Domingo, Maio 5, 2024

A Imaculada Conceição de Maria, texto de São Roberto Bellarmino

NOTA DO EDITOR: O texto a seguir de São Roberto Bellarmino (1542 – 1621) foi escrito alguns séculos antes da Imaculada Conceição tornar-se definição dogmática (portanto, o Santo Doutor trata como opinião provável tão somente). O texto é brilhante nos fundamentos da Escritura e também nas citações dos Padres da Igreja a favor da imaculada conceição. Os argumentos de São Roberto Bellarmino são irretocáveis contra o uso indevido que os protestantes fazem da Escritura e de Padres da Igreja. Ainda hoje esse tipo de uso protestante é frequente em sites e blogs, por isso a importância da publicação desse texto. É de se notar, no entanto, que a visão de São Roberto Bellarmino sobre a Imaculada conceição é imperfeita. São Roberto Bellarmino entendia “conceição” como a infusão da alma depois de algum tempo, quer dizer, o corpo estava com pecado em ato até ser infundida à alma, mas pessoa até então não existia em sentido próprio como ser humano. O Santo Doutor não pôde acompanhar os avanços científicos do nosso tempo que demonstram que a pessoa humana existe desde o momento da fecundação e não posteriormente, por isso sua incorreção quanto a matéria e de outros santos da Igreja. O dogma católico, por outro lado, é muito claro que Nossa Senhora “no primeiro instante da sua Conceição, por singular graça e privilégio de Deus onipotente, em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, foi preservada imune de toda mancha de pecado original” (Pio IX, Ineffabilis Deus)

 

A Bem-Aventurada Virgem Maria foi concebida sem pecado original.

Na verdade, somos levados a discutir sobre a santíssima Mãe de Deus, a qual muitos católicos afirmam ter sido concebida sem pecado original, apenas porque não faltam aqueles que contestam toda a Igreja e o próprio Concílio de Trento, porque há quem não apenas tolere, mas também não aceite como piedosa e provável essa opinião sobre a Imaculada Conceição da Virgem (que eles acreditam ser um erro evidente). E há aqueles que afirmam sem qualquer pudor que a Imaculada Conceição da Virgem Maria é defendida pela Igreja Romana como um artigo de fé.

Portanto, tentaremos brevemente demonstrar três coisas: primeiro, que não é considerado como algo certo e comprovado pelos católicos e para ser sustentado pela fé católica que a Santíssima Virgem foi concebida sem pecado; segundo, que esta mesma opinião não é, de modo algum, herética ou tida como errônea; terceiro, que não é nem mesmo precipitada, mas muito piedosa e provável e a propósito muito mais provável do que a opinião contrária.

No tocante ao primeiro, John Pomeranus, um dos primeiros discípulos de Lutero, em um comentário sobre os caps. 1 e 44 de Jeremias, ousou escrever que, entre os católicos, é considerado como um artigo de fé que a Santíssima Virgem foi concebida, sem qualquer pecado, pelo próprio Espírito Santo.

Mas duas constituições papais refutam esta mentira desavergonhada com bastante clareza, e o decreto do concílio ecumênico, a cujas constituições e decretos todos os católicos obedecem prontamente.

O Papa Sisto IV, naquela constituição que inicia[1]Grave nimis, referente às relíquias e à veneração dos santos, declara em palavras eloquentes que a questão sobre a Concepção da Santíssima Virgem ainda não foi definida pela Igreja Romana e pela Sé Apostólica; e portanto colocou sob pena de excomunhão aqueles que se atrevem a condenar qualquer opinião como herética.

O julgamento do Papa Sisto foi seguido pelo Concílio de Trento, Sessão 5, e, finalmente, em nosso tempo, por Pio V, na Constituição que ele promulgou sobre a Concepção da Santíssima Virgem Maria. Além disso, o Concílio de Basileia [Sessão 36] definiu que a Santíssima Virgem foi concebida sem pecado: mas essa definição não a torna uma crença estabelecida, porque esse Concílio não foi aprovado pela Sé Apostólica e que o Concílio não desejou que o seu parecer fosse tido como um artigo de fé. Por isso, determinou apenas que a opinião deve ser considerada como piedosa e em consonância com o culto eclesiástico, a fé católica, as Escrituras e a razão.

Ora, de fato, quanto ao segundo ponto, Matthias Illyricus [cent. 9, cap. 10], onde trata um certo autor chamando-o de “o Idiota”, ensina que a opinião que torna a Virgem Santíssima livre de todo pecado, mesmo original, é errônea. Tilmannus Hesbusius diz o mesmo no livro “On the Six Hundred Errors of the Popes[1] [título, “Concerning sin”[2], na última seção]. Além disso, Martin Kemnitius [também o faz], no seu exame da Sessão 3 do Concílio de Trento, onde repete várias vezes que a opinião sobre a Imaculada Conceição da Virgem Maria é defendida em oposição à Palavra de Deus; e em sua última disputa, depois de dizer que as Escrituras ou a tradição ou os Padres não podem ser apresentados em benefício dessa opinião, mas apenas revelações e milagres, acrescenta que, quando os Papas desejam estabelecer novos artigos de fé, eles não prestam atenção à Palavra de Deus, escrita ou passada.

Todos os católicos estão muito distantes dessa temeridade dos adversários. Pois mesmo se não faltarem dentre os católicos aqueles que pensam que essa opinião está mais inclinada à verdade, que não exclui ninguém, exceto Cristo, da lei comum do pecado original, no entanto, essas mesmas pessoas não condenam a opinião contrária como errônea, nem podem condená-la, a não ser que desejem opor-se aos decretos do Concílio Geral de Trento e dos Sumos Pontífices Sixto IV e Pio V; se o fizessem, não deveriam ser contados dentre os católicos.

Está provado, portanto, que a opinião sobre a Imaculada Conceição da Virgem não é de modo algum repugnante à fé católica. Pois o que é repugnante à fé católica é aquilo que é afirmado contra a Palavra expressa de Deus, por exemplo, que Deus não é um ou que Ele é corpóreo, ou que Ele não criou o Céu e a terra e coisas semelhantes; ou é contra a Palavra de Deus declarada pela Igreja, por exemplo, que o Filho de Deus não é consubstancial ao Pai, que o Espírito Santo não procede do Pai e do Filho, que Cristo não tem duas vontades, e outras coisas desse tipo. Que a Virgem Mãe de Deus, no entanto, estava isenta do pecado original não se opõe à Palavra de Deus expressa ou à declaração da Igreja, como pode ser determinado a partir do fato de que nenhum dos adversários ainda apresentou qualquer passagem da Escritura ou dos Concílios, onde se pode ler em termos claros que a Santíssima Virgem foi concebida no pecado original. De fato, alguns testemunhos gerais da Escritura e dos Concílios são apresentados, mas aqueles são explicados adequadamente por aqueles que pensam que a Santíssima Virgem deve ser excluída dessas declarações gerais.

Poder-se-á dizer: Se for este o caso, não será contra a fé que não apenas a Virgem Mãe de Deus não teve a culpa original, mas também se poderá afirmar como sendo livre do pecado original qualquer outra pessoa. Porque as Escrituras ou os Concílios não ensinam explicitamente que qualquer homem foi concebido em pecado, exceto Davi, que diz sobre si mesmo no Salmo 50: “Eis que nasci na culpa, minha mãe concebeu-me no pecado.” [50: 7].

