Sábado, Novembro 16, 2024

A natureza da Sagrada Liturgia e sua importância na vida da Igreja.

1. A fonte da Liturgia

Vou começar meu artigo fazendo uma afirmação determinante para a compreensão da Liturgia da Igreja, embasada no Catecismo da Igreja Católica que por sua vez deriva da compreensão alicerçada na Sacrossanctum Concilium, especialmente nos números 5 ao 13. Dos números 1077 ao 1112, o Catecismo explica a Liturgia como o Louvor ao Pai pelo Filho no Espírito Santo. Ela é operada pelo Espírito Santo que prepara a Igreja para o encontro com Cristo que desde o seu corpo Místico dispensa o Mistério da Salvação pelo poder e ação do Espírito neste mesmo Corpo. Ao mesmo tempo o Pai é adorado e glorificado pelo Filho no Espírito e o Filho com o Espírito são conglorificados[1] com o Pai pela Igreja.

Lanço agora uma segunda premissa. A Liturgia da Igreja é toda a Liturgia, ou seja, toda a ação sagrada em favor do povo de Deus e não somente a Santa Missa. De fato, a Liturgia da Igreja é “o cume para o qual se dirige a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte donde emana toda a sua força” (SC, n. 10). Neste aspecto falamos de toda a Liturgia da Igreja: A celebração da Santa Missa, dos demais Sacramentos, dos Sacramentais, da Liturgia da Horas, da Celebração da Palavra, da Adoração Eucarística fora da Missa, etc.

Tendo feito estas duas brevíssimas distinções quero partir para o tema central: a natureza da Liturgia. Digo de antemão que sua natureza é Sagrada por força da Revelação, que logo veremos. De fato, Deus quis revelar-se ao homem, quis dar-se a conhecer, como nos ensina o Concílio Vaticano II na Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina “Dei Verbum” n. 2:

Aprouve a Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar-se a si mesmo e dar a conhecer o mistério da sua vontade (cf. Ef 1,9), mediante o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo encarnado, têm acesso no Espírito Santo ao Pai e se tornam participantes da natureza divina (cf. Ef 2,18; 2Pd 1,4).

Como um modo especialíssimo de participação na vida divina, dispôs Deus a Divina Liturgia divinamente relevada para a Igreja. No Evangelho de João, Jesus encontra-se com a samaritana no poço de Jacó e ali lhe diz: “Acredita-me, mulher, vem a hora em que nem nesta montanha nem em Jerusalém adorareis o Pai […]. Mas vem a hora – e é agora – em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade, pois tais são os adoradores que o Pai procura” (cf. Jo 4,21-23). O verdadeiro culto que agrada a Deus é o culto em espírito e verdade realizado no único Templo igualmente verdadeiro, isto é, realizado no Corpo Místico de Cristo que é a Igreja (cf. Ef 4,1.4). Aqui vale abrir um parêntese sobre o Corpo de Cristo. Há três modos de distinguir o Corpo de Cristo: O corpo físico de Jesus de Nazaré que nasceu em Belém, formado pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria (cf. Lc 1,35). Nele, “Deus que por natureza é invisível se fez visível aos nossos olhos”[2]. Um segundo modo de distinguir o Corpo do Senhor é a Santíssima Eucaristia. De fato, o Catecismo afirma no nº 1376 que as espécies do pão e do vinho são transubstanciadas no Corpo e no Sangue do Senhor pelo rito da consagração na Santa Missa. Tal doutrina se depreende do Evangelho de São João no qual Jesus afirma: “Em verdade, em verdade, vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós” (cf. Jo 6,48-53). Um terceiro modo de distinguir o Corpo de Cristo é a Igreja. Presente desde os escritos de São Paulo[3] e fortemente reforçada pela MysticiCorporis de Pio XII, a compreensão da Igreja como o Corpo de Cristo ocupa toda a eclesiologia do Catecismo da Igreja Católica. Este terceiro modo de compreender o Corpo de Cristo é crucial para entendermos a eclesiologia da qual deriva a Liturgia do Concílio Vaticano II. Não vou me delongar neste aspecto da Liturgia, haja vista que acontecerá outra Conferência focada neste tema. Hoje vamos percorrer juntos alguns textos litúrgicos no Apocalipse, bebendo da fonte da Liturgia que é o próprio Deus-Trindade. Usarei uma abordagem bíblica. O Apocalipse descreve em vários capítulos o que parece ser um solene, belo e perene culto a Deus. A esta liturgia chamamos céu ou paraíso.

