Sábado, Dezembro 21, 2024

A Oração do Rosário


A piedade mariana criou múltiplas formas de expressão no decorrer da história. A fé mariana sempre procurou dar-se uma veste de acordo com os tempos, tanto na sua forma litúrgica oficial, como no campo extralitúrgico, onde desenvolveu inúmeras possibilidades. Contudo, devemos observar que nem toda forma histórica de piedade exprime sempre de maneira adequada a fé mariana, e que frequentemente estas formas históricas ficam atrás com relação ao dogma, ou então o ultrapassam. Para compreender e julgar as formas de expressão religiosa, privadas e públicas, é preciso recorrer sempre ao critério principal da fé garantida pela Igreja, com o qual toda prática litúrgica e extralitúrgica deve concordar.

Uma forma de oração mariana praticada ininterruptamente por muitos séculos e sempre encorajada pela mais autoridade eclesiástica é a oração do rosário. Sua origem remonta a vários séculos e conheceu fases de grande florescimento. O terço foi rezado em épocas tempestuosas e difíceis do mundo e da Igreja, como oração privada, íntima e como oração popular no seio das famílias e associações católicas, onde se tornou um dos elementos constitutivos da vida religiosa. Todavia, nos últimos vinte anos, as profundas transformações que se verificaram na Igreja, ruíram sensivelmente sua estima teórica e prática, ainda que hoje se notem de novo indícios de uma redescoberta e de uma revitalização desta forma de oração.

Ainda que não seja possível datar com precisão as suas origens históricas, podemos afirmar que a forma hoje universalmente difundida da oração do rosário se desenvolveu na segunda metade do século XV na base de várias formas precedentes. Duas antigas tradições encontram-se e se uniram nela, com o acréscimo de um terceiro elemento importante.

A primeira tradição foi o uso muito antigo, atestado já a propósito dos monges egípcios dos primeiros séculos cristãos, de contar as orações orais com a ajuda de grãos ou pedrinhas. Posteriormente, lançou-se mão de uma cordinha munida de pérolas ou grãos, enquanto na maioria das vezes a oração repetida ao ritmo desta cadeia era o “Pai-nosso”.

A partir do século XII, a “Ave-Maria” difundiu-se sempre mais. Começou-se a repetir também a oração através de cordinhas munidas de nós, etc., e por fim foi unida ao “Pai-nosso”. Alguns usos particulares, praticados no início, sobretudo na ordem dominicana, aos poucos introduziram o hábito geral de unir a um número fixo de “Pai-nossos” e “Ave-Marias” a contemplação de determinados mistérios da vida, paixão e glorificação de Jesus Cristo é atestada com certeza a partir de 1480. Durante séculos, a tradição considerou são Domingos como o verdadeiro criador do rosário. Não é possível aduzir provas decisivas neste sentido, mas o certo é que as origens do rosário devem ser procuradas precisamente no fundador da ordem dos pregadores no início do século XIII. Em todo caso, são Domingos e a sua ordem permaneceram através dos tempos, e até hoje, um símbolo da difusão desta oração por meio da pregação, dos escritos e das associações. Outras ordens, como a Companhia de Jesus, o adotaram e contribuíram de maneira significativa para a sua difusão em toda a Igreja.[1]

As primeiras recomendações e confirmações pontifícias da oração do rosário são de Sixto IV (1478) e Pio V (1569 e 1571). Num tempo de graves perigos provocados pela heresia e pelo ataque dos turcos contra o Ocidente, são Pio V exortou a cristandade a encontrar conforto no rosário. Depois da grande vitória conseguida na batalha naval de Lepanto, ele acrescentou à virtude desta oração a salvação da cristandade, definiu sua forma, instituiu o dia 7 de outubro como festa do Santo Rosário e concedeu uma indulgência plenária “toties quoties” aos que o rezassem. Clemente XIII, no século XVIII; de modo particular, Leão XIII, no século XIX; Pio XI, Pio XII e João XXIII, em nosso século, exaltaram em inúmeras declarações públicas o alto valor desta oração e promoveram contínua e oficialmente sua prática.[2]

Paulo VI – depois de tê-lo recomendado várias vezes anteriormente – deu-nos uma visão de conjunto de sua natureza, da importância e, sobretudo, do valor pastoral do rosário, o qual, por sua profundidade teológica, desvelo pastoral e abertura ecumênica, representa um documento de grande valor.[3]

Esta exortação apostólica – no quadro das linhas fundamentais da mariologia traçadas pelo Vaticano II – delineia a figura da Mãe de Deus como aquela que está em primeiro lugar na Igreja, como a primeira redimida, e assim lança as bases para uma piedade mariana renovada.