Eu respondo: A fé católica exige apenas que creiamos que todos os homens que nasceram por meio da geração carnal de Adão contraíram dele o pecado original, a menos que, talvez, por um privilégio singular, alguém esteja isento da lei comum. Assim, quando o argumento se volta para os indivíduos, ele não será imediatamente um herege que nega que este ou aquele homem foi concebido no pecado, mas, no entanto, ele negará precipitadamente e será justa e merecidamente presumido ser um herege a menos que ele produza razões prováveis pelas quais ele ache que esse privilégio singular é apropriado para este ou aquele homem. Ninguém ainda produziu tais razões, exceto para a Concepção da Virgem Maria apenas. Mas essas coisas ficarão mais claras quando os argumentos dos adversários tiverem sido demolidos.

Quanto ao Terceiro ponto, deve ser sucintamente comprovado que não se considera precipitadamente, mas com piedade e justiça, ter sido a Santíssima Virgem Maria livre de todo pecado por um singular privilégio de Deus. E verdadeiramente não se deve esperar que aduzamos à Palavra de Deus expressa ou à alguma definição segura da Igreja. Pois, se pudéssemos fazer isso, não somente diríamos que tal coisa é piedosa e corretamente para ser crida, mas consideraríamos hereges aqueles que pensassem de outro modo. Portanto, somente razões prováveis e apropriadas devem ser apresentadas, primeiro a partir das Escrituras, depois dos Padres, depois do consenso da Igreja e, finalmente, da razão.

Em primeiro lugar, temos das Escrituras duas figuras extraordinárias: que o primeiro homem prefigurava de Cristo, ou (como diz o Apóstolo) era uma figura daquEle que havia de vir [Rom. 5:14]; o mesmo ensina o Apóstolo em Rom. 5 e 1 Cor. 15. No entanto, o fato é que o primeiro homem não foi gerado a partir da relação de um homem e uma mulher, mas foi formado pelo próprio Deus da terra, que ainda não tinha sido amaldiçoada. Portanto, era conveniente que o segundo homem, que de modo semelhante, não fosse gerado a partir da relação do homem e da mulher, mas pela obra do Espírito Santo, devesse ser formado da terra que não fora amaldiçoada, isto é, da Virgem Mãe, que estava livre de toda maldição, e por isso de todo pecado. E talvez por essa razão ela foi saudada pelo Anjo: “Abençoada entre as mulheres.” O primeiro a notar esta figura parece ter sido Santo André Apóstolo, cujas palavras os sacerdotes de Achaia relatam no livro sobre a paixão do mesmo Apóstolo e mártir André: “Assim como o primeiro homem fora feito da terra imaculada, também era necessário que Cristo nascesse de uma Virgem imaculada”.

Assim, ao comentar a 68ª heresia, Epifânio ensina que Eva era um tipo e uma figura de Maria, e também em muitas outras passagens, que não é necessário enumerar. Mas é evidente o suficiente que Eva era sem pecado quando foi incialmente formada. Convinha, portanto, que a Mãe de todos os que vivem a vida espiritual fosse concebida sem pecado, pois a mãe de todos os que vivem a vida física foi formada sem pecado.

Estas coisas estão de acordo com aquelas passagens do Cântico dos Cânticos: “Como o lírio entre os espinhos, assim é minha amiga entre as jovens” [2: 2]. E: “És toda bela, ó minha amiga, e não há mancha em ti.” [4: 7]. E: “És um jardim fechado, minha irmã, minha esposa, uma nascente fechada, uma fonte selada.” [4:12]. Pois embora essas coisas possam ser compreendidas sobre a Igreja universal como será especialmente no Céu, ainda não se deve negar que ela é extremamente apropriada também para a Santíssima Virgem, porque muitos dos santos Padres também explicaram todas estas passagens em termos da Santíssima Virgem, e da própria Igreja Católica, nas festas da mesma Santíssima Virgem, quer no ofício da manhã quer no sacrifício da Missa, determina que aquelas leituras dos Cânticos sejam recitadas.

Ora, de fato, dos testemunho dos Padres, temos, primeiramente, S. Ambrósio, que, em seu 22º sermão do Salmo 118, ao explicar o último versículo, assim diz: “Não me receba de Sara, mas de Maria, uma vez que ela é uma Virgem incorrupta e, deveras, uma Virgem não tocada por qualquer mancha de pecado por causa da graça”.

Em seguida temos São Jerônimo, que em sua explicação do Sl. 77, ao tratar da passagem: “De dia ele os conduziu por trás de uma nuvem” [Sl. 77:14], diz que a nuvem é a Virgem Maria, e acrescenta estas palavras: “Belamente dito, de dia, porque a nuvem nunca estava na escuridão, mas sempre na luz”.

Em terceiro, temos Santo Agostinho, que, em seu livro Sobre a natureza e a graça, capítulo 36, fala assim: “Devemos excluir a Santa Virgem Maria, a respeito da qual eu não gostaria de levantar qualquer questão quando o assunto é pecado, em honra ao Senhor, porque Dele sabemos qual abundância de graça para vencer o pecado em cada detalhe foi conferido a ela, que teve o mérito de conceber e suportar aquele que, sem dúvida, não tinha pecado”.

A resposta usual a esta passagem é que Santo Agostinho falou sobre o pecado atual, não o original. Mas há muitas coisas que nos obrigam a pensar o contrário.

Em primeiro lugar, o fato de Santo Agostinho dizer que ele quer que não haja absolutamente qualquer dúvida sobre a Santíssima Virgem quando o pecado for discutido. Com essas palavras ele indica claramente que ele não quer que haja outra questão sobre a Santíssima Virgem quando o pecado original for discutido.

Em seguida ele acrescenta que a graça foi conferida a ela para vencer o pecado em todos os sentidos. De que forma ela venceu o pecado em todos os sentidos, se ela foi corrompida com o pecado original?

Em terceiro lugar, porque ele alega que, devido à honra a Nosso Senhor, ele não deseja que haja qualquer dúvida sobre a Santíssima Virgem quando o pecado for discutido. Mas certamente a honra ao Senhor não parece exigir menos que Sua Mãe estivesse sem pecado original do que exige em relação ao atual, uma vez que o primeiro era necessariamente mortal, enquanto o último podia ser venial.

Finalmente, porque de acordo com a opinião de Agostinho, ninguém que possuiu o pecado original vive sem pecado atual. Pois essas são as palavras dele no livro 5, Contra Juliano, cap. 9: “Seguramente ele teria também cometido pecado como um adulto, se tivesse cometido pecado enquanto criança. Pois não há homem, exceto Ele [Jesus], que, no começo da maturidade, não cometeu pecado; porque não há nenhum homem, exceto Ele, que não tinha pecado no início de sua infância.” Portanto, como a Santíssima Virgem não tinha pecado atual de acordo com a opinião de Agostinho, como até mesmo os adversários deduzem da passagem citada em A Natureza e A Graça, decorre, da opinião do mesmo Agostinho, que ela não tinha pecado original, como Augustinho admite seu próprio ensinamento no livro 5, Contra Juliano.

Em quarto lugar, temos Sedulio, que no libro. 1 Das Maravilhas Divinas, declamando sobre a expulsão de Adão do paraíso, fala assim:

E assim como uma rosa delicada brota de espinhos afiados,
Não tendo nada que possa ferir e ofuscar o
tronco paterno com honra,
Assim, quando a Virgem Maria veio da linhagem de Eva
A nova virgem expiava o crime da virgem antiga.

Em quinto lugar, temos o autor de sermões sobre as principais obras de Cristo, que ostentam o título de Cipriano. Pois ele, em um sermão sobre a Natividade, assim fala: A justiça não tolerou que aquele vaso de eleição (Maria) fosse desgastado com deficiências comuns, porque, diferindo grandemente dos demais, compartilhou da natureza deles, não da culpa deles.

Em sexto lugar, temos Sofrônio, patriarca de Jerusalém, que, em uma carta ao bispo Sérgio de Constantinopla, que foi lida no sexto sínodo [Ato. 11], assim fala: “Tendo entrado no ventre intacto da virgindade, a castidade purificada da santa e honrada Maria, que discerniu as coisas que são de Deus e foi libertada de todo contágio de corpo, alma e mente, Ele que estava sem Carne se encarnou“, etc.

