Segunda-feira, Novembro 18, 2024

A Diocese e os Pobres de Cristo

 

Uma das tarefas mais importantes da Igreja local ou diocese, dentro do reino de Deus na terra, é sua missão para com os pobres e necessitados. Deus chama para sua Igreja todos os homens, mas este chamado se dirige especialmente aos indigentes e desventurados deste mundo. A Igreja deve se adaptar às necessidades e exigências de todas as raças e classes sociais, mas Deus quer que sejam os pobres e afligidos os que recebam primariamente seus cuidados. Dada a constituição divina da Igreja, é forçoso que esta característica própria da Igreja universal brilhe com todo seu esplendor na vida da igreja local ou diocese. Que o bispo e o presbítero devem ter um interesse especial pelos pobres e desafortunados deste mundo é algo que se deduz claramente da própria natureza da Ecclesia.

Os desvalidos e indigentes, os afligidos e desafortunados deste mundo foram sempre objeto de predileção especial por parte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Poderíamos dizer que a missão do Verbo encarnado neste mundo tinha realmente por objeto especial, e em certo modo primário, o socorro desta classe de pessoas. Já no Antigo Testamento se descreve o Messias como enviado especialmente para favorecer aos pobres e afligidos. E neste sentido foi tão patente o ministério público do Salvador em favor dos pobres, que pode ser esta uma das razões que convenceram a São João Batista de que as profecias do Antigo Testamento acerca do Messias estavam se cumprindo em Cristo. Nosso Senhor encomendou aos seus discípulos o cuidado dos pobres, confirmando este mandato com seu próprio exemplo. Os apóstolos não esqueceram esta doutrina nem a missão que lhes foi confiada, considerando-se especialmente obrigados a tal socorro e ajuda. Os bispos da Igreja tem o mesmo privilégio e idêntica responsabilidade como membros que são do colégio apostólico. A mensagem divina da pregação a eles encomendada se deve dirigir principalmente aos pobres. Os sacerdotes seculares que em sua diocese respectiva integram o presbitério diocesano, e a mesma irmandade sacerdotal essencialmente consagrada para ajudar ao bispo, estão obrigados a levar a todos os pobres os consolos da mensagem divina para cumprir seus deveres. É inegável que a pregação de Cristo se dirigia principalmente aos pobres e desgraçados. Quando Nosso Senhor anunciou a seus conterrâneos de Nazaré seu próprio caráter messiânico, leu-lhes a passagem em que o profeta Isaías expõe a missão especial que Deus havia encomendado ao Messias de evangelizar aos pobres e necessitados:

Veio a Nazaré, onde se havia criado e, segundo o costume, entrou em dia de sábado na sinagoga para fazer a leitura. Entregaram-lhe o livro do profeta Isaías, e desenrolando deu com a passagem onde está escrito:

“O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu: Ele me enviou para evangelizar os pobres, para pregar aos cativos da liberdade, aos cegos da recuperação da vista, para pôr em liberdade os oprimidos, para anunciar o ano de graça do Senhor”.

E enrolando o livro devolveu-o ao servidor e se sentou. Os olhos de quantos havia na sinagoga estavam fixos nEle. Começou a dizer-lhes: Hoje se cumpre esta escritura que acabais de ouvir[1].

Assim, então, segundo a profecia de Isaías e a explicação do próprio Cristo, os beneficiários imediatos da mensagem divina devem ser os necessitados, os pobres (πτωχοῖς) e afligidos deste mundo. O amor preferencial de Cristo para com os pobres e desvalidos não foi algo meramente acessório, senão que entrava de cheio dentro de sua missão providencial, pois era vontade de Deus que suas graças e bênçãos chegassem primeiramente aos mais necessitados. Por esta razão, o socorro dos pobres é um dever especial da Igreja, dos bispos que compõe seu colégio apostólico, e dos sacerdotes diocesanos que colaboram, por vontade divina, com seus respectivos bispos nas diversas dioceses do mundo inteiro.

O próprio Jesus Cristo apelou a seu labor espiritual em favor dos pobres, ao mesmo tempo que a seus milagres, com o fim de convencer eficazmente aos discípulos de São João Batista de que Ele era em verdade o Messias prometido no Antigo Testamento.

