Domingo, Maio 5, 2024

A Igreja em face dos césares – A. D. Sertillanges

A Igreja em face dos séculos antigos para se prender neles, em face de si mesma para se constituir, em face do seu meio natural para nele se apoiar, para se distinguir dele na medida necessária e com isso conquistá-lo: tal é a visão de que até aqui penetramos os nossos olhares.

A que reservávamos para sob este título: A Igreja em face dos Césares, deve mostrar-nos a obra de Cristo em luta com as potências deste mundo de que ela mais poderia ter que temer, se algo de sobre-humano não estivesse nela, prontinho a medir-se com o humano levado ao máximo – e armado – representado por esta palavra tradicional: César. Insistindo sobre o sentido ampliado, e de alguma sorte simbólico, deste termo, poder-se-ia dizer: a Igreja não esperou estar em face dos Césares para experimentar César. Um César domestico faz-se ver apressado, desde o tempo de Jerusalém, a zombar da familiazinha heroica, depois de lhe haver matado o Mestre.

A Paixão foi antes de tudo um crime judeu; o Império só indiretamente tomou parte nela, trazendo-lhe uma cumplicidade administrativa, se assim posso dizer, cobrindo com sua assinatura uma sentença imposta por outros. A Paixão continua sob as mesmas responsabilidades enquanto o judaísmo continua sendo a moldura política do cristianismo nascente. Nascida na cruz do Rei dos Judeus, a Igreja aí fica. Predisse-o o Salvador: “O servo não está acima do amo”. “Se eles assim trataram a lenha verde, que farão da lenha seca?” (Jo XIII, 16; Lc XXIII, 31).

Sob Herodes Antipas, João Batista e Jesus pereceram. Sob Agripa Iº, Estevão, Tiago, filho de Zebedeu, e Tiago, o irmão do Senhor, perecem por sua vez. Outros são flagelados. No ano 34 aproximadamente, a perseguição é bastante forte para dispersar o rebanho – que, como vimos, aproveita isso para enxamear, especialmente em Antioquia.

As razões da atitude adotada pelo sinédrio para com a seita nova não são todas elas religiosas, nem judias. A política romana já entra aí por alguma coisa. Acaso Caifás não disse, perfidamente é certo, mas apoiado em aparências plausíveis: “É melhor que morra um homem do que todo o povo?”. Desde esse momento, pois, temiam-se dificuldades da parte dos Romanos. A sinceridade religiosa e a independência ardente dos discípulos de Cristo fazem deles uns perturbadores, ao olhos de uma administração já sobrecarregada de querelas e maçada com as combinazioni judaicas.

Quando, pelo fim do século I, o êxodo da Igreja for consumado, Jerusalém destruída e todo poder político de Israel abolido, as pequenas dificuldades locais cederão à grande tormenta cujas causas temos de dizer.

Em principio, entre os Antigos, o homem que pratica uma religião diversa da do seu país está em situação daquele que se põe a serviço dum exército estrangeiro ou que muda de pátria. Mas a fusão dos Estados ou suas combinações políticas, por meio do direito de cidade diversamente praticado, leva a compor, em religião como em tudo o mais. Estabelece-se uma larga tolerância, que não é um progresso religioso, que é um ceticismo disfarçado nos dirigentes e uma superstição agravada nos outros. Os que creem na pluralidade dos deuses não se incomodam com a existência de mais alguns. Desde que o interesse e o instinto social se acham postos a coberto, a introdução de divindades novas excita apenas uma curiosidade benévola, ou um sorriso indiferente, ou um vago temor reverencial.

Num sistema mitológico complicado, em que os censos são sempre provisórios, há sempre uma porta aberta; ninguém se admira de ver passarem a ele divindades novas – que aliás muitíssimas vezes só são novas de nome. Que importa seja Deméter chamada Ísis pelos Egípcios e introduzida em Roma sob esse vocábulo estrangeiro, como uma filha que volta a habitar na casa dos pais depois do casamento?