Em sétimo lugar, temos João Damasceno, que, no primeiro discurso sobre o nascimento da Santíssima Virgem escreve muitas coisas sobre sua conceição imaculada, e entre outras coisas fala assim: A natureza não ousou ter precedência sobre a graça. Por quais palavras ele claramente indica que a Santíssima Virgem não recebeu a natureza antes da graça.

No oitavo lugar, temos um antigo autor, com o nome de “o Idiota”, que floresceu pouco depois do ano 800. Ele, em sua meditação sobre a Virgem Maria, cap. 2, fala assim: Você é toda bela, ó gloriosa Virgem, não parcialmente, mas totalmente, e a mancha do pecado, mortal ou venial ou original, não está em você. O mesmo autor também escreve no cap. 6 que a Virgem Maria foi preservada do pecado original. Este autor parece ter escrito depois de São Bernardo, porque ele usa suas palavras; portanto, depois do ano 1053, ano em que São Bernardo morreu.

No nono lugar, temos Pedro Damião, que, em seu sermão sobre o nascimento de São João Batista, escreve que a Santíssima Virgem foi purificada do pecado com um tipo mais elevado de santificação do que João ou Jeremias, cujos registros dão notícia de terem sido santificados no útero. Não parece, no entanto, que se possa imaginar outro tipo de santificação do que a Santíssima Virgem ter sido limpa do pecado, no qual ela necessariamente teria caído, a não ser que ela tivesse sido preservada pela graça. Certamente João e Jeremias foram santificados do pecado, no qual eles de fato já haviam caído. O mesmo Pedro, em um sermão sobre a Anunciação da Bem-aventurada Virgem Maria, diz: “Embora Deus tenha feito todas as Suas próprias obras muito boas, Ele fez esta melhor, separando-a para Si em um lugar de ouro, em que apenas Ele poderia reclinar-Se e encontrar descanso depois das rebeliões dos anjos e dos homens.”.

No décimo lugar temos o Beato Bruno, que, em seu comentário sobre o Sl. 101, tratando dessas palavras: “O Senhor contemplou do alto céu até que Ele desceu do santuário real para o ventre da Virgem. Ela é aquela terra incorrupta, a qual o Senhor abençoou, e, por tal motivo, livre de todo o contágio de pecado”.

Em décimo primeiro lugar, temos Santo Anselmo, que, em seu livro Sobre a Concepção Virginal e o Pecado Original, cap. 18, fala assim: Era apropriado Sua concepção (isto é, a de Cristo) ser da mãe mais pura; de fato, era conveniente que aquela Virgem brilhasse com aquela pureza, posto que uma coisa maior sob Deus é impensável. Mas certamente uma maior pureza, mesmo sob Deus, poderia ser pensada se em qualquer momento a Santíssima Virgem tivesse sido manchada com a mancha do pecado. Os Anjos, de fato, brilham com pureza sob Deus; e mesmo sem mancha foram uma vez conspurcados. O mesmo Anselmo, em seu comentário sobre a última parte do cap. 5 aos Coríntios, diz: “Além da Mãe de Deus, todos, sem absolutamente nenhuma exceção, morreram em pecado, seja do pecado original ou também dos pecados acrescentados pela vontade“.

Em décimo segundo lugar, temos a Catena dos gregos posta em versos por Theodoreto. Pois, no livro 3, perto do final, lemos: A Virgem Maria, portanto, é a pomba, e a única a ser nomeada no Cântico dos Cânticos, porque ela supera os querubins e serafins em pureza. Mas certamente ela não superaria em pureza os querubins e serafins, em quem não havia pecado algum, se o pecado original estivesse nela.

Eu omito os testemunhos de escritores mais recentes, como o do Beato Laurêncio Justiniano, São Bernardo de Sena e outros, pois penso que apenas os testemunhos produzidos por aqueles que floresceram antes que esta controvérsia começasse na Igreja deveriam ser citados.

Chego ao consenso geral da Igreja, que certamente tem sido muito grande por um bom número de anos. Pois, em primeiro lugar, a cabeça da Igreja, o supremo pontífice Sixto IV, no decreto Cum praeexcelsa, e em outro que começa com Grave nimis, testifica claramente que esta opinião sobre a concepção imaculada da Virgem é piedosa e provável. É evidente que Alexandre VI, Júlio II e Leão X eram da mesma opinião tendo em vista o fato de que aprovaram e honraram com privilégios uma certa ordem religiosa instituída para a honra da Imaculada Conceição.

Em seguida, o Concílio de Basiléia, em que há um decreto que afirma que esta opinião deve ser considerada como mais provável, embora não o faça como um artigo de fé, enquanto um concílio ecumênico; entretanto, pode-se entender facilmente que muitos doutores da Igreja, reunidos de várias províncias, pensavam assim. Além disso, acontece que as distintas academias, especialmente a de Paris, abraçam essa mesma opinião. Acrescente-se por último que quase todo o mundo cristão celebra a festa da concepção da Virgem Maria, e lhe chama de a Imaculada Conceição.

Mas razões não faltam para apoiar esta mesma opinião. Pois é certo que Deus foi capaz de preservar a Santíssima Virgem do contágio do pecado original; além disso, é provável que Ele também desejasse fazê-lo; portanto, é provável que ela tenha sido preservada desse tipo de contágio. Que Deus foi capaz de fazer isso não pode ser negado. Pois nem por parte de Deus, nem por parte da criatura é evidente qualquer repugnância. De fato, não da parte de Deus, porque Ele é onipotente, e nada é impossível com Deus: da mesma forma, não da parte da criatura, pois nada há para impedir que a alma racional seja criada por Deus e cheia de graça no mesmo instante. Cremos que isso foi feito na criação dos anjos e das almas de nossos primeiros pais, e muito mais certamente na criação da alma de Cristo.

Então, se a alma pode ser justificada, depois de ter começado a pecar, e desta forma pode ser feito imediatamente depois de se tornar iníqua, como acontece, sem dúvida, em nosso caso, por que uma alma não pode ser santificada em sua própria criação antes de ter início a sua iniquidade?

Irão dizer: Não é completamente repugnante ao poder ou à vontade divina em preservar alguém do pecado; no entanto, é repugnante ao decreto divino estabelecido e imutável, no qual Deus decidiu que, se Adão não pecasse, todos os homens seriam concebidos dotados de justiça original, mas, se pecasse, seriam concebidos na iniqüidade e seriam por natureza filhos da ira.

Eu respondo: Que o decreto divino deve ser entendido, portanto, assim: que, se Adão pecou, todos os homens, que derivaram dele sua origem, estariam sujeitos ao pecado pelo poder da concepção, e não teriam direito àquela justiça que tinham recebidos em seus primeiros pais; no entanto, por esse decreto, o poder não é retirado de Deus de tal forma que Ele não fosse capaz, por Sua misericórdia e um privilégio singular, de preservar alguém de fato do pecado. Pois cremos que não só o pecado, mas também a morte fluíram para toda a raça humana desde Adão, e isto por causa daquele decreto de Deus, no qual se diz: “porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente”. [Gen. 2:17]. Por isso, o Apóstolo diz: “Assim como em Adão todos morrem” [1 Cor. 15, 22]. E ainda, quem pode duvidar de que Deus seja capaz de fazer com que alguém, de fato, não morra? Pois aparentemente o decreto só ficaria satisfeito se todos os descendentes de Adão estiverem sujeitos à morte.

