Domingo, Maio 5, 2024

A Igreja antes da Igreja – A. D. Sertillanges

Demos ao nosso primeiro estudo um título que não poderia convir a muitas instituições. Ele significa que a instituição religiosa de que falamos se precede de alguma sorte a si mesma; que, portanto, por alguma coisa de si mesma ela é superior ao tempo; que em todo caso lhe é igual; mas dá no mesmo; pois só é igual ao tempo, ao invés de se deixar talhar nele uma parte arbitrária, aquilo que se mostra superior ao que o tempo mede.

A história de toda instituição é como uma página branca tarjada de preto; precede-a o nascimento de si e outro nada segue-a; porque tudo morre. Só a Igreja não somente não morre, mas, em certo sentido, não nasceu; porquanto, se ela é uma realidade temporal, tendo uma história, é também uma realidade extratemporal, em razão de não passar a sua história de uma espécie de símbolo. Símbolo real, símbolo que é uma parte da sua realidade, mas que se acha transcendido por uma realidade mais alta, pertencente ao mundo do espírito e roçando pelo tempo apenas com a ponta das asas. Aliás, essas asas são tão largas de envergadura que envolvem todo o tempo, à feição do Espírito criador, de quem a Igreja é uma emanação direta.

Tal é a primeira noção a penetrar quando se quer falar corretamente dos antecedentes da Igreja.

É que, para o católico, a Igreja não é uma instituição particular, como haveria outras ao lado, antes ou depois: é uma instituição universal, que chama a si e que a si subordina realmente toda a raça, no intuito de, por Cristo, homem universal, uni-la a Deus que habita Cristo e que se fez homem n’Ele, a fim de que por Ele o homem suba e tenha acesso a Deus. Nestas poucas palavras, todo o pensamento católico se encerra. Ora, a raça de que Cristo é o chefe religioso e da qual, por Ele, o Espírito de Deus se torna a alma, a raça, digo, é todo o passado e todo o futuro, ao mesmo tempo que o presente.

A humanidade compõe-se de mortos tanto e mais do que de vivos, escreveu Augusto Comte: pela mesma razão compõe-se de homens nascituros tanto e mais – penso eu – do que de homens já nascidos ou desaparecidos. A humanidade é todo o desdobramento das gerações sobre a terra, como um eu individual é o desdobramento de uma vida em seus diversos estados. Era o que Pascal via ao escrever a sua fórmula célebre: “A humanidade é como um homem único, que subsiste sempre e aprende continuamente”.

Portanto, se a Igreja é a humanidade religiosamente organizada por meio desse Filho de Deus – Filho do Homem, que é Cristo, deve a Igreja ser necessariamente onitemporal. Poder-se-ia dizer que é eterna, considerando apenas o seu caráter divino: foi o que permitiu a João, o inspirado, dizer de Cristo, chefe da Igreja, que ele é antes que o mundo fosse nascido, ou seja, como Deus. Mas como homem, precisamente enquanto chefe da Igreja, S. Paulo di-lo-á não mais eterno, porém onitemporal, pertencente a todos os tempos: Ontem, hoje e em todos os séculos (Hebreus 13, 8).

Não que queiramos ressuscitar aquelas lendas rabínicas segundo as quais Cristo viveria de uma vida positiva, posto que invisível, através das gerações, por exemplo, como diziam alguns, no paraíso terreal, conservado e guardado pela espada de fogo do arcanjo contra a curiosidade dos geógrafos! Mas não são essas realidades materiais as únicas realidades.

Se sempre foi verdade dizer que nenhum homem chega a Deus senão por Cristo, que em Cristo a humanidade toda é oferecida a Deus, aceita por Deus e unida a Deus para uma vida eterna, bem necessário se torna que, de uma maneira ou de outra, Cristo tenha existido sempre, sempre à disposição de quem quer que, homem de ontem ou de hoje, daqui ou dacolá, procurasse o caminho para o Único Necessário e o Único Suficiente da alma humana.

Há uma gravitação universal das almas, e Cristo lhes é o Sol. Somente n’Ele está a grandeza, a inocência e a felicidade da terra. Religião viva, se assim posso falar, já que Ele se apresenta como o Vínculo, a Ponte, a Entrada, a Porta que faz comunicar e estabelece numa vida comum o homem e Deus, deve Ele dominar a raça na sua dupla extensão, espacial e temporal. De tão longe quanto venhamos sobre o imenso meridiano do universo moral, e qualquer que seja o momento do tempo em que situemos a nossa frágil existência, cumpre que, de uma maneira ou de outra, toquemos nesse ponto, para tocarmos no divino que lhe é parcialmente idêntico. Só aí a tangente infinita toca o círculo humano.

Toda a questão, para nós, está em definir sob que formas históricas essa vida espiritual, que Cristo preside e que é a vida da Igreja, pôde manifestar-se antes que a própria Igreja fosse deste mundo na sua forma presente.

Mas primeiro devemo-nos perguntar por que é que somos trazidos a esta complicação: a Igreja antes da Igreja, Cristo antes de Cristo, e a todas as consequências que daí decorrem.

Há aí uma questão de filosofia religiosa que muitos não percebem, mas que nem por isso deixa de existir, e cujo desconhecimento dá lugar a objeções variadas contra a teologia católica. Se Cristo é o ponto de partida e o meio único de todo o movimento religioso humano, por que é que, historicamente, ele não se acha no início da história humana? Aquilo que é definido como princípio deveria, ao que parece, fazer-se ver no principio. Natural seria que o Novo Adão, como nós chamamos a Jesus Cristo, o segundo primeiro homem, como diz o Padre Lagrange, fosse colocado no começo da

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