclésial. 2016)

Vamos para as duas frases atribuídas ao irmão Roger Schutz. A primeira supostamente diria que “a noção de sacrifício não é de forma aguma expressa” no Novo ordo. Fiz uma pesquisa no Google dessa frase em várias línguas. É citada comumente sem qualquer fonte. Encontrei, no entanto, uma fonte indireta: o livro “Paulo VI Beato?” do padre tradicionalista Luigi Villa, cuja primeira edição é de 1998 em italiano. O autor menciona a frase e em nota de rodapé indica a revista “World Trends”, edição de junho 1973, N° 34, p. 3, como a fonte. O padre Villa refere que Roger Schutz teria dito tal frase ao responder ao questionamento do católico francês Louis Salleron, que lhe interrogou: “Por que diz que hoje vós podeis adotar o novo rito e não o antigo?”. A pergunta de Salleron pode fazer supor que Roger Schutz já teria dito algo parecido sobre o novo rito. Mas, talvez, a pergunta estivesse se referindo a declaração do irmão Max Thurian da mesma Comunidade. O que fiz, então? Busquei, primeiro, o livro do Louis Salleron sobre o Novo ordo: La Nueva Misa, cuja primeira edição é de 1978. Não houve sinal da referida frase. Mas há pelo menos o mesmo questionamento do Salleron, embora com palavras distintas. Salleron tem em conta, na verdade, a declaração de Max Thurian (antes tratada), que ele cita explicitamente na carta enviada, razão pela qual questiona Roger Schutz: “Por que os irmãos de Taizé não aceitam a missa tradicional – a de São Pio V – aceitam a nova missa? A seus olhos, qual é a diferença substancial entre as duas missas que lhes permite aceita a nova quando rechaçam a antiga?”. Eis a resposta do Roger Schutz: “Repito-lhe mais uma vez: “tenho a convicção de que a substância da missa não mudou”. Essa resposta é a mesma que Roger Schutz já havia dado para a “La Croix” de 21 de janeiro de 1970: “Durante muitos anos a missa católica é celebrada todos os dias em Taizé e durante seis anos é dita pelos frades franciscanos. De minha parte, estou certo de que no novo Ordo Missae a substância é a mesma que sempre foi vivido e orado até agora”. A resposta, portanto, vai em sentido oposto à frase atribuída. Leva à interpretação que, em sua visão, não houve contradição entre a teologia tradicional do Missal de São Pio V e o de São Paulo VI, com a informação de que desde 1964 a Missa católica era celebrada na Comunidade de Taizé (portanto, também a Missa Tridentina). Não há sinal da frase atribuída ao Roger Schutz. Se essa frase fosse real seria um grande trunfo para o lado tradicionalista e não seria razoável imaginar que Salleron a omitiria. Então fui além e busquei a edição da World Trends, mencionada no livro do padre Villa. O que pude encontrar? Encontrei um artigo de Yves Dupont. O autor menciona a referida frase, mas sem qualquer fonte. A frase, portanto, não tem qualquer fonte direta. Yves Dupont também não cita Salleron, nem menciona a frase como resposta a questão de Salleron. Tudo indica que é falsa.

Vamos para a segunda frase atribuída ao irmão Roger Schutz: “as novas preces eucarísticas II e IV apresentam uma estrutura que corresponde à missa luterana”. Como de costume a fonte é nebulosa. Alguns Sites indicam a edição 218 da revista tradicionalista Itineraires de 1977 e outros a edição 305 de 1986. Pretendia comprar as referidas edições, no entanto, estava lendo o artigo de Ottfrled Jordahn, intitulado The Ecumenical Significance of the New Eucharistic Prayers of the Roman Liturgy, publicado na Studia Liturgica 11 de 1976. O autor menciona a frase, no entanto, a atribui ao “F. Schulz”. Seriam notas do autor preparadas para Conferência de Liturgia Luterana em 15 de maio de 1972. O artigo insere a fonte direta (Lutherische Liturgische Konjerenz Deutschlands (LLK) C 33-1972) e, portanto, parece mais credível. A primeira coisa a se notar é que o autor mencionado se chama F. SchuLz e não SchuTz. Uma rápida pesquisa me levou ao autor Frieder Schulz, que é quem realmente fez a afirmação. Portanto, Roger Schultz jamais afirmou tal coisa. O erro é desculpável, pois, realmente, os nomes são similares. Consegui acesso às notas originais de Frieder Schulz. O que podemos dizer? Inicialmente, o artigo todo se trata de um comparativo de estruturas de liturgias. Tratando sobre Orações Eucarísticas precisamos pensar nisso desde o diálogo do Prefácio até a Doxologia. O estudo, portanto, trata do roteiro ou esquema dos ritos das Missas (em anexo continha um quadro comparativo). Não tratava diretamente de semelhanças ou distinções teológicas. O autor, na verdade, faz uma única consideração teológica quando disse: “a parte com a oblação e a súplica pela Igreja na Oração Eucarística apresentam problemas teológicos”. Vamos além. O que há nas Orações Eucarísticas II a IV (detalhe: a frase de F. Schulz fala das três Anáforas e não usa a conjunção aditiva “e”) que difere com a estrutura da Oração Eucarística I e se assemelha com a estrutura da Missa Luterana? Para responder, talvez, seja mais fácil, primeiro, ver o que distingue a Oração Eucarística I e as demais Orações Eucarísticas. Primeira diferença: O cânon romano realiza a oblação de Cristo por antecipação, antes da consagração, nas orações Te Igitur, In Primis, primeiro Memento e Hanc ígitur, coisa que não ocorre nas demais orações eucarísticas, que reservam a oblação para o momento posterior à consagração. Segunda diferença: “nas novas anáforas, a comemoração dos santos e as intercessões estão todas reagrupadas na segunda parte, entre a oração para a aceitação da oferta e a doxologia; enquanto o cânone romano estão em parte antes da narração da instituição (segunda parte do Te igitur, Communicantes, Hanc igitur), em parte depois (Nobis quoque)” (Annibale Bugnini, A Reforma Litúrgica (1948-1975), 2018, p. 389).

Com relação ao primeiro ponto se trata de uma peculiaridade do cânon romano, pois todas as liturgias, excetuando a egípcia, apresentam a oblação do sacrifício após a consagração. Vejamos o que diz Jungmann sobre a matéria:

“E aqui nos encontramos em seguida com outra particularidade do Canon romano, que é imitada tão somente pela prece eucarística das liturgias egípcias… Outras liturgias, começando pela de Hipólito, ao menos em sua estrutura primitiva, não conhecem o offerimus, dentro da prece eucarística, a não ser depois da consagração” (El Canon de la Misa, Ed. Litúrgica Española, S.A., Barcelona 1967 (original 1966), 201-221).

As intercessões e comemorações dos santos na segunda parte da anáfora ocorrem, por exemplo, na tradição antioquena (cf. Annibale Bugnini, A Reforma Litúrgica (1948-1975), 2018, p. 393).

Jungmann também destaca sobre as intercessões: “Todas as liturgias orientais acolheram intercessões no transcurso da prece eucarística, mas sempre em um só lugar dentro da prece, e não em dois”  (El Canon de la Misa, Ed. Litúrgica Española, S.A., Barcelona 1967 (original 1966), 201-221).

A ausência desses três elementos (oblação, intercessões e comemoração dos santos) antes da Narrativa da Instituição pode ser considerada a razão pela qual o teólogo considera que as Novas Preces apresentam uma estrutura que corresponde a Missa Luterana. No entanto, é preciso dizer, conforme o próprio estudo do teólogo protestante, a Missa Luterana, não possui Oblação, Intercessões e Comemoração dos santos nem antes e nem pós a Narrativa da Instituição, razão pela qual se difere de todas as Orações Eucarísticas. Além disso, como se viu, tais opções de estrutura estão conforme à tradição litúrgica da Igreja. Ademais, no juízo do teólogo, há claras distinções teólogicas (problemas teológicos) entre as novas preces e o entendimento protestante de natureza do sacrifício (oblação) e sobre o fim do referido sacrifício (intercessões).

Chegamos para a frase do Dr. Gérard Siegwalt, que diz que “não há nada na missa renovada, reformada, que pode realmente desgostar o cristão evangélico”(veja-se aqui)A pesquisa sobre essa frase me levou a uma Carta Aberta de 1969 que o teólogo protestante enviou para o bispo de Strasbourg, Mons. Léon-Arthur Elchinger. Nela o teólogo tratava da questão da intercomunhão, solicitando a possibilidade de comungar na Igreja Católica. A primeira coisa a ser notada é que a frase está cortada. A frase completa diz: “Não há nada na Missa agora renovada e reformada que possa realmente incomodar o cristão evangélico ou que possa incomodá-lo mais do que pode incomodá-lo tais elementos, reais ou ausentes, do culto protestante”. Assim, não se exclui absolutamente que o Novo ordo possa incomodar o cristão protestante, mas se exclui que tal incômodo seja diferente do incômodo para o cristão evangélico com relação a elementos presentes no culto protestante. Isso leva a concluir que pode haver diferenças, mas que elas não são tão sérias a ponto de impedir a participação do protestante na Missa católica. Isso nos recorda a distinção entre verdades fundamentais e verdades não fundamentais de Calvino e do irenismo do ecumenismo protestante, dois pontos que já tratamos acima. O teólogo desenvolve mais o seu argumento. Ele diz que é preciso fazer um exercício de interpretação. Exemplifica dizendo: “Aqui, é necessário interpretar quando vem por exemplo a evocação dos santos. Um cristão evangélico pode amar esta oração em sua nova forma como Lutero a teria amado se ainda estivesse lá; Quero dizer: ele pode amá-lo interpretando-o, ou seja, rezando para ele segundo o significado que ele tem quando entendido de maneira bíblica, evangélica”. Como se vê, o teólogo não nega que o Novo ordo invoca os santos, coisa que não é admitda na teologia luterana, no entanto, diz que o cristão evangélico precisa “interpretar” tal invocação, indo contra a materialidade da letra, e rezá-la em sentido “bíblico”. Pode-se pensar numa abstração em que o cristão evangélico reconhece nela que os santos podem interceder pelos homens na terra (embora não serem invocados) ou que os santos no céu estão em comunhão com os homens na terra. Outro exemplo dado pelo teólogo: “Ainda é preciso interpretar quando, na Eucaristia, o sacerdote transforma o pão e o vinho no corpo e no sangue de Cristo. O cristão evangélico poderá novamente compreender no sentido bíblico, no sentido da afirmação da presença real de Cristo crucificado e ressuscitado”. O que parece indicar, na verdade, que nenhuma liturgia, por mais clara que seja, é capaz de obstruir ou impedir esse método de ignorar a materialidade das palavras e de compreender as orações em sentido diverso daquele atribuído pelos autores (formal e material).

Mas alguém pode insistir, no entanto, que o fato do teólogo se referir a “Missa agora renovada” implica que o cristão evangélico pode ter motivos sérios para se sentir incomodado com a Missa Tridentina ou que esse método de interpretação não pode ser aplicado à Missa Tridentina na visão do teólogo. No dia 12 de fevereiro de 2022 entrei em contato com o teólogo por e-mail e fiz as duas seguintes perguntas sobre sua Carta Aberta: “Existe alguma razão para a Missa Tridetina desagradar os irmãos protestantes? Existem diferenças nessa Missa que “separam”?” Obtive a seguinte resposta no dia seguinte: “Não pensei, em minha Lettre ouverte (1969), de forma expressiva na diferença entre a antiga e a nova missa; essa não foi minha pergunta. Até a questão do «sacrifício» parecia-me passível de interpretação bíblica (cf. in Le défi ecclésial: Sacerdoce ministériel et ministère pastoral, p. 273-289)”. Portanto, não há motivos para fazer tal ilação.

Visando maiores esclarecimentos sobre o pensamento do Dr. Gérard Siegwalt, enviei um email em 10 de fevereiro de 2022 com a seguinte pergunta em relação a sua Carta Aberta: “Por que o cristão evangélico não poderia se incomodar [seriamente] com a Missa de Paulo VI?”. Sua resposta em 11 de fevereiro de 2020 foi:  “Pode haver ainda diferenças, mas estas não são mais “separadoras””, indicando a seguir o texto “A Eucaristia” (1978) da Comissão Católica/Luterana, estabelecida pelo Secretariado para a União dos Cristãos e pela Federação Luterana Mundial, que apresenta um estudo que reexamina as controvérsias teológicas entre as duas partes, apontando as convergências e as distinções ainda pendentes sobre o tópico. A resposta indicou que há divergências, mas que elas não são consideradas um obstáculo para a unidade na visão eclesiológica do teólogo. O que corresponde a minha explicação nos parágrafos anteriores.

Nesse mesmo email o Dr. Gérard enviou em anexo páginas de sua obra Théologien pendant plus de 60 ans (Cerf/Paris), que contextualiza a sua Carta Aberta. A pré-história da Carta Aberta revela que o teólogo teve em conta os avanços teológico da discussão católica e protestante para escrever aquela Carta. Ele explica: “No diálogo teológico entre a Igreja Católica Romana e a Federação Luterana Mundial em particular, a questão da Eucaristia e particularmente da compreensão da presença de Cristo neste sacramento, que para os reformadores Lutero e Calvino não era de forma alguma secundária como o os debates que continuariam por muito tempo se mostravam claramente, estava em vias de ser esclarecido e, portanto, a questão muito concreta da hospitalidade eucarística e da intercomunhão foi colocada”.

