Se é verdade que Cristo é o centro e não o começo da história cristã; que tudo gravita em torno dEle – o passado para prepará-lo, o presente para recebê-lo, o futuro para utilizá-lo; de tal sorte que a obra inteira seja sem corte, realizando a palavra de S. Paulo: “Tudo é para os eleitos” -, se esse plano religioso do mundo é o verdadeiro, manifesta é a consequência. Cristo deverá vir no momento em que mais necessidade se tem dele e em que dele mais se pode aproveitar.
Isso supõe que a sua época será ao mesmo tempo rica e pobre: rica em recursos e pobre em realizações; pobre também em esperança, se fosse abandonada a si mesma. E isso dá a prever que a obra cristã consistirá, não em desdenhar o passado, desdenhando-se de si mesma, visto como ela reina sobre o passado tanto como sobre o presente e sobre o futuro, – e tão pouco em copiar o passado, em subordinar-se a ele, em servi-lo, o que seria uma inversão dos papéis; mas em fazê-lo realizar seu fim. Para isso, deverá ela apoiar nele a sua obra histórica assim como, para crescer, o vivente se nutre daquilo que o solo produz. Não se há de esquecer, aliás, que andar é repelir para trás o solo em que a gente se apoia, e que nutrir-se é destruir o alimento enriquecendo-se da sua substância.
Esta concepção a priori precisa ser confrontada com os fatos, para se ver, primeiro, se os fatos a comprovam; e, em seguida, como.
Foi de moda, outrora, ver em Cristo e nos primeiros obreiros da sua obra não sei que iniciados que, quais abelhas diligentes, teriam recolhido o suco das tradições, o pólen das organizações anteriores, para com eles sabiamente comporem esta cera e este mel: a Igreja e o Evangelho. Toda originalidade e toda transcendência seriam assim recusadas à religião de Jesus; ela seria um ensaio de sistematização partindo de dados adquiridos; não seria mais a Boa Nova, o Dom de Deus. Já não haveria “milagre”.
Assim tal qual, esta concepção está morta hoje em dia; nenhum crítico, por pouco sério que seja, ousaria sustentá-la. Tudo nos demonstra que os primeiros obreiros do Evangelho foram estranhos à cultura que semelhante ecletismo suporia; que de modo algum pensaram nisso.
Ao próprio Jesus os puros críticos não emprestam, tão pouco, essas intenções, que destoam de tudo o que se sabe dele. Quanto a nós, é evidente que ainda muito menos dispostos estamos a semelhante atitude. Sabemos que não foi assim, por fora, adventiciamente ou por colheita de elementos estrangeiros, que Jesus se propôs compor sua obra; foi por dentro, pelos meios da vida, e a partir de um germe divino.
Esse germe, que ele trazia, é o seu Espírito, cuja comunicação é simultaneamente intelectual, pelo dogma, e prática, sob a forma de sentimentos, de moções, de meios essenciais de ação. Tal era a alma do seu grupo. Isso é que era o “vinho novo”, que, dizia ele, não se devia conservar em odres velhos. Por essa expressão, ele mostrava bem a que ponto era estranho às vistas do ecletismo. Fazia coisa inteiramente nova, que era ao mesmo tempo coisa eterna, nisto que todo o passado colaborara nela a titulo de preparação, nisto que todo o presente devia servir-lhe de meio nutriente e todo o futuro de matéria para seus progressos. Nunca seria de mais repetir estas coisas.
Portanto, se há semelhanças – e as há numerosas – entre a religião de Jesus e as religiões do passado, não é por empréstimos que cumpre explicá-las primeiro, é por esta consideração simplíssima: que as religiões antigas foram criadas pelo instinto para corresponderem às necessidades do homem, às suas aspirações e às suas reflexões em face do destino. Na medida em que instintos, aspirações ou juízos estavam desviados, as antigas religiões foram também desviadas, e uma religião divina, como o cristianismo não devia assemelhar-se a elas; mas onde quer que as necessidades fossem reais, que as aspirações fossem legítimas e as reflexões sensatas, as religiões concluíam acertadamente, e a religião definitiva devia assemelhar-se-lhes nisso, embora excedendo-as, visto como as suas reflexões, hauridas de lá de cima, transcendem a amplitude sempre limitada de um olhar de homem.
