Sábado, Dezembro 21, 2024

A infalibilidade da Igreja e o Novo Ordo

Segundo a perspectiva católica, quaisquer discussões de questões fáticas ou de cunho teológico devem estar atentas e subordinadas às doutrinas já infalivelmente ensinadas pela Igreja Católica. O católico não pode se indagar se determinado fato é ou não é conforme a uma verdade infalivelmente ensinada pela Igreja; ele pode somente se indagar (eventualmente) como é que tal fato, supostamente estabelecido com certeza, é conforme ao dogma (ou não lhe é contrário)[1]. Conforme expressa o relatório de Schrader-Maïer no Concílio Vaticano I, com relação às objeções históricas contra a infalibilidade papal, por exemplo, “se fatos da história lhe forem opostos, devem estes certissimamente ser tidos por falsos, na medida em que se mostrem contrários a ela”. (Mansi 52, 24 C-D) Esse deve ser o modo que o católico avalia os acontecimentos do curso da história da Igreja. Esse maneira de proceder tem a vantagem de não nos deixar levar por vaidades e paixões que as nossas opiniões pessoais e preferências iniciais podem nos encaminhar. Hoje em dia muitos católicos querem discutir sobre o Ordo da Missa de São Paulo VI como se tratasse de temas disputados, quando na realidade é a própria infalibilidade da Igreja está em jogo. Esse é o tema que vamos nos ocupar nesse artigo. Antes de qualquer apologia sobre o Missal em si mesmo considerado devemos estabelecer sua autoridade.

A infalibilidade da Igreja em suas leis (litúrgicas e disciplinares) universais é uma proposição teologicamente certa, segundo a teologia tradicional. Salaverri define essa nota teológica assim: “Teologicamente certa é a proposição que se deduz das Fontes da revelação, mediante outra verdade naturalmente certa, a base de uma dedução própria e estrita”. Diz-se ainda que a proposição de tal natureza é “de fé em geral” e  “de fé eclesiástica”. Essa última expressão indica que a verdade é apenas indiretamente ou virtualmente pertencentes ao depósito da Fé.

Quando os Padres do Concílio Vaticano I ensinaram a infalibilidade da Igreja deliberadamente quiseram que abrangesse não somente as verdade de fé divina, mas também as de “fé em geral” ou “de fé eclesiástica”. Nesse sentido, novamente Salaverri:

“90. Doutrina de fé ou de costumes é a expressão que os Padres do Concílio Vaticano I entenderam neste sentido genérico.

Com efeito, o Relator GASSER, em nome da Comissão para a Doutrina da Fé ao explicar aos Padres do Concílio a definição da infalibilidade pontifícia diz: “A presente definição indica somente de um modo genérico o objeto da infalibilidade, a saber, quando diz que um ensinamento é doutrina de fé ou de costumes”. E nos parágrados seguintes explica como ficam incluídas “neste objeto indicado desta forma genericamente” no primeiro termo “as verdades que pertencem aos Depósito da Fé”, e depois também aquelas, “as quais embora não sejam em si reveladas, contudo se requerem para custodiar integralmente, explicar devidamente e definir com eficácia o próprio depósito da revelação”.

Assim, pois, as proposições, que se referem deste modo genericamente à fé, quando os Teólogos não querem ou não podem determinar ulteriormente se ditas proposições pertencem ao depósito da fé somente virtual e indiretamente, ou também formal e diretamente, costumam denominá-la com a expressão de fé em geral. E, por conseguinte, as proposições contrárias podem se chamar com o nome de erros acerca da fé”. (Sacrae Theologiae Summa. 5 ª ed. Madrid: BAC 1962)

A infalibilidade da Igreja em suas leis universais, portanto, não é um tema passível de discussões. Foi ensinada pelo Concílio de Trento claramente:

“Se alguém disser que os ritos recebidos e aprovados da Igreja Católica, em uso na administração solene dos sacramentos, podem ser desprezados ou omitidos sem pecado, ao bel-prazer dos ministros, […] seja anátema”.

O Papa Pio VI na Auctorem Fidei também é uma fonte no mesmo sentido:

“A prescrição do Sínodo referente à ordem das coisas a tratar nas conferências com as quais, depois de ter dito que “em qualquer artigo é preciso distinguir o que pertence ao fim e à essência da religião daquilo que é próprio da disciplina”, acrescenta que “nessa mesma (disciplina) é preciso distinguir, daquilo que é necessário ou útil que os fiéis guardem no espírito, o que é inútil ou pesado demais para que a liberdade dos filhos da nova aliança o suporte e, mais ainda, o que é perigoso ou nocivo, por induzir à superstição e ao materialismo”; dado que pela generalidade das palavras abraça e expõe ao exame acima descrito também a disciplina instituída e aprovada pela Igreja, como se a Igreja, que é conduzida pelo Espírito de Deus, pudesse estabelecer uma disciplina não somente inútil e pesada demais para que a liberdade cristã a suporte, mas também perigosa, nociva e induzindo à superstição e ao materialismo: falsa, temerária, escandalosa, perniciosa, ofensiva aos piedosos ouvidos, injuriosa para a Igreja e para o Espírito de Deus por quem ela é conduzida, no mínimo errônea.” (Constituição Auctorem Fidei, DS 2678)

É comum ver tradicionalistas tentarem relativizar as citações acima expressas, argumentando que elas são contextualmente localizadas, pois teriam valor apenas para os ritos administrados naquele tempo e não mais. Essa interpretação é contrária à teologia tradicional que sempre fez uso de tais citações como prova da infalibilidade das leis universais. Vejamos dois exemplos:

“b) A Igreja por isso mesmo reivindica a infalibilidade em matéria de disciplina Alguns exemplos: Concílio de Constança declara sobre a comunhão sob uma espécie (D 626): “É errôneo sustentar que a observância deste costume ou lei é sacrílega ou ilícita; e os que se obstinam em sustentar o contrário devem ser tratados como hereges e punidos severamente” Trento anatematizou (D. 856. 954), quem disser, que os ritos que a Igreja preceitua na administração de sacramentos e celebração da missa, possa conter algo inútil e oposto aos bons costumes. Pio VI sobre a proposição do sinodo pistor. (D. 1578) que afirma que a Igreja possa instituir disciplina inútil, prejudicial, declarou “injuriosa para a Igreja e para o Espírito de Deus, no mínimo errônea.”; h. e. opostas entre si, pelo menos, é a conclusão de uma doutrina teológica definida pela Igreja.” (Pe. Ludovico Lercher, Institutiones theologiae dogmaticae, v. 1, 1945: L. 2, c. 4, a. 2, th. 53, n. 510, litteris b – p. 304)

“3) Em relação decretos disciplinares em geral que são, pela sua finalidade [finaliter] relacionadas com coisas que Deus revelou.

“A. O objetivo do Magistério infalível exige infalibilidade de decretos desse tipo …. Especificamente, que a Igreja afirma infalibilidade para si mesma nos decretos litúrgicos, foram estabelecidas pela lei, nos Concílios de Constança, e Trento solenemente promulgou a respeito da comunhão eucarística sob uma só espécie.

Isso também pode ser abundantemente comprovado de outros decretos, pelas quais o Concílio de Trento solenemente confirmou os ritos e cerimônias utilizadas na administração dos sacramentos e da celebração da Missa”. (Joaquín Salaverri, Sacrae Theologiae Summa. 5 ª ed. Madrid: BAC 1962. 1: 722, 723)

Mas devemos estabelecer corretamente o alcance dessa infalibilidade. O sentido dessa infalibilidade é que é impossível a autoridade eclesiástica promulgar uma lei geral contrária à reta fé ou aos bons costumes ou ordenar algo pernicioso aos fiéis. Porém, “a Igreja não possui um juízo infalível sobre se uma lei promulgada por ela é a forma mais apropriada às circunstâncias ou é prematura ou antiquada”[2].

O Ordo Missae de São Paulo VI foi aprovado e promulgado pela Constituição Apostólica Missale Romanum, de 03 de abril de 1969 e pelo Decreto da Sagrada Congregação dos Ritos em 06 de abril de 1969, e a Nova edição típica do Missal Romano promulgada pela Sagrada Congregação do culto divino em 26 de março de 1970. As expressões utilizadas pela Constituição Missale Romanum e pelos sucessivos decretos das Congregações do Culto divino e dos Ritos não deixam margem de dúvida sobre a obrigatoriedade do Ordo Missae. Em Anexo citaremos todos os documentos que dizem respeito à promulgação, publicação e obrigatoriedade do Ordo Missae. Contentaremo-nos aqui em citar as expressões fortes da Constituição Apostólica Missale Romanum. Vejamos:

Missale Romanum:

“(Título) Constituição Apostólica. Pelo qual o Missal Romano, restaurado por decreto do Concílio Ecumênico Vaticano II, é promulgado”.

“Em primeiro lugar temos a Instrução Geral que, como Proêmio do livro, expõe as novas normas para a celebração do Sacrifício Eucarístico, tanto em relação aos ritos e funções de cada participante, como às alfaias e lugares sagrados”.

“Neste ponto, decretamos (stauiimus) que três novos formulários de Orações Eucarísticas fossem acrescentadas ao Cânon Romano, além de enriquecê-los com grande número de Prefácios, tirados da antiga tradição na Igreja Romana ou compostos agora, a fim de manifestar melhor os vários aspectos do mistério da fé, e oferecer mais numerosos e fecundos motivos de ação de graças”.

“No entanto, por motivos de ordem pastoral e para facilitar a concelebração, estabelecemos (iussimus) que as palavras do Senhor sejam as mesmas em todos os formulários do Cânon”.

“E assim, é Nossa vontade (volumus) que estas palavras sejam ditas assim em cada Oração Eucarística”.

“O que prescrevemos por esta nossa Constituição entrará em vigor este ano, a partir do dia 30 de novembro, primeiro domingo do Advento”.

“Queremos (volumus) que tudo o que aqui estabelecemos e ordenamos (praescripta) seja válido e eficaz, agora e no futuro, não obstante a qualquer coisa em contrário nas Constituições e Ordenações Apostólicas dos nossos predecessores, e outros estatutos, embora dignos de menção e derrogação especiais”.

Frente a esse argumento de autoridade os tradicionalistas se viram encurralados. Eles foram obrigados ou a minimizar a tese da infaliblibilidade das leis gerais ou a negar legitimidade da promulgação do Novus ordo, pois queriam a todo custo insistir com a narrativa tosca de que o Novus Ordo é heretizante, protestantizado e que causa prejuízo às almas. Alegações que, evidentemente, contrariam em termos a tese da infalibilidade da Igreja em suas leis universais. Vamos tratar das objeções tradicionalistas uma por uma. Deixaremos em vermelho a descrição das objeções, enquanto nossa resposta manterá a cor padrão do texto.