A leitura do estudo A Eucaristia da Comissão Católica/Luterana, indicado pelo Dr. Gérard, deve ser considerada como outra base para entender o seu pensamento. O que pude encontrar? O estudo parece-me indicar uma visão bem correta sobre a doutrina tradicional da Igreja sobre a Eucaristia. Não parece exagerar os pontos convergentes, tampouco dissimular as divergências. Indicamos alguns pontos:

1) A presença real e verdadeira de Cristo na Eucaristia é indicada como um ponto de convergência, mas ao mesmo tempo o texto esclarece que “existem diferenças, no entanto, nas declarações teológicas sobre o modo e, portanto, a duração da presença real”. A mudança que ocorre é chamada de transubstanciação pelo catolicismo, segundo o texto, enquanto essa “terminologia tem sido amplamente considerada pelos luteranos como uma tentativa de explicar racionalmente o mistério da presença de Cristo no sacramento”. Ao dizer sobre a posição de consubstanciação do luteranismo, o texto acrescenta que os católicos “acham que isso não faz justiça suficiente a esta mesma unidade e à força da palavra de Cristo “Isto é o meu corpo”. É de se destacar que o texto refira que “a discussão ecumênica mostrou que essas duas posições não devem mais ser vistas como opostas de uma forma que leve à separação”. Expressão similar da utilizada pelo Dr. Gérard sobre o seu pensamento.

2) Quanto ao sacrifício da Missa o texto diz que “segundo o ensinamento católico, em cada Eucaristia “é oferecido um verdadeiro e próprio sacrifício” (Concílo de Trento, DS 1751) por meio de Cristo. “Pois uma e mesma é a vítima: e aquele que agora oferece pelo ministério dos sacerdotes é o mesmo que, outrora, se ofereceu na Cruz, divergindo, apenas, o modo de oferecer. … Por isso, com razão se oferece, consoante a Tradição apostólica, este sacrifício incruento, não só pelos pecados, pelas penas, pelas satisfações e por outras necessidades dos fiéis vivos, mas também pelos que morreram em Cristo, e que não estão plenamente purificados” (Concílio de Trento,  DS 1743)”. Após expor a visão protestante sobre a matéria, o texto refere que a discussão ecumênica levou a entender melhor as interpretações uns dos outros. Exemplifica que segundo a doutrina católica a Missa não é uma repetição do sacrifício de Cristo e nada acrescenta ao seu significado salvífico; o ex opere operato deve testemunha no contexto da sacramentologia a prioridade da ação de Deus, e tal compreensão não exclui a participação ativa do crente; a convicção de que os frutos da Eucaristia vão além do círculo dos presentes numa celebração não diminui a importância da participação ativa na Missa. Esse melhor entendimento levou ao apontamento de algumas convergências, que são: a Eucaristia como corpo e sangue do Senhor são realmente recebidos, seja para salvação ou para condenação; a recepção crente dá a união pessoal com Jesus Cristo; a eficácia da recepção do Senhor pelos crentes não pode ser medido pelos padrões humanos, mas pertence à ação humanamente incontrolável de Deus; a Eucaristia, por sua própria essência, é uma refeição comunitária; a prioridade da celebração comunitária em relação celebrada pelo padre somente, ensinada pelo Concílio, é considerada uma aproximação na prática eucarística entre as partes; a Igreja Luterana não nega a doutrina que Cristo está presente em ambas as espécies, reconhecendo que em casos urgentes se pode receber a Eucaristia em uma espécie apenas. Nesse sentido se esclarece que “se as diferenças na doutrina e na prática continuarem a persistir também nesta área, elas não terão mais um caráter de divisão da Igreja”.

3) O último ponto é o sobre o Ministério Eucarístico, onde se afirma através de citações do Concílio de Trento, que para o catolicismo o ministro deve ser ordenado com um sacramento válido, sendo este um pré-requisito para presidir à Missa e que segundo a Igreja as comunidades separadas não preservam o ministério eucarístico. É dito que para os luteranos, o ofício eclesial é uma instituição divina, embora a ordenação geralmente não seja caracterizada como sacramento. As convergências dizem respeito “a compreensão da base e função do Ministério, bem como da forma de transmissão pela imposição de mãos e pela invocação do Espírito Santo”.

Mais um elemento a adicionar ao assunto é a resposta do bispo Léon-Arthur Elchinger e a “réplica” do Dr. Gérard (cf.  Gerard Siegwalt, Le défi ecclésial. 2016). Frente a Carta Aberta, o bispo reagiu apresentando três razões que o impediam de responder favoravelmente a interpelação: a necessidade de consultar primeiro o episcopado e a Santa Sé, a necessidade de consultar os fiéis da diocese, e a necessidade de elucidar ainda o problema dos ministérios. Posteriormente, em um discurso radiofônico no encerramento da Semana de Oração pela Unidade, o bispo cita três aspectos da Eucaristia que afetam o conteúdo da fé e sobre os quais não existe um acordo real: o modo e a permanência da presença sacramental, o aspecto sacrifical da Eucaristia e sua relação com o sacrifício da cruz, e sobretudo, a questão do papel e eficácia do ministério do sacerdote, em relação ao poder da ordem ligado à sucessão apostólica.

O Dr. Gérard replicou as manifestações do bispo em “A questão da intercomunhão”, que foi transmitido como parte do programa “Preparons le jour du Seigneur”, Radio Strasbourg II, em 14 de fevereiro de 1970. Argumenta em torno do princípio de que há um acordo implícito entre as partes.

Com relação ao primeiro ponto (permanência da presença sacramental), o teólogo protestante defende “que ela é em todo caso secundária àquela, essencial, da presença real na Última Ceia e que, em consonância com a concentração, operada pelo Concílio Vaticano II, da Eucaristia na celebração comunitária, esta afirmação precisa ser repensada”. Ou seja, não atinge o conteúdo da fé em sua visão. O ensinamento do Concílio é de que “Sempre que os ritos comportam, segundo a natureza particular de cada um, uma celebração comunitária, caracterizada pela presença e activa participação dos fiéis, inculque-se que esta deve preferir-se, na medida do possível, à celebração individual e como que privada”. (Sacrosanctum concilium)

Com relação ao sacrifício da Missa o teólogo afirma que “Lutero e o Concílio de Trento, protestantes e católicos se reúnem sobre este assunto na afirmação de que a Eucaristia é a atualização pelo Espírito Santo do único sacrifício propiciatório de Cristo por nós. Com ele e nele ela oferece ao Pai sua oração de louvor, ação de graças e intercessão e se oferece como sacrifício vivo; este é o seu sacrifício de louvor”. Com relação ao oferecimento da comunidade do único sacrifício de Cristo, tão controversa no século XVI, o teólogo faz alusão sobre ao “texto do acordo entre católicos e luteranos da América do Norte, sobre a Eucaristia como sacrifício”.

O que diz esse acordo? A Declaração (1967) elucida pontos de convergência: a Eucaristia é um sacrifício, pois nela Cristo está presente como o Crucificado que morreu por nossos pecados e ressuscitou para nossa justificação, como o sacrifício único pelos pecados do mundo que se dá aos fiéis; a celebração da Eucaristia é o sacrifício de louvor e auto-oferta da Igreja.

Mas também apresenta pontos que precisam de esclarecimento: como a congregação “oferece a Cristo”; como o sacrifício eucarístico é “propiciatório”, como as intenções da Missa, os estipêndios e a multiplicação de Missas são reconciliadas como práticas com a suficiência total dos sacrifícios de Cristo”.

A Declaração (1967) conclui dizendo o seguinte: “Apesar de todas as diferenças que permanecem na forma como falamos e pensamos sobre o sacrifício eucarístico e a presença de Nosso Senhor na Ceia do Senhor, não podemos mais nos considerar divididos nesses dois pontos… nossos irmãos luteranos e católicos se examinem em sua consciência e superem todos os modos, individuais ou eclesiais, de pensar, falar e agir que obscureceram nestes pontos como em outros sua unidade em Cristo”.

Com relação ao Ministério eucarístico, o teólogo protestante vê alguns pontos de convergências, mas reconhece que no geral continua sendo objeto de diálogo teológico.

Argumenta ainda o teólogo que “os anátemas lançados pelo Concílio de Trento não afetam de fato a doutrina eucarística luterana (que hoje também é em grande parte, como na França, a da Igreja Reformada), mas apenas a forma como os Padres de Trento tinha (mal) entendido”.

Aqui tudo indica, portanto, que segundo a visão do Dr. Gérard, os cristãos evangélicos não têm motivos para se incomodarem ou se incomodarem seriamente com a Missa renovada, apesar das diferenças de doutrinas expostas, e não por conta duma diminuição da expressão da doutrina católica no Novo ordo. Uma melhor compreensão da doutrina católica e o reconhecimento de uma série de convergências é a razão da mudança de paradigma frente a liturgia católica.

Quanto a frase de Pastor Viot no sentido que era intolerável no Missal de São Pio VI que “a missa possa ser uma repetição do sacrifício de Jesus Cristo, que o padre possa oferecer o Corpo e o Sangue uma vez mais” podemos  dizer o seguinte:mostra que ele atribuía ao Ordo de São Pio V a tese ou sugestão de que a Missa seria uma repetição de um sacrifício. Sabemos que, na realidade, o sacrifício da Missa atualiza o sacrifício único de Cristo. Não há nada na afirmação de Viot que coloque em dúvida a teologia tradicional do sacrifício no Novo Ordo. Pelo contrário, segundo seu parecer, a liturgia renovada deixou mais clara a doutrina católica sobre a matéria: “Porque a reintrodução da Missa de São Pio V (mesmo pela porta das traseiras e na revisão do missal romano de 1962) é muito mais do que uma questão de linguagem: é uma questão doutrinal da maior importância, no seio da os debates entre católicos e protestantes, debates que, de minha parte, julguei encerrados com alegria (ver os últimos acordos oficiais luterano-católicos sobre a Eucaristia). O que os teólogos católicos nos responderam? Em suma, eles apresentaram a Missa como uma atualização do sacrifício de Cristo e não como sua repetição. De repente, as principais objeções dos reformadores contra a massa caíram. Pois, se Lutero então Calvino, como hoje aqueles que afirmam ser seus herdeiros fiéis acreditavam na presença real do corpo e sangue de Cristo na Sagrada Eucaristia, eles rejeitaram vigorosamente a noção de sacrifício repetido, que carregava seriamente um ataque à singularidade e caráter perfeito do sacrifício de Jesus Cristo e permitindo ao sacerdote ser um milagreiro, portanto um elemento de uma instituição eclesial autoritária e absoluta, pois é um intermediário obrigatório entre Deus e os fiéis” (veja-se aqui).

Se o pastor Ottfried Jordahn afirma que sua comunidade utiliza a Oração eucarística II, com pequenas modificações, podemos afirmar também que a Anáfora de Hipólito era utilizada por séculos pelo no rito etíope e em forma ampliada nos ritos sírio ocidental e copta. Ademais, a reforma litúrgica da Igreja Luterana modifica a Anáfora de Hipólito que fala explicitamente “em oferta do pão e do cálice” (na Oração Eucarística II da Igreja Católica está “pão da vida e cálice da salvação”), pois isso não estaria de acordo com sua teologia. Nesse sentido: “Trial Prayer II” foi uma tradução de Hipólito. Porque os luteranos ainda não são capazes de “oferecer este pão e cálice”, o tradutor, Gordon Lathrop, alterou o texto para “levar este pão e cálice diante de você”, esperando que a frase posterior “seu povo sacerdotal” suprisse a imagem que os luteranos carecem por sua recusa da palavra “oferta”. (Gail Ramshaw-Schmidt, New Eucharistic prayers : an ecumenical study of their development and structure, Paulist Press, 1986, p. 76).

Quanto a Roger Mehl, sua frase pode parecer desconcertante à primeira vista, no entanto, é de se observar que jornal Le Monde apresenta artigos pequenos em que, por vezes, um desenvolvimento teológico não é possível. É uma felicidade, no entanto que o autor tenha escrito numa revista teológica sobre o assunto em questão e demarcado melhor o seu pensamento sobre o Novo ordo, vejamos: “Quanto ao sacrifício, as modificações introduzidas na liturgia romana da Missa tendem precisamente a eliminar a ideia de que a Missa poderia ser a repetição do sacrifício realizado de uma vez por todas por Cristo na Cruz”. (Vers une solution du problème eucharistique [note critique], Revue d’Histoire et de Philosophie religieuses  Année 1969  49-2  pp. 165-175, veja-se aqui). Assim, é provável que verdadeiro sentido do que escreveu no Le Monde é que a reforma litúrgica eliminou a ideia de que a Missa seria a repetição do sacrifício de Cristo ou eliminou a ideia de que seria um sacrifício absoluto.

Com relação a afirmação do  Consistório superior da confissão de Augsbourg e da Lorraine que refere que “a utilização das novas orações eucarísticas [da  Missa Nova de Paulo VI], nas quais nós nos reencontramos, e que têm o mérito de nebular a teologia do sacrifíco, que nós tínhamos o costume de atribuir ao catolicismo” devemos sublinhar a parte que diz “QUE NÓS TÍNHAMOS O COSTUME DE ATRIBUIR AO CATOLICISMO”. Essa expressão pode estar em sintonia com o pensamento de Roger Mehel e do pastor Michel Viot que defendem que a Missa Tridentina expressava a idéia de um sacrifício repetido e não a atualização do único sacrifício de Cristo.

Por fim, vamos relembrar e acrescentar alguns testemunhos claros de protestantes defendendo que o Novo ordo não é possui uma teologia protestante.