Tendo ouvido João no cárcere as obras de Cristo, enviou por seus discípulos para dizer-lhe: “És Tu, “O que vem’ ou temos de esperar a outro?” E respondendo Jesus, lhes disse: “Ide e refere a João o que haveis ouvido e visto. Os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados; e bem-aventurado aquele que não se escandalizar de Mim”[2].

Assim como Jesus Cristo durante toda sua vida pública trabalhou tanto para ajudar espiritual e materialmente aos pobres e necessitados, assim também e neste mesmo sentido quer Deus que trabalhe o presbitério; pois, no fundo, a obra de Cristo deve ser continuada por sua Igreja e, por conseguinte, pelo bispo e seus sacerdotes. Os quatro evangelistas nos dizem que as multidões acudiam a Jesus em busca de remédio espiritual e material para suas necessidades. A maior parte dos milagres realizados por Cristo para provar através da evidência sua Missão divina tiveram por objeto o remédio das dores e enfermidades do povo. Ademais, Nosso Senhor costumava aliviar com suas esmolas as necessidades dos pobres, como podemos deduzir do fato de que, ao sair Judas Iscariotes do cenáculo para preparar sua infame traição, os demais apóstolos pensaram que ia comprar algo para a festa ou para dar esmola aos pobres[3]. Também era prática comum de Jesus vender os valiosos presentes que lhe fazia e,com a soma obtida, remediar a indigência dos pobres, como claramente se deduz do comportamento de Judas e alguns outros discípulos, que se irritaram contra Maria de Betânia ao vê-la ungir com um precioso perfume os pés do divino Salvador, quando “pode vender-se em mais de trezentos denários e dá-lo aos pobres[4]. Como sabemos, Nosso Senhor tomou a ocasião deste incidente para indicar que a companhia de seus discípulos, a sociedade denominada Igreja, deve ter como ocupação cotidiana e ordinária o cuidado dos pobres. “Porque os pobres – disse Jesus Cristo – sempre tendes convosco, e quando quiserdes podeis fazer-lhes bem. Mas a mim não me haveis de ter sempre[5]”. Com estas palavras Jesus quis indicar a seus discípulos que sua preocupação pelos pobres devia durar sempre, ainda depois de que Ele houvesse ausentado de sua vista com sua ascensão aos céus.

Nosso Senhor nos induz e exorta a mostrar nosso amor ao pobre, mesmo em grau heróico, quando afirma que se queremos ser perfeitos devemos vender todas nossas coisas e posses para socorrer os pobres. Ao perguntar-lhe o jovem rico que devia fazer para alcançar a vida eterna, Jesus lhe disse claramente que para entrar no reino de Deus na terra (reino que ainda se encontrava então dentro da coletividade religiosa de Israel), era necessário guardar os mandamentos contidos na lei divinamente revelada. E quando o jovem replicou que havia observado esses mandamentos desde a juventude, mostrando seu desejo de maior perfeição no serviço de Deus, Nosso Senhor lhe aconselhou que vendesse tudo o que tinha e o repartisse entre os pobres; feita esta renúncia, poderia seguir seu convite unindo-se a seus discípulos[6]. Jesus inculca frequentemente a seus discípulos a renúncia das riquezas com o fim de aliviar as angústias dos pobres. Conforme aos desejos do Mestre, agiram os discípulos em Jerusalém depois da ascensão de Cristo aos céus. Os Atos dos Apóstolos nos referem que era tal a solicitude da primitiva comunidade cristã por seus membros indigentes que “não havia entre eles indigentes, pois quando eram donos de terras ou casas as vendiam e levavam o preço do vendido e depositavam aos pés dos apóstolos, e a cada um se repartia segundo sua necessidade”[7]. As palavras de São Pedro a Ananias manifestam claramente que esta caridade heróica dos cristãos para com os pobres era voluntária, não obrigatória. Assim, disse São Pedro a Ananias que a terra que havia vendido havia sido propriedade deste por haver querido retê-la, e que o preço recebido pela venda a ele pertenceria se não houvesse querido entregá-lo[8]. Ananias foi condenado e também castigado, não por haver recusado a entregar todos os seus bens aos pobres, mas por haver querido enganar aos apóstolos, representantes do próprio Deus e encarregados de reger a Igreja.

Nosso Senhor se contentou com aconselhar ou recomendar a doação total de nossos bens aos pobres, mas ao invés disso nos prescreve o cuidado destes como um severo mandato, ordenando a seus discípulos que empreguem parcialmente suas riquezas em socorro aos mais necessitados e ajudem a aqueles que nada podem pagar pelos benefícios recebidos.