Os Padres Matthias Gaudron da FSSPX[3] e Élcio Murucci[4] argumentam que nem toda lei universal é infalível. Há condições para que uma lei universal seja considerada infalível, pois a autoridade eclesiástica necessita promulgá-la com toda a sua autoridade e querendo engajar a sua infalibilidade, segundo o parecer dos reverendos. Nesse sentido, cita-se um discurso de Paulo VI em 19 de novembro de 1969 para confirmar: “O rito e a respectiva rubrica por si NÃO SÃO UMA DEFINIÇÃO DOGMÁTICA; SÃO SUSCEPTÍVEIS DE UMA QUALIFICAÇÃO TEOLÓGICA DE VALOR DIVERSO, segundo o contexto litúrgico a que se referem…”. Exemplifica-se que o Pontifical Romano conteve, por muito tempo, uma rubrica recomendando ao Bispo de bem velar, na hora da ordenação do sacerdote, para que este tocasse o cálice e a patena, pois seria através disso que o caráter sacerdotal seria impresso. Essa rubrica foi suprimida por Pio XII (Sacramentum ordinis 1947) precisando que somente a imposição das mãos é matéria essencial da ordenação sacerdotal. Além disso, o Pontifical Romano do século XIII continha um erro ao afirmar que a Consagração do vinho no Sangue de Cristo poderia ser realizada, mesmo sem as palavras da Consagração, tão só pelo contato do vinho com uma Hóstia consagrada.

Como responder esse parecer? Não passa de sofisma. Primeiro, os teólogos nunca falaram de demais condições para a existência da infalibilidade dos decretos universais, tanto que os reverendos não puderam mencionar qualquer autoridade teológica falando de “lei universal, promulgada pela autoridade da Igreja, não infalível”. Isso seria confundir a infalibilidade disciplinar com a infalibilidade doutrinal. A infalibilidade é simplesmente aplicada às leis universais e, portanto, basta que conceituemos o que é uma lei universal. O Padre Goupil sobre a matéria diz:

“O que é a lei disciplinar. Não se trata aqui expressamente das leis divinas, por exemplo a unidade do casamento, mas das leis eclesiásticas, isto é, realizadas pela Igreja por sua própria autoridade, por exemplo o celibato eclesiástico, o domingo de santificação, etc. Estas não são leis específicas e restritas, por exemplo, a um país, como podem ser certas festas obrigatórias, mas leis gerais, universais, pelo menos para um ramo inteiro da Igreja, como o Código de Direito Canônico para todo Igreja Latina. É claro que a mesma autoridade da Igreja que aplicou essas leis, pode modificá-las ou revogá-las; todos são, portanto, reformáveis”. (P. Auguste-Alexis GOUPIL, La Règle de la Foi, Le Magistère vivant – La Tradition Le développement du dogme, 1941)

A infalibilidade, como estabelecemos acima, é no sentido prático e não necessariamente especulativo, quer dizer, implica que a lei é conforme a regra divina de fé e moral e tende para o bem da sociedade e, portanto, não pode ser prejudicial à sociedade cristã. Por isso, o conteúdo da Liturgia (com suas orações, preces e festas) pode possuir valor teológico diverso. Nem tudo que está na Liturgia é, necessariamente, infalivelmente verdadeiro, especulativamente falando. As Festas da Imaculada Conceição e Assunção de Nossa Senhora estavam presentes na Liturgia[3] antes mesmo de ser proclamado os dogmas pelo Magistério ordinário e universal e pelo Magistério extraordinário[4]. Não se deve confundir, portanto, a infalibilidade disciplinar com a infalibilidade doutrinal, pois como diz o Padre Goupil “uma lei, em si mesma, estritamente falando, não é verdadeira nem falsa; não afirma ou nega expressamente nada; ele ordena ou nos proíbe de fazer algo. Portanto, não se enquadra sob uma definição definição do Magistério”. (Op. cit). Vejamos também o que diz o Padre Thomas Pègues sobre a matéria:

“A autoridade de governo, no Soberano Pontífice, deve ser considerada absoluta. Quando o Papa comanda, e sob qualquer forma em que ele comande, todos na Igreja devem obedecer. Mas é necessário dizer que o Papa, quando comanda, mesmo como Papa e enquanto chefe da Igreja, não pode enganar-se? Cumpre falar aqui de infalibilidade? Não pode se tratar, em todo o caso, de um infalibilidade idêntica à Infalibilidade doutrinal. Ninguém admite que o Papa, quando comanda, ordene necessariamente tudo o que há de melhor e de mais excelente para o bem dos indivíduos, dos diversos grupos, ou da Igreja inteira. Não se trata de uma infalibilidade positiva. Trata-se somente de uma infalibilidade negativa; e isso equivale a dizer que o Papa não tem como ordenar nada que vá contra o bem definitivo daqueles a quem ele se dirige. Nesse sentido, será dificílimo de não admitir que o Papa é infalível, ao menos quando se trata de leis ou de medidas disciplinares que obrigam toda a Igreja. Mas, como se vê, não se trata mais da Infalibilidade em sentido estrito” (Rev. Pe. Thomas PÈGUES, O.P., L’Autorité des Encycliques pontificales, d’apres saint Thomas [A autoridade das Encíclicas pontifícias segundo Santo Tomás de Aquino], in: Revue Thomiste, XII, 1904, pp. 513-32, cit. à p. 520-1).

Por outro lado, muitas vezes, a Liturgia expressa dogmas já definidos pelo Magistério extraordinário ou já declarados como revelados pelo Magistério ordinário universal ou doutrinas católicas ensinadas pelo Magistério meramente autêntico. Além disso, algum conteúdo presente na Liturgia pode ser ocasião para que o Magistério ordinário universal se imponha infalivelmente. Nesse sentido, duas autoridades sobre a matéria:

“Então, no que diz respeito a liturgia, embora não se possa dizer, como pensam os modernistas, que essa cria os dogmas, todavia, precisamente porque a liturgia reflete a fé da Igreja, é uma evidência de muitos dogmas, e, portanto de muitas verdades teologicamente certas.” (Pe. Cartechini, De Valore Notarum Theologicarum, parte I, ano 1951)

 A liturgia “pressupõe e expressa a fé divina e católica já proposta pelo magistério por outros meios.” (Pe. Cipriano Vagaggini, El sentido teologico de la liturgia, 488, 1959)

“A liturgia não cria dogmas, mas ela exprime dogmas…” (Ibid)

“Nestes casos a liturgia é uma expressão sui generis da fé divina e católica já proposta pelo magistério e aceitada pelos fiéis.” (Ibid, p. 489).

É nesse sentido que devemos entender a citação de São Paulo VI sobre a qualificação teológica diversa presente na Liturgia. A propósito, a citação referida dá provas de nossa explicação, pois São Paulo VI estava se referindo principalmente ao Ordo antigo e suas rubricas para demonstrar que as mudanças não afetam verdades sancionadas da fé católica. Vejamos todo o contexto de sua fala:

“Alguém pode talvez ficar impressionado por alguma cerimônia particular, ou por alguma rubrica anexa, como se isso fosse ou ocultasse uma alteração, ou um comprometimento de verdades para sempre adquiridas e autoritativamente sancionadas da fé católica, como se a equação entre a lei da oração, “lex orandi” e a lei da fé, “lex credendi”, foram comprometidos.

Mas não é assim. Absolutamente. Em primeiro lugar, porque o rito e a rubrica relativa não são em si uma definição dogmática, e são suscetíveis de uma qualificação teológica de valor diverso de acordo com o contexto litúrgico a que se referem; são gestos e termos que se referem a uma ação religiosa vivida e viva de um mistério inefável da presença divina, nem sempre realizada de forma unívoca, ação que só a crítica teológica pode analisar e expressar em fórmulas doutrinais logicamente satisfatórias”.

Para mais sobre a matéria apresentamos no ANEXO II um longo excerto da obra do padre Cipriano Vagaggini esclarecendo sobre a diferente valoração teológica presente na Liturgia.

O Pontifical Romano errou sobre matéria do sacramento da ordem como refere nosso objetor? Cremos que não. Mas mesmo se houvesse erro em nada afetaria a infalibilidade da lei universal, pois esse suposto erro não seria grave, correspondendo a visão comum da teologia da época, crida inclusive por Santo Tomás[5] e ensinada pelo Concílio de Florença. A definição sobre a matéria só apareceu em meados do século XX. Antes disso, a Igreja sempre permitiu a discussão teológica livre sobre o tema.

Mas dizemos que não há erro sobre o assunto, baseados nas autoridades de Billuart e Garrigou-Lagrange. A explicação é simples e foi sugerida inclusive pelo documento do Papa Pio XII. A Igreja instituiu certos sacramentos in genero e outros in specie. O Batismo, a Eucaristia e a Penitência foram instituídos em espécie, quer dizer, com forma e matérias específicas designadas por Jesus Cristo. Por outro lado, o Crisma e a Ordem foram instituídos em gênero, portanto, com a forma e a matéria sob certo poder da Igreja, desde que signifiquem univocamente os efeitos sacramentais. Assim, é possível a Igreja estabelecer alguma coisa como inclusa na matéria da ordem e, como tal, necessária para a validade do sacramento, sem que isso implique qualquer contradição. Pio XII mesmo assinalava na ocasiãio: “Se em algum momento foi necessário até mesmo para a validade, pela vontade e comando da Igreja, todos sabem que a Igreja tem o poder de mudar e revogar o que ela mesma estabeleceu.” (Constituição Apostólica “Sacramentum Ordinis”).

Vejamos a explicação do Pe. Garrigou-Lagrange:

“Princípio de solução cada vez mais admitido: segundo Billuart e, mais recentemente, o Cardeal Billot, Hugon, Hervé e diversos outros, o princípio de solução é o seguinte: Cristo não instituiu a matéria desse sacramento determinando especificamente que esta ou aquela coisa seria a matéria, mas determinando de maneira geral que ele haveria de ser conferido mediante sinal sensível significativo do poder transmitido. Isso basta à instituição do sacramento por Cristo, pois todo sacramento é ‘especificado’ propriamente pelo efeito ao qual ele está essencialmente ordenado. Assim, Cristo deixou à Igreja, tal como com a confirmação, a determinação última da matéria do sacramento da ordem.” (De Eucharistia, pp. 414-415).