Assim, também por causa desse decreto de Deus, não só todos os homens são concebidos, mas também nascem no pecado que pertence ao poder da geração humana, e por isso é necessário que eles nasçam de novo, porque o que nasce da carne é carne e, a menos que nasçam de novo da água e do Espírito Santo, não podem entrar no reino de Deus, como o Senhor diz em João 3. E, no entanto, lemos que Jeremias foi santificado antes que ele viesse ao mundo do ventre de sua mãe [Jer. 1] e, em relação a São João Batista, o anjo diz a Zacarias que, além disso, ele será cheio do Espírito Santo desde o ventre de sua mãe [Lc. 1], e sobre a própria Virgem Maria não há dúvida entre os católicos, contudo, de que ela foi santificada no útero de sua mãe pelo menos antes de seu nascimento.

Portanto, sustentamos que Deus foi capaz de preservar a Virgem Maria livre de todo pecado e de fazê-la santa e justa no momento de sua criação. Que Ele desejasse fazê-lo, no entanto, pensamos que é demonstrado provavelmente o suficiente pelas razões com que Santo Tomás [Pt. 3, q. 27, art. 4] prova que a Mãe de Deus deve estar livre de todo o pecado real.

A primeira razão é que a honra, assim como a vergonha da mãe, recai sobre a criança.

A segunda: que a Mãe de Cristo tem uma singular afinidade e união com Ele, mas que concordância existe entre Cristo e Belial?

A terceira: porque, de maneira notável, o Filho de Deus, que é a própria sabedoria de Deus, habitou em Sua Mãe; mas a sabedoria não entrará em uma alma maliciosa, nem habitará em um corpo sujeito a pecados, como é dito em Sab 1: 4.

A quarta: porque este testemunho do Esposo celestial deveria ser cumprido na Virgem: “És toda bela, ó minha amiga, e não há mancha em ti.” [Cant. 4: 7].

Certamente essas razões, como provam que era apropriado para a Mãe de Deus ser imune a todo o pecado atual, poderiam igualmente provar que era apropriado para ela ser livre do pecado original se fosse possível: muito mais ainda do pecado original do que do pecado venial atual; porque o pecado original mancha e arruína e se junta a Belial, e sujeita tanto o corpo e a alma a pecar mais do que o pecado venial o faz.

Uma quinta razão pode ser acrescentada. Pois, como Deus decidiu elevar esta Santíssima Virgem à maior dignidade para que ela fosse superior a todas as criaturas puras e até mesmo aos anjos, sobre os quais não pode haver controvérsia, era certamente apropriado que não houvesse nenhum privilégio conferido a qualquer pura criatura que também não tivesse sido também conferido a esta Virgem, a menos que talvez ele se opusesse à sua condição, status, natureza ou sexo.

Mas ser santificado no próprio momento de sua criação foi dado aos nossos primeiros pais, ao passo que ser santificado no momento de sua criação e nunca ser contaminado por qualquer pecado foi dado aos santos anjos, e este privilégio não é contrário à condição, estado, natureza e sexo da Santíssima Virgem. Portanto, é piedoso acreditar que a Mãe de Deus não era de modo algum sem tal privilégio.

Finalmente, chegamos às revelações divinas que Santa Brígida atesta que ela teve sobre esse assunto [livro.1, cap. 9 e livro. 6, caps. 49 e 55], revelações que certamente não devem ser desprezadas, porque foram diligentemente examinadas e aprovadas por homens muito sérios.

Refutação aos argumentos que são geralmente feitos contra a concepção imaculada da Santíssima Virgem.

Ora, os argumentos devem ser refutados, tanto aqueles com os quais os hereges tentam provar que nossa opinião é repugnante à fé católica, como aqueles com os quais alguns outros se convenceram de que a opinião contrária à nossa é mais verdadeira e mais segura.

Mas antes de chegarmos a esses argumentos, é necessário ser explicado brevemente como o que dizemos deve ser entendido, que a Santíssima Virgem esteve sempre sem pecado original.

O pecado de nossos primeiros pais é compartilhado com seus filhos de três maneiras. Em primeiro lugar, é dito que os filhos de Adão pecaram no próprio Adão, quando transgrediu o preceito do Senhor no paraíso. E porque eles não existiam então em ato, mas em potência, portanto naquela época eles também não contraíram pecado em ato, mas em potência. Ou, o que equivale à mesma coisa, eles não pecaram em si mesmos, mas nos pais; assim como não existiam em si mesmos, mas em seus pais. Assim, S. Agostinho no Lv. 1 [Quanto aos méritos e à remissão dos pecados e ao batismo dos bebês, Cap. 10] diz: “Certamente que há também pecados pessoais dos quais apenas são culpados aqueles que os cometem, diferentes deste único por meio do qual todos pecaram, quando todo o gênero humano estava incluído naquele único homem”.

Por outro lado, todos os filhos de Adão são considerados concebidos no pecado, tão logo o feto comece a existir no ventre da mãe, embora sem forma e inanimado. Pois mesmo que não possa haver pecado no sentido próprio, exceto em uma alma racional, e o feto começa a ser formado muito antes de ser animado, ainda assim, posto que naquele tempo, de fato, um ser humano verdadeiramente começa a existir, em virtude de suas partes (daí que se diz que as crianças são carregadas por nove meses no ventre de suas mães [2 Mac 7:27]), e essa parte, pode-se dizer corretamente, tem sua origem de uma natureza corrompida e contaminada e é devido a ela, por força de sua geração, que, tão logo ela obtenha uma alma racional, a partir daí o ser humano existe como um pecador e como um filho da ira divina. Desde então, não é imerecidamente que, desde aquele momento, os homens sejam ditos gerados no pecado. Santo Anselmo explica isso em muitas palavras em seu livro “Sobre a Concepção Virginal e o pecado original” (cap 7) e sobre esta primeira concepção ele explica a passagem do Salmo 50: “Eis que nasci na culpa, minha mãe concebeu-me no pecado“[50: 7].

Finalmente, em terceiro lugar, os homens são considerados concebidos no pecado quando as almas são sopradas em seus corpos. Pois então eles começam a existir no sentido próprio, e por esse mesmo fato de ser seres humanos, e ter uma vontade privada da justiça original, separados de Deus e depravados.

Ora, portanto, quanto à Primeira via, há aqueles que pensam que a Santíssima Virgem não pecou em Adão. Porque, dizem eles, a lei de não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal foi dada apenas aos primeiros pais e a todos os seus descendentes, exceto a Virgem Maria. Assim, ela, por fazer parte da progênie de Adão, provou o alimento proibido com ele; não obstante, ela não pecou, porque a proibição não pertencia a ela.

Esta opinião não nos parece muito sólida, e estamos todos de acordo com o contrário. Pois é consensual entre os católicos que a Santíssima Virgem verdadeiramente foi redimida pelo sangue de Cristo, e que o que o Apóstolo diz: Cristo morreu por todos [2 Cor. 5:15] deve ser entendido sem qualquer exceção. Mas se a Santíssima Virgem não pecou nem em ato, nem em potência, nem em si mesma, nem em sua origem, como posso dizer que ela foi redimida?

Quanto à segunda via, se a Santíssima Virgem não estivesse livre do pecado dos primeiros pais, como dissemos, na medida em que estava em sua progênie, certamente sua concepção primeira seria como a concepção dos demais. Certamente, ela tomou sua origem de uma natureza corrupta, e seria devido a ela, de seu poder de geração, que ela contrairia o pecado assim que ela adquirisse uma alma racional.

Quanto à Terceira Via, pensamos que a alma da Santíssima Virgem esteva sem a mancha do pecado original, mesmo no primeiro instante de sua criação e infusão em seu corpo, de modo que a pessoa realmente existente nunca tivesse pecado. E é só por isso que a Santíssima Virgem difere dos demais, que, pela graça de Deus e pelo mérito da Paixão de Cristo, foram libertados do pecado original, porque alguns são comumente libertados após o nascimento, alguns antes do nascimento, mas depois da animação, ela apenas no instante mesmo da animação.