Vejamos o capítulo 4. Ali há um trono e neste, alguém sentado. Ao seu redor estão dispostos 24 tronos os quais são ocupados por 24 Anciãos e com coroas de ouro na cabeça. Também existem quatro Seres vivos entre o trono e os vinte e quatro Anciãos. Diante do trono está O Único que permanece de pé, um Cordeiro como que imolado.

Os quatro Seres vivos dia e noite, sem parar, proclamam:

“Santo, Santo, Santo, Senhor, Deus todo-poderoso, Aquele que era, Aquele que é e aquele que vem”.

E a cada vez que os Seres vivos dão glória, honra e ação de graças àquele que está sentado no trono e que vive pelos séculos, os vinte e quatro Anciãos se prostram diante daquele que está sentado o trono para adorarem aquele que vive pelos séculos dos séculos, depondo suas coroas diante do trono e proclamando:

“Digno és tu, Senhor e Deus nosso, de receber a glória, a honra e o poder, pois tu criaste todas as coisas; por tua vontade elas não existiam e foram criadas” (cf. Ap 4,8-11)

No Trono está a plenitude da divindade, o próprio Deus. Impossível de ser descrito, pode apenas ser louvado e adorado. Ao redor de seu trono estão os 12 apóstolos e os 12 patriarcas das tribos de Israel, a totalidade da antiga e da nova aliança, sentados em tronos para julgar as nações (cf. Mt 19,28). Os quatro Seres vivos adoram a Deus. Quatro é um número cósmico: sinal dos pontos cardeais, dos ventos, dos “cantos” da terra, etc. Suas formas de leão, novilho, homem e águia representam o que há de mais ágil, belo, sublime e forte na criação.

O Cordeiro de pé é Cristo, imolado para a salvação do povo eleito (cf. Jo 1,29). Ele traz as marcas do seu suplício, mas está de pé, triunfante, vencedor da morte. “O Messias, Leão para vencer, tornou-se Cordeiro para sofrer” (Vittorino de Pettau).

Junto do Cordeiro imolado estão os eleitos, “uma grande multidão de pé diante do trono e do Cordeiro, trajados com vestes brancas e com palmas na mão” em sinal de vitória (Cf. Ap 7,9). Além dos eleitos, circunda o trono uma grande multidão de anjos que proclamam em alta voz:

Digno és tu de receber o livro e de abrir seus selos, pois foste imolado e, por teu sangue, resgataste para Deus homens de toda tribo, língua, povo e nação. Deles fizeste, para nosso Deus, uma realeza e sacerdotes; e eles reinarão sobre a terra (Cf. Ap 5,7-10).[4]

Além do estilo apocalíptico, a beleza que aqui encontramos está no fato expresso por essa solene liturgia da Igreja triunfante à qual se une todo o cosmo e toda a Igreja militante (Cf. Ap 5,13). Na verdade, o tempo cronológico é absorvido na adoração a Deus e todo o cosmo de funde numa coisa só no eterno louvor ao Deus Uno e Trino.

Esta beleza celeste nós já experimentamos aqui no exílio enquanto caminhamos pressurosos para a terra prometida:

O cântico de louvor, que ressoa eternamente nas moradas celestes, e que Jesus Cristo, Sumo Sacerdote, introduziu nesta terra de exílio, foi sempre repetido pela Igreja, durante tantos séculos, constante e fielmente, na maravilhosa variedade das suas formas[5].

É o mesmo Cântico Novo cantado diante do trono e do Cordeiro que nós, os santos da Igreja, não nos cansamos de proclamar e entoar. Tornamo-nos homens novos (Ef 4,22-24) por meio deste belo Cântico Novo que renova nosso espírito e nossa mentalidade. A beleza dos ritos, dos tempos litúrgicos, de cada celebração expressa o nosso desejo de coabitar com a Trindade Santa. A nobreza e simplicidade com que os fazemos resplandecem que “a liturgia é a celebração da alegria do Pai” [6] perante o regresso do Filho muito amado que saiu e veio ao nosso encontro (Hb 2,13). Alegria inefável do Pai que tomou forma no Filho. “Sim, a alegria da fonte pode explodir, jorrar e cantar como outros tantos ecos e sons por pura graça, e cada um é único” [7]. A partir da volta do Filho ao seio do Pai, o Rio de Vida jorra do trono de Deus e do Cordeiro. É a única e mesma liturgia que celebramos, que jorra do Trono de Deus e inunda a Cidade Santa, a Nova Jerusalém, a esposa do Cordeiro vestida com as vestes de linho puro, branco, resplandecente de beleza e santidade (cf. Ap 19,7-8). Tal coisa é possível porque todo este movimento é impregnado da ação do Espírito.