Houve erro do Pontifical Romano do século XIII ao afirmar que a Consagração do vinho poderia ser realizada, mesmo sem as palavras da Consagração, tão só pelo contato do vinho com uma Hóstia consagrada? Nossa resposta é não, mas será preciso distinguir. Mas ainda que houvesse erro, novamente, em nada afetaria a tese já descrita. Algum principiante pode imaginar que o Pontifical romano foi uma coleção publicada pelo Romano Pontífice, mas na realidade contém rituais, rubricas e formulários para sacramentos e sacramentais realizados pelos bispos. O Pontifical tem origens e fontes diversas. A Liturgia medieval não passava pela aprovação direta do Papa. Foi no século XVI e, a partir daí, que se reservou a aprovação explícita do Papa. Portanto, o erro naquele tempo poderia existir sem afetar a nossa tese, pois não se tratava de leis obrigatórias e gerais, promulgadas pela autoridade máxima da Igreja. O teólogo Cipriano Vagaggini em El sentido teologico de la liturgia, 1959, 478, diz:

“Sabe-se que, antigamente, a composição e ordenação da liturgia se deixou a cada bispo para a porção da Igreja que lhe foi confiada. A liturgia era então, como se diz, de direito episcopal Quero dizer, então, que nas liturgias antigas, está implicada unicamente aquela autoridade doutrinal que compete a cada um dos bispos individualmente em união com o Romano Pontífice e que a ditaram ou aprovaram, ao menos pelo uso que delas fizeram. Somente em tempos relativamente recentes (no século XVI), depois de várias tentativas, reservou-se ao Romano Pontífice a suprema aprovação explícita dos textos e ritos litúrgicos em toda a Igreja. Desde aquele momento a liturgia na Igreja católica é de direito pontifício e a autoridade doutrinal ordinárias (não necessariamente ex cathedra) do Romano Pontífice está nela mais diretamente implicada, inclusive nas liturgias não romanas usadas hoje na Igreja católica… Primeira consequência: não existe dificuldade alguma em que em alguma liturgia particularmente antiga, por um certo tempo, se haja infiltrado fórmulas ou doutrinas não corretas ou francamente com erros. Os bispos individualmente considerados não são infalíveis… Terceira consequência: Desde o momento da aprovação explícita dada pelo Romano Pontífice, inclusive como exercício do magistério ordinário, as liturgias usadas hoje em dia na Igreja católica, podem ser consideradas praticamente como imunes de erro contra a fé e os costumes.”

Por outro lado, não cremos na existência de erro. Seguimos a opinião de Bossuet que a palavra “consecratio” é no sentido de santificação sacramental e não de consagração do sacramento[6]. Com efeito, o próprio Missal antigo utiliza a palavra “consecratio” em sentido diverso do habitual na oração presente próxima a fração da Hóstia: “Que esta união e consagração do Corpo e do Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo aproveite para a vida eterna àqueles que dela participamos. Amém”. Essa é a explicação de Dom Prosper Guéranger:

“Nas palavras que o padre recita quando mistura a partícula ao precioso sangue, a palavra consecratio não deve ser tomada na acepção de consagração sacramental; significa aqui, simplesmente, “reunião de coisas sagradas”. (Missa Tridentina, explicações das orações e das cerimônias da Santa Missa, Editora Permanência, 2010, p. 142)

O Padre Peter Scott da FSSPX defende a tese de que para que uma lei seja universal é necessário que seja ordenada para todo o universo católico[7]. Não sendo a Igreja Latina a Igreja inteira, existindo ritos orientais no resto do mundo, não há de se falar em lei universal e, tampouco, infalibilidade.

Essa objeção talvez seja a mais frágil de todas, embora volta e meia é repetida por tradicionalistas. Já antecipamos sua resposta na citação do Padre Goupil na refutação acima. Vejamos, novamente:

“O que é a lei disciplinar. Não se trata aqui expressamente das leis divinas, por exemplo a unidade do casamento, mas das leis eclesiásticas, isto é, realizadas pela Igreja por sua própria autoridade, por exemplo o celibato eclesiástico, o domingo de santificação, etc. Estas não são leis específicas e restritas, por exemplo, a um país, como podem ser certas festas obrigatórias, mas leis gerais, universais, pelo menos para um ramo inteiro da Igreja, como o Código de Direito Canônico para toda Igreja Latina”. (La Règle de la Foi, Le Magistère vivant – La Tradition Le développement du dogme, 1941)

O Dr. Arnaldo Xavier da Silveira sugere alguns argumentos de forma retórica contra a ortodoxia do Ordo da Missa[8]. Seu pressuposto é que os autores ao falarem da infalibilidade das leis universais não chegaram a um aprofundamento completo do sentido e do alcance dessa tese. Assim, se a lei universal não pode obrigar a pecados mortais, poderia terminar por insinuá-los? Poderia obrigar a pecados veniais?

Essa tentativa do Dr. Arnaldo Xavier da Silveira tem bem em conta a própria avaliação do Ordo Missae feita por muitos tradicionalistas. Nem todos os tradicionalistas dizem que o Novus ordo é herético; parte deles defendem que seria um sistema heretizante ou protestantizado. Obviamente nos dois casos haveria uma falta de ortodoxia, no entanto, a última opinião quer dizer que o Novus ordo foi confeccionado justamente para poder ser interpretado de forma protestante, ainda que no limite uma interpretação católica seja possível tomando cada trecho em particular. O que dizer? Pode a lei universal insinuar um pecado mortal (como é a heresia protestante)?  Essa ideia não pode ser aceita. Não concedemos, tampouco, que os teólogos não esclareceram o alcance da tese. Com efeito, insinuar ou ser ocasião para o pecado mortal indicaria que a lei universal é, de fato, perniciosa e nociva aos fiéis e prejudicial para salvação. Coisa que estabelecemos ser impossível pelos ditos dos teólogos[9] e pelo Magistério. Não bastasse isso, temos o exemplo claríssimo pela condenação de Papa Pio VI ao jansenismo na Auctorem fidei. No contexto, os jansenistas não diziam que as disciplinas da Igreja ordenam à superstição e ao materialismo, mas que “induz[em] à superstição e ao materialismo”, e por isso justamente condenada. Portanto, defender a tese de que o Novus ordo, por suposta ambiguidade, induz a erros sobre a fé na Presença real, Ministério sacerdotal e natureza e fins do sacrifício da Missa é contrário ao ensinamento da Auctorem Fidei. Pode ordenar o pecado venial? O ataque às coisas que dizem respeito ao culto a Deus e à fé católica só pode ser considerado um pecado em matéria grave, então parece que essa sugestão não é relevante para o tema que nos ocupa.

O Padre Álvaro Calderón defende que, atualmente, não há infalibilidade nas leis universais. O pressuposto é que o poder de governo da Igreja deve estar fundado e informado pela verdade proposta pelo Magistério da Igreja para ser infalível. Ocorre que as leis universais, após o Concílio Vaticano II, fundam-se e se informam pelo Magistério liberal do Concílio Vaticano II que não é exercido em nome de Cristo e, portanto, já não são infalíveis[10].

Há uma clara inversão aqui. Se é verdade que o poder de governo deve estar fundado e informado pela verdade do poder doutrinal e que não o estando já não se poderia falar de infalibilidade, então podemos ter certeza que jamais qualquer lei universal promulgada pelo poder de governo da Igreja não atenderá este requisito. Do contrário, as leis universais da Igreja nunca seriam realmente infalíveis e se dependeria sempre do exame privado do fiel sobre o preenchimento dessa condição, típico do subjetivismo protestante que os tradicionalistas foram pedir por empréstimo. É justamente a conformidade com a verdade de fé que a tese da infalibilidade da lei universal reclama absolutamente.

Neri Caponi[11], padres Georges de Nantes[12] e Laisney (FSSPX)[13] põem em questão à própria promulgação da Nova Ordem da Missa pela autoridade competente e, por consequência, a sua obrigatoriedade. O argumento lança-se, especialmente, em face a três trechos da Constituição Apostólcia Missale Romanum ou a ela atribuídos. A ideia central é que a vontade expressa do legislador só era permitir o Novus ordo e não obrigá-lo. Um trecho da Constituição foi habilmente mal traduzido para o francês para dar um tom de autoridade que não existia. Outro trecho não se encontrava na primeira edição típica do Novus ordo, seria uma inserção que não estava no texto original do Papa, mas inventado pela Imprensa do Vaticano. Quanto ao último trecho seria muito fraco para impor uma lei, pois fala que o seguimento do Missal seria um “desejo” (volumus) e que esperava (confidimus) que o Novo Missal fosse recebido.

Para responder, inicialmente, admitimos que as traduções francesa e italiana “traduzem” erroneamente certo trecho do latim. Uma tradução literal do trecho impugnado deveria ser: “Enfim, do que expusemos até agora sobre o novo Missal nos apraz tirar algumas conclusões”. No entanto, nas versões italiana e francesa consta o seguinte sentido para o português: “Por fim, queremos dar força de lei a tudo que até aqui expusemos sobre o novo Missal Romano”.  É verdade que Pierre Jounel argumentou[14] que o texto foi escrito originalmente em francês (e por ele mesmo![15]) e que qualquer imprecisão deveria ser atribuída a versão em latim, que é a verdadeira tradução. Mas esse argumento parece dar razão aos nossos adversários através do axioma de que a “lei dúbia é lei nula”. Não nos prendemos, portanto, nesse trecho para argumentar. Os trechos que julgamos claros em apontar a vontade do legislador quanto à promulgação e obrigatoriedade são aqueles que já indicamos acima:

“(Título) Constituição Apostólica. Pelo qual o Missal Romano, restaurado por decreto do Concílio Ecumênico Vaticano II, é promulgado”.

“Em primeiro lugar temos a Instrução Geral que, como Proêmio do livro, expõe as novas normas para a celebração do Sacrifício Eucarístico, tanto em relação aos ritos e funções de cada participante, como às alfaias e lugares sagrados”.

“Neste ponto, decretamos (stauiimus) que três novos formulários de Orações Eucarísticas fossem acrescentadas ao Cânon Romano, além de enriquecê-los com grande número de Prefácios, tirados da antiga tradição na Igreja Romana ou compostos agora, a fim de manifestar melhor os vários aspectos do mistério da fé, e oferecer mais numerosos e fecundos motivos de ação de graças”.

“No entanto, por motivos de ordem pastoral e para facilitar a concelebração, estabelecemos (iussimus) que as palavras do Senhor sejam as mesmas em todos os formulários do Cânon”.

“E assim, é Nossa vontade (volumus) que estas palavras sejam ditas assim em cada Oração Eucarística”.

“O que prescrevemos por esta nossa Constituição entrará em vigor este ano, a partir do dia 30 de novembro, primeiro domingo do Advento.