Os judeus e os cristãos têm princípios inteiramente outros e estados de espírito inteiramente diversos. Aos olhos deles, a Divindade não é um patrimônio nacional, nem tão pouco – menos ainda – uma confederação indeterminada em número e em forma. O Deus deles é Deus; os outros são meros demônios ou sonhos, cujo culto é pura impiedade e puerilidade, excitando sucessivamente ou ao mesmo tempo a risota e a indignação virtuosa.

Compreende-se a reação hostil que tais concepções devem provocar, e a solidariedade que deve estabelecer-se entre os cultos pagãos mais divididos, quando se trata de troçar semelhante intolerância. Plínio e Tácito chamam os judeus uma raça célebre pelo seu desprezo dos deuses, e que considera como profano tudo o que os outros têm como sagrado14. Em regime pagão, e dada a confusão permanente do espiritual com o temporal, isso quase não se perdoa.

Todavia, acha-se jeito de arranjar-se finalmente com os judeus. A não ser que se tornem cidadãos romanos, caso em que as dificuldades sobrevém e se resolvem de diversas maneiras assaz arbitrárias, eles beneficiam da tolerância geral. As perseguições consistem pra eles, as mais das vezes, em imposições de tributo. O dinheiro é o preço da sua liberdade. Tudo se compra junto a gente para quem o espiritual é antes de tudo negócio temporal, negócio de Estado. A irreligião só é perseguida a título de anarquia: já não se é anarquista quando se paga para a administração da ordem. Os judeus tornam-se excelentes servidores de Júpiter Capitolino, desviando em proveito dele o didracma que os Ben-Israel pagavam ao Templo antes da destruição do santuário. Vespasiano, em todo o caso, assim decide.

Mas o cristianismo não é por muito tempo confundido com sua mãe, a sinagoga. Mãe desnaturada, esta retoma muitas vezes à sua conta o papel de Judas. Interesseira, odienta, ela não quer ligar a sua sorte política à de gente que a abandona cada vez mais, que goza dos seus privilégios e a compromete pelos seus excessos de zelo. Sucede serem judeus os primeiros a denunciar os cristãos às autoridades romanas.

Isso não é muito necessário. Para desvantagem deles, cedo se discerne gente tão extraordinária como esses cristãos. O seu gênero de vida separado, intenso e tão oposto ao século, expõe-nos às represálias de sentimentos melindrados e de malevolências exacerbadas por toda sorte de interesses comprometidos. Toquei neste último ponto a propósito das conquistas da Igreja.

Calúnias atrozes circulam. Os ritos mais sagrados, que se julga bom manter secretos por prudência, tornam-se por esse fato ocasião de acusações infames. Os ágapes noturnos são convertidos em saturnais capazes de fazer corar as saturnais; a eucaristia vira antropofagia: é uma criança que degolam para comerem.

Essas invenções odiosas e tolas acham crédito junto às massas como nos nossos dias o anticlericalismo. Deus sabe o que se chega a fazer engolir, mesmo alhures! Conheci um astrônomo persuadido da existência de uma comunicação subterrânea entre um convento de homens e um convento de mulheres, em seu país. Haviam-lhe dito isso. Sem dúvida haviam colhido isso nos astros. Gente mui grave, como Tácito, como Suetônio, são os astrônomos daquele tempo15. Consideram os cristãos como dignos de todos os castigos, por motivo político sem dúvida alguma, mas também por causa de vícios privados acreditados sobre a autoridade dos dizem. O dicuntur e o ferunt dos Romanos não têm menos poder do que os nossos parece, dizem.

Essas calúnias são bastante espalhadas para que S. Justino diga que consagra a sua apologia “àqueles a quem o gênero humano inteiro odeia e persegue”. O gênero humano é o mundo romanizado que eu descrevi, e é certo que nossos primeiros pais, com suas ideias tão diferentes em tudo, tão definidas, tão nobremente intransigentes, devem fazer aí uma figura difícil de olhar a sangue-frio. Ou as pessoas se rendem, ou se opõem, o que quer dizer que ou são hostis ou são odiadas, sem matizes intermediários.