Por isso, com razão, Jean Corbon[8] afirma que as liturgias que celebramos são um momento dA Liturgia, justamente porque “a liturgia não se reduz àquilo que dela celebramos” (p.88). Na verdade, a perene liturgia “… é celebrada sem cessar de junto do Pai por Cristo no Espírito Santo, com a assembléia dos primogênitos no reino dos céus. É ela quem faz história. Ela é a vitalidade da Igreja neste mundo, atua continuamente e é-nos oferecida. “Quem tem sede venha”, diz o Cordeiro (Ap 22,17). Então, o que fazemos nesta “terra de exílio”?

Respondemos ao chamado do Senhor[9] que “com poder” torna sua vinda salvífica na Liturgia. Isso só pode acontecer porque a Liturgia é um ato eclesial. Porque é um ato sinérgico. Porque é um ato teândrico. Cristo ressuscitado para sempre não celebra A Liturgia somente com a Igreja triunfante, mas une a si toda a Igreja: triunfante, padecente e militante, ou, a liturgia no Corpo de Cristo. Portanto, a justo juízo proclama Corbon: “esse momento ou é eclesial ou não existe” (p.89). É a celebração, portanto, o núcleo da liturgia que na sua localidade manifesta toda a catolicidade da Igreja. Assim, todas as celebrações eclesiais serão expressão da sinergia: Cristo, Espírito e Igreja unidos no louvor ao Pai.

Deste modo São Bernardo de Claraval descreve a Igreja:

Ó humildade! Ó sublimidade! Tabernáculo de Cedar, e santuário de Deus; morada terrestre, e palácio celeste; casa de barro e sala régia; corpo de morte, e templo de luz; finalmente, desprezo para os soberbos, e esposa de Cristo! […] ó filha de Jerusalém: ainda que desfigurada pelo labor e pela dor do longo exílio, a beleza celeste te adorna. [10]

Certamente que São Bernardo é alicerçado nesta bela exultação pela Revelação da Igreja que encontramos no Apocalipse:

Vi então um céu novo e uma terra nova – pois o primeiro céu e a primeira terra se foram e o mar já não existe. Vi também descer do céu, de junto de Deus, a cidade Santa, uma Jerusalém nova, pronta como uma esposa que se enfeitou para o seu marido. Nisto ouvi uma voz forte que, do trono, dizia:

“Eis a tenda de Deus entre os homens.

Ele habitará com eles;

eles serão o seu povo, e ele, Deus-com-eles, será o seu Deus!

O vencedor receberá esta herança, e eu serei seu Deus e ele será meu filho. (Cf. Ap 21,1-3.7)

Em sua obra “A fonte da Liturgia”[11] Jean Corbon também afirma que nossas celebrações são o eco daquela celebração que se realiza eternamente nas moradas celestes. É a celebração do eterno ‘hoje’ de Deus na história, da páscoa de Cristo que “penetra e leva em si toda a história”[12].

Um “hoje” perpétuo: é assim que a Igreja celebra. Por isso, pereniza o tempo no ano litúrgico meditando paulatinamente os mistérios da nossa redenção[13]. Celebrando um a um os feixes de luz da única Grande Luz: Jesus Cristo. O tempo torna-se assim “sacramental”, pois é extravasado pelo Mistério daquele que é O Eterno temporalizado.

A história é nosso chão, onde Deus habita. Celebramos, porém num “não-lugar”. Contudo, aquele que céus e terra não podem conter pode ser louvado e adorado em um templo feito por mãos humanas? Esta pergunta espantou Salomão, o sábio, ao reconhecer a grandeza e a transcendência de Deus. Sim, ele pode ser louvado em um templo de pedras, pois se fez nada, desceu à não-vida, fez-se pecado. Toda esta kênose (abaixamento, aniquilamento de si) realizada é recapitulada no altar de cada Igreja, pois “o altar é Cristo”[14]!

Em relação ao espaço da celebração, o decoro e o esmero para com ele denotam o sentido dado àquela celebração. Significa o espaço que ocupa a celebração na vida de cada membro da Igreja em questão. Por isso o espaço litúrgico é percebido no sentido escatológico: “nele, o reino já veio, mas é-nos dado porque não está ainda consumado”[15].