Disse também ao que lhe havia convidado: Quando deres um almoço ou uma ceia, não chame a teus amigos, nem a teus irmãos, nem aos parentes, nem aos vizinhos ricos, não seja que eles, por sua vez, te convidem e tenhas já tua recompensa. Antes quando fizerdes uma comida, chama aos pobres, aos aleijados, aos coxos e aos cegos, e terá a felicidade de que não possam pagar-te, porque receberás a recompensa na ressurreição dos justos[9].

Em sua grande solicitude pelos pobres, Cristo não deixava de louvar qualquer generosidade importante em favor deles. Vejamos, por exemplo, o caso de Zaqueu: “Zaqueu, em pé, disse ao Senhor: Senhor, dou a metade de meus bens aos pobres, e se a alguém tenho defraudado em algo, devolvo-lhe o quádruplo. Disse Jesus: Hoje veio a salvação para tua casa, porquanto este é também filho de Abraão[10]. Zaqueu foi chamado filho de Abraão, mais que por sua origem racial, por razão de sua fé em Cristo, mediante a qual foi incorporado perfeitamente ao reino de Deus neste mundo e unido à progênie espiritual de Abraão. A missão de Nosso Senhor para com os pobres deste mundo incluía um terno e verdadeiro apreço das graças e bênçãos que Deus lhe concede. Jesus Cristo louvou publicamente a contribuição que a pobre viúva fez ao templo de Jerusalém, fazendo notar que sua pobre oferta era na realidade de mais valor que as ostentosas esmolas dos ricos. No sermão da montanha chega a chamar bem-aventurados aos pobres. É importante notar que a primeira das bem-aventuranças se refere principalmente aos pobres verdadeiros, isentos de bens materiais. “Bem-aventurados os pobres, porque vosso é o reino de Deus[11]”, é a primeira bem-aventurança segundo o relato de São Lucas. São Mateus acrescenta as palavras τῷ πνεύματι para indicar que o reino do céu, a Igreja de Deus no Novo Testamento, deve pertencer a quem, por sua lealdade a Cristo, vivem desprendidos das riquezas materiais que fazem a tantos homens alheios do Criador e pensar somente nas criaturas[12]. Contudo, é evidente que em feliz proposição se expressa que a Igreja de Deus está destinada de um modo especial aos pobres e deserdados deste mundo.

O amor e o cuidado dos pobres foram a nota predominante da vida pública de Jesus Cristo, e já desde o princípio a Igreja fundada por Cristo considerou este assunto de suma importância. Os discípulos de Nosso Senhor nunca esqueceram as instruções que o Mestre lhes deu, para acrescentar novos membros a sua Igreja, em uma das parábolas do reino. “Sai, sem demora, pelas praças e pelas ruas da cidade e introduz aqui os pobres, os aleijados, os cegos e os coxos”[13]. Os próprios discípulos de Jesus eram pessoas humildes que podiam muito bem dizer ao Mestre por boca de São Pedro: “Nós deixamos tudo e te seguimos”[14]. Não é, então, estranho que entre os primeiros cristãos todos se preocuparam por ajudar com liberalidade e entusiasmo aos necessitados, e especialmente aos irmãos na fé, pondo a disposição deles suas próprias riquezas[15]. A própria Igreja era a que se encarregava de distribuir todos os dias alimentos e mantimentos às viúvas de cada comunidade cristã[16]. A discípula de Jope, chamada Tabita ou Gacela, trabalhava com todo carinho pelos pobres da Igreja daquela cidade, realizando assim uma atividade essencial do reino de Deus no Novo Testamento[17]. O centurião Cornélio mereceu, com suas orações e esmolas, a graça de ser chamado a ser membro da Igreja nascente[18].

São Paulo insiste em que o cuidado dos pobres da Igreja universal incumbe ao colégio apostólico. Escrevendo aos Gálatas, recorda que, quando os apóstolos aprovaram em Jerusalém seu ministério apostólico, assinalaram-lhe explicitamente a obrigação de cuidar dos pobres.

Tiago, Cefas e João, que passam por ser as colunas [da Igreja] reconheceram a graça a mim dada, e deram mim e a Barnabé a mão em sinal de comunhão, para que nós nos dirigíssemos aos gentis e eles aos circuncisos. Somente não pediram que nos lembrássemos dos pobres, coisa que procurei cumprir com muita solicitude[19].