Citamos anteriormente K. H. Bieritz, que refere que para “uma teologia derivada dos reformadores” e sua Cristologia, o contraste oferecido pela liturgia católica ainda existe na Nova Ordem da Missa e “se tornou ainda mais claro e nítido”.

O luterano Jean Pleyber diz:

“Creio que um ponto essencial da doutrina católica é que o Papa é beneficiário de uma assistência particular do Espírito Santo que lhe conferiu infalibilidade em matéria de fé e moral. Não pode haver arcebispos e bispos católicos fora de sua comunhão total com o Papa.  Nesse sentido, então, a posição do Arcebispo Lefebvre parece-me indefensável. Sem dúvida, diz ele, a questão é apenas “pastoral”, isto é, disciplinar, e não “doutrinal”, isto é, dogmática. Mas ele acrescenta diretamente que o novo cânon da Missa exclui o caráter “sacrificial” da celebração eucarística, reduzindo-a a um mero “memorial” da Paixão do Salvador e a uma simples refeição comunitária. Este assunto claramente não envolve mais o pastoral, mas o dogma. A posição do Arcebispo Lefebvre parece-me ilógica. Pois, se é uma questão de dogma, o Papa é infalível e ele deve então ser obedecido sem hesitação ou murmúrio. Quanto ao assunto em questão, muitas vezes assisti às missas celebradas de acordo com o novo cânon, e todos os domingos eu assistia a uma missa televisionada. Nunca vi evidência de que tais missas negassem o caráter sacrificial ou a Eucaristia. E quando ouço dizer e quando leio que “eles fabricaram uma Missa protestante”, sei muito bem que isso não é verdade e que essas pessoas estão erradas. Até pedi ao sacerdote da minha vila que me enviasse os novos textos litúrgicos e, ao lê-los, estou convencido de que nada mudou na doutrina Eucarística Católica. Acredito ser útil dizer que os católicos que falam de uma “Missa protestantizada” são totalmente ignorantes do protestantismo e talvez de uma grande parte do Catolicismo.” (citado em Ecrits de Paris – Outubro de 1976)

Frieder Schulz:

“a parte com a oblação e a súplica pela Igreja na Oração Eucarística apresentam problemas teológicos”. (Lutherische Liturgische Konjerenz Deutschlands (LLK) C 33-1972)

O Pastor Luterano Frank C. Senn diz sobre a Oração Eucarística IV: 

“A Igreja Católica Romana considerou esta linguagem apropriada e na nova Oração Eucarística IV no Missal Romano de 1974 diz muito categoricamente: “Oferecemos seu corpo e sangue, o sacrifício aceitável que traz salvação para o mundo inteiro.” Os compositores desta oração não relutaram em mudar o “pão e vinho” da Anáfora Alexandrina de Basílio, na qual se baseia a Oração Eucarística IV, em “corpo e sangue”… Mesmo no antigo cânone romano, o que se oferece é o pão e o cálice. É verdade que é o “pão da vida” e “o cálice da salvação”, ambas elaborações com referências bíblicas; e teólogos do século XVI e posteriores puderam interpretar isso como o corpo e sangue de Cristo, especialmente porque a mudança (transubstanciação) dos elementos ocorreu nas palavras de instituição antes da anamnese-oblação. Mas é somente quando chegamos ao Missal Romano de 1974 que encontramos na Oração Eucarística IV a declaração descarada: “oferecemos seu corpo e seu sangue”. Este é um novo desenvolvimento na tradição eucarística, e pode ser contestado em nome da tradição, como Martin Chemnitz fez em seu Exame do Concílio de Trento”. (Christian Liturgy, Catholic and Evangelical, Fortress Press, 1997, pp 476-478)

O teólogo luterano Gunther Wenz diz:

“Seria certamente um erro crer que o Concílio Vaticano II, enquanto à relação entre o acontecimento da Cruz e o sacrifício da Missa, representa uma revisão radical da concepção católica tradicional (…) as novas orações Eucarísticas expressam uma doutrina da oferenda sacrifical muito mais explícita que a do Canon Romanon”. (Die Lehre vom Opfer Christi im Herrenmahl als Problem ökumenischer Theologie in Kerygma und Dogma 28/1/1982 pp. 14.41)

Sabe-se que o Mons. Bugnini, principal arquiteto do Novo Ordo, era um maçom. Um padre romano encontrou uma maleta deixada por Mons. Bugnini numa sala de reunião dos departamentos curiais de Roma. Essa maleta continha material que comprovava a relação de Bugnini e a maçonaria. Os documentos foram devidamente levados ao Cardeal Dino Staffa (1906-1977), que era então Prefeito da Assinatura Apostólica. Este, por sua vez, apresentou tais informações para o Papa Paulo VI, dizendo ao Papa que se ele não demitisse imediatamente Bugnini de sua posição litúrgica chave, ele (Staffa) se sentiria obrigado em consciência a ir a público com este grande escândalo. Dentro de um ou dois dias, Paulo VI fundiu os dois dicastérios litúrgicos vaticanos existentes em um, deixando Bugnini sem emprego. Pouco depois, Bugnini deixou a Cúria Romana com destino a Teerã como o novo Núncio Papal do Irã. Michael Davies (veja-se aqui) afirma que teve contato com esse padre romano que lhe confirmou o relato. O Pe. Brian Harrison afirma (veja-se aqui) que Eric von Saventhem também lhe afirmou ter tido contato com o referido padre romano que também lhe confirmou o relato. Ademais, existe uma lista que apresenta uma relação completa de maçons no Vaticano, onde consta o nome de Bugnini, em Panorama nº 538 (10.08.76).

Resposta: Não é nova essa tática de destruir reputações dentro da Igreja católica através acusações fraudulentas sobre suposto relacionamento de alguém com a maçonaria. A prova não precisa ser robusta, bastante a mera suscitação de uma suspeita para destruir a pessoa ou o projeto de seu adversário. Nem Pio IX escapou disso. Por exemplo: Pouco depois da morte de Pio IX, o jornal maçônico “Chaînt d’Union”, em sua publicação de abril de 1878, publicou uma longa carta de M. Lebrun, um arquiteto e maçom, que descreveu que no ano de 1865 ele teve profundas relações comerciais com um certo M. Déforges, que declarou ter sido “padrinho” de Pio IX por ocasião de sua iniciação maçônica. Ele ainda teria declarado que depois que Mastai se tornou Papa, ele (Déforges) fez uma visita a ele (Pio IX) no Vaticano e foi bem recebido. Relatos que ligavam Pio IX à maçonaria também foram repetidos em duas publicações da Ars Quatuor Coronatorum. Acusação totalmente mentirosa, contraditória, que atualmente só é repetida em certos círculos tradicionalistas.

Mas vamos tratar especificamente da acusação contra Mons. Bugnini. Em primeiro lugar é difícil dar crédito a história de um acusador anônimo. O que impede desse padre romano ser o verdadeiro maçom? O que impede desse padre romano estar simplesmente mentindo? Que confiança podemos depositar numa denúncia anônima sem pecar por juízo temerário contra Mons. Bugnini?

Mas supondo a veracidade da história da maleta, ela em nada comprovaria que Mons. Bugnini foi um maçom. Se a maleta supostamente continha documentos que apontam nesse sentido, então só quem detém essa documentação estaria com provas em mãos. Como nenhuma pessoa conhece essa suposta documentação ninguém pode afirmar que ela prova alguma coisa. Como saberíamos se a documentação aponta que Mons. Bugnini é maçom ou se demonstra alguma comunicação formal dele com maçons? Como saberíamos se aquele conteúdo apenas evidencia essa suposta filiação à maçonaria, mas nada provaria definitivamente? O próprio Michael Davies afirmou categoricamente que não tinha provas de que Mons. Bugnini foi maçom.

Mas é possível impugnar a história da maleta, pois a alegação pretende ganhar sua força com o fato de que o Papa São Paulo VI fundiu a Congregação para o Culto Divino (a qual Mons. Bugnini era secretário) e a Congregação dos Ritos, criando-se a Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos em 11 de julho de 1975, assim despedindo Mons. Bugnini, supostamente um ou dois dias após o Papa tomar conhecimento de que Mons. Bugnini era maçom. Mas as datas não batem com os seguintes fatos:

É passado por alto que em 08 de julho de 1975 (três dias antes da fusão), o cardeal Knox já comunicava ao secretário da Congregação que havia a intenção de “fundir as duas congregações para os Sacramentos e o Culto Divino” (cf. Bugnini, ibid., p. 104). Ou seja, antes do suposto ocorrido da maleta.

O relato do arcebispo Piero Marini, que foi membro do Consilium, secretário particular de Mons. Bugnini e que trabalhou como membro da Congregação para o culto divino e para a Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, é de suma importância. Ele indicará que essa fusão das Congregações já era uma ideia que se anunciava meses antes, pois, no início de 1975, Mons. Bugnini descobriu a existência de uma comissão especial criada dentro da Congregação sem seu conhecimento, o que indica inclusive o início de seu descrédito na Cúria Romana, muito antes da história da maleta. O objetivo era preparar um plano para reordenar como os assuntos litúrgicos deveriam ser tratados dentro da Cúria Romana. Fazia parte do plano a instituição de uma Congregação pro vita liturgica, que reunisse as diferentes responsabilidades no campo litúrgico, então repartidas entre várias Congregações curiais (cf. A challenging reform : realizing the vision of the liturgical renewal, 1963-1975, Liturgical Press, 2007, p. 149).

Ademais relata o mesmo arcebispo que, no início de julho, enquanto Mons. Bugnini estava fora de Roma em férias, várias reuniões privadas levaram à decisão de que ele não deveria mais ter um papel de liderança na renovação litúrgica e que a Congregação para o Culto Divino que ele havia estabelecido deveria ser dissolvida (cf. Ibid., p. 149).

Por fim, não é dispensável que se indique a forte oposição de cardeais e das Congregações dos Ritos e para doutrina da fé ao Mons. Bugnini. Para ilustrá-lo é preciso relatar a questão da multiplicação das Orações eucarísticas ao redor do mundo. Numerosos pedidos de comissões nacionais e de bispos de todo o mundo pediam a confecção de Orações Eucarísticas adaptadas à linguagem  das crianças e por ocasião da celebração do Ano Santo. Mons. Bugnini foi encarregado pelo Papa de mandar redigir tais Orações. Foram redigidos cinco textos (três relativos às Missas das crianças e dois para o Ano Santo), autorizados ad experimentum por um período de três anos, ou seja, até o final de 1977, mas que não deveriam ser publicados oficialmente, nem inseridos no Missal Romano. A Congregação para doutrina da Fé já se mostrava contrária a tais concessões em 10 de maio de 1974: “Dada a confusão doutrinária existente em matéria litúrgica, este Sacro Dicastério exprime viva preocupação pela multiplicação das Orações Eucarísticas, o que constitui prelúdio e encorajamento a outros pedidos semelhantes, aos quais será difícil subtrair-se”.

Em 1975, os bispos da Bélgica e da Holanda pretendiam regular a situação das cinco Orações Eucarísticas, pensavam em publicá-las em um fascículo separado do Missal, pelo que pediram a confirmação delas à Santa Sé. O Papa, então, determinou que uma comissão mista de consultores das Congregações para o Culto Divino e para a Disciplina dos Sacramentos analisasse a questão, e também a congregação ordinária mista dos mesmos Dicastérios. A segunda reunião foi fatalmente crítica a proposta dos bispos, que Mons. Bugnini defendia. O cardeal Seper fez um severa crítica a multiplicidade de Orações eucarísticas, pois a concessão das referidas Orações teria aberto portas para abusos. A maioria (segundo Bugnini) ou a unanimidade (segundo Piero Marini) dos cardeais teve o parecer desfavorável pelos mesmos argumentos lançados pelo cardeal Seper.

Segundo o arcebispo Piero Marini, a ação de Bugnini já era vista com desconfiança: “Mas a essa altura a ação do secretário em relação a esse assunto era vista com desconfiança. Por esta razão o Papa Paulo VI decidiu que a solução proposta em 1975 deveria ser debatida por uma reunião das duas Congregações – Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos. Esta foi a primeira vez que tal medida foi tomada. A reunião foi realizada em 19 de junho de 1975” (cf.  Ibid., p. 148).

O arcebispo Piero Marini também relata a má relação entre Bugnini e o cardeal Tabera, dizendo: “É bem provável que as difíceis relações de Bugnini com Tabera tenham sido um dos elementos mais decisivos que levaram à supressão da Congregação para o Culto Divino em 1975” (cf. Ibid., p. 155).

Portanto, tudo indica que na visão de grande parte dos membros dos Dicastérios, Mons. Bugnini fracassou por conta de sua orientação de conceder múltiplas Orações Eucarísticas para vários países, que na visão daqueles foram ocasião de abusos. Essa parece ser a verdadeira causa de sua queda. Portanto, anterior a situação da maleta que foi narrada.

Agora, que confiança podemos depositar na Lista de maçons? A mesma lista que apresenta Mons. Bugnini como maçom também apresenta o cardeal Jean Villot, Secretário de Estado do Vaticano. Ocorre que Mons. Bugnini relata que seu contato com a Secretaria de Estado tornou-se tenso e menos frequente naqueles últimos anos (cf. Ibid., p. 149).

Além disso, como contraprova, podemos citar o que dizem os grãos mestres da maçonaria italiana sobre a suposta pertença de Bugnini à maçonaria e sobre a questão da Lista de maçons publicada:

Lino Salvini (que foi grão mestre da maçonaria italiana entre 1970 a 1978) em 10 de agosto de 1976 declarou ao Panorama:

“Não temos cardeais na loja. Nesta lista [dos 114 prelados publicados no Panorama] só conheço quatro pessoas e isso não significa que sejam maçons. Além disso, dos arquivos da Maçonaria não há nada que se assemelhe à sequência de data de registro, número de série, monograma, que aparece na lista” (veja-se aqui).