Vamos agora passar ao segundo aspecto da Natureza da Liturgia, o seu aspecto humano.

2. O desejo de coabitar com o eterno

Quando Deus criou a humanidade não criou deuses, mas, homens (cf. Gn 1,27). Assim, verifica-se no homem uma incompletude que o desloca de seu eixo para os lados numa busca permanente de complementação do eu. Podemos dizer que é a permanente tensão do desejo. Anselm Grün diz que “o desejo do homem é ilimitado e por isso nunca será saciado por metas finitas”[16]. Este é o modo de Deus manter-nos abertos a Ele, mas também a porta através da qual entra a possibilidade do pecado. O desejo de cada ser humano é, em última análise, o desejo de ser amado: “Todo ser humano, diz Ernesto Cardenal, anseia em última análise por um amor incondicional, por um amor que é a única coisa capaz de fazer com que a vida valha a pena ser vivida, e que lhe assegure que ele é único e que possui valor” [17]. No entanto, o desejo do infinito ao se deparar com as coisas finitas causa o desassossego da inadequação. As coisas se tornam cadeias ao invés de libertar e levam o homem para mais longe da felicidade, da paz, do repouso em Deus, quando não compreende que por trás de todo desejo limitado está o “desejo pelo amor absoluto e incondicional, em última análise, pelo amor divino”[18]. Vivemos numa tensão constante de falta e desejo.

A liturgia será o espaço transfigurado no qual se encontrarão a falta e o desejo. A falta humana e o desejo divino. O desejo humano e o amor divino. No Evangelho de São Lucas, o evangelista narra o episódio da transfiguração (cf. Lc 9,28-36) ao qual aqui aludiremos. O interpretaremos por um viés antropológico para fotografar o segundo aspecto da natureza da Liturgia.

Sabemos que é da natureza humana o desejo de conhecer a divindade e conviver com ela. Este desejo antropológico é expresso em alguns textos bíblicos. O verbo “habitar” com suas derivações aparece 729 vezes na bíblia (segundo o Bible Works) e “habitar com o Senhor” ou “sob a segurança do Senhor” aparece 65 vezes nos salmos. Um dos belos versículos que ilustram tal desejo de perenizar o tempo na presença da divindade está no salmo 23,6: “a bondade e a misericórdia do Senhor me seguirão por toda a vida e na casa do Senhor habitarei pelos tempos infinitos”.

Nas festas litúrgicas em Jerusalém o grande momento era reservado aos sacrifícios. Um dos sacrifícios, o de comunhão (cf. Lv 7,11-15), era a expressão consciente do desejo de co-habitar com Deus. Figura do sacrifício Eucarístico, naquele o ofertante fazia literalmente uma refeição com Deus, sinal do desejo de prolongar no tempo a presença de IHWH e neste, por outro lado, o próprio Deus se dá em alimento no sacrifício incruento do altar. De um ou de outro modo, percebemos uma dupla tensão do ato sacrifical: a de temporalizar o eterno e a de eternizar o tempo fugidio na presença do Senhor. Nos cânticos das subidas (Salmos 120 ao 134) o salmista canta a alegria de estar às portas de Jerusalém, casa do Senhor (Sl 122,1-2). Sabemos que as idas rituais a Jerusalém comportavam os sacrifícios de comunhão, regulamentados em Lv 3.

No texto da transfiguração, Pedro Tiago e João expressam este desejo da habitação com Deus, de condividir a sua vida: “façamos, pois, três tendas…” (Lc 9,33). Acabamos de descobrir que Ele, o Filho, saiu do Pai ao nosso encontro, à nossa procura, para revelar-nos o Pai (cf. Jo 14,9). Esta saída foi uma kênose, um rebaixamento. A Sagrada Escritura assim a descreve:

 

Ele estando na forma de Deus

Não usou do seu direito de ser tratado com o um deus

Mas se despojou tomando a forma de escravo.

Tornando semelhante aos homens

E reconhecido em seu aspecto como homem (cf. Ef 2,6-7).

Com efeito, não temos um sumo sacerdote incapaz de se compadecer de nossas fraquezas, pois ele mesmo foi provado em tudo como nós, com exceção do pecado (cf. Hb 4,15).