Pensai que a vida social, impregnada de paganismo, é quase impossível aos fiéis. Viver é apostatar: não há senão esquivar-se ou morrer – a não ser que se vença. Os nascimentos, os casamentos, as festas de família, os atos da vida agrícola: semeaduras, colheitas, vindimas, tudo, na ordem privada, serve de pretexto a atos religiosos: libações, incenso oferecido aos deuses ou banquetes mais ou menos rituais. Quando vos convidam à sua mesa, num dia de festa, escrevem-vos, como achamos num papiro do século II: Tomai lugar “à mesa do Senhor Serápis, a 16 do mês”.

Caráter semelhante têm os divertimentos populares. As instituições civis e militares supõem juramentos religiosos; as funções inauguram-se ou correm risco de inaugurar-se de maneira ritual. Recusar-se a tudo isso, é irritar o gênero humano em grau verdadeiramente insuportável.

E a misantropia complica-se aqui de rebelião, visto como, ao mesmo tempo que se recusam as ações cotidianas, recusa-se a participação nos serviços públicos, que têm o caráter de um dever. Todos os cultos cedem ante a vida romana; todos com ela se acomodam fácil ou respeitosamente; só o cristianismo se enrija: convida a que o quebrem.

Por outro lado, a sobriedade das suas crenças faz os cristãos passarem como racionalistas aos olhos de pessoas que porfiam em complicar e em subtilizar. A ideia nítida que eles têm o Deus uno fá-los passar por ímpios – como Sócrates, – nisto que o Deus que eles adoram só parece definir-se pela  negação dos outros. Afirmar uma coisa sobre mil não é, “grosso modo”, negar tudo? Desprezar o panteão inteiro, salvo um Deus, é uma impiedade manifesta. É bem ruim o caso dos cristãos.

É tão ruim o caso deles, que eles são acusados de maneira a não acharem saída senão para o túmulo. A tolerância romana, tão ampla, tão universal até então, chega a dizer: sede tudo que quiserdes, menos cristãos.

A partir de que época o cristianismo é considerado juridicamente como religio illicita, não se sabe bem. Isso pode ser muito cedo. Em todo caso, no tempo de Tarjano (98-117) a questão não se presta mais a dúvida. O simples fato de ser cristão basta ao juiz. Não há necessidade de articular outra acusação. Magia, incesto, infanticídio, lesa-majestade ou sacrilégio, todas estas imputações absurdas ou atrozes com que o povo os agrava já não têm mais que se justificar no pretório. “Que é que recitais nas vossas tabuinhas? Clama os juízes o veemente Tertuliano. Fulano, cristão? E por que também não: e homicida?” Poder-se-lhe-ia responder: é inútil; os cristãos, como tais, estão fora da lei do Estado, lei que é religiosa ao mesmo tempo que política, porque é política.

Isso não é de admirar. E será abusivo? Sim, evidentemente, em si, visto que se persegue a verdade. Ao invés de sacrificar o cristianismo a um dogma social inferior, a atitude correta seria escutar, convencer-se, visto haver de quê, e render-se. Mas isso de maneira alguma prova que tal magistrado, tal imperador não possa estar, ele “subjetivamente”, muito em regra com a sua consciência.

O cristianismo instaura uma revolução: deve esperar pela sorte dos revolucionários, isto é, pela oposição não somente das pessoas mal intencionadas, mas também dos homens de ordem no sentido estrito do termo, dos conservadores e dos sectários políticos que ele não tiver conseguido imediatamente converter. Quando os homens de ordem são Nero ou Domiciano, devem-se ver coisas piores!

Coisa surpreendente: é sob um sapientíssimo imperador, Marco Aurélio, que os tempos se tornam os mais duros para o cristianismo. As cenas horríveis e gloriosas dos mártires de Lião, as de Cartago, datam do fim desse reinado. Há para isso razões gerais e razões locais; porém os preconceitos do Imperador, tanto mais inextirpáveis quanto são refletidos, a recusa de examinar os fatos, pois a teoria acalma a consciência, a aplicação cega das leis do império, devem entregar os cristãos, sob esse imperador, aos rigores de uma serenidade sem entranhas. Só depois desse alto filósofo, e, ó ironia! Sob um dos imperadores mais odiosos que Roma teve, Cômodo, é que a tranquilidade volta.