Giuliano di Bernardo (que ingressou na Maçonaria italiana em 1961), em entrevista sobre o assunto:

“(Questão) É possível que seja tudo falso? Os rumores sobre alguns eram bastante insistentes. Sobre Annibale Bugnini, o bispo que foi o principal arquiteto da reforma litúrgica, parece que foram encontradas evidências suficientes para justificar sua saída de Roma. (Resposta:) … Mas o fato de que sempre houve rumores sobre supostas filiações de altos prelados à Maçonaria não autoriza que certas conclusões sejam tiradas. Eu pessoalmente também posso acreditar em uma coisa e não em outra, mas enquanto não houver evidência certa e tangível, não é legítimo dizer isso. Durante minha grão maestria nunca vi documentos que pudessem atestar a filiação à Maçonaria de cardeais ou bispos. Então, na minha opinião, as várias listas que circulavam naqueles anos não tinham confiabilidade” (veja-se aqui).

Mons. Bugnini foi claro que o Novo Ordo queria obscurecer a doutrina católica sobre a Santa Missa para não desagradar protestantes: “Desejo eliminar [do futuro Rito em elaboração] cada pedra que pudesse se tornar ainda que só uma sombra de possibilidade de obstáculo ou de desagrado aos irmãos separados” (L’Osservatore Romano, de 11 de março de 1965; Doc. Cath. Nº 1445, de 4/4/1965, coll. 603-604).

Resposta: A frase de Mons. Bugnini é descontextualizada. Na verdade, ele estava falando da reforma das orações solenes da sexta-feira santa de 1965 e não do Novo Ordo. Especificamente se refere a uma modificação da oração sétima que possuía as palavras “heréticos” e “cismáticos”, (mudadas para irmãos que creem em Cristo) e, provavelmente, expressões que diziam que os irmãos separados eram “almas seduzidas pelos artifícios do demônio” (o que que foi omitido). Vários teólogos conservadores falam que se deve evitar o uso das palavras fortes referidas e preferir uma expressão mais benevolente de irmãos separados para não feri-los. Não está falando em diminuir ou retirar elementos teologia católica da Santa Missa de sacrifício propiciatório ou presença real.

Olhemos para uma tradução mais completa para entender melhor o que diz Mons. Bugnini:

“A sétima oração tem o título: ‘Pela unidade dos cristãos’ (não ‘da Igreja’, que sempre foi una). Não falamos mais de ‘hereges’ e ‘cismáticos’, mas de ‘todos os irmãos que crêm em Cristo” (…) Os especialistas pensaram em trazer à luz as fontes bíblicas e litúrgicas que deram origem ou inspiraram os novos textos elaborados pelos grupos de estudo do Consilium. Digamos também que muitas vezes o trabalho efetuou-se ‘cum timore et tremore’ quando tratava-se de sacrificar expressões e conceitos muito ricos e os quais nos eram familiar desde sempre. Por exemplo, como não lamentar o ‘ad sanctam matrem Ecclesiam catolica matque apostolicam revocare dignetur’ da sétima oração? E no entanto, ao fazer estes sacrifícios penosos, a Igreja foi guiada pelo amor das almas e o desejo de tudo fazer para facilitar o caminho de união aos irmãos separados, afastando toda pedra que poderia constituir a mínima sombra de um risco de obstáculo ou desagrado, na confiança de que a pedra comum trará o dia em que toda “a família de Deus”, reunida “na integridade da fé e sob o sinal da caridade” poderá cantar numa só voz (una voce) e com um só coração o Aleluia pascal da ressurreição e da vida.”.

Está claro aqui que se refere as modificações das orações da Sexta-feira Santa. Quando se fala em eliminação de toda “pedra” que poderia ser risco de obstáculo ou desagrado dos irmãos separados está se tratando especificamente da sétima oração da Sexta-feira Santa, justamente para facilitar o caminho de união dos irmãos separados. O que dizia essa oração? “Oremos também pelos hereges e cismáticos, para que Deus, Nosso Senhor, os livre de todos os erros e se digne reconduzi-los à Santa Madre Igreja Católica e Apostólica” [Oremus pro haereticis et schismaticis ut Deus et Dominus noster eruat eos ab erroribus universis et ad Sanctam Matrem Ecclesiam catholicam atque Apostolicam revocare dignetur]. E na segunda parte: “Deus todo-poderoso e eterno, que salvas a todos, e não quer que ninguém pereça: olha para as almas seduzidas pelos artifícios do demônio: que, deixando de lado todo mal herético, os corações daqueles que erram possam se arrepender e retornar à unidade de Tua verdade. Por nosso Senhor… R. Amém”. [Omnipotens sempiterne Deus, qui salvas omnes, et neminem vis perire: respice ad animas diabolica fraude deceptas; ut, omni hæretica pravitate deposita, errantium corda resipiscant, et ad veritatis tuæ redeant unitatem. Per Dominum nostrum Jesum Christum… R. Amen].

Trata-se, portanto, especialmente, da mudança dos vocábulos “heréticos” e “cismáticos” para “irmãos que crêem em Cristo”, explicitamente referidas na fala de Mons. Bugnini, e podemos supor que também se refira ao trecho sobre as “almas seduzidas pelos artifícios do demônio” da segunda parte. A verdade de fé que existe uma só Igreja de Cristo, que todos os outros devem se unir está mantida. Os termos ‘heréticos’ e ‘cismáticos’ e a expressão sobre as almas desviadas pelo engano “do demônio” são considerados como pedras que poderiam constituir alguma sombra mínima de risco de obstáculo ou desagrado aos irmãos separados no caminho de união destes à verdadeira Igreja. Eis o teor da oração já modificada: “Oremos por todos os nosos irmãos e irmãs que crêem no Cristo, para que o Senhor nosso Deus se digne reunir e conservar na unidade da sua Igreja todos os que vivem segundo a verdade”. A segunda parte é modificada assim: “Deus todo-poderoso e eterno, que reúne os dispersos: olha para as ovelhas do teu rebanho; para que os que foram santificados por um só batismo sejam unidos pela integridade da fé e pelo vínculo da caridade da fé”.

Essa mudança de modo de se referir aos cristãos dissidentes, para não feri-los, é condenável? Parece que não. Dom Antônio Castro Mayer incentivando o uso da expressão “irmãos separados”, comenta: “O que devemos evitar – salvas as necessidades de uma justa e nobre polêmica imposta pelo interessa das almas – são as expressões que possam, de qualquer forma, magoar a nossos irmãos separados; isso ainda quando devamos suportar com paciência as consequências de uma vontade que a heresia ou o cisma tornaram mais especialmente ríspida conosco. Vale neste ponto o conselho de São Paulo: procura vencer o mal com o bem (cf. Rom. 12, 21)”.(Carta Pastoral, Considerações a propósito da aplicação dos Documentos promulgados pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, 19 de março de 1966)

Martin Jugie diz sobre as Igrejas ortodoxas: “Contudo, geralmente é acrescentado, na prática, para não ferir aos fiéis destas Igrejas e para facilitar-lhes desta maneira a volta à verdadeira Igreja poderá muito bem, sem detrimento à verdade, fazer-se uso das denominações mais benignas de Igrejas dissidentes, de Igrejas separadas” (Theologia dogmática christianorum orientalium ab Ecclesia dissidentium, Paris, 1926, t. I, p. 20).

Charles Journet acrescenta, após transcrever a citação anterior: “o mesmo se diga das Igrejas protestantes, de Igrejas heréticas ou de Igrejas cismáticas”. (Teologia de la Iglesia, ano 1962, Desclée de Brouwer, p. 381).

Isso também tem precedência na atitude da Santa Sé. Por exemplo, o Santo oficio aprovou uma fórmula de profissão de fé no lugar de abjuração para o convertido. Uma forma positiva, sem palavras duras, demonstrando tato psicológico:

“O S. O. deu provas não somente de caridade, mas também de tato psicológico ao aprovar em 1936 uma nova fórmula de entrada na Igreja para os protestantes convertidos, que não se chama abjuração, mas profissão de fé, e que não contém nenhum elemento negativo, nenhuma execração, mas somente uma afirmação pública da fé. Segundo Congar, em 1945 se aprovou uma fórmula na Inglaterra que não tem nenhum termo duro, e um decreto de 20 nov. 1946 permite que o usem os Bispos franceses; cf., JOMBART, Traité de Droit Canonique cit., n. 1144”. (T. García Barberena, Comentarios al Codigo de Derecho Canonico, v. IV, 1964, p. 456, nota 13).

A reforma da Semana Santa sob Pio XII (1955) modifica ao menos o título das referidas orações, mudando “Pro haeréticis et schismáticis” para “Pro unitate ecclesiae”.

Além disso, nessa reforma sob Pio XII determina-se que seja realizada a genuflexão no momento da oração pela conversão dos judeus, o que já ocorria nas demais orações.  Interpretava-se, anteriormente, que não se ajoelhar nesse momento tinha um sentido simbólico. Vejamos a explicação de Dom Guéranger nesse sentido: “Aqui [nesta oração] o diácono não convida os fiéis a se ajoelharem. A Igreja não hesita em fazer uma oração pelos descendentes dos algozes de Jesus; mas, ao fazê-lo, ela se abstém de fazer uma genuflexão, porque esse sinal de adoração foi transformado pelos judeus em um insulto a Nosso Senhor durante a Paixão. Ela ora por Seus escarnecedores; mas ela evita repetir o ato com que eles zombaram Dele.” (Dom Prosper Guéranger , OSB (2000). O ano litúrgico (PDF) . VI. Maré da Paixão e Semana Santa . Fitzwilliam, NH: Loreto Publications. p. 485). O Papa Pio XII, portanto, sacrificou esse simbolismo para não desgostar os judeus.

São João XXIII, por sua vez, retira a expressão “perfídia judaica”, que já não consta no Missal romano de 1962.

O Breve Exame Crítico do Novus Ordo Missae foi elaborado por um grupo seleto de bispos, teólogos, liturgistas e pastores de almas, e endossado pelos cardeais Ottaviani e Bacci, que concluíram que o estudo demonstra “de forma bastante clara que a Novus Ordo Missae – considerando-se os novos elementos amplamente suscetíveis a muitas interpretações diferentes que estão nela implícitos ou são tomados como certos – representa, tanto em seu todo como nos detalhes, um surpreendente afastamento da teologia católica da Missa tal qual formulada na sessão 22 do Concílio de Trento”.

Resposta: Esse argumento de autoridade é bastante exagerado. Segundo  o relato do Padre Guérard des Lauriers o texto foi elaborado por duas romanas, Vittoria Cristina Guerrini (escritora e poetisa), e sua amiga Emilia Pediconi,  bem como teve pouca cooperação dos eclesiásticos contactados, com exceção de um suposto liturgista que o padre não recorda o nome: “Era preciso preparar o documento que o Cardeal Ottaviani se reservou em revisar e se comprometeu a entregar ao Papa. As duas romanas, especialmente V.C. Guerrini, estiveram em contato com muitos eclesiásticos. Alguns, talvez cinco ou seis, atenderam ao chamado; mas eles trouxeram pouco mais que uma cooperação passiva para as poucas reuniões semanais. No entanto, o grupo deve muito a um liturgista extremamente distinto, um autor corajoso de artigos críticos que publicou na época em jornais romanos; Lamento ter esquecido o nome dele. Monsenhor Marcel Lefebvre nos encorajou, à distância; e até nos inflou de esperança: “Teremos seiscentos bispos signatários!” Infelizmente, ele nem estava lá”. (Avertissement de M. L. Guérard Des Lauriers, Bref examen critique du Nouvel Ordo Missae, Breve esame critico del “Novus Ordo Missae” (juin 1969), Editions Sainte Jeanne d’Arc de Villegenon, 1983). O padre Guérard Des Lauriers também refere que ele próprio trouxe uma “colaboração decidida para a elaboração do Breve Esame Critico”. (Itinéraires n°146, 1970).

É passado por alto, por outro lado, que o cardeal Siri se recusou a assinar o referido estudo crítico (cf. Yves Chiron, Storia della Chiesa, 1995, p. 462).

O endosso do cardeal Ottaviani ao Exame Crítico foi incoerente com sua atuação como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, onde trabalhou até 08 de janeiro de 1968. O cardeal Ottaviani aprovou as três novas Orações Eucarísticas e os nove novos prefácios (cf. Annibale Bugnini, Ibid., p. 397). Além disso, algumas fórmulas foram até adotadas precisamente a seu pedido, em especial as fórmulas escatológicas e aquelas relativas à liturgia dos defuntos (na Oração Eucarística III). Portanto, contestá-las foi contestar a sua própria autoridade.

Também é omitido que o cardeal Ottaviani se retratou pouco depois. Após o padre Gérard Lafond enviar a sua Nota Doutrinária sobre o Novo Ordo, onde defendia a sua ortodoxia e se combatia argumentos do Breve Exame Crítico, o cardeal Ottaviani respondeu o referido padre, em 17 de fevereiro de 1970, endossando o seu estudo: “Parabenizo-o pelo seu trabalho, que é notável por sua objetividade e pela dignidade de sua expressão (…) Desejo à sua nota doutrinária e à atividade da Milícia S. Mariae uma ampla distribuição e sucesso” (veja-se aqui). Portanto, utilizar a autoridade do cardeal Ottaviani sem mencionar a sua retratação é desonesto.