“Queremos (volumus) que tudo o que aqui estabelecemos e ordenamos (statuta et praescripta) seja válido e eficaz, agora e no futuro, não obstante a qualquer coisa em contrário nas Constituições e Ordenações Apostólicas dos nossos predecessores, e outros estatutos, embora dignos de menção e derrogação especiais”.

São os dois últimos que os objetores atacam. O que dizer?l Começamos pelo último. Essa forma de prescrever uma lei obrigatória sempre foi comum na Igreja. Volumus quer dizer “vontade” / “querer” e soa sempre como força e não uma possibilidade ou um mero desejo. A Quo Primum de São Pio V usa idêntica expressão ao impor a Missa Tridentina: “Queremos (volumus) e, pela mesma autoridade, decretamos que, depois da publicação de Nossa presente Constituição e deste Missal, todos os padres sejam obrigados a cantar ou celebrar a Missa de acordo com ele: os que estão na Cúria Romana, após um mês”. São Pio X prescreveu regras para aqueles que deveriam ser ordenados quanto à boa doutrina e moral pura usando as seguintes expressões: “Quae igitur sequuntur sancte in posterum praestanda volumus (queremos) et mandamus”. E termina o documento com as seguintes expressões: “Pontificia decreta quae adhuc vigeant, et Vicariatus Nostri urbani consuetudines, quae hoc Motu-proprio Nostro non sint mutata vel abrogata, vim omnem ac robur in posterum etiam obtinere volumus (queremos) ac decernimus”. (De Examinibus ordinandorum in urbe).

Ademais, não se disse que se esperava que o Missal fosse recebido, mas se confiava que fosse recebido pelos fiéis “como um meio de testemunhar e afirmar a unidade de todos”. A forma que os fiéis recebem ou a forma que deixam de receber o Missal não está sob o poder papal, isso depende tanto do ânimo e santidade dos fiéis como da aplicação correta da lei pelos pastores.

Quando os canonistas falam da qualidade preceptiva ou diretiva de um decreto romano não indicam que necessariamente deve haver frases explícitas do tipo “Pessoas X são obrigadas ou permitidas a fazer Y” ou, no presente caso, que “todos os sacerdotes/fiéis são obrigados ou permitidos a seguir o Missal promulgado”. É o bastante a existência de certas cláusulas para demarcar a obrigatoriedade ou permissividade de uma lei. Nesse sentido explica Walter J. Kelly, citando o clássico Tratado do Pe. Oppenheim: “Pela razão de obrigação, os decretos da Congregação dos Ritos Sagrados são preceptivos ou diretivos. Normas preceptivas são aquelas que, pelas suas palavras, impõem uma obrigação, por exemplo, “statuit”, “ordinavit”, “mandavit, hibuit”, “interdixit”. As normas diretivas, por outro lado, são aquelas que, pelas suas palavras, deixam a liberdade de ação, por exemplo, “laudabiliter servatur”, “convenit”(Phillippus Oppenheim, Instituiones Systematico-historicae in Sacram Liturgiam, Volumen III, “De lege scripta et non-scripta” (Taurini et Romae: Marietti, 1938-1941, p 56). Sustenta-se que essas normas têm a natureza de um preceito, salvo prova em contrário: “Antes, deve-se dizer que todos os decretos da Sagrada Congregação dos Ritos obrigam tanto aqueles a quem são dados quanto da maneira indicada no próprio decreto, ou da maneira que segundo as melhores normas do direito deve ser suposta”(Ibid., p. 56)”. (The Jurist october, nº. 4, 1968, pp. 401-402). As palavras indicadas de cunho preceptivo estão claramente na Constituição Missale Romanum ao promulgar o Missal.

Tampouco a cláusula final é vaga: “… não obstante a qualquer coisa em contrário nas Constituições e Ordenações Apostólicas dos nossos predecessores, e outros estatutos, embora dignos de menção e derrogação especiais”. Revoga-se, aqui, expressamente o que lhe é contrário, portanto, por exemplo, parte da Quo Primum, onde obrigava a observância do Missal e estabelecia que não se devia celebrar qualquer outro. Além disso, a oração final da última frase do documento nem se fazia necessária, pois o cânon 22 do Código de Direito Canônico de 1917 é claro que uma “lei posterior, estabelecida pela autoridade competente, abroga uma lei anterior se assim o disser expressamente ou se for diretamente contrária a ela”.

Quanto ao outro trecho sobre o dia de entrada em vigor do prescrito nossa resposta é que o que foi publicado na Acta Apostolicae Sedis (AAS), que contém o trecho em questão, deve ser considerado suficiente para conhecer a vontade do legislador e se certificar da promulgação suficiente do documento. Essas diferenças entre a primeira edição típica e o que consta na AAS jamais tornariam a promulgação insuficiente ou duvidosa da Constituição, pois o que consta na AAS é o que representa a lei, de acordo com os padrões usuais. Isso já foi respondido pela Constituição Apostólica Promulgandi de São Pio X de 29 de setembro de 1908. Com efeito, a Constituição modificou o modo de promulgar os documentos da Igreja  e com muita clareza refere sobre o fato de que pela publicação na AAS se deve considerar a lei legitimamente promulgada: “Queremos que as Constituições Pontifícias, leis, decretos e outras notificações, tanto dos Soberanos Pontífices e das Sagradas Congregações e Ofícios, sejam inseridas e publicadas (na Acta) e, por esta e somente razão, para que sejam consideradas legitimamente promulgadas sempre que a promulgação for necessária ou não tiver sido fornecida de outra forma pela Santa Sé”. São Pio X ainda é claro que “a espécie e o modo de promulgação das leis dependem da vontade do legislador, que é mestre em renovar ou modificar as formas estabelecidas e instituir outras”. Lembra ainda que a forma até então autêntica, ou seja, a exibição nos portões das quatro Basílicas Maiores e no Campo dei fiori, nem sempre foi observada em si mesma, mas que “quase passou à prática para manter como promulgados os atos e decretos da Santa Sé pelo único fato de terem emanado de secretaria com competência legal para os transportar ”.

Tenha-se presente ainda que uma diferença de versões mesmo nos fasículos da AAS (o que não é o caso da Missale Romanum) não tem condão de tirar a autoridade de um documento. Um exemplo claríssimo disso é que o texto originalmente publicado de Casti Cannubii de Pio XI continham palavras que textualmente indicavam fortemente uma condenação a esterilização punitiva, no entanto, um notandum no próximo fasículo da AAS (22 (1930), 565, 604) continha uma reformulação da passagem que mostrava que o papa não pretendia se comprometer com a controvérsia entre teólogos sobre a licitude da esterilização punitiva. Ninguém nunca pôs em dúvida que essa modificação era querida pelo Pontífice Romano, pois a formulação anterior não expressava corretamente a sua ideia.

Além disso, argumentamos que a existência da Constituição Missale Romanum não era nem mesmo necessária. Com efeito, o Novus ordo Missae foi promulgado legitimamente por um decreto da Congregação dos Ritos em 06 de abril de 1969, vejamos:

“O Ordo Missae tendo sido restaurado de acordo com as decisões da Constituição sobre a santa Liturgia e tendo recebido a aprovação do Soberano Pontífice pela Constituição Apostólica Missale Romanum dada em 03 de abril de 1969, esta Sagrada Congregação por mandato especial do Soberano Pontífice promulga (promulgat) o dito Ordo Missae, estabelecendo (statuens) que ele entrará em virgor a partir de 30 de novembro deste ano de 1969, domingo de Advento… Dado em 6 de abril de 1969”. (assinado por cardeal Gut, prefeito da Congregação dos ritos e presidente do Consilium, e Mons. Antonelli, secretário da Congregação)

A Congregação tinha mandato especial do Sumo Pontífice para baixar decretos. A propósito, Pio XII fez com que a nova liturgia do Tríduo Pascal fosse promulgada por um “simples” decreto da Congregação dos Ritos em 16 de novembro de 1955 e João XXIII teve a segunda parte do Pontifício Romano promulgada (contendo os ritos de consagração e bênção de lugares sagrados e objetos de culto) por “simples” decreto da Congregação dos Ritos, em 1º de abril de 1961.

Como explica o Pe. Jame O’Kame os decretos da Sagrada Congregação devem ser considerados como tendo a autoridade do Sumo Pontífice, ainda que sem a sua assinatura específica: “Pode-se inferir com justiça dessas palavras que os decretos da Sagrada Congregação devem ser considerados como tendo a autoridade do Sumo Pontífice. Mas toda dúvida a esse respeito é removida pela seguinte resposta, formalmente aprovada pelo Papa Pio IX: “Os decretos emanados pela Sagrada Congregação e quaisquer respostas dadas por ela aos dubia propostos, formalmente emitidas por escrito, têm a mesma autoridade como se emanassem imediatamente do próprio Sumo Pontífice, embora nenhuma comunicação tenha sido feita a Sua Santidade sobre os mesmos? Resposta: Afirmativo”. Outra resposta da Sagrada Congregação explica o significado das palavras “formalmente emitidas por escrito”. Ela declara que todos os decretos e respostas devem ser considerados como “formalmente emitidos por escrito”, assinados pelo Prefeito e pelo Secretário da Sagrada Congregação, e que todos aqueles na coleção de Gardellini devem ser considerados como tal”. (Notes on the Rubrics of the Roman Ritual, 1932, p. 10-11)

Se alguém objetar que o decreto da Sagrada Congregação dos Ritos de 6 de abril de 1969 não foi promulgado através das Acta Apostolicae Sedis para duvidar de sua obrigatoriedade, respondemos que os decretos da Congregação dos Ritos que visam aprovar e promulgar edições típicas de livros litúrgicos não são inseridos na Acta Apostolicae. É assim, por exemplo, com o Decreto da Sagrada Congregação dos Ritos de 30 de novembro de 1955, que aprova a edição do ordo da Semana Santa restaurado, e determina que o Ordo Hebdomadae Sanctae Insrauratus substitua o Ordinis Hebdomadae Majoris.

Não bastasse tudo isso, Instrução Constitutione Apostolica de 20 de outubro de 1969, aprovada especificamente por São Paulo VI, é clara sobre a obrigatoriedade do Novo Missal, cujo título é “Sobre a implementação progressiva da Constituição Apostólica Missale Romanum”. O documento refere que os “Documentos anteriores decretaram que a partir de 30 de novembro deste ano, o primeiro domingo do Advento, o novo rito e o novo missal devem ser usados”. Além disso, “estabelece …regras”, decretando que todas “as conferências episcopais estabelecerão o dia a partir do qual (exceto para os casos mencionados nos parágrafos 19-20) será obrigatório usar o [novo] Ordo da Missa. Esta data, no entanto, não deve ser adiada para além de 28 de novembro de 1971”. Reiterando novamente, a seguir, que todas “as conferências episcopais decretarão o dia a partir do qual o uso dos textos do novo missal (exceto para os casos mencionados nos parágrafos 19-20) será prescrito”.