Deus quis se relacionar conosco por pura bondade e sabedoria (cf. DV, n.1). Como diz Augusto Cury: “Deus não é autista porque procura construir relações”[19]. Se o nosso Deus fosse um Deus autista, ele não buscaria se relacionar conosco. Se ele não tivesse sentido em si o desejo de se relacionar para se auto-comunicar, Ele “poderia ser o maior de todos os autistas. […] Deixaria de ser um criador exuberante (…). O tudo e o nada seriam a mesma coisa”[20]. Por isso ele veio habitar entre nós e nós vimos a sua glória (Jo 1,14).

A Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina “Dei Verbum”, assim destaca que tal “saída” se deu para que o Pai concluísse a obra de Salvação/Revelação já iniciada desde o Antigo Testamento. Deste modo, quis Deus fazer dos homens seus amigos (cf. DV, n. 2, 4). Tal proximidade de um Deus que se faz “escravo” por amor toca o coração dos seus ‘amigos’ que querem coabitar junto dele (cf. Jo 13,1). Neste aspecto, nossas Igrejas são o eco deste desejo do coração humano.

Neste encontro de desejos e completude, o espaço e o tempo são transfigurados porque o homem se encontra imerso numa atmosfera que o supera e ao mesmo tempo o antecede. Tal é o Mistério Pascal de Cristo celebrado pela Igreja. Contemplamos aqui uma dupla realidade: a face do Senhor ressuscitado resplandecente de beleza e a nossa, transfigurada nele.

A sinergia da ação humana e divina molda na Igreja o ícone da Santíssima Trindade e no coração de cada homem e mulher, o desejo da purificação de si mesmo para habitar eternamente junto a esse Deus que se nos revela na Páscoa do seu Filho.

A contemplação silenciosa do mistério revelado do Deus Uno e Trino se dá porque esta  realidade temporal é impregnada do Espírito Celeste, captada pelos sentidos e interpretada na fé.

A liturgia, assim, é o novo tabor. É o tabor hoje. Usamos a linguagem corporal e simbólica para manifestar a beleza dessa fé ativo-contemplativa. Deste modo, a liturgia é momento da manifestação sacramental de Deus porque realiza e manifesta sua presença à Igreja e ao mundo tornando seu Corpo Místico sacramento universal de Salvação[21]. É a epifania da beleza! É um movimento constante da encarnação à cruz, tudo isso iluminado pelo Mistério Pascal de Cristo (paixão, morte e ressurreição). É atualização do Mistério de Deus na história. É a ritualização do acontecimento salvífico por excelência: a paixão, morte e ressurreição do Senhor.

É o céu aberto, derramando bênçãos sobre a humanidade.

É por fim, o grande Maranathá da Igreja e do Espírito, porque o Espírito, iconógrafo da Igreja, toma emprestada a voz da esposa para amplificar seus gemidos inefáveis: Maranathá! Vem, Senhor Jesus! (Rm 15,17;25-27; Gl 4,6-7).

A Igreja peregrina é o lugar da graça, do culto em Espírito e Verdade (Jo 4,19-24). Por isso a Liturgia da Igreja é um Pentecostes ininterrupto.

A experiência celebrativa é sempre a possibilidade do êxtase do coração orante, porque sempre coloca o cristão em contato com o objeto de sua fé: Deus-Trindade, Deus-Amor!

Nesta experiência de adoração e vida, de louvor e de ação de graças, o silêncio humano não é uma ausência de palavras, mas a possibilidade do Espírito poder falar ao coração do fiel. É no silêncio que o Espírito que deu Corpo ao Verbo da Vida dá também forma à Palavra proclamada.

O silêncio é o momento de o Espírito falar ao coração da Esposa. É o momento de adoração da Trindade, lugar da ressonância da fé, de interiorizar aquilo que se ouviu, rezou e meditou. A transfiguração do tempo e do espaço, do ser de cada pessoa e da própria Igreja que acontece na liturgia é a purificação que a luminosidade de Deus realiza porque a presença de Deus, na liturgia, plenifica a vida humana sem, contudo, aniquilá-la. Transfigurados no Cristo, cristificados. Embebidos do Espírito, pneumatizados. Alimentados na eucaristia, eucaristizados. De fato, a partir do mistério de Cristo somos transfigurados para transfigurarmos o mundo! Daqui concluímos que a Liturgia é uma obra divino-humana.

3. A ritualidade litúrgica hoje

Muitos há que acham a Santa Missa, por exemplo, tediosa. Um poema de Adélia Prado intitulado “Missa das 10” nos dá uma idéia:

Frei Jácomo prega e ninguém entende.

Mas fala com piedade, para ele mesmo

e tem mania de orar pelos paroquianos.

