Sábado, Dezembro 21, 2024

A infalibilidade do povo cristão ao crer segundo os Padres da Igreja

O “sensus fidelium” nos Santos Padres

Eis os principais textos dos Padres, coligidos de nossas leituras e de citações feitas pelos autores que visam a questão do sensos fidelium[1]. Alinham sob dois pontos principais de argumentação:

1.º Se se recusa a crer como crêem os católicos, torna-se vã a fé de todo um povo, o que é impossível:

Tertuliano, Praescr., 28: “Ora bem, imagina que todos erraram; o Apóstolo enganou-se ao dar testemunho; o Espírito Santo não assistiu a nenhuma (igreja), para a conduzir à verdade, Ele que tinha sido enviado por Cristo, e que tinha sido pedido ao Pai para ser doutor da verdade; imagina que o Espírito Santo, o superintendente de Deus, o vigário de Cristo, negligenciou o seu dever, deixando que as igrejas por vezes entendessem diferentemente e cressem diferentemente o que Ele pregava por meio dos Apóstolos. Mas será que é verosímil que tantas e tão grandes igrejas tenham errado [para se encontrarem] numa mesma fé?”

São Gregório Nazianzeno, Ep. 102 (2 ad Cledon.) (P.G., 37, 200): “Se isso não for verdade [a fé católica sobre a divindade de Cristo e a Encarnação] nossa fé é vã, foi em vão que os mártires morreram, e que tantos bispos governaram os povos…”

São Basílio, Adv. Eunomium, lib. 3, c. 1 (P.G., 29, 654): “Desprezando a convicção da multidão que glorifica o Espírito Santo (como Deus), ele se apresenta como mantenedor da doutrina dos santos…”

São Jerônimo, Contra Vigilantium, n. 5 (P. L., 23, 343): “… Seriam loucos então, os povos de todas as Igrejas, quando corriam para diante das relíquias…?”

2.º Argumentação em favor de uma doutrina a partir do uso e da crença das comunidades.

No Oriente. – Santo Epifânio, Adv. Haer. Panar., haer. 78, c, 6 (P.G., 42, 705): “Houve alguém, em algum tempo, que tenha ousado invocar o nome de Maria, a santa, sem acrescentar imediatamente: a virgem…?”

São Nicéforo, em sua luta contra os imperadores iconoclastas, argumentava pela “fé dos fiéis, sua inclinação interior e espontânea, o piedoso e justo cuidado, a solicitude de que os cerca, o costume transmitido à Igreja, estabelecido há tanto tempo e contínuo…[2]

No Ocidente, Santo Agostinho oferece-nos textos em abundância[3]. Invoca a prática da Igreja ou o que chama de dogma populare (Opus imperf.. C. Julian., lib. 2, § 5: P.L., 45, 1143) particularmente em quatro pontos: 1.º – o não re-batizamento dos hereges: Contra Crescon., lib. 2, c. 32 (43, 490); De bapt. Contra Donat., lib. 2, c. 9, n. 14 (43, 135); 2.º – a necessidade da graça, atestada pelo sentido que os fiéis dão à oração: De dono perseverantiae, c. 23, n. 63, (45, 1031); De natura et gratia, n. 52 (44, 272: “Vejamos, pois, como responde (Pelágio) à objeção que se propõe, com uma solução intolerável para o coração cristão…”); n. 59 (275), etc; 3.º – a canonicidade de livros bíblicos como, por ex., a Sabedoria, que é escutado “todos os cristãos, desde os bispos aos últimos leigos, penitentes, catecúmenos, o escutam venerando a divina autoridade” (De praedest. Sanct, n. 27: 44, 980). Falando de passagem, esse ponto do papel das comunidades de base e dos fiéis na própria constituição do cânon mereceria um estudo completo; 4º – principalmente, afinal, a necessidade, mas também a eficácia do batismo para a salvação de todos, especialmente das crianças que têm o pecado original: Sermo 294, c. 17 (38, 1346: “se sente oprimido pelo peso da madre Igreja… mas se sentem coibidos pela autoridade da Igreja”): De peccatorum meritis et remiss., lib. 1, c. 24, n. 34 (44, 128: os Punici sabem que o batismo é a salvação e a eucaristia a vida); Epist. 194, n. 31 (33, 885: “a autoridade evangélica, ou melhor quebrantados pela concórdia unânime da fé dos povos cristãos”); Opus imperf. C. Julian., lib. I, § 19 (45, 1058: “Não haveria dito que nós temos atiçado o sentimento do povo cristão contra vós se não soubesse muito bem que a multidão cristã, sem distinção de sexos, conhece a fé católica que tu te empenhas em aniquilar”)  id., § 33 (col. 1062: “As massas plebeias das quais tu zombas conhecem a fé católica e confessam que as crianças são salvas pelo único Salvador, e, em consequência, detestam o erro dos pelagianos, que negam esta verdade”); Contra Julianum, lib. 1, c. 7, n. 31 (44, 662: “Não é, como você calunia, que nós apenas colocamos o murmúrio da população contra você – embora a própria população murmure contra você pelo fato de que esta não é uma questão que pode escapar do conhecimento popular. Rico e pobre, o que é perdoado para cada idade no batismo….” e cf. n. 32 e lib. 2, n. 36; lib. 6, n. 22); De cura pro mortis gerenda, lib 1, n. 3 (40, 593); etc.: cf. MÁRTIL, op. Cit.