São Paulo VI em Audiência de 19 de novembro de 1969 aponta o acontecimento que vai se realizar na Igreja Católica e “que terá sua aplicação obrigatória nas dioceses italianas a partir do próximo primeiro domingo do Advento, que neste ano cai 30 de novembro; isto é, a introdução na Liturgia do novo rito da Missa”

A Notificação da Sagrada Congregação do Culto Divino de 14 de junho de 1971 destaca o uso do Missal Romano na edição típica de 1962 só era permitido, “com o consentimento do Ordinário e apenas nas celebrações sem congregação, para todos aqueles que, devido à idade avançada ou à doença, encontram sérias dificuldades em utilizar a Nova Ordem da Missa no Missal Romano”.

Por fim, a Notificação Conferentiarum Episcopalium da Sagrada Congregação do Culto Divino de 28 de outubro de 1974 refere novmente as normas emanadas a favor de sacerdotes que, devido a idade ou enfermidade, encontravam sérias dificuldades para usar a Nova Ordem da Missa. Destaca, além disso, que “os ordinários não podem conceder essa permissão para celebração da Missa com uma congregação”. Acrescentando que “tanto os ordinários locais quanto os religiosos devem, antes providenciar… que todos os sacerdotes e pessoas deRito romano aceitam devidamente a Ordem da Missa”.

As palavras de São Paulo VI não poderiam ser mais incisivas no Consistório de 24 de maio de 1976, onde diz:

“A adoção do novo “Ordo Missae” não é deixada ao arbítrio do sacerdote ou dos fiéis: e a Instrução de 14 de junho de 1971 previa a celebração da Missa na forma antiga, com a autorização do ordinário, apenas para padres idosos ou enfermos, que oferecem o Sacrifício Divino sine populo. O novo Ordo foi promulgado para substituir o antigo, após madura deliberação, a pedido do Concílio Vaticano II. Da mesma forma, nosso santo Predecessor Pio V tornou obrigatório o Missal reformado sob sua autoridade, após o Concílio de Trento. A mesma disponibilidade nós exigimos, com a mesma suprema autoridade que vem de Jesus Cristo, a todas as outras reformas litúrgicas, disciplinares, pastorais, amadurecida em questão de anos de aplicação ao decreto conciliar.. Qualquer iniciativa que visa impedi-lo não pode arrogar-se da prerrogativa de prestar um serviço a Igreja: de fato, traz consigo graves danos.”

Há como contornar a vontade do Papa? Quantas invecionices e juridiquês serão alegados para se negar que a Nova Ordem da Missa foi proposta como uma lei universal? Absolutamente falando, o Papa não tinha necessidade de nenhuma formalidade. Sua manifestação é lei em qualquer âmbito que a torne pública.

 ANEXO I

Missale Romanum:

“(Título) Constituição Apostólica. Pelo qual o Missal Romano, restaurado por decreto do Concílio Ecumênico Vaticano II, é promulgado”.

“Em primeiro lugar temos a Instrução Geral que, como Proêmio do livro, expõe as novas normas para a celebração do Sacrifício Eucarístico, tanto em relação aos ritos e funções de cada participante, como às alfaias e lugares sagrados”.

“Neste ponto, decretamos (stauiimus) que três novos formulários de Orações Eucarísticas fossem acrescentadas ao Cânon Romano, além de enriquecê-los com grande número de Prefácios, tirados da antiga tradição na Igreja Romana ou compostos agora, a fim de manifestar melhor os vários aspectos do mistério da fé, e oferecer mais numerosos e fecundos motivos de ação de graças”.

“No entanto, por motivos de ordem pastoral e para facilitar a concelebração, estabelecemos (iussimus) que as palavras do Senhor sejam as mesmas em todos os formulários do Cânon”.

“E assim, é Nossa vontade (volumus) que estas palavras sejam ditas assim em cada Oração Eucarística”.

“O que prescrevemos por esta nossa Constituição entrará em vigor este ano, a partir do dia 30 de novembro, primeiro domingo do Advento”.“Queremos (volumus) que tudo o que aqui estabelecemos e ordenamos (praescripta) seja válido e eficaz, agora e no futuro, não obstante a qualquer coisa em contrário nas Constituições e Ordenações Apostólicas dos nossos predecessores, e outros estatutos, embora dignos de menção e derrogação especiais”.

Decreto da Congregação dos Ritos em 06 de abril de 1969:

“O Ordo Missae tendo sido restaurado de acordo com as decisões da Constituição sobre a santa Liturgia e tendo recebido a aprovação do Soberano Pontífice pela Constituição Apostólica Missale Romanum dada em 03 de abril de 1969, eta Sagrada Congregação por mandato especial do Soberano Pontífice promulga o dito Ordo Missae, decretando que ele entrará em virgor a partir de 30 de novembro deste ano de 1969, domingo de Advento… Dado em 6 de abril de 1969”. (assinado por cardeal Gut, prefeito da Congregação dos ritos e presidente do Consilium, e Mons. Antonelli, secretário da Congregação)

São Paulo VI em Audiência de 19 de novembro de 1969:

“Queremos chamar a vossa atenção para o acontecimento que se vai realizar na Igreja Católica Latina e que terá a sua aplicação obrigatória nas dioceses italianas a partir do próximo primeiro domingo do Advento, que neste ano cai 30 de novembro; isto é, a introdução na Liturgia do novo rito da Missa. A missa será celebrada de uma forma um tanto diferente daquela que, de quatro séculos até hoje, isto é, a partir de São Pio V, depois do Concílio de Trento, costumamos celebrar…”

Ajudará, para finalizar, a ler algumas indicações, que nos chegam da competente oficina, isto é, da Sagrada Congregação para o Culto Divino. E são estes:

“Quanto à obrigatoriedade do rito:

1) Para o texto latino: os sacerdotes que celebram em latim, em particular, ou mesmo em público nos casos previstos na legislação, podem usar, até 28 de novembro de 1971, o Missal Romano ou o rito novo.

Se utilizarem o Missal Romano, porém, poderão utilizar as três novas anáforas e o Cânon Romano com os cuidados previstos no último texto (omissão de alguns santos, conclusões, etc.). Eles também podem fazer as leituras e orações dos fiéis no vernáculo.

Se usarem o novo rito, devem seguir o texto oficial com as concessões em vernáculo indicadas acima.

2) Para o texto vulgar. Na Itália, todos aqueles que celebram com o povo, a partir do próximo dia 30 de novembro, devem usar o “Rito da Missa”, publicado pela Conferência Episcopal Italiana ou por outra Conferência Nacional.

As leituras nos feriados serão feitas:

– ou do Lecionário publicado pelo Centro de Ação Litúrgica

– ou do festivo Missal Romano usado até agora.

Nos dias de semana, o Lecionário dos dias úteis, publicado há três anos, continuará a ser utilizado.

Para quem festeja em privado não há problema, porque tem que festejar em latim. Se, por indulto particular, ele celebra em vernáculo: para os textos ele deve seguir o que foi dito acima para a missa com o povo; para o rito, porém, deve seguir-se o “Ordo” especial, publicado pela Conferência Episcopal Italiana “.

Em todo caso, e sempre, lembremo-nos que “a Missa é um mistério a ser vivido na morte de Amor. Sua divina Realidade ultrapassa cada palavra. . . É a Ação por excelência, o próprio ato de nossa Redenção no Memorial, que o torna presente.

Decreto Celebrationis Eucharistiae da Congregação para o Culto Divino em 26 de março de 1970:

“Esta Sagrada Congregação para o Culto Divino, por mandato do mesmo Sumo Pontífice, promulga esta nova edição do Missal Romano, preparada de acordo com os decretos do Vaticano II, e declara-a a edição típica”.

Instrução Constitutione Apostolica de 20 de outubro de 1969:

(Título)                 “Sobre a implementação progressiva da Constituição Apostólica Missale Romanum”

“Os Documentos anteriores decretaram que a partir de 30 de novembro deste ano, o primeiro domingo do Advento, o novo rito e o novo missal devem ser usados”

“Para resolver os problemas que isso colocava, a Congregação dos Ritos, “com a aprovação do Sumo Pontífice, estabelece as seguintes regras”.

“Todas as conferências episcopais estabelecerão o dia a partir do qual (exceto para os casos mencionados nos parágrafos 19-20) será obrigatório usar o [novo] Ordo da Missa. Esta data, no entanto, não deve ser adiada para além de 28 de novembro de 1971”.

“Todas as conferências episcopais decretarão o dia a partir do qual o uso dos textos do novo missal (exceto para os casos mencionados nos parágrafos 19-20) será prescrito”.

“Em 18 de outubro de 1969, o Sumo Pontífice, Papa Paulo VI, aprovou esta Instrução, ordenou que se tornasse direito público, para que seja fielmente observada por todos aqueles a quem diz respeito”.

Notificação da Sagrada Congregação do Culto Divino de 14 de junho de 1971:

“… 1. O MISSALE ROMANUM E A LITURGIA HORARUM

“É permitido o uso continuado, total ou parcial, do Missale Romanum na editio typica de 1962, conforme emendado pelos decretos de 1965 e 1967 e do Breviarium Romanum anteriormente em uso, com o consentimento do Ordinário e apenas nas celebrações SEM CONGREGAÇÃO, para todos aqueles que, devido à idade avançada ou à doença, encontram sérias dificuldades em utilizar a Nova Ordem da Missa no Missal Romano, no Lecionário para a Missa ou no Livro da Liturgia das Horas. … “(Sagrada Congregação do Culto Divino, Notificação “Instructione de Constitution” de 14 de junho de 1971, De Documents on the Liturgy 1963-1979, Liturgical Press, Minnesota, 1982, ISBN 0-8146-1281-4, página 545).

Congregação do Culto Divino de 29 de dezembro de 1972:

“Nenhuma declaração conseguirá ‘converter’ aqueles que querem, a todo custo, a permissão de usar o Missal de são Pio V. Os dirigentes daquele movimento não são de boa fé, mas agem de maneira preconcebida. A Constituição apostólica ‘Missale Romanum’ e seu alcance jurídico são claríssimos.  Com isto estaria atacada a autoridade do papa, porque é conhecida de todos a campanha de acusação lançada contra o papa por parte daquele setor, o qual continua a acusá-lo de heresia, a chamar o Missal de herético, e de inválida a Missa celebrada com o Missal de Paulo VI, dissuadindo os fiéis de participarem dela. A objeção ao Missal se estenderia a todos os livros da reforma. O princípio que está na base e a fonte levam a isto” (Congregação do Culto Divino, 29 de dezembro de 1972).