Paulo VI admitiu a justeza de, pelo menos, parte do Breve Exame Crítico, pois determinou certas mudanças na redação da Institutio generalis Missalis romani, especialmento quanto ao número 7 do documento em que se definia a Santa Missa.

Resposta: Essa narrativa não é verdadeira. Está baseada tão somente pelo fato de que houve certas mudanças na Institutio. No entanto, isso não é uma uma demonstração de que houve a admissão de que aquele documento continha erros. Na realidade, poderia ser suficiente para explicar as mudanças se estas foram realizadas para uma melhor aceitação do Novo Missal pelos críticos ou que a polêmica suscitou a possibilidade de uma revisão estilística e de linguagem do documento (sem necessariamente conceder uma correção doutrinal).

Isso pode ser confirmado pela Declaração da Congregação do culto divino sobre a matéria em 19 de novembro de 1969, onde argumenta que “a Instrução não deve ser vista como um documento doutrinal, isto é dogmático. Em vez disso, é uma instrução pastoral e ritual”. (N. 5 (1969) 417-418). Além disso, previa que a Sé Apostólica haveria de ver “qualquer clarificação de linguagem que possa ser necessária para um melhor entendimento pastoral e catequético e para melhorar as rubricas”. Portanto, não havia qualquer admissão de erro e se argumentou contra essa acusação.

Após as devidas mudanças, a mesma Congregação, em maio de 1970, refere que a “revisão da Instrução Geral antes e depois de sua publicação pelos Padres e periti do Consilium não encontrou razão para mudar a disposição do material ou qualquer erro na doutrina” (N. 6 (1970) 177-190). E ainda: “as emendas são de fato poucas e as vezes bastante pequenas ou meramente estilísticas”.

Além disso, na audiência do dia 14 de fevereiro de 1970 com Mons. Bugnini, o Papa São Paulo VI pedia uma melhora estilística do n. 7 (cf. Annibale Bugnini, Ibid., p. 344).

A resposta que São Paulo VI recebeu da S. Congregação para a Doutrina da Fé sobre a matéria também é digna de destaque. São Paulo VI, em 22 de outubro de 1969, determinou que a S. Congregação para a Doutrina da Fé analisasse “se as críticas em questão exigem uma revisão destes importantes textos litúrgicos” (cf. Carta da S. Congregação para a Doutrina da Fé, de 25 de outubro de 1969, Prot. N. 2747/69). O cardeal Seper, no dia 12 de novembro de 1969, depois da análise feita por um grupo de teólogos da Congregação para a Doutrina da Fé escreveu à Secretaria de Estado do Vaticano sobre o assunto: “O opúsculo ‘Breve análise…’ contém muitas afirmações superficiais, exageradas, inexatas, apaixonadas e falsas”.

O Breve Exame Crítico demonstra uma série de erros doutrinários da Institutio generalis Missalis romani (Instrução geral do Missal Romano). Entre esses erros podemos listar: (1) uma nova definição de Missa como uma “assembleia”, em vez de um sacrifício oferecido a Deus; (2)  a indicação que a Missa é um “memorial do Senhor”, em vez de um sacrifício oferecido a Deus; (3) o erro da frase que na Instrução descreve a Missa como “o memorial da Paixão e Ressurreição”; (4) a indicação de que a Missa representa a Última Ceia, ao invés da renovação do Sacrifício da Cruz; (5) omissões de elementos que enfatizam o ensinamento católico do fim propiciatório da Santa Missa; (6) a redução do papel do sacerdote a um simples presidente; (7) negação implícita da Presença Real de Cristo e da doutrina da transubstanciação, uma vez que esta palavra não aparece uma única vez no documento e a presença de Cristo é debilitada pelas presenças “reais” fabricadas na Instrução, “no povo reunido e na Escritura”.

Resposta: Grande parte das críticas do Breve Exame Crítico analisa a suposta heterodoxia da Institutio em razão de omissões (por exemplo ausência da palavra transubstanciação e da indicação da doutrina do fim propiciatório da Missa) e ênfase excessiva sobre um ou outro ponto em suposto detrimento de alguma doutrina tradicional (por exemplo a expressão “memorial”, “Ceia do Senhor”, “Participação do povo” e outras “presenças reais”). Nesse sentido o Breve Exame Crítico diz: “Todas estas expressões são aceitáveis quando usadas relativamente, mas quando usadas separadamente e de forma absoluta, como o são aqui, elas devem ser completamente rejeitadas”.

Um dos equívocos dessas críticas é não considerar o objetivo e a forma literária da Institutio. O antigo Missal era regulado por uma série de documentos para a celebração da Santa Missa, entre eles os Ritus servandus, Código de Rubricas e o Tratado De Defectibus. No Novo Ordo, a Instrução substitui as rubricas, os ritos da Missa e o Tractatus de Defectibus.

Isso foi dito explicitamente pela Congregação dos Ritos em 06 de abril de 1969:

 “Junto do Ordinário da Missa, publica-se também a Instrução Geral do Missal Romano, que doravante ocupará o lugar dos tratados “Rubricas gerais”, “Rito a se observar na celebração e concelebração da Missa” e “Das falhas que ocorrem na celebração da Missa”, os quais atualmente encontram-se no início do Missal Romano.

A Notitiae, publicação oficial do Consilium, sobre a matéria disse:

“A Institutio generalis a ser apresentada ao Missal Romano pretende ser um guia, o mais completo possível, tanto para o sacerdote como para os fiéis, para o uso da própria Missa, em espírito tanto pastoral como de rubrica”. (Notitiae 46, 1969, p. 150).(Notitiae 46, 1969, p. 150).

Portanto, o seu objetivo e sua forma literária é, antes de tudo, ritual e rubrical (Para uma pesquisa mais profunda sobre a Instrução e de sua finalidade ler Pierre Jounel: Le Missel de Paul VI, La Maison-Dieu, 1970, pp. 16-45). Não sendo um documento eminentemente doutrinal (embora tais aspectos não devam ser excluídos, mas visando de modo pastoral aqueles outros pontos de vista), as técnicas de interpretação não podem ser as mesmas, assim como não devemos interpretar uma homilia com as mesmas regras de interpretação do que aplicamos a um tratado dogmático. Isso explica a forma mais descritiva do documento e não definitória ao falar da Santa Missa. Seu objetivo pastoral implica que se queira descrever a estrutura da Santa Missa a partir da missa com o povo, e não da missa “privada”, como era o Ritus servandus de São Pio V.

Assim, por exemplo, o Código de Rubricas de 1960 descreve a noção do Sacrifício da Santa Missa como “um ato de culto público rendido a Deus em nome de Cristo e da Igreja”. Descrição que está longe de ser a definição ontológica que encontramos em manuais de teologia.

No Ritus Servandus sequer se utiliza a palavra sacrifício. O Tratado De Defectibus utiliza a palavra sacrifício uma única vez.

Os aspectos doutrinais existem, sem dúvida, mas preocupados antes de tudo em ilustrar e guiar os sacerdotes e fiéis sobre cada elemento e ação na celebração da Santa Missa:

“O Insituttio é um Documento com uma estrutura linear e clara, inspirado pelo princípio pastoral, que se preocupa mais em ilustrar e guiar que apresentar toda uma série de normas taxativas”. (Notitiae 46, 1969, p. 158)

E assim podemos explicar a descrição da Santa Missa contida no número 7. Eis o teor desse número: “A Ceia do Senhor ou Missa é a sagrada sinaxe ou assembleia do Povo de Deus que se congrega, presidida pelo sacerdote, para celebrar o memorial do Senhor”.

Os pressupostos sobre a finalidade e forma literária já estabelecidos e o entendimento que mesmo em aspectos doutrinais o documento visam, com espírito pastoral, ilustrar e guiar os sacerdotes e fiéis sobre os diversos ritos e elementos da estrutura da celebração da Santa Missa dão conta de resolver a questão. E foi essa a resposta do grande liturgista Cipriano Vaggagini aos críticos sobre essa passagem:

“Ora o ponto de vista da Institutio, quando no n. 7 propõe a incriminada “definição”, está expresso com toda a clareza no próprio título que em negrito o versalete domina esse número: “De structura Missae eiusque elementis et partibus”, que vale para todo capitulo II: “De generali structura missae”, e vale exatamente os números 7 e 8. Fala-se portanto de structura, elementis, partibus, não de essentia nem definitio. Dirão talvez nossos teólogos: mas o que significa structura, quando se fala de Missa? Ninguém precisa ser onisciente. Mas um teólogo – tanto mais quando se arvora em grande inquisidor da fé – deve ter cautela antes de pronunciar-se e, eventualmente, a humidade em reconhecer a própria ignorância para compreender expressões e textos, como também o esforço leal para compreender uma expressão a partir do contexto em que se encontra.

De que estrutura se trata no n. 7 a propósito da Missa? Da ontológica, como quando, em boa escolástica, dizemos por exemplo que o homem é um animal racional? Evidentemente que não. Para tanto o Ordo Missae teria usado a expressão: de essentia, ou definitione Missae. Simplesmente se trata da estrutura global litúrgico-ritual da Missa, de sua morfologia litúrgica, de sua fenomenologia litúrgico-pastoral. A estrutura morfológica da Missa em seu conjunto (De generali structura Missae), eis pois o que o n.7 da Institutio quer frisar para depois poder compreender as regras litúrgico-pastorais que devem guiar uma boa (do ponto de vista litúrgico-pastoral) celebração da Missa, que é afinal o objetivo expresso de toda Institutio (n. 6)”. (O Novo Ordo Missae e a Ortodoxia. Revista Eclesiástica Brasileira, março de 1970, pp. 93-101).

E o teólogo segue:

“Essa estrutura morfológica da Missa não pode ser idealmente deduzida da celebração da Missa chamada privada, sem participação do povo; pois esta, do ponto de vista ritual, é uma forma de celebração menos perfeita. É lógico que a partir da “Missa privada” não se podem proceder normas de uma boa celebração litúrgico-pastoral da Missa em geral. Embora, como é óbvio e como observa explicitamente a Institutio no n. 4, do ponto de vista teológico e ontológico também “a Missa (privada) sempre conserva a sua eficácia e dignidade, uma vez que é ação de Cristo e da Igreja, em que o sacerdote sempre age pela salvação do povo”. Para compreender deveras a estrutura morfológica geral da Missa é preciso, portanto, partir da Missa em que participa o povo em assembleia normal. Portanto, para exprimir “a estrutura geral da Missa” (título do n.7) é perfeitamente correto e até necessário dizer: “A Missa é a sagrada sinaxe ou assembleia do Povo de Deus que se congrega, presidida pelo sacerdote, para celebrar o memorial do Senhor”. (O Novo Ordo Missae e a Ortodoxia. Revista Eclesiástica Brasileira, março de 1970, pp. 93-101).

Tendo isso em conta, a expressão Ceia do Senhor é preferida muito provavelmente porque remete ao simbolismo comunitário, sendo o convite ao banquete a parte da forma fundamental (estrutura exterior litúrgica-sacramental) que aparece, quase exclusivamente, a qualquer observador, como explica Jungmann (cf. La gran Prière Eucharistique. Les idées fondamentales du Canon de la Messe, Paris 1955).

Não é possível ignorar que a Santa Missa também é chamada de Ceia pela teologia e pelo Magistério. O Frei Benvindo Destéfani a chama assim:

“Renovação misteriosa da última ceia e do sacrifício da cruz, a missa constituiu a delícia dos santos durante sua peregrinação terrestre”. (O Santo Sacramento da Eucaristia: Sucintamente Explicado aos Fiéis, 1940).

Pio XII mesmo chama a Santa Missa de ceia: “No coração da liturgia é onde se desenvolve a celebração da eucaristia, sacrifício e banquete”. (Discurso da clausura do I Congresso Internacional de Liturgia Pastoral, Assis-Roma, 1956).

E ainda:

“sob a condição de se ter confessado e de ter participado à Ceia Eucarística”. (Decreto da Sagrada Penintenciária concernente as indulgências, 11 de outubro de 1954).

A palavra “presidente” significa “estar à frente”, “ter à direção”, sendo perfeitamente adequado dizer que a assembleia do Povo de Deus é presidida pelo sacerdote para explicar que a forma da assembleia celebrar o Memorial do Senhor é realizada pelo sacerdote in persona Christi em nome do Povo, isto é o que significa ser presidente. Nesse sentido:

“as orações dirigidas a Deus pelo sacerdote que preside, em nome de Cristo, à assembleia, são ditas em nome de todo o Povo santo e de todos os que estão presentes”. (Sacrossanctum concilium, 33).

Nesse sentido se pode dizer que a congregação celebra o Memorial do Senhor, pois “os fiéis oferecem o sacrifício por meio do sacerdote, é claro, pois o ministro do altar age na pessoa de Cristo enquanto Cabeça, que oferece em nome de todos os membros; pelo que, em bom direito, se diz que toda a Igreja, por meio de Cristo, realiza a oblação da vítima”. (Mediator Dei, 83).

É por isso que a Igreja sempre utilizou essa expressão e a julgou adequada, como Pio XII que fala em “presidende da assembléia”. (Mediator Dei, 18). Além disso: “O Sacerdote celebrante preside todo o ato litúrgico”. (S. Congregação dos Ritos, Instrução sobre a Música Sacra e a Sagrada Liturgia, 1958, p. 93)

A crítica também ignora que o número 7 fala que é um sacerdote que preside. Ora, o sacerdócio é ordenado principalmente para o sacrifício. Sacerdote em latim é sacerdos, derivado de “sacra dans”, isto é, aquele que dá as coisas sagradas. Nesse sentido, lemos em Hebreus 5,1 que “todo sumo sacerdote é escolhido entre os homens e constituído em favor dos homens como mediador nas coisas que dizem respeito a Deus, para oferecer dons e sacrifícios pelos pecados”. Com efeito, o Pontifical Romano diz que “ao sacerdote lhe corresponde oferecer, benzer, presidir, pregar e batizar”.