Para compreender isso, importa obervar que, a respeito de semelhante problema, os imperadores não são tudo. Um imperador nunca é tudo. Mesmo um Estado centralizado ao máximo, a centralização só relativa pode ser. Entre nós, a sorte do pequeno editor ou do funcionário não depende tanto do governo como do prefeito, dos “comitês” locais, do deputado, até mesmo de um intrigante sem mandato. A política local pesa sobre o indivíduo mais do que a política geral do Estado, e o tirante é mais de temer do que o tirano.

Quando há contra vós, notadamente, isso a que se chama “as leis existentes”, nunca estais em segurança, porquanto, tivesse o poder central intenção de deixar dormir o instrumento de suplício, desde o momento que ele não pode ou não quer suprimi-lo, a gente se arrisca sempre a ver o cutelo desprender-se, mesmo quando a mão dele permanece inerte.

Portanto, mesmo com bons imperadores, os cristãos vivem sob a ameaça constante, e, periodicamente, sob a ação do martírio. Quando César esquece a razão de Estado ou acha nela motivo de tolerância, o que sucede, nem por isso nossos pais deixam de ficar sendo uma caça perseguida, em todo caso disponível, visto como não merece aos olhos de quem quer que seja, no mundo político, a menor benevolência. Ao primeiro sobressalto de ódio popular, graças ao menor incidente local, ou em razão de uma malevolência individual um pouco poderosa, tudo é posto novamente em questão, e a morte trabalha.

Isso explica suficientemente os fatos até o fim do século II. Depois, intervém um elemento moral inteiramente novo: o medo. As pessoas se lembram das palavras de Domiciano: “Eu preferiria suportar um rival em Roma a suportar um bispo cristão”. Semelhante sentimento mostra o quanto está mudada a situação entre a Igreja cristã e o Império. A Igreja tornou-se uma potência. A arrogância serena de um Marco Aurélio ou a segurança de um Adriano já não são admissíveis. A Filosofia acaba de mostrar o que vale. O sincretismo religioso desacredita-se, e, sob os olhares da autoridade romana, o rebanho de Cristo estende-se de maneira a mais inquietadora. O tempo vai chegar em que o perseguido de ontem será o vencedor; o leãozinho, que fora tomado como caça vulgar, mostrar-se-á o “leão de Judá” e pulo irresistível. Antes disso, deve ser tentado o esforço supremo. Tentam-no, e a perseguição de Diocleciano, a que se chamou a era dos mártires, datando a 9 de Agosto de 284, é o ponto culminante desse período.

Não se põe nela, aliás, grande continuidade; procede-se por acessos. Quanto ao resultado, este dá razão à palavra de Tertuliano, tão ousada, tão consciente do milagre na sua forma mais trágica, senão mais alta: “Sanguis martyrum sêmen christianorum; o sangue dos mártires é semente de cristãos”.

Cumpre relembrar as leis dessa germinação cruenta, dizer por que as crueldades dos Césares resultam às avessas, como é que não descoroçoam o lealismo dos cristãos, mas do que nunca afeiçoados ao Império à medida que dele sofrem, e que atitude enfim sabem guardar heroicamente homens em quem o ódio devia produzir naturalmente o ódio, mas em quem, ao contrário, produz o amor e o triunfo social do amor.

II

As razões do triunfo dos vencidos, na luta desigual da Igreja com o Império, são antes de tudo de ordem sobrenatural. Aqui, como também quando se tratava de um extraordinário crescimento – as duas questões, ademais, são conexas – não se pode afastar o milagre. Quem quer que pense nisso com o sentimento do real e do possível humano parece dever consentir nisto. Não é necessário e não é eficaz, aqui, raciocinar; basta ver, m

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