Notificação Conferentiarum Episcopalium da Sagrada Congregação pelo culto divino de 28 de outubro de 1974:

“Quanto às normas emanadas por esta Congregação a favor dos sacerdotes que, devido à sua idade avançada ou enfermidade, encontram sérias dificuldades para usar a nova Ordem da Missa no Missal Romano ou no Lecionário para a Missa, é claro que o Ordinário tem o poder conceder-lhes permissão de uso, no todo ou em parte, do Missale Romanum na editio typica de 1962, conforme emendada pelos decretos de 1965 e 1967, mas apenas para uma celebração sem congregação. Os ordinários não podem conceder essa permissão para a celebração da Missa com uma congregação. Tanto os Ordinários locais quanto os religiosos devem, antes, providenciar … que todos os sacerdotes e pessoas de Rito Romano aceitem devidamente a Ordem da Missa no Missal Romano; que através de um maior estudo e reverência eles passem a apreciá-la pelos tesouros da Palavra de Deus e do magistério litúrgico e pastoral que ela contém ”. (Notification Conferentiarum Episcopalium, 28 de outubro de 1974, aprovada pelo Papa especificamente, Notitiae 10 (1974) 353, em Documents on the Liturgy 1963–1979: Conciliar, Papal, and Curial Texts, (Collegeville, Liturgical Press, 1982) [= DOL] 1784).

Carta do Cardeal J. Villot de 11 de outubro de 1975:

“Através da Constituição Missale Romanum, o Papa Paulo, como sabe, ordena que o novo Missal substitua o anterior, não obstante quaisquer constituições ou decretos apostólicos dos seus antecessores – incluindo, portanto, todas as determinações da Constituição Quo Primum. Ninguém, na França ou em qualquer outro lugar, pode, portanto, reivindicar um indulto concedido por Quo Primum e permitindo o uso do antigo Missal. Isso pode ser usado exclusivamente no caso previsto pela notificação do Congresso para o Culto Divino, 14 de junho de 1971, aprovado pelo Papa Paulo. A notificação de 28 de outubro de 1974 tornou explícito mais uma vez que os ordinários não têm o poder de conceder esta permissão (para usar a antiga Ordem da Missa) para celebração com uma congregação … não obstante qualquer costume, mesmo um desde tempos imemoriais ”( DOL1786). (Secretariado de Estado, carta do Cardeal J. Villot ao bispo Coffy, Presidente da comissão litúrgica da França, sobre a obrigatoriedade do uso do Missal Romano, 11 de outubro de 1975: Not 12 (1976) 81-83)

São Paulo VI no Consistório de 24 de maio de 1976:

“A adoção do novo “Ordo Missae” não é deixada ao arbítrio do sacerdote ou dos fiéis: e a Instrução de 14 de junho de 1971 previa a celebração da Missa na forma antiga, com a autorização do ordinário, apenas para padres idosos ou enfermos, que oferecem o Sacrifício Divino sine populo. O novo Ordo foi promulgado para substituir o antigo, após madura deliberação, a pedido do Concílio Vaticano II. Da mesma forma, nosso santo Predecessor Pio V tornou obrigatório o Missal reformado sob sua autoridade, após o Concílio de Trento. A mesma disponibilidade nós exigimos, com a mesma suprema autoridade que vem de Jesus Cristo, a todas as outras reformas litúrgicas, disciplinares, pastorais, amadurecida em questão de anos de aplicação ao decreto conciliar.. Qualquer iniciativa que visa impedi-lo não pode arrogar-se da prerrogativa de prestar um serviço a Igreja: de fato, traz consigo graves danos.” (São Paulo VI, Consistório, 24 de maio de 1976)

ANEXO II

CIPRIANO VAGAGGINI, EL SENTIDO TEOLOGICO DE LA LITURGIA, BAC, MADRID, 1959, PP. 476-485:

Quatro regras principais para chegar  ao juízo teológico

Esta resposta se obtém seguindo as regras ensinadas pela metodologia geral para conhecer que coisa é de fé e o que não é. Recorde-se, antes de tudo, de modo especial a doutrina católica de que a revelação se contém na Escritura e na tradição dogmática oral apostólica e que é explicada e proposta à fé dos crentes pelo magistério da Igreja. Este magistério da Igreja precisamente porque, por vontade de Cristo, pode se conhecer e se provar também por um simples exame histórico-filológico do Novo Testamento, é também, pelo próprio fato, o critério próximo supremo por cujo meio sabe o crente o que deve crer.

Sabe-se que o critério próximo infalível da fé é, precisamente, o magistério da Igreja atual e vivo, e nunca a simples razão individual, nem filosófica, nem histórica, nem filológica. O magistério atual e vivo é o intérprete supremo não somente da Escritura e da tradição apostólica oral, mas também do próprio pensamento e dos próprios documentos expressados em tempos mais ou menos remotos.

É também conhecido que os órgãos autÊnticos do magistério infalível da Igreja são: os bispos católicos, dispertos em toda a terra, unidos com o Romano Pontífice, com unanimidade moral, propõem alguma coisa como de fé (magistério chamado ordinário e universal da Igreja); os concílios ecumênicos junto com o Romano Pontífice, que o menos ele os aprova como tais; o próprio Romano Pontífice quando fala ex cathedra. Também pela fé do povo cristão, unido a seus bispos e ao Romano Pontífice, pode-se conhecer que coisa é de fé para uma crente, enquanto pela fé de tal povo cristão se pode conhecer que coisa o próprio magistério propõe como de fé.

Observe-se também que na liturgia, materialmente falando, existem elementos diversos: existem textos da Escritura; podem existir nela documentos emanados ou aprovados como de fé pelos concílios ecumênicos, como o credo niceno-constantinopolitano; e outros muitos elementos de origem e natureza muito diversos. Na liturgia o magistério diretamente implicado é o magistério ordinário. É claro que nela o magistério propõe como de fé, ainda que por via ordinária, as passagens da Escritura e as decisões de fé dos concílios ecumênicos contidos na liturgia. Nestes documentos, certamente de fé, poderá existir, ao sumo, algumas dúvidas sobre sua interpretação precisa, mas não que neles a Igreja, inclusive na liturgia, proponha alguma coisa como de fé.

Por outro lado, a dificuldade de saber se verdadeiramente o magistério, num elemento dado da liturgia, propõe alguma coisa como de fé ou não, está toda em outros elementos da natureza e origem muito diversas. Para resolver esta precisa dificuldade os teólogos se esforçam em propor algumas regras metodológicas diretivas. Parece-me que, em suma, as regras principais a este fim podem se reduzir a quatro.

REGRA PRIMEIRA.– Os diversos elementos da liturgia implicam aquela precisa autoridade doutrinal propositiva ordinária da qual participam os membros da hierarquia que o redataram ou aprovaram.

Recordamos: sendo a liturgia por sua natureza essencialmente um ato oficial da Igreja como tal, hierarquicamente estruturada, depende essencialmente da hierarquia autêntica da Igreja. E como a liturgia é uma coisa habitual de todos os dias, o magistério d hierarquia autêntica nela contida não é o extraordinário, mas o ordinário. Órgãos autênticos do magistério ordinário são os bispos em suas próprias dioceses, e o Romano Pontífice para toda a Igreja. A um bispo qualquer, não unido com o Romano Pontífice, não compete nenhuma autoridade doutrinal na Igreja. Um bispo, inclusive em sua vida habitualmente unido com o Romano Pontífice, não é infalível, se se considera individualmente. Aos bispos dispersos em suas dioceses e unidos com o Romano Pontífice compete autoridade infalível quando propõem uma doutrina que à mira a fé e aos costumes no caso em que, junto com o Romano Pontífice, estão todos moralmente de acordo ao propô-la como de fé divina e católica.

Sabe-se que, antigamente, a composição e ordenação da liturgia se deixou a cada bispo para a porção da Igreja que lhe havia confiado. A liturgia era então, como se diz, de direito epicopal. Quero dizer, então, que, nas liturgias antigas, está implicada unicamente aquela autoridade doutrinal que compete a cada um dos bispos individualmente em união com o Romano Pontífice e que a ditaram ou aprovaram, ao menos pelo uso que delas fizeram. Somente em tempos relativamente recentes (no século XVI), depois de várias tentativas, reservou-se ao Romano Pontífice a suprema aprovação explícita dos textos e ritos em toda a Igreja católica. Desde aquele momento a liturgia na Igreja católica é de direito pontifício e a autoridade doutrinal ordinária (não necessariamente ex cathedra) do Romano Pontífice está nela mais diretamente implicada, inclusive nas liturgias não romanas usadas hoje na Igreja católica.

As observações precedentes permitem estabelecer algumas normas de não pequena importância, quando se trata de determinar o que nas liturgias históricas ou atuais é proposto, e crido, como de fé divina e católica ou não.

Primeira consequência: não existe dificuldade alguma em que em alguma liturgia particularmente antiga, por um certo tempo, se infiltraram fórmulas ou doutrinas não corretas ou francamente com erros. Os bispos individualmente considerados não são infalíveis. Deste modo se resolve o caso, por exemplo, da Missa “para aliviar as penas do inferno” em alguns missais antigos.

Segunda consequência: se existem elementos comuns, ou moralmente comuns, a todas as liturgias, ao menos para um certo período de tempo, especialmente se isso se verifica desde a antiguidade, e se consta que, nelas, estes elementos são propostos como de fé, este simples fato demonstraria por si só que a coisa é realmente de fé. Além disso, será dificílimo provar somente pela liturgia que a coisa foi verdadeiramente proposta como de fé e isso com unanimidade moral. Em muitíssimos casos se poderá, pelo contrário, demonstrá-lo facilmente recorrendo a outras provas extraliturgicas, e sem esquecer a evolução dos dogmas em cada período. Assim, por exemplo: a licitude do culto dos santos, das relíquias, das imagens, a utilidade da invocação dos santos, o batismo das crianças para a remissão do pecado original, a utilidade da oração e da oferta do sacrifício pelos defuntos e outras muitas coisas semelhantes.

Terceira consequência: desde o momento da aprovação explícita dada pelo Romano Pontífice, inclusive como exercício do magistério ordinário, as liturgias usadas hoje na Igreja católica, podem considerar-se praticamente como imunes de erro contra a fé e aos costumes.

REGRA SEGUNDA.- Aquilo que, na liturgia, propõe o magistério à adesão dos fiéis e os fiéis aceitam, é proposto com grau de autoridade dogmática diversíssimo, segundo os casos, e os fiéis, do mesmo modo,  bem adoutrinados da intenção do magistério, dão uma adesão de diverso grau e qualidade.