As mulheres que depois vão aos clubes,

os moços ricos de costumes piedosos,

os homens que prevaricam um pouco em seus negócios

gostam todos de assistir a missa de frei Jácomo,

povoada de exemplos, de vida de santos,

da certeza marota de que ao final de tudo

urna confissão “in extremis” garantirá o paraíso.

Ninguém vê o Cordeiro degolado na mesa,

o sangue sobre as toalhas,

seu lancinante grito,

ninguém.

Nem frei Jácomo.

Ao nos depararmos com a beleza dos ritos na Liturgia, seu fulcro exatamente transcendente e ao mesmo tempo imanente vai aos pouquinhos nos separar de uma participação morna na missa do Frei Jácomo.

Nossas liturgias deveriam resplandecer de nobre simplicidade, como nos recomenda a Sacrossanctum Concilium n. 34. De tal modo deveríamos viver a ritualidade litúrgica que ela tudo impregnaria de eternidade e de beleza. O Padre Valeriano Santos Costa assim afirma:

Quem participa de um rito litúrgico entra numa outra categoria de tempo e espaço. O tempo cronológico significa dissolução e cansaço no encadeamento das horas, dias, meses e anos: o envelhecimento. […] No rito, a ordem do espaço […] se altera, transformando a idéia de limite, barreira, divisão, prisão em aconchego, proteção, libertação, plenitude[22].

Vivenciar os ritos é, portanto, de importância capital para perceber a beleza da Liturgia que faz do cronos o Kairós, ou seja, do tempo cronológico o tempo/estado da Graça. O dado antropológico da liturgia nos diz que o homem serve-se de sinais sensíveis para exprimir o indizível. De fato, ao olharmos o aspecto aparente da liturgia podemos nos deparar com coisas muito simples como uma vela, uma toalha branca ou um crucifixo. Todavia, estes são pontes do efêmero para o eterno. A beleza do rito litúrgico deve começar de dentro, do coração e nos levar ao coração do Mistério. De fato, afirma Corbon: “reza-se como se vive e vive-se como se ama; tudo depende do lugar onde habitualmente nos centramos e em torno do qual tudo toma o seu sentido (…) o coração é o lugar da decisão, do sim ou não”[23]. Sabendo que a Liturgia começa no coração, chamo nossa atenção para o outro lugar da manifestação da beleza, ou seja, para o “fazer” na Liturgia.

Aqui eu gostaria de tocar um pouco na nossa prática litúrgica. Nossas equipes de Liturgia nas Paróquias muitas vezes se transformam em ‘tarefeiros’ junto com o padre. Fazem muitas coisas, mas não as fazem bem. Nossos Ministros Extraodinários da Eucaristia permanecem numa odinária distração toda a missa. Os músicos esquecem-se do rito para procurar a folha de cântico. O calor faz a assembléia suar. O volume estridente do som faz todos sentirem o ouvido doer. As flores de plástico no presbitério, sujas de poeira, dão o tom da desordem, do desleixo e da despreocupação com aquilo que é expressão do Eterno. Os vasos sagrados sujos de zinabre demonstram quão desleixados são os que cuidam da sacristia. O andar apressado e sem a devida reverência e gravidade dos acólitos e do Padre, as toalhas puídas, a multiplicação de folhas, cadernos, lembretes, cartazes para todos os cantos… enfim, nossas Paróquias precisam romper este ciclo vicioso de feiúra que tem tomado conta do nosso “fazer” litúrgico.

A Paixão, Morte, Ressurreição e Ascensão de Jesus é o acontecer do Mistério. O “véu” se rasgou e pela Ascensão o Filho nos leva ao coração aberto do Pai, donde jorra o rio de vida (Ap 22,1), a Liturgia celeste, perene e eterna,[24] a beleza celeste que se faz nossa. A Liturgia é Cristo histórico, corpo místico e Filho de Deus. É justamente por causa dessas duas energias (divina e humana) que a Liturgia se torna ato salvífico de Deus na história dos homens. E se torna ato salvífico porque é memorial, porque O Vivente passou para além da morte e tornou o tempo impregnado de Eternidade[25]. Neste aspecto, percebemos o quanto precisamos crescer na dimensão antropológica da manifestação da nossa fé. Valendo-me do axioma Lex Orandi Lex Credendi, trago um elemento de avaliação de nossas liturgias: O modo como estamos celebrando a fé expressa a fé que professamos? Avalie se o Memorial do Mistério Pascal de Cristo que se celebra na sua comunidade resplandece aquela nobre simplicidade da qual é dotado o Mistério da Paixão, Morte, Ressurreição e Glorificação do Filho de Deus?