A tarefa de socorrer aos pobres é antes de tudo uma função própria da caridade divina. Os cristãos têm que se ajudar mutuamente em suas necessidades por razão do amor fraternal que deve reinar entre os membros da mesma família, que é a Igreja. O bispo é o primeiro obrigado a socorrer aos indigentes, pois ele é quem preside este αγαρη, quem governa e dirige a sociedade, com caridade divina, como representante que é do próprio Deus. Está, desse modo, encarregado do cuidado dos pobres de sua diocese. Dado o caráter universal do reino de Deus na terra, os diversos membros das dioceses particulares – e ainda mais seus governantes – devem trabalhar solicitamente por ajudar a todos os irmãos que sofrem, mesmo em outros lugares. Assim vemos que São Paulo pedia às igrejas de Roma[20], de Galácia[21] e de Corinto[22] ajuda econômica para aliviar a pobreza dos fiéis de Jerusalém. As de Macedônia, apesar de sua pobreza e das perseguições que sofriam pelo nome de Cristo, anteciparam-se generosamente aos desejos de São Paulo[23].

A epístola de São Tiago insiste em que uma diocese não pode ser fiel e leal a sua sublime dignidade e divina vocação se seus membros mostram preferência pelos ricos e desprezo pelos pobres. O apóstolo chega até negar o título de εκκλησια à assembléia local cristã em que se despreza aos pobres e somente se honra aos ricos. Tais reuniões de cristãos se denominam “sinagoga” (συναγωγη)[24]. Talvez seja esta epístola de São Tiago o livro do Novo Testamento onde mais clara e perfeitamente se faz ressaltar a dignidade e posição dos pobres na Igreja de Cristo.

Escutai, irmãos meus caríssimos: Não escolheu Deus aos pobres segundo o mundo para enriquecê-los na fé e fazê-los herdeiros do reino que tem prometido aos que lhe ama? E vós afrontais ao pobre”.[25]

Daqui infere São Tiago que, se o reino de Deus pertence especialmente aos pobres deste mundo, a ecclesia satanae será formada especialmente pelos ricos.

Não são os ricos os que os oprimem e os arrastam diante os tribunais? Não são eles os que blasfemam o bom nome invocado sobre nós?[26]

Este mesmo conceito da Igreja – e sua relação especial com os pobres – o expõe nitidamente São Paulo em sua primeira epístola aos Coríntios.

Antes elegeu Deus a necessidade do mundo para confundir aos sábios e elegeu Deus a fraqueza do mundo para confundir os fortes; e o plebeu, o desejo do mundo, o que não é nada, o elegeu Deus para destruir o que é, para que ninguém possa se gloriar diante de Deus.[27]

Na epístola de São Tiago se explica claramente a verdade revelada de que o amor de caridade para os pobres da Igreja de Deus exige que voluntariamente lhes ajudemos e socorramos em suas necessidades e sofrimentos.

Se o irmão ou a irmão estão desnudos e carecem de alimento cotidiano, e algum de vós lhe disser: “Ide em paz, aquentai-vos, e fartai-vos; e não lhes derdes as coisas com que satisfazer a necessidade do corpo, que proveito virá daí?[28]

Escrevendo à “igreja de Deus que está de peregrinação em Corinto”, afirma São Clemente de Roma que dita comunidade cristã, nos dias de sua primitiva glória e perfeição espiritual, distinguia-se por suas obras de hospitalidade e beneficência e por estar mais disposta a dar do que receber. Esta intervenção em favor dos pobres foi sempre considerada como obrigação própria da diocese e, por conseguinte, como função peculiar do bispo e do presbítero[29]. Em sua segunda homilia afirma que dar esmola aos pobres, a oração e o jejum são obras próprias e características dos cristãos e que a esmola está sobre as duas restantes[30]. Igualmente se indica na Didaqué que dar esmolas aos pobres não é somente uma tarefa dos particulares, mas também de toda a diocese[31].