É esta simplesmente uma regra de metodologia teológica geral: nem tudo o que o magistério propõe é proposto pelo mesmo grau e pela mesma força autoritativa, com a intenção de implicar do mesmo modo sua responsabilidade e autoridade doutrinal e a fé dos crentes. Algumas são propostas por ele para ser cridas com fé divina e católica sob pena de naufragar na mesma fé; nelas o magistério implica toda sua autoridade infalível. Outras, pelo contrário, o são com um grau autoritativo inferior. Este, por sua vez, pode variar do grau que os teólogos chamam próximo à fé, sem ser, contudo, estritamente de fé, até a opinião simplesmente admitida como tal, ou à simples hipótese, mais ou menos geralmente admitida, que o magistério não tenta hic et nunc contradizer mas que, ainda pressupondo-la, não tenta tomar sobre a mesma nenhuma responsabilidade especial. Entre estes dois extremos podem existir um número indefinido de graus e de nuances.

Do mesmo modo os fiéis não devem dar a tudo quanto propõe o magistério o mesmo grau e a mesma natureza de adesão. A regra geral é que o fiel dê a cada proposição do magistério aquele grau e aquela natureza de adesão que o magistério exige dele, nem mais nem menos. O que o magistério propõe como de fé divina e católica sob pena de naufrágio na mesma fé, deve ser crido pelo fiel com fé divina e católica e com adesão suma que requer a autoridade de Deus que revela, que é o mesmo motivo formal da fé divina. Ao tudo demais se deve aderir com uma adesão de natureza e de grau inferior segundo a natureza e o grau da proposição do magistério.

Esta regra geral vale, naturalmente, também para aquela proposição de doutrina do magistério que sucede, a seu modo, na liturgia. Nos elementos diversos da liturgia estes graus de proposição são diversíssimos. Tanto mais diversos e difíceis para distingui-los quanto que na liturgia, como se explicou, o fim didático é somente indireto e a expressão didática, explícita e precisa, bastante rara.

Tomemos o exemplo das festas litúrgicas. Muitas festas propõem um certo fato histórico, que, em certo modo, é o objeto da festa. Mas o grau autoritativo, com o que propõe o magistério este fato e os fiéis o aceitam como verdadeiro, varia muitíssimo. O fato da ressurreição de Nosso Senhor, que é objeto da festa da Páscoa, é proposto e crido como de fé divina e católica. Assim também, hoje, depois da definição da Assunção, o fato da Assunção ao céu da Virgem na festa homônima. Mas, antes da definição, este fato não era proposto como de fé divina e católica, ao máximo como imensamente provável, próximo à fé. Em tempos mais antigos, o mesmo fato era proposto pela liturgia como uma piedosa opinião.

O fato da apresentação da Virgem no templo, que é de certo modo objeto da festa de 21 de Novembro, é apresentado, pelo contrário, pelo magistério apenas como lenda piedosa, embora na própria festa haja ideias que certamente são propostas com um grau muito grande de autoridade, como a ideia de que a Virgem, desde a sua infância, foi consagrada de maneira muito especial a Deus. Também o fato da translação da casa sagrada de Loreto, que de certo modo está envolvida na festa homónima, é apresentado pelo magistério apenas como uma lenda piedosa. Os acontecimentos das festas que têm por objeto supostas aparições, milagres não narrados na Escritura, revelações privadas ou semelhantes, são propostos pela Igreja apenas como fatos nos quais se pode legítima e piedosamente acreditar: como a Aparição da Virgem em Lourdes e a impressão dos estigmas de São Francisco. Do mesmo modo, nas festas cujo objeto é uma ideia, uma doutrina, esta ideia e esta doutrina são propostas pelo magistério, consoante o caso, com um grau de autoridade muito diverso. Assim, por exemplo, a festa de Cristo Rei inclui uma ideia de fé, enquanto a da Virgem Medianeira universal de todas as graças é, por enquanto, uma opinião teológica.

REGRA TERCEIRA.- A evolução dos dogmas, das doutrinas e das opiniões, como é admitida pela fé católica e demonstrada pela histórica, reflete-se também na liturgia.

É sabido que a fé católica, embora rechaça o conceito transformístico modernista da evolução dos dogmas, admite, contudo, uma evolução dos mesmos no sentido de uma maior explicitação da mesma verdade substancial, segundo os tempos e as circunstâncias.

Com maior razão se admite uma verdadeira evolução nas simples doutrinas e nas simples opiniões. Assim, um ponto que em certo momento da história figurava como simples opinião mais ou menos fundada ou difundidade, ao desenvolver-se e aprofundar-se o pensamento teológico, pode chegar a ser doutrina mais ou menos comum e também, em certo momento, ser proposto como dogma de fé divina e católica pelos órgãos competentes do magistério infalível. Por outro lado, uma opinião mais ou menos difundida em certa época, ao aprofundar-se em sua doutrina, pode aparecer menos fundada e inclusive abertamente errônea e ser abandonada.

Que tudo isto possa refletir-se na liturgia em geral, ou em uma liturgia determinada, é óbvio, e não apresentada dificuldade especial. A liturgia pode refletir mais ou menos abundantemente as opiniões teológicas de uma época e a evolução das mesmas. Assim a festa da Imaculada Conceição no século XII e XIII não refletia mais que uma opinião teológica e existia entre teólogos notáveis divergência acerca do objeto da festa. Mas a mesma festa ao princípio do século XIX, na proposição do magistério e na adesão dos fiéis, refletia outro estado da doutrina: e hoje reflete ainda outro diverso. A festa da Virgem Medianeira de todas as graças, na atualidade concedia a muitas dioceses, expressa somente uma opinião; mas não pode se dizer que permanecerá sempre nessa fase.

Compreende-se, então, que, com o progresso da evolução, existam mudanças na liturgia. Assim, nos livros litúrgicos, a partir do século XII, desapareceu pouco a pouco a rubrica que supunha que o vinho no cálice podia ser consagrado pelo simples contato com a hóstia consagrada. Recentemente, foram modificadas pela Constituição Apostólica Sacramentum Ordini as rúbricas em torno à matéria e à forma do sacramento da ordem, depois das decisões de Pio XII.

Na nova Missa e no novo Ofício da Assunção não se faz já menção da morte corporal da Virgem, porque a opinião de que a Virgem não morreu começa a abrir caminho. O novo comum de Sumos Pontífices reflete o desenvolvimento atual da doutrina teológica em torno do Romano Pontífice e a prática atual do exercício de sua autoridade. As grandes lutas dogmáticas dos séculos IV-VIII: trinitárias, cristológicas, mariológicas, em torno da graça e em torno das imagens deixaram pegadas notáveis nas liturgias.

A mesma evolução pode fazer também que se interpretem de modo diverso fórmulas e ritos antigos, que, ao princípio não tinham precisamente tal sentido para aqueles que os compuseram e os adotaram. Assim, talvez, o texto do ofertório na Missa romana dos defuntos; a epiclese nas liturgias orientais; o objeto da festa da Conceição da Virgem; o objeto da festa da Assunção.

A este propósito temos algo que fazer notar. Suponhamos que o texto hoje ainda em uso na liturgia romana, no ofertório das Missas dos defuntos, implicar-se para seu primeiro compositor realmente a opinião da retribuição dilatada e não imediata às almas dos defuntos. Como quer que seja, é certo que tal texto não poderia subsistir na liturgia romana até hoje mas porque a Igreja o interpreta de tal modo que, ao recitá-lo, não tenta precisamente negar a doutrina da retribuição imediata. E também hoje deve ser entendido nesse sentido, porque nesse sentido o propõe hoje o magistério. Daqui pode se ver quão insuficiente, em alguns casos, seja recorrer, para estabelecer o sentido que certo elemento tem na liturgia, a somente a filolofia ou somente ao sentido que teve talvez quando foi composto ou inserido na liturgia.

Igualmente se há de dizer que hoje todo católico interpreta a epiclese, tal como se usa nas liturgias orientais da Igreja católica, em tal sentido que se salve a doutrina de que a forma da eucaristia está constituída somente pelas palavras da instituição, sem contar com a questão da opinião eventual dos primeiros compositores de tais epícleses.

REGRA QUARTA.- Praticamente, somente mediante o estudo teológico completo de cada uma das questões pode se determinar o grau autoritativo de um ponto qualquer da liturgia, tanto histórica como atual.

Esta quarta regra é, a meu juízo, a mais importante. Com efeito, admitidas as observações precedentes, o ponto crucial para o teólogo ou o fiel que se preocupa de saber que valor doutrinal tenha tal ou qual elemento que se encontra nas liturgias históricas ou atuais, é conhecer como determinar, em cada caso, o grau de autoridade que o magistério dava em época passada ou dá hoje a este elemento.

Poderá conduzir-nos a este resultado somente o estudo da liturgia? Somente a liturgia poderá se ter as vezes indícios. A importância dada a um elemento em uma liturgia ou em muitas liturgias ou em todas as liturgias, poderá sugerir que nisso o magistério está empenhado mais ou menos notavelmente. A universalidade da festa da Assunção nas liturgias e o grau notável da solenidade que lhe é dado. Poderá sugerir uma implicação notável do magistério ordinário e universal na proposição deste ponto doutrinal?

Mas, além disso, será difícil, se não impossível, determinar da liturgia somente, com suficiente precisão, o grau de autoridade que o magistério implica na proposição de um elemento determinado, inclusive supondo, o que não sempre sucede, que da liturgia somente possa se determinar suficientemente o sentido mesmo do elemento em questão. A mema antiguidade e universalidade de um elemento não é prova absolutamente apoditica que isso, na liturgia, seja proposto pelo magistério como de fé divina e católica. Não se esquecendo que para poder arguir apoditicamente que uma doutrina é proposta pela Igreja como de fé divina e católica somente pelo magistério ordinário e universal, não basta mostrar que, ao propor tal doutrina, existe unanimidade moral entre os bispos unidos com Romano Pontífice, mas que é preciso provar que eles propõem-na precisamente como de fé. A unanimidade moral versa sobre o fato de propor tal doutrina como de fé.