“Nada deve ser afetado nem pela pressa nem pelo exagero. […] Se numa celebração de uma hora introduzimos tantos adendos, […] esgotamos o tempo e somos tentados a atropelar o rito […] numa corrida olímpica[26]”. A grave expressão de quem sobe o Calvário para o Sacrifício do Cordeiro deve acompanhar todo aquele que toma parte na Liturgia. A solenidade dos gestos, a tranqüilidade na execução dos ritos, ao Padre a clareza e solenidade na proclamação das orações e demais ofícios que lhe cabem na Liturgia, o canto liturgicamente ordenado e ensaiado, tudo isto contribui para uma participação eficaz, ativa e frutuosa na Divina Liturgia. O contrário disto também é igualmente verdade: quando não cuidada, a Liturgia passa de “a festa da alegria do Pai” como Corbon a classificou, à festa da tristeza e irritação dos que nela tomam parte.

Ao explanar sobre a participação ativa dentro do rito, o Padre Valeriano S. Costa joga luz sobre o modo de estar na Liturgia. Retomando o conceito grego “Leitourgia”, ele diz que Liturgia é essencialmente ação (ourgia) e não necessariamente discurso[27] (logia). A ação é sempre realizada por um sujeito. Como vimos o sujeito da Liturgia é o Pai, ao mesmo tempo ele é objeto da ação Sagrada realizada por nós, objeto da nossa fé. Como sujeito da Liturgia, a Assembléia não é só uma assistente, uma expectadora passiva, mas um sujeito ativo. Está envolvida na “leitourgia” na ação sagrada em favor do povo. Desse modo é preciso formar nossas Assembléias litúrgicas para este modo de participar, beber e contemplar o Acontecer do Mistério que ali é celebrado. As distrações, conversas paralelas, celulares ligados, crianças correndo e chorando, a pressa em começar e terminar a ação litúrgica, as homilias porcamente preparadas, tudo isso contribui para o empobrecimento da participação ativa da Assembléia. De fato, Pe Valeriano destaca  que todo o corpo deve entrar nesta ação ritual, ou seja, a pessoa toda: pensamento, emoção, postura, voz, razão, gestos, para que a participação seja de fato ativa e frutuosa para o fiel.

 

3. Conclusão

Como conclusão de toda esta reflexão, cito o número 2 da Sacrossanctum Concilium:

A liturgia, com efeito, mediante a qual, especialmente no divino sacrifício da eucaristia, “se atua a obra da nossa redenção” contribui sumamente para que os fiéis exprimam em suas vidas e manifestem aos outros o mistério de Cristo e a genuína natureza da verdadeira Igreja, que tem a característica de ser ao mesmo tempo humana e divina, visível, mas dotada de realidades invisíveis, operosa na ação e devotada à contemplação, presente no mundo e, contudo peregrina; de tal modo que nela o humano é orientado e subordinado ao divino, o visível ao invisível, a ação à contemplação, a realidade presente à futura cidade para a qual estamos encaminhados. Deste modo a liturgia, enquanto edifica aqueles que estão na Igreja em templo santo no Senhor, em habitação de Deus no Espírito, até atingir a medida da plenitude de Cristo, ao mesmo tempo e de modo admirável robustece as suas forças para que preguem o Cristo; e assim aos que estão fora, ela mostra a Igreja como estandarte erguido diante das nações, sob o qual os filhos dispersos de Deus possam reunir-se na unidade, para que haja um só rebanho e um só pastor.

Esta constante tensão escatológica do reino já presente em germe na Igreja (cf. LG n. 5), mas ainda não completamente revelado (cf. 1Jo 3,2) é o que torna a Liturgia o lugar do perene jorrar do Espírito. Por isso, esta Conferência quer ser mais que uma reflexão estéril, intelectualista e intimista. Se presta a ser um despertar da nossa consciência católica para o Mistério que celebramos. De fato, como Mistério nunca o esgotaremos nem devemos ter a atrevimento de intentá-lo. Basta-nos dele participar.

Vimos a verdadeira Luz, recebemos o Espírito celeste, encontramos a verdadeira fé: adoramos a Trindade indivisível, pois foi ela quem nos salvou[28]. Amém.