A Igreja de Roma, fiel guardião de todas as doutrinas reveladas, distinguia-se extraordinariamente por sua solicitude em favor dos cristãos pobres. Eusébio de Cesareia cita em sua História Eclesiástica a seguinte passagem, tomada de uma carta escrito por São Dionísio, bispo de Corinto, ao papa Sotero (que reinou em 166-175):

Este foi vosso costume desde o princípio: fazer o bem de muitas maneiras a todos os irmãos e enviar vossas contribuições às igrejas de todas as cidades, com o fim de aliviar a pobreza dos necessitados de alguns lugares e ajudar aos irmãos que trabalham nas minas. Com os dons que haveis enviado já desde o princípio, conservais, oh verdadeiros romanos, o costume antigo de vossos antepassados. Vosso bendito bispo Sotero não só continuou fazendo este benefício, mas também o incrementou fornecendo provisões abundantes aos santos e exortando e consolando com suas benditas palavras aos irmãos que vem a Roma, tal qual o faria um pai amante com seus filhos[32].

O próprio Eusébio assegura que na igreja de Roma se conservava este louvável costume ainda em seu tempo, apesar das terríveis perseguições de Diocleciano e seus governantes[33]. Os bispos e o clero de Roma nunca cessaram de inculcar aos fiéis que compõem a verdadeira igreja de Cristo a lição cristã do amor fraterno e a compaixão para com os pobres.

O mártir São Cipriano afirma que o cuidado dos pobres é, sem dúvida alguma, da especial incumbência do bispo, e uma tarefa na qual os clérigos de sua igreja de Cartago tinha o privilégio e a obrigação particular[34]. Santo Agostinho pondera o grande número de pobres assistidos pela Igreja e se gloria que esta seja verdadeiramente a Igreja dos pobres. A legislação eclesiástica considerava os bens e o dinheiro que lhe eram confiados como propriedades dos pobres, de tal sorte que a quem roubava da Igreja suas heranças era acusado de roubar aos pobres[35]. A atitude cristã para os necessitados e enfermos está baseada nas palavras do próprio Cristo, que diz que seus discípulos serão julgados por Deus conforme a conduta que observem com os irmãos pobres e enfermos, nos quais sempre temos que ver o próprio Jesus Cristo.

E responderam-lhe os justos: Senhor, quando te vimos famintos e te alimentamos, sedento e te demos de beber? Quando te vimos peregrino e te acolhemos, nú e te vestimos? Quando te vimos enfermo ou no cárcere e fomos te ver? E o rei lhes dirá: Em verdade vos digo que quantas vezes fizestes isso a um destes meus irmãos menores, a mim o fizeste[36].

Em conformidade com estas palavras, a Igreja ensina a seus filhos a tratar aos pobres e aos irmãos que sofrem como tratariam ao próprio Jesus Cristo. Quando, antes de sua conversão, São Paulo perseguia a Igreja nascente, Cristo lhe reprovou sua perseguição como se lhe perseguisse a Ele mesmo[37]. E assim também Cristo considera como tratamento que a Ele mesmo lhe damos a conduta que observamos com os irmãos pobres e infortunados. Nenhum cristão pode ter verdadeiro amor a Deus se não manifesta um amor efetivo e sincero a todos os membros afligidos de sua própria comunidade, do reino de Deus na terra. Ouçamos a terrível interrogação de São João: “Aquele que tiver bens deste mundo, e vendo a seu irmão passar necessidade fechar suas entranhas, como mora na caridade de Deus?”[38]

O amor cristão de caridade para com os pobres há de ser um amor ativo e eficaz dentro da Igreja, e o bispo e o presbítero estão especialmente encarregados de sua realização. Sendo o socorro dos pobres um verdadeiro mandato evangélico, o sacerdote diocesano que quer alcançar o objetivo assinalado ao trabalho próprio do presbítero deve trabalhar todo o possível para levar aos pobres a mensagem divina de Cristo, assim como está obrigado especialmente a procurar a conversão dos menos privilegiados, nos quais Deus não concedeu ainda o dom de ser membros de sua família sobrenatural