Ver ainda De utilitate credendi, c. 17, n. 35 (42, 90-91).

Esses temas deram a todos que receberam influência de Santo Agostinho o cuidado ou o sentido da fé de toda a Igreja. Cf. Paulino de Nola, contemporâneo de Agostinho, Epist. XXIII, n. 25 (P.L., 61, 281: “Nós dependemos da boca de todos, porque o Espírito de Deus inspira todo o fiel”); Celestino I, Epist. ad episc. Galliae, n. 12-14 (P.L., 45, 1759). Foi principalmente na escola lerinense que a idéia de infalibilidade da fé do povo cristão em seu conjunto foi elaborada sistematicamente: é ela, no fundo, que inspira o famoso cânon lerinense Quod ubique… Notar-se-ão principalmente dois textos, que correspondem ao primeiro e clássico ponto de argumentação:

São Vicente de Lérins, Commonitorium, c. 24 (P.L., 50, 670): As doutrinas heterodoxas são aquelas “que não tem nada de sagrado nem de religioso, e é totalmente estranho ao santuário da Igreja, templo de Deus”… “Levará necessariamente a dizer que todos os fiéis de todos os tempos, todos os santos, os castos, os continentes, as virgens, os clérigos, os levitas e os bispos, os milhares de confessores, os exércitos de mártires, um número imenso de cidades e de povos, ilhas e províncias, de reis, de pessoas, de reinos enações, em uma palavra, o mundo inteiro incorporado a Cristo cabeça mediante a fé católica, durante um grande número de séculos tinha ignorado, errado, blasfemado, sem saber no que deveria crer…”.

Cassiano, De incarnatione, lib. 1, c. 6 (P. L., 50, 29): “Portanto, todos os bispos Africanos, donde [Lepório] escrevia e todos os bispos galicanos, para quem ele escrevia, comprovaram esta fé, isto é, a fé de todos os católicos. E até agora não existe um sequer a quem esta fé lhe desagrade sem incorrer no crime de infidelidade, porque a profissão da impiedade é negar a piedade comprovada. Por conseguinte, para refutar a heresia, deveria agora bastar apenas o consenso de todos, porque a manifestação da verdade indubitável é a autoridade de todos, e a recta razão sempre residiu onde ninguém discordou”.

O tema da fé da comunidade eclesial universal, sempre presente na teologia católica, encontrar-se-á mais especialmente entre os autores de tradição agostiniana como, por exemplo, na época da Reforma, em um Driedo[4]. O Concílio de Trento que, diante da revolução protestante, assumirá a tarefa de formular a tradição comum da Igreja no estado de seu desenvolvimento então atingido, não deixará de invocar várias vezes o sensus Ecclesiae.[5]

 

 

[1] Para limitarmos aos autores recentes, cf. por ex.: FRANZELIN, De traditione, thes. XI e XII; BRUGÈRE, De Ecclesia Christi, 2ª ed., Paris, 1878, p. 274-277; MAZZELLA, De religione et Ecclesia, p. 304-306; J. V. BAINVEL, De Magisterio vivo et Tradit., n. 92-94 (a melhor exposição); J. DE GUIBERT., De Ecclesia, n. 291-394; HERVÉ, Manuale Theol. dogm., t. I, n. 593-596; H. VAN LAAK, Theses quaedam de Patrum et Theologorum magistério necnon de fidelium sensu. Roma, 1933 (p. 50 s): este último autor está longe de levar as conclusões até o ponto em que lhe permitiriam ir os textos que cita e seus próprios princípios.

[2] “Fides nimirum et credentium interior ac spontanea proctivitas et circa ipsas pia ac rectissima cura ac studium, necnon tradita Ecclesiae diuturnoque stabilita et permanens consuetudo”. Cit, por R. WEHRLÉ, De la coutume em droit cononique. Paris, 1928, p. 75, n. 1.

[3] Cf. também G. MÁRTIL, La tradición em San Augustin a través de la controvérsia pelagiana. Madri, 1943, p. 93 s.

[4] Cf. J. LODRIOOR, La notion de tradition dans la théologie de Jean Drtedo, em Ephem. Theol. Lovan., 26 (1950), p. 37-53; cf. p. 45.

[5] Por exemplo sess XIII, c. 1 (Denzinger, 874): “Ita enim majores nostri omnes, quotquot in vera Christi Ecclesiae fuerunt…” “contra universum Ecclesiae sensum detorqueri…” (trata-se da interpretação dada ses textos eucarísticos, por toda a Igreja).

 

FONTE

CONGAR, Yves-Marie-Joseph. O “sensus fidelium” nos Santos Padres. Os leigos na igreja : escalões para uma teologia do laicato, 1966, Herder, pp. 472-474. 

 

PARA CITAR 

CONGAR, Yves-Marie-Joseph. A infalibilidade do povo cristão ao crer segundo os Padres da Igreja (este título é por conta do Editor). Disponível em <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/apologetica/igreja-catolica/1002-a-infalibilidade-do-povo-cristao-ao-crer> Desde 19/12/2017.

 

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Artigos mais populares