Bibliografia de apoio

AA.VV. Revista Anámnesis 1. A liturgia: momento histórico da salvação. Trad. Anacleto Alvarez. São Paulo: Paulinas, 1986. (pp. 127 – 165)

BÍBLIA DE JERUSALÉM, A. 6ª impressão. São Paulo: Paulus, 2010.

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Vozes. Paulus. Paulinas. Loyola. Ave Maria, 1993.

CAVALCANTE. A Santíssima Trindade e a Igreja na liturgia. Uberlândia: A Partilha, 2008

CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Dogmática Lumen Gentium. In: Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. 3. ed. São Paulo: Paulus, 1997.

CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Sacrossanctun Concilium sobre a Sagrada Liturgia. In: Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. 3. ed. São Paulo: Paulus, 1997.

CORBON, Jean. A fonte da Liturgia. Trad. José de Leão Cordeiro. Lisboa: Paulinas, 1999.

COSTA, V. S. Viver a ritualidade litúrgica como momento histórico da salvação. Participação litúrgica segundo a Sacrossanctum Concilium.São Paulo: Paulinas, 2005. (Col Viver a fé)

CURY, A. J. Os segredos do Pai-Nosso. Vol. 1. Rio de Janeiro: Sextante, 2006.

GRÜN, Anselm. Se quiser experimentar Deus. Com textos meditativos de Maria-Magdalena Robben. Trad. Carlos Almeida Pereira. Petrópolis: Vozes, 2001.

 


[1] Termo caro à Igreja Ortodoxa

[2] Cf. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, n. 477

[3] São várias metáforas que Paulo usa para significar a Igreja. Entre elas, o Corpo como em 1Cor 12,12-14. Em Rm 12,5 aponta ele a função dos membros no Corpo. Ef 3,6 universaliza a salvação até os gentios, fazendo-os participar do único corpo (cf. Ef 4,4). Em Ef 5,23-28a alude ele à purificação do Corpo realizado por Cristo em vista da salvação deste. No Hino Cristológico de Colossenses, retoma São Paulo a imagem da Cabeça/Corpo para ressaltar a proeminência do Cristo, o Kyrios, diante do Corpo, sua Igreja. Por fim em Col 1,24 São Paulo une seu sofrimento ao de Cristo pelo bem do Corpo Místico.

[4] Aqui trataríamos do sacerdócio comum, tema de outra conferência.

[5] Cf. Paulo VI. Laudis Canticum, n.1

[6] Cf. CORBON. A fonte da liturgia, Lisboa: Paulinas, 1999, p. 46.

[7] Idem

[8] Cf. CORBON. A fonte da liturgia, Lisboa: Paulinas, 1999.

[9] O sentido de Igreja no grego é Ekklesia: Assembléia dos convocados, o mesmo que no hebraico QHL-IHWH.

[10] Cf. São Bernardo, In Canticum Sermones 27,14. Citado por: CAVALCANTE. A Santíssima Trindade e a Igreja na liturgia. Uberlândia: A Partilha, 2008 p.25

[11] Cf. CORBON. A fonte da liturgia, Lisboa: Paulinas, 1999

[12] Cf. Idem, pg. 135

[13] Cf. Ibidem, pg 136

[14] Cf. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, n. 1383

[15] Cf. Ibid, pg. 147

[16] Cf. GRÜN, 2001, p.73

[17] Idem, p.78

[18] Ibidem, p. 89

[19] Cf. CURY, 2006, p. 53

[20] Cf. Idem, p. 53/4

[21] Cf. LG, nº 48

[22] CF. COSTA, V. S. Viver a ritualidade litúrgica como momento histórico da Salvação. Participação litúrgica segundo a Sacrossanctum Concilium. São Paulo: Paulinas, 2005, pg. 58.

[23] Cf. CORBON, 1999, p. 157

[24] Aludo aqui ao n. 1 da Laudis Canticum de Paulo VI, para abalizar esta fala e constatar a mesma teologia apresentada por Corbon presente na Igreja latina.

[25] Cf. CORBON, 1999, p. 38-40

[26] Cf. COSTA, 2005. Pg.59

[27] Cf. COSTA, 2005. pg.46-47

[28] Liturgia bizantina, Tropário de Vésperas de Pentecostes, retomado nas Liturgias eucarísticas após a comunhão.

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Para citar:

ALVES, Pe. Luis Fernando. A natureza da Sagrada Liturgia e sua importância na vida da Igreja. Apologistas Católicos. Disponível em: <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/catequese/liturgia/486-a-natureza-da-sagrada-liturgia-e-sua-importancia-na-vida-da-igreja>

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