Quanto ao uso “Memorial do Senhor”podemos responder, tanto com o Padre Garrigou-Lagrange, quanto com Santo Tomás, que a imolação da vítima, na Santa Missa, é um sinal da oblação interior de Jesus, à qual devemos juntar-nos, sendo também um memorial ou lembrança da imolação sangrente do Calvário (cf. Pe. Garrigou-Lagrange, As Três Idades da Vida Interior, tomo I, cultor de livros, p. 493; tomo II, p. 878). Santo Tomás fala disso em termos explícitos e mostra que é um conceito essencial:  “Este sacramento foi instituído na ceia, a fim de ser no futuro o memorial da paixão do Senhor depois de ela consumada. (III, 73, art. 5, ad 3). E, além disso: “Este sacramento se chama sacrifício, enquanto representa a paixão mesma de Cristo… é a memória da Paixão do Senhor, que foi um verdadeiro sacrifício” (III, q. 73, 4, 3)

Em termos rituais, que é o que sobretudo visa a descrição doutrinal da Santa Missa no número 7, essa expressão tem importância porque implica que é por meio de símbolos distintivos que se significa e demonstra que Jesus se encontra em estado de vítima no altar: “o memorial da sua morte real sobre o Calvário repete-se sempre no sacrifício do altar, porque, por meio de símbolos distintos, se significa e demonstra que Jesus Cristo se encontra em estado de vítima” (Pio XII, Mediator Dei).

Não havendo efusão de sangue na Santa Missa, o modo que torna manifesto o sacrifício de nosso Redentor é através de sinais exteriores que são símbolos de morte. É por isso que São Paulo VI disse na Mysterium Fidei: “no Mistério Eucarístico é representado de modo admirável o Sacrifício da Cruz, consumado uma vez para sempre no Calvário”. E  ainda: “O Senhor imola-se de modo incruento no Sacrifício da Missa, que representa o Sacrifício da Cruz e lhe aplica a eficácia salutar”.

É um erro, por outro lado, entender que a palavra “Memorial” significa apenas lembrança subjetiva, quando em seu sentido católico indica também uma realidade objetiva, destinada a perpetuar a “virtude” do Sacrifício da Cruz. Nesse sentido Louis Bouyer:

“devemos dar a esta palavra (memorial) o sentido que sempre teve na literatura rabínica e sobretudo litúrgica da época. Não significa de forma alguma um ato psicológico, subjetivo, humano de retorno ao passado, mas uma realidade objetiva, destinada a tornar algo ou alguém perpetuamente atual diante de Deus, para o próprio Deus. Este conceito de “memorial” está enraizado na Bíblia. O memorial não é apenas um elemento ritual essencial de certos sacrifícios, mas o que dá o sentido final de qualquer sacrifício, e o da Páscoa eminentemente. É uma instituição, pode-se dizer, estabelecida por Deus, dada e imposta por Ele ao seu povo, para perpetuar para sempre suas intervenções salvíficas. O memorial não só assegurará subjetivamente aos fiéis sua eficácia permanente, mas antes de tudo garantirá isso, como por um compromisso de que eles podem e devem representar a ele, uma página de sua própria fidelidade” (Echaristie, théologie et spiwisnalité de la prière eucharistique, Paris-Toutnai, 1968, p. 107).

A Eucaristia, assim, perpetua, em seu objeto imediato, um ato de Cristo definitivamente passado, mas cuja virtude ainda opera. Essa forma de descrever a Santa Missa tem a seu favor esclarecer que a Missa não é um sacrifício absoluto, mas relativo, ou seja, dependente e relativo ao Sacrifício da Cruz, como explica Hervé:

A Missa não é sacrifício absoluto, como o é o sacrifício da Cruz; é, antes, um sacrifício que depende inteiramente do sacrifício da Cruz e que a este essencialmente se refere, na medida em que é sua representação viva e objetiva e, ao mesmo tempo, é celebrado em sua memória. O sacrifício da Missa não se constitui apenas por tal referência à Cruz, mas tal referência pertence-lhe à essência de tal modo que, sem a Cruz, não seria verdadeira e propriamente aquele sacrifício que Cristo instituiu”. (Theol. Dogm., v. 4, n. 104, Parisiis, 1937, p. 117).

A Santa Missa também é Memorial da Ressurreição e Ascenção de Nosso Senhor. Sobre isso, a oração Suscipe, sancta Trinitas do antigo Ofertório diz: “Recebei, ó Trindade Santíssima, esta oblação, que vos oferecemos em memória da Paixão, Ressurreição e Ascensão de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Não se pode ter dúvida que o grande tema da prece eucarística e da anamnese sempre foi a paixão, ressurreição e a ascenção do Senhor, o grande tema escatológico Pacoal e dominical, como explica Jungmann (cf. La gran Prière Eucharistique. Les idées fondamentales du Canon de la Messe, Paris 1955). Em termos rituais é óbvio que toda essa dimensão é importante ao retratar a Santa Missa. Não à toa, Doronzo explica que a commixtio das espécies represente a ressurreição de Nosso Senhor (cf. Tractatus dogmaticus De Eucharistia, tom. II, De Sacrificio, 1948, p. 953).

Há de se fazer uma leitura contextualizada da Institutio para reparar se há outros pontos que dão luzes para cada expressão utilizada em uma ou outra passagem.

O número 2 do capítulo 1 do documento, por exemplo, expressa que o sacrifício eucarístico do Corpo e Sangue de Cristo faz parte do Memorial do Senhor: “É por isso de máxima conveniência ordenar a celebração da Missa, ou Ceia do Senhor, de tal forma que os ministros e os fiéis, dela participando cada um conforme sua condição, recebam com plenitude aqueles frutos que o Cristo Senhor quis prodigalizar, instituindo o sacrifício eucarístico de seu Corpo e Sangue e confiando-o à sua dileta esposa, a Igreja, como memorial de sua paixão e ressurreição”. Essa forma de expressar não encontra qualquer ambiguidade, não podendo de modo algum ser interpretado em sentido protestante.

O número 10 do capítulo 2 do documento fala em “sacerdote, que preside à assembleia em nome de Cristo”.

O número 13 do mesmo capítulo diz: “o sacerdote não somente pronuncia as orações como presidente de toda comunidade, mas, por vezes, também o faz em nome pessoal para despertar maior atenção e piedade no exercício do seu ministério. Estas orações, propostas para antes da leitura do Evangelho, na preparação dos dons, e antes e depois da comunhão do sacerdote, são ditas em silêncio (“secreto”)”.

O número 55 do capítulo II manifesta o fim propiciatório da Missa: “79.- g) Intercessões: pelas quais exprimem que a Eucaristia se celebra em comunhão com toda a Igreja, celeste e terrena, e que a oblação se faz por ela e por todos os fiéis, vivos e defuntos, membros que são chamados a participar da salvação e redenção adquiridas pelo Corpo e Sangue de Cristo”.

O número 355 do capítulo VIII também é claro sobre a matéria: “A Igreja oferece pelos defuntos o sacrifício eucarístico da Páscoa de Cristo, a fim de que, pela mútua comunhão entre todos os membros do Corpo de Cristo, se alcance para uns o auxílio espiritual e para outros consolação e esperança”.

– O Ofertório do Novo Ordo modifica substancialmente o Ofertório do Rito Romano, tirando toda conotação de oblação do sacrifício propiciatório, que estava presente nas orações Suscipe Sante Pater e Offerimus Tibi, entre outras. O Ofertório, assim, deixa de ser sacrifical. O Ofertório do Novo Ordo retrata apenas a preparação dos dons, pão e vinho, “fruto da terra e do trabalho humano”. Ora, para existir um sacrifício em sentido verdadeiro e próprio é necessário a existência não apenas de imolação, mas também de oblação da vítima. A dimensão oblativa do sacrifício da Missa é significada pelo ofertório, o que desapareceu no Novo Ordo.

Resposta: Inicialmente, negamos a premissa que a menção da noção oblativa e propiciatória tenha desaparecido completamente no Ofertório do Novo ordo. Essa menção está presente nas Orações sobre as oblatas e também no Orate fratres. É verdade que o Consilium quis tirar do Ofertório qualquer noção de sacrifício antecipado. Nesse sentido a publicação Notitiae:

“As orações antigas… não eram expressões exatas do significado genuíno dos ritos do Ofertório, mas meramente antecipavam o significado da verdadeira e literal oferenda sacrifical, que está na Oração Eucarística…” (Notitiae 6, 1970, 37-38).

Mas não há qualquer contradição entre uma coisa e outra. Com efeito, deve-se acrescentar  também que, segundo explica o Padre Roguet (membro do Consilium), esta “preparação dos dons já se abre sobre uma perspectiva sacrificial”. (A Missa de Hoje a Mesa de Todos, edições Loyola, 1972, p. 92).

Nesse sentido, o Papa São Paulo VI fez acrescentar a expressão “quem (quod) tibi offerimus”, que revela a destinação dos dons à eucaristia (cf. Annibale Bugnini, Ibid., p. 325). O Padre Roguet também diz sobre a oração sobre as oblatas: “Não foi sem intenção que acabamos de empregar esta palavra – ofertório – evitada até aqui. Com efeito, é a missão própria da oração sobre as oferendas, fazer-nos passar de uma simples apresentação do pão e do vinho a sua oferenda na perspectiva, agora explícita e próxima, do sacrifício eucarístico”. (A Missa de Hoje a Mesa de Todos, edições Loyola, 1972, p. 97). O pão e o vinho são oferecidos na Santa Missa como matéria do sacrifício futuro, portanto, está intrinsecamente ordenado ao sacrifício futuro.

As preces constantes no Ofertório do Ordo de São Pio VI são fruto de um desenvolvimento que tem sua história e pré-história a partir do século XII, ou mesmo XIII (Dom Guy Oury, La Messe de S. Pie V à Paul VI, Solesmes, 1975, p. 85). Antes disso, o que se tinha no Rito Romano eram a Orações sobre as oblatas, mantidas também no Ofertório do Novo Ordo.

Também negamos a premissa de que a oblação necessária para existência do sacrifício da Santa Missa esteja presente no Ofertório. Nesse sentido, D. Gregório Alastruey defende que o Ofertório não foi instituído por Cristo, tampouco esteve presente no uso da Igreja antiga: “A Sagrada Escritura não indica que Cristo na instituição do sacrifício eucarístico fizera tal oblação, nem consta que estivera em uso antigamente na Igreja (nota 73: Card. BONA, Rer. liturg., 1. II, c. 9.)” (D. Gregorio Alastruey, Tratado da Santíssima Eucaristia, ano 1952, p. 318).

Ademais, o liturgista D. Gregorio Alastruey explica que essa oblação pertence à preparação do sacrifício e não ao próprio sacrifício: “c) Na missa, depois da oblação do pão e do vinho se recita esta oração: Vinde, santificador onipotente, eterno Deus, e abençoai este sacrifício preparado para o vosso santo nome. Palavras que indicam bastante pertencer essa oblação à preparação do sacrifício, não ao próprio sacrifício” (D. Gregorio Alastruey, Tratado da Santíssima Eucaristia, ano 1952, p. 318)

Doronzo também refere que no Ofertório não há oblação da vítima, mas meramente do pão do vinho: “Nem é a oferta da vítima, ou da coisa oferecida em sacrifício, a saber, do corpo de Cristo, mas de pão e vinho meramente”. (Tractatus dogmaticus De Eucharistia, tom. II, De Sacrificio, 1948, p. 949). Doronzo também diz que o Ofertório não foi instituído por Cristo por Cristo: “Não é a instituição de Cristo, mas da Igreja, e de fato não muito antigo”. (Ibid). Ademais, Doronzo também argumenta que o Ofertório pode ser omitido ou substituído pela oferta mental sem que invalide a Missa: “Potest omitti, seu suppleri oblatione “mente concepta”, ubi post Offertorium materiae invalidae alia apponitur (cf. Rubricas Missalis, De defectibus, III et IV). (Ibid).

“A explicação adicional do ATO SACRIFICAL difere de acordo com as teorias sustentadas sobre a essência do sacrifício. NINGUÉM O COLOCOU NO OFERTÓRIO, PORQUE ALI SÃO OFERECIDOS O PÃO E O VINHO, e NÃO O CORPO E O SANGUE DE CRISTO; e o ofertante é o sacerdote (com a congregação), não Cristo, que só é apresentado com as palavras de consagração. Pão e vinho são de fato chamados oblações, mas apenas como matéria preparada no ofertório para a transformação sacrificial no cânon”. http://www.strobertbellarmine.net/wilhelm_scannell_2_8.html

Concordamos com a afirmação de que para um sacrifício verdadeiro e próprio é necessária a oblação, mas esta está presente no momento em que se imola a vítima, sem necessidade de palavras que a expressem. Nesse sentido, o teólogo D. Gregorio Alastruey depois de explicar no que consiste a consagração (imolação mística de Cristo e “ao mesmo tempo oblação ritual feita por Cristo sacerdote principal por ministérios dos sacerdotes visíveis”, in p. 332) desenvolve sobre [com as letras “a” e “b”] o que seria a imolação de Cristo e depois o que seria a oblação sacrifical. Na letra b, que se refere a oblação, diz:

“Não é, contudo, necessário que a oblação seja verbal ou expressa signata, mas basta que seja exercita, isto é, efetuada e praticada pela própria imolação da vítima” (Ibid., p. 333). Em em página anterior explicava: “Assim como para que haja verdadeira doação não é necessário que o doador manifeste com palavras expressas, signate, que quer doar a coisa, mas que basta que o faça exercite, isto é, que de fato a doe, assim também a doação ou oblação, o que realmente oferece algo a Deus de fato demonstra, ainda que sem palavras, que quer oferecê-lo.” (Ibid., 318).