O Papa vê esta renovação sob um quádruplo aspecto, isto é, na perspectiva bíblica, litúrgica, ecumênica e antropológica.

De modo particular, o rosário é ilustrado sob os seguintes aspectos essenciais:

  1. O rosário é uma oração bíblica.
  2. Ele faz a resenha dos dados essenciais da história da salvação.
  3. Está orientado para Cristo.
  4. Apresenta um caráter meditativo.
  5. Entre liturgia e rosário existe uma relação profunda

Nas afirmações centrais do documento apresenta-se uma interpretação do rosário verdadeiramente adequada para o nosso tempo, que contribuirá para revitalizar esta devoção e precisamente de conformidade com as estruturas fundamentais da fé e dos princípios do culto cristão sadio. Aquilo que no decurso dos séculos disseram os papas, os concílios e os pastores de almas, assim como a própria sedimentação numa reflexão teológica atual. Seguindo de perto tais indicações, procuraremos agora ilustrar os traços fundamentais desta oração.

1. NO CENTRO DO ROSÁRIO ESTÁ O MISTÉRIO DE CRISTO

O Concílio de Éfeso (431) afirmou: “Quem não confessar que o Emanuel é verdadeiramente Deus e que, consequentemente, a bem-aventurada Virgem Maria é a Mãe de Deus (Theotokos), porque, segundo a carne, deu à luz o Verbo encarnado que procede de Deus, seja excomungado”. Esta afirmação conciliar, que vincula todas as grandes confissões cristãs, indica o fundamento, o lugar na história da salvação, sobre o qual se ergue todo culto mariano bem ordenado. Como afirma o Magnificat, Deus realizou “grandes coisas” em Maria. Estas grandes coisas nada mais são senão isso: Maria tornou-se Mãe de Deus.

No centro da oração do rosário, com sua repetição da “Ave-Maria” (três ciclos, cada um dos quais consta de cinquenta repetições), estão os dois mistérios inseparáveis da fé: “Jesus – Filho de Deus” e “Jesus – Filho da Virgem Maria”. A saudação angélica (cf. Lc 1,28) e o louvor pronunciado por Isabel (cf. Lc 1,42), juntamente com as súplicas da Igreja: “Santa Maria, Mãe de Deus…” envolvem, como que num quadro continuamente reproduzido, a sucessão histórico-salvífica dos mistérios da vida de Jesus. A finalidade última e autêntica da oração é o louvor a Cristo, ao passo que Maria abre o caminho para ele.

A contemplação dos mistérios do Redentor – tradicionalmente subdivididos nos três ciclos dos mistérios gozosos, dolorosos e gloriosos – não permite ao orante guardar uma distância teórica e neutra, mas une-o estreitamente à vida, paixão e glória do Senhor.

O olho espiritual do orante percorre como um ponteiro do relógio as situações mais importantes da obra salvífica de Cristo, e por isso podemos falar com razão – tanto o do coração como o do intelecto – capta por assim dizer os pontos nodais, o compêndio da vida do Homem-Deus, que se desenvolveu unicamente por nosso amor, apenas “por nós”, assim como nos é narrada nos evangelhos. Quem reza o rosário de maneira devida sente-se chamado pessoalmente, sente-se preso e inserido no destino e no curso da vida do Redentor. A nossa vida feita diariamente de altos e baixos, de desenvolvimento, maturação e entardecer, encontra aqui uma explicação que a eleva, uma interpretação sem igual. Por isso podemos dizer que o rosário é uma oração extremamente importante sob o perfil existencial.

Como a nossa terra, a natureza e a humanidade vivem “das graças” do sol, assim também a fé cristã ilumina o caminho do homem. A oração do rosário solicita o orante, e a consequência interior que disso deriva é: “Segue-me”. Alegria, gratidão, dor, súplica, promessa e esperança constituem as condições fundamentais de toda vida humana. Na oração, nós as revivemos nas sequelas de Cristo. Lançando-nos para além da simples reflexão, captamos quase imperceptivelmente algo do destino daquela vida na qual está encerrada a salvação de todos os homens e de todos os tempos. A “solidariedade” cheia de fé com aquela pessoa que constitui o centro e o vértice da história de Deus com os homens permanece sempre a mesma na sucessão dos mistérios contemplados, permitindo ao orante deter-se tranquilo neste centro. Por isso e neste sentido, o rosário, apesar de toda a aparência externa, merece o título de oração do Senhor, de oração cristológica e verdadeiramente bíblica.