A partir do que dissemos, os argumentos que são citados por nossos adversários podem ser facilmente refutados, sejam eles extraídos das Escrituras, ou dos Padres, ou da razão. Em primeiro lugar, portanto, Kemnitius, em seu exame do Concílio de Trento [Sess. 5], cita as Escrituras que, como ele diz, isentam somente Cristo do pecado: Aquele que não conheceu o pecado [2 Cor. 5:21], e: “Tal é, com efeito, o Pontífice que nos convinha: santo, inocente, imaculado, separado dos pecadores e elevado além dos céus,” [Heb. 7:26].

Eu respondo: essas Escrituras aduzidas por Kemnitius dizem, de fato, que Cristo não conheceu o pecado, e que Ele era inocente, imaculado e separado dos pecadores. No entanto, elas não acrescentam que isso era adequado unicamente a Cristo. Com efeito, se considerarmos apenas o estilo das palavras, poderemos encontrar que coisas semelhantes são atribuídas alguns outros nas Escrituras. Quanto ao trabalho de Jó lemos: “Havia, na terra de Hus, um homem chamado Jó, íntegro, reto, que temia a Deus e fugia do mal.” (Jó 1: 1). E quanto aos pais do Precursor: “Ambos eram justos diante de Deus e observavam irrepreensivelmente todos os mandamentos e preceitos do Senhor.” [Lc. 1: 6]. No entanto, admitimos que se possa dizer com razão que Cristo apenas estava imune ao pecado original, porque só Ele  foi concebido isento do pecado devido ao poder da geração; e nem em Si mesmo, nem em Adão pecou Ele, ​​porque só Ele foi concebido não da semente do homem, mas pelo poder do Espírito Santo e nasceu da Virgem. A Santíssima Virgem, no entanto, estava certamente isenta da mancha original, mas por um privilégio da graça divina, não pelo poder da geração humana, e, embora ela não estivesse contaminada em si mesma, ela era, no entanto, nos pais. Essas passagens são semelhantes porque só Deus é chamado de bom [cf. Mc. 10:18], o único sábio [Rom. 16:27], o único que tem imortalidade [1 Tim. 6:16]. Porque, claramente, apenas Ele é por Sua essência, mas outros, sejam anjos ou homens, são bons ou santos pela participação.

Em segundo lugar, ele cita os testemunhos que colocam todos os homens em pecado:    “porque todos pecaram…” [Rom. 5:12]; “em Adão todos morrem [1 Cor. 15:22]; “Éramos como os outros, por natureza, verdadeiros objetos da ira (divina).” [Ef. 2: 3]. Eu respondo: Não negamos que a Santíssima Virgem pecou em Adão daquela maneira em que poderia pecar, ela que ainda não existia, exceto em potência, e estava exposta ao pecado por isso, de modo que, quando ela começou a realmente a existir, ela de fato teria pecado em si mesma. Acrescenta-se, no entanto, que ela foi impedida por uma singular graça e privilégio de Deus, de modo que ela começou ao mesmo tempo a existir e a ser justa.

E não negamos que a mesma Virgem morreu em Adão, isto é, que ela contraiu e pagou a dívida da morte por causa do pecado de Adão. Pois, mesmo no primeiro instante da sua criação, sua alma foi liberada da mancha do pecado por meio da graça, no entanto, ela não teve a redenção imediata do corpo, assim como todos nós somos libertos do pecado original após, é claro, a Bem-Aventurada Virgem, e ainda assim, tendo sido renovados no espírito de nossa mente, ainda aguardamos a redenção do corpo e, portanto, estamos sujeitos à morte, às dificuldades e aos infortúnios que se espalharam pela raça humana pelo pecado dos primeiros pais.

Finalmente, não negamos que a Santíssima Virgem foi, por natureza, uma filha de ira, mas acrescentamos que, pela graça, ela sempre foi uma filha da misericórdia. Pela natureza corrupta de seus pais, o que ela poderia herdar, exceto a corrupção? No entanto, agradou a Deus que a alcançasse com bênçãos de doçura, de modo que ela nunca foi uma pecadora, que a natureza exigia, mas sempre foi justa, pela graça conferida.

Em terceiro lugar, outros citando aquelas palavras do bem-aventurado Paulo: “se um só morreu por todos, logo todos morreram. Sim, ele morreu por todos” [2 Coríntios. 5: 14-15]. Eu respondo: Nós concedemos que a Santíssima Virgem de alguma forma morreu a morte do pecado (pois, sem dúvida, o Apóstolo está falando sobre esta morte), de modo que também é verdade que Cristo morreu para restaurá-la à vida como Ele fez por todos outros. Além disso, é dito que Santíssima Virgem está morta porque ela estava sujeita à morte e a uma morte necessária, e inevitavelmente teria morrido devido ao poder de sua geração se a graça não a tivesse impedido. Há uma passagem semelhante em Romanos: “o corpo, em verdade, está morto pelo pecado, mas o Espírito vive pela justificação” [Rom. 8:10], na qual os corpos dos fiéis justos são chamados de mortos, não porque eles já estejam mortos, mas porque estão sujeitos à morte e necessariamente morrerão; embora não seja de duvidar que Deus possa isentar alguns da morte se Ele julgar que seja conveniente para a Sua maior glória.

Alguém dirá: se a Santíssima Virgem sempre foi justa, na medida em que recebeu a graça da justificação no primeiro instante da sua criação, em nenhum momento, portanto, ela será encontrada sujeita ao pecado. Pois ela não estava sujeita ao pecado antes de existir na natureza das coisas; nem depois que ela começou a existir na ordem natural das coisas, porque ela começou a existir e a ser justa ao mesmo tempo.

Eu respondo: A Santíssima Virgem estava triplamente sujeita ao pecado: a primeira, enquanto ela estava na progênie de Adão e de seus outros antepassados. Durante todo esse tempo, assim como ela era filha de Adão em potência, também estava ela sujeita em potência ao pecado. Depois, em segundo lugar, quando ela foi concebida no ventre de sua mãe antes da animação. Pois, embora não estivesse, então, totalmente na natureza das coisas, ainda assim ela era em parte e por causa daquela parte era considerada como realmente existente; pois assim (como já observamos acima) é dito dos filhos que estão escondidos no útero da mãe por nove meses. Durante todo esse tempo, no entanto, que interveio entre a primeira concepção e a infusão da alma racional, ela não estava em potência, mas em ato, embora, por uma parte, ela estivesse sujeita ao pecado original, pelo qual, sem dúvida, ela teria sido contaminada se não tivesse sido preservada por meio da graça.

Finalmente, ela era susceptível de pecar quando ela existia plenamente no primeiro instante, quando sua alma racional se juntou ao seu corpo. Pois, embora tenha sido justificada nesse mesmo instante de tempo, visto que, na ordem da natureza, a pessoa existe antes do acidente, portanto, na ordem da natureza, essa pessoa, além de suas causas, existiu antes de qualquer pecado ou justiça inerente a ela, naquele primeiro instante da natureza, ela estava sujeita ao pecado, porque ela, sem dúvida, teria contraído imediatamente o pecado se não tivesse sido adornada com o dom da justiça naquele momento em que deveria ter sido infectada com o mancha do pecado. Portanto, consideramos que os testemunhos das Escrituras não produzem nenhum argumento contra a imaculada concepção da Santíssima Virgem.

Em segundo lugar, Kemnitius apresenta os testemunhos dos Padres. O primeiro testemunho é o de Agostinho no livro Sobre a natureza e a graça [cap. 36], onde Santo Agostinho escreve que a graça foi conferida à Santíssima Virgem para vencer o pecado em todos os seus elementos. “É muito claro”, diz Kemnitius, “que ele não acha que Maria foi concebida sem pecado. Pois, de outra forma, não seria necessário que a graça lhe fosse conferida para vencer o pecado”.