Essa doutrina é defendida por São Roberto Bellarmino, que diz:

“Pôr a vítima no altar é realmente oferecê-la a Deus; e como em virtude da consagração o corpo e o sangue de Cristo começam a estar realmente no altar, por ministério do sacerdote; por isso, com as palavras da consagração se celebra verdadeira e solene oblação ” (De Missa, I, 27).

E ainda diz o Doutor da Igreja:

“Pois a oblação vocal, como mostramos acima, não é necessária para um sacrifício; basta que se demonstre a Deus que oferece algo que realmente oferece. E embora alguma oblação requeira necessariamente a essência do sacrifício, ainda assim não é necessário que ela preceda a imolação” (De Missa I, cap. XXVII). Também ensina o Papa Pio XII: “Ao pôr sobre o altar a Vítima divina, o sacerdote a oferece ao Pai como oblação para glória da Santíssima Trindade e para bem de todas as almas” (Mediator Dei, 20 de nov. 1947)

Embora não seja o objeto da objeção, São Roberto Bellarmino defendia que a oblação do pão e do vinho (não do Corpo e Sangue de Cristo) pertence à integridade do Sacrifício da Missa. Sua tese é que embora “o Senhor não tenha oferecido pão a ser consagrado nessas palavras, da maneira pela qual o oferecemos, no entanto, ele ofereceu de alguma forma… e isso é recolhido das cerimônias de levantar os olhos para o céu e agradecer”. (De Missa I, cap. XXVII).

As expressões das orações do Ofertório do Novo Ordo indicam que o pão oferecido é “fruto da terra e do trabalho humano” e o vinho “fruto da videira e do trabalho humano”, sendo originárias das ideias modernistas do jesuíta Pierre Teilhard de Chardin ou do humanismo integral do filósofo Jacques Maritain.

Resposta: Essa objeção é bastante tola. Desde a antiguidade essa noção do Ofertório esteve presente na Igreja. Oferecemos a Deus o que Ele mesmo nos deu, fruto da terra e do trabalho humano.

Nesse sentido Santo Irineu: “Esta oblação, só a Igreja a oferece, pura, ao Criador, oferecendo-lhe com ação de graças o que provém de sua criação”. (Ad haer. 4, 18, 4).

Encontramos no Sacramentário Leonino explicitamente essa noção: “Santificai, nós Vos rogamos, Senhor, aquilo que dos frutos da terra mandastes consagrar ao Vosso Nome, de modo que torneis agradável a Vós mesmo nosso serviço e estabeleçais para nós o sacramento da nossa eterna salvação: por Cristo Nosso Senhor”. (443); “Ó Deus, que, não necessitando de dádiva alguma, nos dispensais todas as dádivas: recebei, propício, o que, daquilo que nos destes, quisestes que Vos oferecêssemos, não atribuindo apenas à nossa devoção aquilo que é Vosso, mas também, por meio destas ofertas, conduzindo-nos ao Reino dos Céus: por”. (551).

Também encontramos orações similares no Sacramentário Gelasiano: “Nós oferecemos a você, ó Senhor, estes dons que você mesmo concedeu; que eles atestem seu cuidado como Criador desta nossa vida mortal, e efetuem em nós a cura que nos traz a imortalidade. Por. (251)

Essa ideia se encontra inclusive no Canon romano, no seguinte trecho: “oferecemos à vossa preclara Majestade, dos dons de que Vós próprio nos fizestes mercê (de tuis donis ac datis), a hóstia pura, hóstia santa, hóstia imaculada, o pão santo da vida eterna e o cálix da eterna salvação”. Explica o Padre Cipriano Vaggagini essa passagem: “De tuis donis ac datis. Esta ideia é de origem bíblica: “tudo vem de ti, e o que temos te dado é o que já recebemos das tuas mãos” (1 Cr 29,14). Nas anáforas gregas, a fórmula ta se ektônsôn é frequentemente encontrada neste ponto da anamnese, por exemplo, as anáforas bizantinas de São Basílio e de São João Crisóstomo; as anáforas gregas e coptas alexandrinas de São Basílio; e a anáfora grega de São Marcos, preservada para nós na anáfora copta de São Cirilo. O significado da fórmula é este. O pão e o vinho são tomados como um símbolo e, por assim dizer, uma amostra de tudo o que o criador nos deu, e que agora estamos oferecendo espontaneamente de volta a ele em reconhecimento grato de sua bondade e de seu domínio soberano”. (The Canon of the Mass and liturgical reform, 1967).

A festa de S. José Operário, instituída por Pio XII apresenta a seguinte secreta: “Fazei, Senhor, que estas ofertas que Vos ofertamos, saídas do trabalho de nossas mãos, pela intercessão do bem-aventurado José, tornem-se penhor de unidade e paz: por NSJC” (Secreta, Forma extraordinária 1° de maio).

O Frei Benvindo Destéfan também retrata a matéria: “Na primeira parte principal da missa, o ofertório, apresenta-se o pão e o vinho, que hão de servir para a consagração. O pão é símbolo do trabalho e do suor da fronte humana. O vinho, o bago de uva espremido no lagar, é imagem da dor. Em espírito, os fiéis levarão ao altar o trabalho, representado no pão; a dor, representada no vinho. Oferecerão pão e vinho: trabalho e sofrimento, o conteúdo principal da vida humana”. (O Santo Sacramento da Eucaristia: Sucintamente Explicado aos Fiéis, 1ª edição 1940, Vozes).

Também Jungmann: “Não somente os elementos criados – como são o pão e o vinho -, mas também o trabalho do homem que os transforma e a vida terrena que eles sustentam: tudo isso se sobrenaturaliza e se consagra a Deus ao fazer oferenda desses dons materiais junto ao altar” (Jungmann, O culto divino da Igreja, 1959, originalmente em 1955 – Der Gottesdienst Kirche) “O pão e o vinho não são simplesmente coisas da terra, são também o fruto do trabalho humano; símbolo infinitamente concreto do trabalho e do alimento do homem. Desta maneira, a totalidade de nossa vida, sua miséria e sua angústia, se une a nossa oferenda”. (Das Eucharistische Hochgebet, 1954)

Pius Parsch: “2. O pão é a imagem do nosso trabalho (…) No pão e no vinho trazemos toda a nossa vida, todo o nosso ser. …. 4. Está contido no Ofertório um símbolo muito bonito: o cristão trouxe o pão e o vinho ao altar e, na comunhão, vem para levar de volta o mesmo pão e o mesmo vinho, mas divinizados, quando se tornaram o corpo e o sangue de Cristo”. (La sainte Messe expliquée dans son histoire et sa liturgie, Bruges, Beyaert, 1945, p. 255).

D. Beda Keckeisen: “Além de serem matéria para a consagração do pão e do vinho, que os fiéis recebiam novamente na Santa Comunhão, constituem ainda símbolos do nosso trabalho e dos nossos sofrimentos”. (Missal Quotidiano, 1958, p. 15).

Também Dom Fulton Sheen sobre a matéria: “Por que nosso abençoado Senhor usou pão e vinho como símbolos de nosso ofertório? Primeiro, para significar nossa unidade uns com os outros e nEle, no Corpo Místico de Cristo. Assim como uma unidade de grãos de trigo faz o pão, e assim como o vinho é feito de muitas uvas, nós, que somos muitos, somos um em Cristo. Outra razão é que talvez não existam duas substâncias na natureza que tradicionalmente tenham nutrido tanto o homem como o pão e o vinho. O pão é a medula da terra; vinho, é muito sangue. Ao trazer pão e vinho, estamos trazendo as substâncias que mais nos nutriram, nos deram vida. Estamos equivalentemente oferecendo nossas vidas no altar. Trigo e uvas têm que sofrer muito para se tornarem pão e vinho. O trigo tem que passar por um inverno, e então tem que ser submetido a um moinho e ao fogo antes que o trigo possa se tornar pão. As uvas têm que passar pelo Getsêmani de um lagar antes de se tornarem vinho. Nós que nos oferecemos a Cristo estamos destinados ao sacrifício. Tomemos da natureza aquelas substâncias que nos deram vida, mas indicam em seu ser a necessidade de sacrifício e sofrimento para nos unirmos ao próprio Cristo. No momento do Ofertório da Missa, não somos espectadores passivos como no teatro. Seremos atores em um grande drama. Estamos de pé sobre a patena que o padre está oferecendo. Estamos no cálice, participantes; somos co-ofertas a Cristo, por Ele ao Pai celestial”. (Your Life is Worth Living: The Christian Philosopgy of Life, 2014).

É ignorar o mínimo do assunto passar por alto que as referidas preces se inspiraram na liturgia judaica das refeições, sobretudo das refeições solenes das confrarias e da ceia pascal (cf. Jungmann, The Mass : an historical, theological, and pastoral survey, Liturgical Press, 1976, p. 190):

“Bendito sejais, ó Eterno, Nosso Deus,

Rei do Universo,

Criador dos frutos da terra.

Bendito sejais vós, ó Eterno, Nosso Deus,

Rei do Universo,

Criador do fruto da videira”.

O padre Adrian Fortescue se pergunta se quando a Escritura diz que Jesus abençoou o pão e vinho não indicaria que Jesus utilizou fórmulas similares:

“Esta refeição é um culto religioso; seu ritual é dado no Tratado Bênçãos do Talmud e pode ser visto em qualquer livro de orações judaico moderno. No início da refeição, o pão é abençoado com a fórmula: “Bendito sois, ó Senhor nosso Deus, rei do universo, que trazeis o pão da terra”. Então o vinho é abençoado com a fórmula: “Bendito sois, ó Senhor nosso Deus, rei do universo, que criastes o fruto da videira”. O chefe da família (tendo dito essas fórmulas) prova de ambos e os dá aos outros. Essas formas são as bênçãos, dizê-las é “abençoar”; a afirmação de que Nosso Senhor abençoou” (Mt 26,26; Mc 14,22) não significa que ele usou fórmulas similares?” (A Missa um estudo sobre a Liturgia romana, Flos Carmeli, 2021, p. 62).

De qualquer forma seria um erro imaginar que o Ofertório do Novo ordo seria aceitável para Lutero. Nesse sentido, Lutero (Sobre a abrogação da Missa Privada) objeta a frase do Cânon (presente na Oração Eucarística I) “Quae tibi offerimus, inprimis pro Ecclesia tua” por consistir no oferecimento do pão e vinho a Deus em nome da Igreja, o que Lutero implica constituir um sacrifício de pão e vinho. São Roberto Bellarmino o refuta no seguinte sentido: “O pão é justamente oferecido pela Igreja, não porque aquela oblação seja propriamente um sacrifício propiciatório, mas porque é uma dedicação da matéria, pela qual se torna um sacrifício propiciatório; assim como falávamos há pouco sobre a palavra sacrifício, que se atribui ao pão, porque se trata da matéria do sacrifício. Por isso, quando dizemos que oferecemos o pão a Deus pela Igreja, o sentido é: oferecemos a Deus o pão que vai ser consagrado, e do qual pela consagração foi imolado um verdadeiro sacrifício a Deus pela Igreja. Isso não é estranho à maneira de falar usada nas Escrituras divinas. Em Levítico 4:14, 5: 6, 6: 6 e outros lugares, cada uma das pessoas é ordenada a oferecer um cordeiro, ou algo desse tipo em sacrifício pelo pecado, e ainda assim nenhuma das pessoas propriamente sacrificam, por esse era o ofício apenas do sacerdote, mas dizia-se que eles ofereciam o sacrifício pelo pecado, porque ofereciam a matéria pelo qual aquilo se tornaria um sacrifício pelo pecado”. (São Roberto Bellarmino, De Missa, L. II, cap. XXI)

A tradução da forma da consagração “por vós e por todos para a remissão dos pecados” no lugar de “por vós e por muitos” se trata de um erro, uma vez que, segundo Santo Afonso de Ligório, as palavras “pro vobis et pro multis (“Por vós e por muitos”) são usadas para distinguir a virtude do sangue de Cristo de seus frutos: pois o sangue de nosso Salvador é de valor suficiente para salvar todos os homens, mas seus frutos são aplicáveis apenas para um certo número e não para todos, e isso é culpa deles” (THE ASCETICAL WORKS. Volume XIII. THE HOLY MASS. 1889, p. 54). O mesmo é explicado no Catecismo Romano (II, IV, VI, § 24). E, independente disso, a expressão “por todos” tira o sentido do fim propiciatório da consagração da Missa.

Resposta: A interpretação apresentada por Santo Afonso de Ligório ou contida no Catecismo Romano não é a única que existe na Igreja sobre a passagem. Pe. Garrigou-Lagrange explica que “por muitos” pode ser entendido como “por todos” no sentido de suficiência da redenção: “Para os muitos, também significa, para todos suficientemente, como é explicado no tratado sobre o Deus único, onde se trata da vontade salvífica universal, cf. 1a q. 19, A. 6 ad 1,[2] c.f. 1 Tim. 11:5: “Cristo se deu a si mesmo como resgate por todos”. (De Eucharistia, Angelicum, 1948, p. 182).