Uma amostra da dificuldade que encontra quem quer obter somente da liturgia o grau preciso de autoridade com o que nela propõe o magistério uma doutrina, tem sido recentemente nas breves discussões que precederam a definição da Assunção. Muitos se perguntavam por qual motivo se queriam fazer aquela definição enquanto que, assim acreditavam, o magistério propunha já desde muito tempo aquela doutrina para a fé dos fiéis na festa mesma da Assunção. Em efeito, considerando o lado litúrgico da questão, e abstraindo da bula dogmática de Pio IX, cuja leitura -contrariamnete aos usos litúrgicos antecedentes- havia sido introduzida no breviário na festa da Imaculada, que diferença era jamais possível estabelecer entre o modo em que a Igreja propunha aos fiéis a Imaculada Conceição e o modo em que propunha a Assunção? Com tudo, esta diferença, desde o ponto de vista dogmático, era grandíssima.
As vezes, é verdade, seguindo atentamente o desenvolvimento histórico dos diversos elementos litúrgicos, por exemplo, de uma festa como a da Imaculada no Ocidente, se pode descobrir um aumento progressivo do empenho e da autoridade por parte do magistério. Mas, primeiramente, tenha-se em conta que isto não suscede sempre; e também se trata sempre de uma contestação de aumento de empenho genérico, sem que possa especificar a natureza nem o grau considerando somente os elementos litúrgicos. As suscessivas mudanças litúrgicas apontadas na liturgia da festa da Imaculada Conceição a partir especificamente do século XV, não tem um significado um tanto preciso quanto ao grau de empenho que o magistério encerrava ali, senão considerados à luz do desenvolvimento contemporâneo da controvérsa teológica em torno da mesma matéria e de outras manifestações não ambiguas de sentimento daqueles Romanos Pontífices em concreto; quer dizer, à luz das manifestações extralitúrgicas do magistério ordinário contemporâneo.
Por que este estado de coisas? A razão essencial há que buscá-la na mesma natureza da liturgia. A qual, como se tem dito, enquanto contêm uma ação da Igreja, é direta e essencialmente um culto, uma oração, e não leva consigo uma atividade de ensinamento se não em um modo bastante indireto, enquanto a Igreja o estima útil e oportuno para induzir neste momento preciso aos fiéis a resposta de culto e de oração a Deus. E isto explica, como se tem observado, por que a liturgia não é já nem um catecismo nem um manual de dogmática. A Igreja, na liturgia, supõe que o povo fiel que toma parte nela conhece o catecismo e o clero seu manual de dogmática. Supondo tal conhecimento, a Igreja, na liturgia, induz a fazer rogar hic et nunc aos seus filhos, pelo qual se pode observar que ela, na liturgia, aproveitando, sem faltar à verdade, de quanto estima útil para induzir aos fiéis ao estado de ânimo de culto e de oração, não se preocupa quase em absoluto de lhes advertir, em qualquer elemento da liturgia, com que grau preciso de autoridade tenta empenhar ou não sua fé em cada um desses casos considerados. Tal preocupação estaria bastante longe da natureza da liturgia.
Partindo disso, a quem está propriamente preocupado com esse aspecto das coisas, ao teólogo, não tem mais remédio, para satisfazer sua legítima preocupação, que recorrer ao estudo teológico completo da questão de que se preocupa. Somente este estudo teológico geral da questão, feito segundo os conhecidos critérios gerais da teologia, e utilizando proveitosamente as luzes de que dispõe a ciência teológica, poderá dar, enquanto é possível, uma resposta segura sobre que ponto e com qual grau de autoridade e em que sentido, na liturgia, impõe o magistério ordinário um determinado elemento da adesão dos fiéis e, pelo mesmo, a que grau e espécie de adesão estejam a sua vez obrigados os fiéis.
Deste modo, o grau de autoridade que o magistério, imediatamente antes da definição da Assunção, impusesse, na liturgia, a mesma doutrina da Assunção, não era possível determinar com suficiente claridade senão do estudo completo teológico da doutrina da Assunção. Somente assim se podia observar que, ainda naquele momento, na mesma liturgia, não impunha a Igreja a Assunção como coisa de fé divina e católica sob pena de naufrágio na mesma fé, se não com um grau inferior de autenticidade e de autoridade, se bem já então grandíssimo; diremos com os teólogos, como próximo à fé, de tal modo provável que se alguém, por casualidade, tiver querido negá-la, se encontrava certamente em grave e próximo perigo de errar, mas não poderia ser considerado herege.
Em qual sentido e com que grau de autoridade se propõe na liturgia as revelações privadas -como, por exemplo, as de Santa Margarida Alacoque, das que se fazia menção nas lições do breviário na oitava da festa do Sagrado Coração- não se pode determinar se não por um estudo completo teológico sobre o pensamento da Igreja em torno das revelações privadas. Que sentido tem os exorcismos na liturgia e con que grau de autoridade impõe aquele que se diz nos exorcismos ou se relaciona com eles, não se pode determinar se não pela doutrina teológica geral em torno aos exorcismos.
Em relação a muitos feitos da história eclesiástica ou profana que a liturgia supõe historicamente verdadeiros, por exemplo, nas vidas dos santos das lições do segundo noturno do breviário, a Igreja não exige outra fé que a meramente humana que eles merecem segundo o estado atual da ciência histórica. E isto se pode obter com segurança do estudo teológico geral em relação aos feitos deste gênero e da garantia ou não garantia que a Igreja pode ou tenta dar-les. Deste estudo se observa que, quando a Igreja faz menção de feitos semelhantes na liturgia, não faz outra coisa que aceitar hipoteticamente sua verdade, segundo a opinião, as vezes até simplesmente vulgar, do tempo em que foram adimitidos na liturgia, e, hipoteticamente suposta esta verdade, mas sem a impor, se preocupa somente de dispor aos fiéis ao ato de culto e de oração, que é o fim da liturgia.
Se se tivessem presentes estas observações, e se se recordasse que o fim da liturgia é fazer rogar, muitos que, por sua formação moderna, tem um sentido histórico e crítico muito desenvolvido, mas não necessariamente um sentido da oração igualmente vigoroso, se escandalizariam talvez menos ao obervar que a Igreja não procede com excessiva pressa a purificar a liturgia de imprecisões e erros históricos ou cheios de lendas. Tendo presente tudo isto, e recordando, ainda, que o culto dado aos santos, tem o fim, dirigido a Deus, ninguém deveria comover-se excessivamente ao caso, de festas de santos que jamais tem existido, ou até a veneração de relíquias não autênticas.


[1] Aqui estou parafraseando o que diz o Padre Bernard Lucien em L’Infaillibilité du magistère ordinaire et universel de l’Église, Nice: Éditions Association Saint-Herménégilde, Documents de Catholicité, 1984, vi+158p.: “Um católico não pode, portanto, se indagar se determinado fato é ou não é conforme a um dogma certificado pela Igreja; ele pode somente se indagar (eventualmente) como é que tal fato, supostamente estabelecido com certeza, é conforme ao dogma (ou não lhe é contrário)”.

 [2] “A Igreja não possui um juízo infalível sobre se uma lei promulgada por ela é a forma mais apropriada às circunstâncias ou é prematura ou antiquada. Contudo, como a Igreja é guiada e conduzida pelo Espírito Santo há certeza prática, de que suas disposições e decisões são proveitosas para a salvação. Uma lei eclesiástica não é em nenhum caso prejudicial para a salvação.” (Michael Schmaus, Teologia Dogmática, A Igreja, p. 432, Madrid, 1960)

[3] A Festa da Imaculada conceição foi instituída por pelo Papa Sisto IV em 1476.

[4] O testemunho de São Roberto Bellarmino é claro: “O Papa Sisto IV, naquela constituição que inicia[1] a Grave nimis, referente às relíquias e à veneração dos santos, declara em palavras eloquentes que a questão sobre a Concepção da Santíssima Virgem ainda não foi definida pela Igreja Romana e pela Sé Apostólica; e portanto colocou sob pena de excomunhão aqueles que se atrevem a condenar qualquer opinião como herética. O julgamento do Papa Sisto foi seguido pelo Concílio de Trento, Sessão 5, e, finalmente, em nosso tempo, por Pio V, na Constituição que ele promulgou sobre a Concepção da Santíssima Virgem Maria. Além disso, o Concílio de Basileia [Sessão 36] definiu que a Santíssima Virgem foi concebida sem pecado: mas essa definição não a torna uma crença estabelecida, porque esse Concílio não foi aprovado pela Sé Apostólica e que o Concílio não desejou que o seu parecer fosse tido como um artigo de fé. Por isso, determinou apenas que a opinião deve ser considerada como piedosa e em consonância com o culto eclesiástico, a fé católica, as Escrituras e a razão”. http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/apologetica/virgem-maria/991-a-imaculada-conceicao-de-maria-texto-de-sao-roberto-bellarmino

[4] Catecismo sobre a Crise da Igreja, q. 62.

[5] https://fratresinunum.com/2011/12/13/a-infalibilidade-decretos-disciplinares-e-as-leis-liturgicas/

[6] ST Suplemento, q. 34, art. 5.

[7] – “Explication de quelques difficultés…”, nn. 36-37,

[8] “Debate over New Order Mass Status Continues,” Remnant, 31 May 1997, 1

[9] Catolicismo, outubro de 1967.

[10] Mais citações sobre o assunto:

“Além disso, que a lei justa acima mencionada tende para o bem da sociedade. Portanto, é impossível que uma lei universal da Igreja seja prejudicial à sociedade cristã”. (Padre Goupil La Règle de la Foi, Le Magistère vivant – La Tradition Le développement du dogme, 1941)

Uma lei eclesiástica não é em nenhum caso prejudicial para a salvação.” (Michael Schmaus, Teologia Dogmática, A Igreja, p. 432, Madrid, 1960)

“…mas aprovar coisas nocivas como honestas ou, ao contrário, condenar coisas honestas como iníquas, repugna à verdade e à santidade da Igreja e, portanto, também nessas coisas o Pontífice não pode errar”. (Suárez Cit. in: Wernz-Vidal, Jus canonicum, cit., p. 269, nota 28)

“Dizemos então que, quanto a substância e a moralidade da lei que o pontífice comumente propõe como regra de costumes por observar, seria HERESIA afirmar que a Igreja pode errar, de maneira que permitisse ou mandasse algo pernicioso, ou contra os bons costumes, ou contra o direito natural ou divino.” (João de Santo Tomás, De auctoritate Summi Pontificis, disp. III, a. 3)

[11] La Lámpara Bajo El Celemín: https://archive.org/details/alvarocalderonlalamparabajoelcelemin/page/n133/mode/2up?q=canonizaci%C3%B3n

[12] Alcunde considerazioni giuridiche in materia di riforma liturgica, in Archivio Giuridico CXC, 2 (1976) 147-173.

[13] The Catholic Counter-Reformation, 1970.

[14] “Where is the True Catholic Faith? Is the Novus Ordo Missae Evil?”Angelus 20 (March 1997).

[15] http://www.larchange.org/viewtopic.php?t=915&start=40

[16] “Foi preparada pelo prof. Jounel, revista pela S.C. para a Doutrina da fé, corrigida por Mons. Tondini” (Annibale Bugnini, A Reforma Litúrgica (1948-1975), 2018, p. 336, nota 53)

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