Eu respondo: se a Santíssima Virgem fosse imaculada por sua própria natureza (o que nenhum católico diz), sem dúvida, a ela não teria sido conferida a graça para vencer o pecado em todos os seus elementos. Mas porque ela venceu o pecado original pela graça infundida em sua própria criação, ou seja, ela fechou completamente o acesso a ele; e, por outro lado, porque, por meio da graça, tanto habitual como pela orientação e proteção, e também pela cooperação divina, ela escapou de todas as manchas do pecado real, certamente o que Kemnitius diz é falso, que não era necessário que a graça fosse conferida a Maria para vencer o pecado, se ela fosse concebida sem pecado. Adão e Eva não foram criados sem pecado e, no entanto, lhes faltou a graça para vencer o pecado? Portanto, não ser concebido sem pecado, mas sim ser imaculado por natureza é que é necessário e suficiente para que não falte a alguém a graça de vencer o pecado em todos os seus elementos.

Finalmente, ela era susceptível de pecar quando ela existia plenamente no primeiro instante, quando sua alma racional se juntou ao seu corpo. Pois, embora tenha sido justificada nesse mesmo instante de tempo, no entanto, porque na ordem da natureza o sujeito é antes do acidente, portanto, na ordem da natureza, essa pessoa, além de suas causas, existiu antes de qualquer pecado ou justiça inerente a ela. E assim, naquele primeiro instante da natureza, ela estava sujeita ao pecado, porque ela, sem dúvida, teria contraído imediatamente o pecado se não tivesse sido adornada com o dom da justiça naquele momento em que deveria ter sido infectada com o mancha de pecado. Portanto, consideramos que os testemunhos das Escrituras não produzem nenhum argumento contra a imaculada concepção da Santíssima Virgem.

Em segundo lugar, Kemnitius apresenta os testemunhos dos Padres. O primeiro testemunho é o de Agostinho no livro Sobre a natureza e a graça [cap. 36], onde Santo Agostinho escreve que a graça foi conferida à Santíssima Virgem para vencer o pecado em todos os seus elementos. “É muito claro“, diz Kemnitius, “que ele não acha que Maria foi concebida sem pecado. Pois, de outra forma, não seria necessário que a graça lhe fosse conferida para vencer o pecado“.

O segundo testemunho é do mesmo Agostinho no livro “Sobre a fé para Pedro” [cap. 26]: “Tende bem firme, e de forma alguma duvidai de que todo aquele que é concebido por meio do coito de um homem e uma mulher nasce com o pecado original, etc.” A este testemunho Kemnitius acrescenta mais um, na mesma frase, do livro “Sobre o Casamento e a Concupiscência”. E novamente, ele acrescenta outro de Santo Ambrósio a partir de seu comentário no Livro 2 sobre Lucas nestas palavras: “Pois somente o santo Senhor Jesus, em todos os aspectos, daqueles que nasceram de mulher, não experimentou os contágios de uma corrupção terrena na novidade de um nascimento imaculado“. Ele acrescenta outro testemunho de mesmo efeito a partir do comentário de Ambrósio sobre Isaías.

Eu respondo: Esses testemunhos demonstram nada mais do que o fato de que não há ninguém, a não ser Cristo, que não tenha contraído o pecado original pelo poder da geração. Por isso, Santo Ambrósio acrescentou que somente Cristo, na novidade de um nascimento imaculado, não experimentou os contágios de uma corrupção terrena, porque, obviamente, somente Ele excluiu o pecado do poder da geração, porque Ele foi concebido da Virgem e pelo poder do Espírito Santo. Todos os outros contraem o pecado de fato, ou então o evitam, não pelo poder da geração, mas pelo privilégio de uma graça singular.

Do mesmo modo, devemos entender o que geralmente é citado da segunda homilia de Eusébio de Emissenus sobre a Natividade do Senhor. Pois esse autor não diz: “Ninguém é imune à escravidão do pecado original, nem a própria Mãe do Redentor“, que é como Cajetan cita esta passagem; mas: “Da escravidão do pecado original, ninguém mais veio livre por seu próprio poder, etc.”, onde “per se” significa pelo poder da geração ou pela natureza, não pela graça.

O terceiro testemunho é de Agostinho no livro “Sobre a Perfeição da Justiça. Agostinho diz: “Quem, então, supõe que qualquer homem ou quaisquer homens (exceto o único Mediador entre Deus e homem) já tenha vivido, ou esteja vivendo neste estado presente, que não tenha precisado e não precise do perdão de pecados, Ele se opõe à Sagrada Escritura, onde é dito pelo apóstolo: “Por um só homem, entrou o pecado no mundo” [Rom. 5:12], etc.

Eu respondo: Não negamos que o perdão dos pecados era necessário para a Santíssima Virgem e que Cristo era seu Redentor, como Ele era de todos os outros: mas dizemos que seus pecados foram perdoados, não aqueles em que ela havia caído, mas aqueles em que ela teria caído, se a graça de Deus não a impedisse através dos méritos de Cristo. E essa maneira de falar não é estranha às Escrituras divinas ou às disputas de Agostinho. Certamente, o Profeta diz no Sl. 85: Arrancastes minha alma das profundezas da região dos mortos. [Sal. 85:13]. E no Sl. 143: Livrastes Davi, vosso servo; salvai-me da espada da malícia [Sal. 143: 10]. No entanto, o Profeta não caiu nas profundezas da região dos mortos ou caiu pela espada da malícia; ainda assim, porque havia o perigo de que isso pudesse acontecer, e, pela graça de Deus, ele escapara desse perigo, ele agradece a Deus e diz: Arrancastes minha alma, etc.

Nesta passagem, Santo Agostinho comenta da seguinte forma:

É semelhante ao caso de um médico que vê o perigo iminente de adoeceres devido a algum trabalho e te avisa: Poupa-te, faze um tratamento, descansa, usa tais alimentos, porque se assim não fizeres ficarás doente. Se atenderes e te curares, com razão dizes ao médico: Tu me livraste desta doença. Não se tratava de uma doença de que já sofrias, mas que te ameaçava. Um homem qualquer, por exemplo, devido a uma causa judicial incômoda, ia ser lançado no cárcere. Vem alguém e o defende. Ao agradecer ao defensor, que dirá? Arrancaste a minha vida do cárcere. Um devedor ia ser enforcado. Alguém paga sua dívida. Diz-se libertado da forca. Nenhum deles chegou a sofrer os respectivos males; mas os mereciam, e se não tivessem obtido socorro os sofreriam, com razão se diz que foram libertados daquilo a que seus libertadores não permitiam fossem levados.

A partir desta linha de raciocínio de Agostinho, outros dois depoimentos podem ser explicados. Pois o Papa Zósimo escreve desta maneira na epístola 157, em que alude ao mesmo Santo Agostinho: “Ninguém é libertado, exceto aquele que é escravo do pecado, e ele não pode ser chamado de redimido a menos que ele realmente seja cativo antes por causa do pecado”. Da mesma forma, São Leão, no sermão 1 sobre a Natividade do Senhor, escreve: “Porque Nosso Senhor, vencedor do pecado e da morte, não tendo encontrado ninguém isento de culpa, veio libertar a todos.”. Mas essas palavras significam (como aprendemos com Agostinho) que ninguém pode ser libertado ou resgatado a menos que de fato tenha sido um escravo ou um cativo, ou certamente teria de sê-lo, se a graça do Libertador e do Redentor não o tivesse preservado. E ninguém foi livre de culpa por seu próprio poder, e, portanto, Cristo veio a redimir tudo.