Doronzo, por exemplo, interpreta de forma generalista: “As razões pelas quais se mostra que os catecúmenos são pelo menos capazes de obter o fruto são as seguintes:… 3. As palavras da consagração do cálice, “que será derramado por vós e por muitos para remissão dos pecados”, tanto na boca de Cristo na Ceia como na boca da Igreja durante a Missa, significam que o sacrifício é benéfico não só para os membros da Igreja (para vocês), mas também em sentido genérico e sem restrição para outros (para muitos), especialmente os catecúmenos que se aproximam mais da unidade da Igreja”. (Tractatus dogmaticus De Eucharistia, tom. II, De Sacrificio, 1948, p. 874).p. 1.113).

O padre Jerome Gassner também explica: “‘Muitos’ pode ser tomado por (a) todos, com uma conotação especial da imensa multidão dos filhos de Adão; ou (b) com referência àqueles que realmente são salvos: muitos, mas não todos os homens, cooperam com a graça de Cristo”. (The Canon of the Mass (Saint Louis and London: B. Herder Company, 1949), p. 273).

  Dom Gaspar Lefebvre em seu Missal Quotidiano e Vesperal de 1960 traduz a expressão para “por todos”: “ESTE É O CÁLIX DO MEU SANGUE,DO SANGUE DA NOVA E ETERNA ALIANÇA:(MISTÉRIO DA FÉ!) O QUAL SERÁ DERRAMADO POR AMOR DE VÓS E DE TODOS OS HOMENS PARA A REMISSÃO DOS PECADOS. TODAS AS VEZES QUE ISTO FIZERDES, FAZEI-O EM MEMÓRIA DE MIM”.

Podemos encontrar a mesma resposta em Tanquerey, Johann Schwetz, Perrone, entre outros, como se pode ver aqui.

E não há qualquer contradição disso com o fim propiciatório da Missa, uma vez que uma só Missa é suficiente para salvar toda a humanidade se os homens não colocarem obstáculos a vontade de Deus. Nesse sentido, Santo Afonso de Ligório utiliza um cânon conhecido do Concílio de Trento, que trata exatamente do fim propiciatório da Missa, para falar desse assunto:

“Pobres e miseráveis pecadores, o que seria de nós sem este sacrifício para apaziguar o Senhor! “Pois o Senhor, apaziguado pela sua oblação, e concedendo a graça e o dom da penitência,  perdoa até crimes e pecados hediondos”, diz o Concílio de Trento. Em uma palavra, como a Paixão de Jesus Cristo foi suficiente para salvar o mundo inteiro, assim é suficiente uma única Massa para salvá-lo. Por isso, no ofertório do cálice o sacerdote diz: “Oferecemos a Ti, ó Senhor, o cálice da salvação, . . . pela nossa salvação e pela do mundo inteiro”. (THE ASCETICAL WORKS. Volume XIII. THE HOLY MASS. 1889, p. 418).

Assim, Deus concede graças e dons necessários para a salvação de todos os homens por intermédio do fim propiciatório da Missa. Mesmo os jansenistas não negaram que o preço do sangue de Cristo é suficiente para a salvação de todos os homens, enquanto negaram que Cristo mereceu todas as graças necessárias para a salvação com intenção de dá-las a todos os homens.

Por fim, não é errado dizer que os frutos da Missa são aplicados a todos os homens no sentido de que o fruto da Missa diz respeito ao bem de toda Igreja e a cada um dos seus membros, desde que não sejam postos obstáculos, inclusive aos falecidos, e a todos os homens de alguma forma, que são membros ao menos em potência da Igreja. O Padre Joseph Mors diz sobre a matéria:

“Artigo IV

Das pessoas sobre a quem se aplicam os frutos da Missa

604. A questão diz respeito unicamente aos frutos da Missa enquanto formalmente sacrifício; não diz respeito, pois, àquilo que toca às boas ações do celebrante ou dos fiéis que cooperam.

Sob o referido ponto de vista, os frutos sobrevêm àqueles mesmos que a oferecem, naquilo que o sacrifício tem de meritório; no que tem de satisfativo e impetratório, recaem sobre os mesmos que o oferecem ou sobre outros a quem estes os queiram destinar.

Usando de distinção em razão das pessoas a quem aproveitam as Missas, adequadamente se reconhece um fruto tríplice: geral, especial e ministerial.

605. 1) O fruto geral é aquele que diz respeito ao bem de toda a Igreja e, por consequência, a cada um de seus membros – desde que não lhe ponham óbices –, incluindo os fiéis defuntos. Uma vez que todos os homens, ao menos em potência e como que por dever, pertencem à Igreja, esse fruto aproveita de certo modo a todos os homens: por isso também rogamos que o sacrifício “suba com suave odor pela salvação nossa e do mundo inteiro”.

Aos fiéis sempre se aplica esse fruto, desde que não lhe ponham impedimento, mas a uns mais do que a outros, devido à sua maior capacidade e disposição, ou em razão do bem que fazem à Igreja. Não se exige aqui uma especial aplicação, pelo celebrante, dos frutos, pois a Igreja tem sempre a intenção de oferecer o sacrifício por todos os seus membros; não pode em absoluto o celebrante, por outro lado, excluir o fruto geral da Missa ou aplicá-lo de outra maneira: tal fruto decorre da própria Missa, na medida em que é sacrifício oferecido por Cristo e pela Igreja”. (Theologia Dogmatica, tomus V, p. 312).

O Novo ordo retira da forma da consagração do cálice a expressão “Mistério da fé” (mysterium fidei), expressão esta que é de origem apostólica, como transmitida pelo próprio Cristo. Nesse sentido, uma carta de Inocêncio III, ao comentar sobre a expressão, diz: “a forma das palavras, assim como se encontra no cânon, os Apóstolos a receberam de Cristo, e deles <a receberam> os seus sucessores. …” (Carta “Cum Marthae circa”, ao arcebispo João de Lião, 29 nov. 1202. Dz 782-783 – A forma sacramental da eucaristia). E o Concílio de Florença diz que a a forma da consagração do cálice é “confirmada pela doutrina e pela autoridade dos Apóstolos Pedro e Paulo” (Bula “Cantate Domino” sobre a união com os coptas e os etíopes, 4 fev. 1442 (Dz 1352 – pag. 372)). Portanto, tal mudança torna o sacramento inválido ou ao menos torna o rito condenável.

Resposta: Na realidade, eminentes teólogos consideram que o mysterium fidei não veio de Cristo. Iosepho Mors diz explicitamente: ““Mysterium fidei” é a interjeição que ocorre somente no rito romano, não é palavra de Cristo”. (Theologia Dogmatica, tomus V, p. 322). O Pe. Adrian Fortescue diz claramente que a origem não é apostólica: “As palavras “mysterium fidei” foram muito discutidas. As Const. Apost. traziam para o pão: “este é o mistério do Novo Testamento”. A única outra liturgia que tem as palavras “mysterium fidei” é a gálica de São Germano. O De Sacramentis não as possui. Provavelmente são uma adição gálica”. (A Missa um Estudo sobre a Liturgia Romana, Flos Carmeli, 2021, p. 250).

Por outro lado, ainda concedido que essas palavras foram recebidas pelos apóstolos a partir de Cristo basta responder que nem todos os costumes dados por Cristo aos apóstolos se enquadram como uma verdade divino-apostólica, isto é, como parte integrante do Depósito revelado. Certos costumes podem ser transmitidos de forma não imperiosa. Por exemplo, a comunhão em duas espécies aos fiéis, certamente, é um costume que os apóstolos tomaram de Nosso Senhor, mas não obrigatório, como parte essencial ou integrante da Missa e, portanto, não há erro algum da Igreja do rito romano ao prescrever a comunhão em uma só espécie aos fiéis. Sobre esse exemplo o Catecismo Romano é claro: “Como declarou o Concílio de Trento, ainda que Cristo Nosso Senhor, na última Ceia, instituiu este augusto Sacramento sob as espécies de pão e de vinho, e assim o administrou aos Apóstolos, daí não se segue que Nosso Senhor e Salvador estabelecesse a obrigação de se dar, a todos os fiéis, os Sagrados Mistérios em ambas as espécies”. (II Parte, IV, § 63).

Prova específica sobre o assunto é que Billuart, comentando sobre a forma essencial do cálice, reconhece que “estas palavras: Novi et aeterni testamenti, e as seguintes foram apropriadamente acrescentadas… porque muitas delas são relatadas pelos evangelistas como tendo sido pronunciadas por Cristo : o restante  também a tradição da Igreja propõe como tendo sido produzidas por Cristo”. (p. 484). Embora o autor se inclina a dizer que tais palavras não são parte essencial da forma do cálice, não sendo condição de validade do sacramento, pois as liturgias gregas consagram validamente sem tais palavras: “Prova 2ª: a partir das liturgias dos gregos: os gregos observam a forma essencial, pois consagram validamente, como todos admitem; mas as seguintes palavras Novi et aeterni, etc, não proferem; mas alguns omitem tudo, alguns omitem algumas, como é evidente de suas liturgias: Logo”. (Summa Sancti Thomae, tomus sextus, 1900, p. 484, Dissertatio V. Art. III).

Billuart nessas linhas explica a grande controvérsia entre os tomistas sobre se a forma completa do cálice seria essencial à consagração. Para responder a dificuldade sobre as liturgias gregas, os tomistas que defendem a necessidade da forma completa (que não é o caso de Billuart), “recorrem à forma da Confirmação, e da matéria e forma da Ordem, as quais são diversas entre Gregos e Latinos. Assim como, portanto, para que os teólogos fiquem livres dessa dificuldade, eles dizem que Cristo não determinou as formas e as matérias desses sacramentos em espécie e individualmente, mas apenas em um sentido genérico, que o significado do sacramento pode ser conferido através da matéria e da forma; que à sua Igreja havia deixado de fato a faculdade de determiná-los material e individualmente: o mesmo deve ser dito da forma do cálice”. (Summa Sancti Thomae, tomus sextus, 1900, p. 484, Dissertatio V. Art. III). Assim, para esses tomistas, defensores da forma integral, a Igreja dispôs o “mysterium fidei” como parte essencial à forma do cálice para a Igreja Latina, de sorte que ela condicionasse a validade do sacramento para esse ramo da Igreja somente.

Vemos que os próprios tomistas, partidários da fórmula integral como essencial, defendem que o “mysterium fidei”, e demais palavras, são necessárias à validade do sacramento por disposição da Igreja (e não de Cristo) à Igreja Latina e não para os gregos. Todos sabemos que a Igreja pode abrogar o que ela mesmo instituiu. Esse é o mesmo meio de defesa que muitos teólogos utilizam para defender o Concílio de Florença quando esse ensinou que a entrega dos instrumentos é a matéria do sacramento da ordem, e não a imposição das mãos, como definiu Pio XII, mais tarde. O próprio Papa Pio XII é claro: “Donde se extrai que, segundo o pensamento do próprio Concílio de Florença, a tradição dos instrumentos não é exigida para a substância e a validade desse sacramento por vontade do mesmo Nosso Senhor Jesus Cristo. Que, se por vontade e preceito da Igreja, essa tradição foi, numa época, necessária para a validade, todos sabem que a Igreja pode mudar e abrogar aquilo que ela instituiu.” (A.A.S. 28 de janeiro de 1948).

Outros autores, defensores da fórmula longa, baseavam seu argumento sobre a necessidade de incluir certas palavras que denotassem a intenção propiciatória para a integridade essencial da forma sacramental na consagração do sangue, o que não estaria denotado tão somente nas palavras “Isto é o meu corpo” / “Este é o meu sangue”, segundo o parecer deles. Um desses autores é Maurice De La Taille, que publicou a famosa obra “Mysterium fidei”. Maurice De La Taille também acredita que as palavras “mysterium fidei” são de origem apostólica (cf. The Mystery of Faith, II, Lodon and New York, Sheed and Ward, 1950, pp. 454-455), no entanto, o próprio autor reconhece que a expressão “mysterium fidei” seria dispensável: “Parece-me que, como fórmula equivalente para designar a intenção propiciatória, a inserção das palavras “do Novo Testamento”, como na nossa Missa: “cálice do meu sangue, do Novo Testamento…” em si, ser suficiente. Pois aqui o sangue do testamento ou aliança, tanto em si mesmo (em vista dos costumes dos povos antigos), e especialmente em oposição ao sacrifício do Êxodo, uma oposição que a palavra “novo” sugere, é necessariamente entendido como sacrificial, o sangue do sacrifício pelo qual Deus, assim propiciado, é ligado e prometido ao homem. Por outro lado, as palavras Mysterium Fidei (Mistério da Fé), também inseridas em nossa fórmula, por si só não sugerem tal coisa”. (The Mystery of Faith, II, Lodon and New York, Sheed and Ward, 1950, p. 443).

Diz ainda um tratado de casuísta moral: “A omissão das palavras mysterium fidei não invalida o forma. Se todas as palavras começando com novi et aeterni, e continuando até o final peccatorum, fossem omitidas, a forma teria que ser repetida, porque, devido à opinião de teólogos de peso, a forma provavelmente seria inválida. Mas o mesmo não pode ser dito da omissão de uma ou duas palavras, e alguns teólogos pensam que a repetição das palavras de consagração seria ilícita, quando apenas uma ou duas palavras, como mysterium fidei, foram omitidas (cf. Lehmk., II. 129; Genicot, II. no)” (The casuist : a collection of cases in moral and pastoral theology, 1906, p. 92).

 
 

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