2. O ROSÁRIO É UMA ORAÇÃO MEDITATIVA E, PORTANTO, ATUAL E FECUNDA PARA O NOSSO TEMPO

Em castos ambientes de nosso mundo, tão marcado pela técnica, no meio de uma época racionalista e científica, numa sociedade que mede o valor e a importância de cada um com base em suas prestações, uma aspiração diferente desbrava o próprio caminho e adquire direito de cidadania: a nostalgia e a fome de espaços livres nos quais alguém possa recolher-se e meditar. Percebe-se novamente uma exigência de “silêncio contemplativo”. Pode-se entrever de maneira confusa, mas profundamente sentida, que fins utilitaristas e para o seu sucesso, corre o risco de perder-se e, de uma forma ou de outra, põe evidentemente em questão a integridade do seu “ser homem”. Procura-se de novo o “princípio da fecundidade contemplativa” (R. Guardini). O que as nossas igrejas e o cristianismo experimentado cotidianamente parecem oferecer apenas de maneira insuficiente é procurado por muitos indivíduos nas filosofias e religiões orientais, que com frequência chegam ao homem ocidental, sedento de soluções e cheio de problemas, confeccionadas de maneira sincretista.

O rosário é uma forma excelente de oração para exercitar-se na meditação contemplativa. É uma oração em que as forças do espírito e da alma se reúnem em torno da pessoa do Redentor e a ele aderem para revitalizar o seu fascínio. O que à primeira vista pode parecer monotonia mecânica e “produção em série”, aos olhos do orante revela-se um meio apropriado para concentrar todas as energias psíquicas e espirituais, todas as faculdades racionais e irracionais do homem.

As práticas e os métodos de meditação não cristãos dizem-nos que o homem pode ser reconduzido da dispersão e da laceração exterior e interior à reflexão, à interioridade e ao recolhimento com a ajuda da repetição contínua e aparentemente monótona de uma palavra ou de uma frase. Uma única e mesma palavra, uma única e mesma frase continuamente repetidas tornam-se o veículo do recolhimento e da concentração psíquica e espiritual. Ao mesmo tempo, também a oração do rosário, com o seu ritmo bem articulado, possui a capacidade de separar o orante do mundo exterior sensível e guiá-lo para o silêncio, o recolhimento e a “simplicidade do coração”. Que o indivíduo recorra ao esquema orgânico e fixo de uma oração continuamente repetida não é necessariamente uma coisa que deva envergonhar-se. Pelo contrário, agindo desta forma, o orante manifesta significativamente a sua pobreza e impotência na busca do mistério de cuja energia e de cujo centro vive o homem. Portanto, a coisa decisiva é que esta oração, por assim dizer, toma pela mão o orante na sua fraqueza, o sustenta na sua pobreza e, por fim, lhe revela o centro de sua vida de fé.

Paulo VI fala muitas vezes da “riqueza e variedade” da oração do rosário, que devemos descobrir e aproveitar. Oração individual ou oração comunitária, nunca deixa de dar múltiplos frutos.

No curso dos séculos foram ditas coisas grandes e sublimes, profundas e instrutivas sobre a oração do rosário, mas as palavras não estão em condições para exprimir adequadamente aquilo que no fundo move o orante. Para compreender realmente a natureza desta oração e experimentar a sua benção, existe apenas um caminho: aproximar-se dela e rezá-la.

 


Notas:

[1] Ampla exposição em Kirfel, W. Der Rosenkranz. Ursprung und Ausbreitung, Waldorf, 1949; Willam, F. M., Geschichte und Gebetsschule de Rosenkranz, Viena, 1948; Kirsch, W., Handbuch der Rosenkranzes, Viena, 1951.

[2] Uma coleção de documentos pontifícios referentes ao rosário pode ser encontrada na obra dos monges de Salesmes: Les Enseignements Pontificaux et Conciliaires: Le Saint Rosaire, Desclée, Paris, 1966.

[3] MC 42-55.

 


Fonte: O Culto a Maria Hoje / Hans Urs von Balthasar… (et al.), subsídio teológico-pastoral elaborado sob a direção de Wolfgang Beinert; (traduziu Luiz João Gaio; revisão de  Luiz A. Miranda). – São Paulo: Ed. Paulinas, 1979, p. 266-272.

 

PARA CITAR


BALTHASAR, H. U.; et al., A Oração do Rosário. Disponível em: <http://apologistascatolicos.com.br/index.php/catequese/espiritualidade/819-a-oracao-do-rosario> Desde: 14/09/2015.

 

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Artigos mais populares