O quarto testemunho é do mesmo Agostinho no Livro 3, Contra Juliano [cap 9]: Se … a carne de Cristo não é a carne do pecado, mas apenas semelhante à carne pecaminosa, o que resta a não ser concluir que, exceto a Sua carne, toda demais carne humana é carne pecaminosa? Disto parece que a concupiscência, por meio da qual Cristo desejou não ser concebido, produziu a propagação do mal na raça humana. O corpo de Maria, embora tenha sido daí derivado, não transmitiu concupiscência ao corpo que foi dela concebido. Além disso, quem nega que a razão pela qual o corpo de Cristo é dito ser à semelhança da carne pecaminosa é que toda outra carne dos homens é carne pecaminosa, e assim compara a carne de Cristo com a carne de outros homens para afirmar que são de igual pureza, é um herege detestável.

Eu respondo: Confessamos que a carne de Cristo não era a carne do pecado, e que a carne de outros homens, mesmo da Santíssima Virgem Maria, era a carne do pecado. No entanto, não somos obrigados a confessar que no primeiríssimo instante da criação da alma da Santíssima Virgem, a graça da justificação não foi infundida nela, por meio da qual são banidos todos os acessos à mácula. Nem chamamos a carne do pecado o que tem pecado em si, mas antes aquela que teria pecado de si própria e de sua própria natureza, a não ser que a graça a tivesse excluído: carne, além disso, gerada não sem o desejo dos pais, o que, se também leva ao nascimento na ordem natural, transfere completamente o pecado para a criança; e que, finalmente, está sujeita à morte e a outras dificuldades resultantes do pecado do primeiro pai.

Ora, certamente, a Santíssima Virgem (como sempre dissemos), por sua própria natureza e pelo poder da concepção, sem dúvida, teria sido contaminada com o pecado original, não tivesse um singular privilégio da graça se interposto. Além disso, ela fora concebida não sem o desejo de seus pais e estivera sujeita à morte e às dificuldades vindas do pecado de Adão. Finalmente, se a mesma Virgem (que é um sinal evidente da natureza corrupta em relação à carne) tivesse concebido os filhos da maneira regular de um abraço viril, de modo algum aqueles filhos dela estariam livres do pecado original. Então, com razão, a carne da Santíssima Virgem diz-se ter sido a carne do pecado; Cristo, no entanto, o qual não tem a carne do pecado, mas à semelhança da carne do pecado, não pode ser contaminado pelo poder da concepção, pois foi concebido sem desejo e, por Sua própria vontade, aceitou a morte e as dificuldades, e, se Ele desejasse gerar filhos, Ele indiscutivelmente os teria engendrado sem pecado original.

O quinto testemunho é de São Bernardo, que fala assim: Excetuado Cristo, o homem, o que um homem confessa humildemente se aplica a todos: “Eis que nasci na culpa, minha mãe concebeu-me no pecado.” [Sl. 50, 7].

Eu respondo: Este testemunho foi extraído por Kemnitius da Ep. 175 aos cânones de Lion. Nesta epístola, no entanto, há três argumentos contra Kemnitius, nada a favor de Kemnitius. O primeiro argumento contra Kemnitius é o que São Bernardo ensina claramente, que a Santíssima Virgem era sagrada antes de nascer: mas também aprendi na Igreja a celebrar o nascimento da Virgem e da Igreja considerar como festa e sagrado, acreditando de forma mais firme com a Igreja que ela entrou no mundo já santa porque havia sido santificada no útero. E pouco depois: além de toda dúvida, a Mãe do Senhor era santa antes de nascer.

Um segundo argumento contra o mesmo Kemnitius é que São Bernardo, na mesma passagem, acrescenta que a Santíssima Virgem estava livre de todo o pecado atual: eu, por minha parte, acredito que ela recebeu uma benção mais ampla que não só a santificou no útero, mas também a preservou logo após do pecado durante toda a sua vida. Isso é algo que não acreditamos ter sido concedido a qualquer outro nascido da mulher.

Um terceiro e muito sério argumento contra Kemnitius é que São Bernardo, neste assunto como em todos os outros, pretendia que sua opinião fosse sujeita ao julgamento da Igreja Romana. Pois assim ele encerra sua epístola: eu disse tudo isso em submissão ao julgamento de qualquer pessoa mais sábia do que eu e, especialmente, em submissão à autoridade da Igreja Romana, a cuja decisão reporto-me sobre tudo o que eu falei sobre este ou qualquer outro assunto, pronto para modificar qualquer coisa que eu possa ter dito, se isso for contrário ao que ela pensa. Se os hereges se dignassem imitar essa obediência do homem santo e não meras frases precipitadamente colhidas aqui e ali, não seriam hereges, e não teríamos mais controvérsias com Kemnitius.

Esses argumentos, portanto, testemunham contra ele. Devo facilmente demonstrar que não há nada em toda a epístola a seu favor. Pois, embora São Bernardo diga que a Santíssima Virgem foi santificada no útero, no entanto, ele não diz que tal aconteceu após a infusão da alma racional, e não no momento da própria infusão, o que afirmamos. O que o homem santo realmente afirma é que a Santíssima Virgem foi concebida em pecado, e, por isso, sua concepção não foi santa; tal deve ser entendido em relação à primeira concepção, que habitualmente ocorre no próprio coito dos pais, e não em relação à animação da alma. Pois então, São Bernardo prova que essa concepção não foi santa, porque a santidade não se mistura com os abraços conjugais. Mas de qualquer forma, os abraços conjugais ocorrem na primeira concepção, não na segunda, que pode ser mais adequadamente chamada de animação.

Assim, o mesmo autor sempre insiste que somente Cristo foi concebido pelo Espírito Santo e que a Santíssima Virgem concebeu pelo Espírito Santo, mas ela não foi concebida pelo Espírito Santo, cujo argumento prova nada além do fato de que a primeira concepção de Cristo apenas tinha sido verdadeiramente santa.

Esta explicação também resolve a dificuldade que poderia ser aduzida de Anselmo, embora Kemnitius não tenha mencionado seu testemunho. Santo Anselmo, no Livro 2 “Cur Deus homo” [cap. 16], escreve claramente que a Santíssima Virgem foi concebida e nascida no pecado. Mas ele está falando sobre a primeira concepção da semente e sobre o nascimento que ocorre no útero, não sobre o nascimento que ocorre do útero, isto é, sobre a formação do feto, por meio do qual um ser humano começa a existir no mundo de acordo com Mt. 1: pois o que nela foi concebido vem do Espírito Santo. [v.20]. O mesmo Anselmo, no livro “Sobre a concepção virginal e o pecado original” [cap.7], escreve que os homens são concebidos no pecado original antes da infusão da alma, não porque a carne seja capaz de pecar sem a alma, mas porque da semente e da concepção em si o homem contrai a necessidade, de tal forma que posteriormente, quando ele tenha uma alma racional, simultaneamente ele também tenha pecado.

E a respeito desta primeira concepção, que é corretamente chamada de concepção, Anselmo explica na mesma passagem as palavras de Jó: Quem fará sair o puro do impuro? [14, 4], e aquelas de Davi: Eis que nasci na culpa. [50: 7]. E não é de modo algum credível que Sto. Anselmo quis afirmar que a Santíssima Virgem nasceu no pecado original desde o útero da mãe, porque em seu tempo a Igreja universal honrou o dia da festa do nascimento da Santíssima Virgem e pregava publicamente que a mesma Virgem era santa antes de nascer, o que pode ser verificado pelos sermões de Pedro Damião sobre o nascimento da Virgem. Este venerável Pedro era o contemporâneo de Santo Anselmo ou um pouco mais velho.