É preciso capacitar-se de que, em religião, o divino é precisamente o mais humano, não tendo a religião outro papel senão rematar a vida do homem, mesmo quando a excede. O divino autêntico deve, pois, coincidir parcialmente com o humano autêntico, e isso não será um empréstimo, mas um encontro, motivado por um mesmo ponto de partida e por uma finalidade comum.
Deus dá o pão supersubstancial; os homens procuram fabricar o outro, e nem sempre têm falhado na sua fabricação. Deus dá a água que jorra até a vida eterna; mas já havia outras águas. Os que bebiam delas ainda tinham sede; ver-se-á bem isto pela solicitude deles quando jorrar a fonte divina; porém, mesmo assim, eles tinham achado nelas refrigério.
Destarte se explicam os traços comuns que com tanto comprazimento têm sido salientados – no intuito de fazer deles objeções – entre o cristianismo e o budismo, as religiões persas, gregas, Roma,as, etc., como se não fosse um elogio, em relação a uma religião que se pretende sem lacuna, o dizer-lhe: Não esquecestes este e aquele valor descoberto antes de vós por outras religiões. Chamem ao cristianismo, tanto quanto quiserem, “um microcosmo religioso”! É um grande louvor.
Todavia, historicamente esta resposta não é suficiente; pois não negamos que tenha havido empréstimos essenciais, empréstimos destinados a constituírem a religião, ao invés de servi-la. Por isto teremos de tornar à questão das utilizações do paganismo pela religião cristã. Mas, por enquanto, temos de repetir uma segunda forma da opinião, que faz do cristianismo um fruto natural do passado e do presente religioso a que sucedeu.
Muitos, com efeito, afastando os disparates que fariam de Cristo e dos apóstolos uns ajuntadores de noções e de devoções esparsas, nem por isso deixam de dizer que, para se formar, a Igreja herdou – apenas sem o saber, e sem o saberem os seus iniciadores – aquilo que aquela época compósita, cuja fisionomia exata tentamos dar mais acima, continha.
O cristianismo não passaria de um dos movimentos espontâneos de renascimento religioso que se ensaiavam no tempo de Jesus, e Jesus não teria feito senão determinar a cristalização num certo ponto, em certas formas, formas que aliás se alteraram, ao que dizem, pela influência dos cultos que não tinham sido bem sucedidos no mesmo esforço, e que ele entendia de suplantar.
Esta teoria tem por si os traços comuns que aproximam o cristianismo dos estados de espírito reinantes no momento em que ele nasceu, e das doutrinas ou dos ritos próprios às religiões ambiente. É assim que o universalismo e a interioridade, que figuram entre os sinais mais característicos do cristianismo, já se fazem adivinhar no sincretismo, que representa o meio imediato em que a Igreja teve de se formar.
Basta, porém, olhar nisso para verificar que essas tendências, se podiam servir para preparar as almas, de modo algum podiam, por si mesma, sugerir-lhes os pontos de vistas cristãos, porque destes àqueles há um abismo.
Bem verdade é que no tempo de Jesus os cultos outrora locais tendem a universalizar-se. Parecem agora abertos a todos. São-no realmente, salvo o mitraísmo. Mas é somente pelo seu lado exterior, o lado menos religioso; poder-se-ia dizer nada religioso; porque o exterior nada é, se não manifesta uma alma.