Com base no que foi dito até agora, é fácil refutar todos os argumentos, tanto os de Capreolus como os de Cajetano ou de outros, que estão acostumados a lançar, não para condenar nossa opinião, mas para mostrar que os seus próprios argumentos são mais prováveis. Quanto aos testemunhos da Escritura, dos Concílios e dos Padres, que eles acreditam que lhes favoreçam, eles são em grande parte gerais, e por isso não descartam a possibilidade de alguém ser dispensado por um privilégio singular. Pois quando o Concílio de Trento, a que nenhum católico ousaria opor-se, ensinou a doutrina comum e universal sobre o pecado original, acrescentou claramente: não estava na mente do Sínodo Sagrado incluir a Santíssima Virgem nesses decretos. Tendo feito isso, ensinou que podemos dizer com segurança o mesmo sobre os Concílios de Mileto, Orange e outros, se houver, em que se ensina a doutrina universal sobre o pecado. Claro, os testemunhos dos Padres que mencionam a Santíssima Virgem pelo nome já foram explicados ou então podem ser explicados da mesma maneira. Quanto a outras objeções, não há uma que não possa ser facilmente resolvido com base no que dissemos.

Em primeiro lugar, eles objetam que a Santíssima Virgem não foi verdadeiramente redimida se ela nunca esteve cativa. Mas nós já demostramos que os demais são verdadeiramente redimidos, que necessariamente ficariam cativos se a graça do Redentor não tivesse intervindo.

Em segundo lugar, eles se opõem a que Cristo morreu por todos, e, no entanto, Ele morreu não pelos justos, mas pelos pecadores. A isso também já respondemos que Cristo morreu por aqueles que já eram pecadores e por aqueles que necessariamente teriam sido pecadores se a morte do mesmo Cristo não os tivesse ajudado por uma graça maravilhosa.

Em terceiro lugar, eles afirmaram que a Santíssima Virgem tinha sido concebida com o desejo sensual de seus pais, mas o desejo é o instrumento pelo qual o pecado original é transferido para a criança. A resposta é evidente pelo que dissemos. Pois o desejo sensual dos pais é o sinal de uma natureza corrupta, e a carne contaminada é naturalmente concebida a partir de uma natureza corrupta, mas nada impede Deus, quando Ele une a alma racional com a carne corrupta, de infundir ao mesmo tempo a graça da justificação, pela qual a mancha do pecado pode ser completamente prevenida.

Em quarto lugar, eles objetam que a Santíssima Virgem sofreu muitas dificuldades e até mesmo a própria morte, que são punições do pecado. Mas já dissemos que a alma da Santíssima Virgem foi preservada da mancha do pecado, mas não que sua carne tivesse sido redimida; a menos que consideremos o momento em que ela se elevou gloriosamente após a morte por uma singular graça de Deus.

Em quinto lugar, eles afirmam que diminuiria a glória do Filho de Deus se o privilégio de uma concepção imaculada fosse atribuído a alguma outra pessoa. Mas a glória do Filho de Deus é precisamente o fato de que, tendo sido concebido pelo Espírito Santo, não foi capaz de contrair o pecado do poder da geração. Isso acrescenta à Sua glória, se por seus méritos não somente os que já pecaram são justificados, mas também alguém pode ser preservado do pecado, em que, de outra forma, teria necessariamente caído.

As mentiras e calúnias de Kemnitius sobre a concepção da Santíssima Virgem são refutadas.

Após a refutação dos argumentos que pareciam ter alguma aparência de firmeza, também devemos refutar as mentiras e calúnias de Kemnitius, o que poderia causar problemas para mentes mais simples.

Kemnitius, assim, está por demonstrar na p. 520 como os erros e as superstições crescem gradualmente, desde que tais coisas sejam debatidas sem a Palavra de Deus, ao afirmar, em primeiro lugar, que, na época de Pedro Lombardo, a crença sobre a Imaculada Conceição da Virgem ainda era desconhecida. Mas é claro que isso é falso sobre os Padres citados por nós, especialmente sobre Anselmo em seu comentário sobre o cap. 5 da Segunda Carta aos  Coríntios. Anselmo, no entanto, era anterior a Pedro Lombardo. Por que, então, o próprio Kemnitius, duas páginas mais adiante, atribui essa própria crença a Anselmo, quando, nessa passagem, ele nega que se conhecesse no tempo de Lombardo? Desta forma, com certeza, suas palavras se harmonizam lindamente.

Em segundo lugar, ele diz que Pedro Lombardo, fazendo uso oportunista das palavras de Santo Agostinho, começou a contestar que a Santíssima Virgem foi isenta de todo pecado na concepção de Cristo, e mesmo da incitação ao pecado. Mas o fato de que Lombardo não foi o primeiro que atribuiu tão extraordinária pureza à Santíssima Virgem pode ser entendido a partir de Anselmo [livro. 2] Cur Deus homo [cap. 16] e do livro Sobre a Concepção Virginal [cap. 18] e do próprio Agostinho em seu livro Sobre a Natureza e a Graça [cap. 36] e de outros.

Em terceiro lugar, ele diz que aqueles que seguiram Lombardo inventaram a santificação no útero e o santo nascimento da mesma Virgem Maria. Mas esta é uma mentira ultrajante, porque a santificação no útero e o santo nascimento da Virgem eram altamente reputados na Igreja universal mesmo no tempo dos Santos Bernardo e Pedro Damião, que não seguiam Pedro Lombardo, por serem seus contemporâneos ou idosos.

Em quarto lugar, ele diz que a crença sobre a Imaculada Conceição da Santíssima Virgem surgiu depois daqueles tempos. E, embora Santo Tomás e São Boaventura se opusessem a essa crença, ainda em certos lugares a festa da Concepção começou a ser estabelecida. Uma mentira ultrajante é percebida aqui também. Pois, se a festa da Concepção começou a ser estabelecida após o tempo de Santo Tomás ou na época dele, como diz Kemnitius neste lugar, como São Bernardo, que precedeu Santo Tomás em cem anos, menciona esta festa na Epístola 174 que o mesmo Kemnitius citou acima? Como Santo Anselmo, que foi anterior ao mesmo Santo Tomás em quase duzentos anos, contava a origem da festa da Conceição, como o próprio Kemnitius testifica?

Em quinto lugar, ele diz que quando o Concílio de Trento, naquele apêndice sobre a Conceição da Santíssima Virgem, ordenou a observância da constituição do Papa Sixto IV, significava que haveria liberdade para se especular fora da, além da, e mesmo contrariamente à Palavra de Deus, sobre se a Santíssima Virgem foi concebida sem pecado original. Mas isso, como as outras coisas que se seguem, é uma calúnia e uma mentira tão sem vergonha, que nada mais desavergonhado pode ser fabricado. Na verdade, o motivo pelo qual tanto o Papa Sixto quanto o Concílio de Trento permitiram a liberdade de opinião sobre a Conceição da Santíssima Virgem, foi porque eles entendiam corretamente que nenhum dos lados era abertamente contrário à Palavra de Deus. Agora, nenhuma opinião livre é contrária à Palavra de Deus, mas isso não é o que Kemnitius está se esforçando para nos ensinar. A nenhum católico, certamente, é permitido ignorar esse fato. Mas não discutamos mais estas coisas, para não parecermos ter desperdiçado o bom tempo em vão com as bobagens de Kemnitius.

FONTE

BELLARMINE, St. Robert. The Marian Writings of St. Robert Bellarmine (pp. 15-43). Unknown. Edição do Kindle. 

PARA CITAR

BELLARMINO. São Roberto. A Imaculada Conceição de Maria, texto de São Roberto Bellarmino. Disponível em <http://apologistascatolicos.com.br/index.php/apologetica/virgem-maria/991-a-imaculada-conceicao-de-maria-texto-de-sao-roberto-bellarmino> Desde 10/09/2017. Tradutor: JBF.

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