As bacanais, as procissões delirantes da Grande Mãe, em que os eunucos triunfam entregando-se a transes de epilépticos: eis o que se franqueia a todos. Desde que se trata da vida interior, mística e verdadeiramente moral, recai-se na estreiteza da iniciação. Considera-se como ímpia uma manifestação comum da doutrina e dos divinos arcanos. O número é uma profanação. O exclusivismo faz parte das alegrias do iniciado, neste mundo e no outro.
Os partidários da mentepsicose, pouco numerosos relativamente, ainda têm esta pálida desculpa de só desprezarem a multidão provisoriamente; ela renascera mais perto de nós, se disto for digna, e subirá algum dia ao Olimpo onde as nossas alegrias estão bem próximas. Mas os que terminam na morte o ciclo das preparações religiosas não se mostram lá muito universalistas, quando dizem equivalentemente: Que se arranje a multidão humana!
Aproximei isso destas grandes palavras: “Ide e ensinai todas as nações, ensinando-lhes tudo o que eu vos mandei”; “Não se acende a lâmpada para escondê-la debaixo do alqueire”; “Não há nada oculto que não deva ser manifestado”; “O que eu vos digo ao ouvido, pregai-o de cima dos telhados”: e verificareis a diferença.
Correlatamente, a tendência universalista do sincretismo comportava uma tendência para a interioridade, tendência que as religiões políticas das épocas anteriores desprezavam. Neste sentido, havia grande progresso. A salvação do Estado cedendo à preocupação da salvação da alma; o indivíduo imortal suspeitando o seu valor e, a despeito de monstruosas aberrações, elevando-se à ideia de sacrifício: aí já era o excelente. Os mistérios assinalavam esse estado novo da opinião religiosa. Mas julgai de perto essas manifestações, e capacitar-vos-eis da ilusão que haveria em aproximá-las da vida interior tal como compreendeu o misticismo cristão. A aparência de certos termos pode enganar; a realidade é muito menos nobre.
Que é que se pede ao iniciado para participar dos favores místicos? A pureza, o que poderia fazer crer por isto se entende o que o Evangelho entenderia. Mas, lendomelhor, percebe-se que se trata de coisa inteiramente diferente. Em matéria de pureza, pede-se-vos não serdes nem “ímpio”, nem “celerado”; é uma boa precaução contra as batidas policiais ou as raízes de objetos piedosos; mas como pureza interior é pouco, quando se pensa que a profissão de cortesã permite à iniciada conservar o que seus sacerdotes chamam de “mãos puras”.
Mais tarde, a iniciação do cristianismo já desenvolvido levará essas religiões a macaquearem o nosso misticismo; elas chamarão seus deuses – coisa nova – os “guardiães da alma e do espírito”, e as suas inundações de sangue de touro serão consideradas como tendo o efeito do batismo; mas, por seu próprio movimento, essas religiões não levam à vida interior; a pureza de que elas falam na sua catártica é uma pureza legal, semelhante à do Judeu que não comeu porco e está com as mãos limpas.
Notai que, entre os Judeus, esse formalismo, pelo fato de se substituir à ideia moral, era uma degenerescência; di-lo bastante o Salvador. Aqui, é o caso normal. Não se trata de deplorar as próprias faltas e de converter o próprio coração, mas de tomar um banho que vos liberta das lamas da existência à maneira de uma lavagem mecânica.
A pureza pagã é uma medida prudente contra as doenças, as enfermidades precoces, os acidentes, os desarranjos de mente e do corpo vindos dos deuses descontentes. E descontentes por quê? De modo algum porque o nosso coração está longe deles – o que, de resto, merecia às vezes louvor! – mas porque certos atos ou certas omissões nos tornaram para eles um objeto de horror.
Consegue-se dobrar os deuses por meio de encantações materiais. Para isso não basta uma consciência fiel; é preciso uma voz justa. O bárbaro, que não sabe pronunciar o grego, é excluído pela mesma razão que o ímpio ou o celerado. Assim traz o ritual. Tudo isso é pura magia, e não religião ou moral.
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