Os católicos pobres, afligidos e necessitados estão confiados diretamente à diocese e são sua verdadeira glória. Desse modo, compete ao presbitério diocesano fazer que estes irmãos em Cristo recebam a suficiente instrução que, segundo a vontade de Nosso Senhor, devem receber todos os membros de sua Igreja. Para cumprir bem esta missão, os sacerdotes diocesanos devem começar a precaver-se contra uma lamentável tendência que infectou a mentalidade de alguns cristãos e se reflete em muitos escritos contemporâneos. Referimo-nos a crença de que a instrução completa e adequada da doutrina está reservada, ao menos praticamente, a alguns grupos seletos de leigos católicos. Essa crença é, sem dúvida alguma, contrária à doutrina dos apóstolos. São Pedro e São Paulo, em suas epístolas aos fiéis, enviam sua saudação aos membros da Igreja chamando-lhes a todos “eleitos’[39]. Aparentemente, nunca lhes ocorreu reservar esta denominação para os cristãos mais ricos, nem para as classes mais altas e ilustradas. O sacerdote diocesano, que tem o privilégio de cooperar no labor de seu bispo em benefício dos pobres, imitará aos apóstolos tendo sempre presente que, se há na Igreja alguma classe superior e privilegiada, esta será a dos pobres e necessitados. O sacerdote, por motivo de sua posição, está especialmente obrigado a trabalhar pela consecução deste objetivo empregando todos seus recursos para explicar aos pequenos e humildes a mensagem divina de Cristo.

O sacerdote diocesano é imediatamente responsável da instrução dos pobres. Se quer realizar com dignidade o trabalho que Deus lhe confiou, rechaçará por princípio o novo e detestável erro que pretende ser impróprio do sacerdote moderno misturar-se diretamente com as pessoas simples. Estamos acostumados a pensar que os leigos não podem aprender nem compreender a teologia católica por ser esta algo exclusivo dos sacerdotes, incompreensível a quem não tenha cumprido pelo menos quatro anos de estudo em um seminário. Por outro lado, se pensa que qualquer leigo, prescindindo de sua competência no campo da sagrada teologia, está suficientemente capacitado para explicar aos demais leigos as verdades teológicas que estes podem necessitar ou desejam saber. Segundo esta mentalidade, a instrução religiosa dos leigos, e especialmente dos pobres e humildes, seria primária e imediatamente da incumbência de alguns leigos seletos ou privilegiados que atuariam como intérprete ou intermediários entre os sacerdotes e o povo.

Desnecessário dizer que tal atitude representa uma perversão completa da essência e funções próprias da Ação Católica. Na realidade, a missão específica destes leigos seletos não é a de explicar as doutrinas teológicas dos sacerdotes aos membros da Igreja universal, e particularmente aos pobres de Cristo, mas a de levar e explicar a verdade católica em alguns lugares e ocasiões em que o próprio sacerdote não pode estar presente. Os leigos católicos têm o privilégio e a obrigação de professar a manifestar a fé de Jesus Cristo em sua vida inteira: no trabalho e no descanso, na vida pública e na privada. Devem se esforçar em completar e reforçar o trabalho docente e religioso próprio do bispo, quem, segundo a constituição divina da Igreja de Cristo, a realiza por si mesmo e mediante os membros de seu presbitério. Tem uma noção completamente errônea da Ação Católica aqueles que imaginam que o sacerdote diocesano, por razão de seu ministério, é incapaz de tratar direta e imediatamente com os fiéis que seu bispo lhe confiou, e que é indispensável a mediação de alguns católicos leigos.

O sacerdote diocesano, em consonância com a divina missão do presbítero, tem a obrigação e o privilégio de instruir perfeitamente nas verdades divinamente reveladas a todo seu povo e, especialmente, aos mais pobres e humildes. Nesta tarefa, perderia lastimosamente o tempo se tratasse unicamente de “fazer mais atrativa a Ação Católica”. A mensagem católica é uma doutrina revelada por Deus aos homens e, apresentado com claridade e exatidão, constitui a doutrina mais atrativa que se pode oferecer à humanidade. Se o sacerdote propor a revelação divina de um modo claro e conveniente – segundo a diversa mentalidade do auditório ou os leitores -, os homens, e singularmente os pobres, acharão nela uma norma prática de vida cristã e um consolo a seus sofrimentos que converta sua vida em uma ante-sala do céu.

Em virtude de sua divina missão, o sacerdote diocesano está obrigado a trabalhar especialmente pela conversão dos acatólicos residentes no território particular a ele designado; porém mais especialmente ainda tem a obrigação de trabalhar com todas suas forças para levar as bênçãos e consolos da religião aos pobres e necessitados que habitam em seu mesmo lugar. Neste sentido, é muito digna de loa o grande labor desenvolvido em prol da conversão dos acatólicos, e mesmo dos anticatólicos (especialmente no setor obreiro), pela conhecida sociedade dos Jovens Obreiros Cristãos, do cônego Joseph Cardijn. É esta uma das realizações mais importantes da Igreja em nossos dias. As pessoas mais favorecidas por esta sociedade são sempre os pobres, objeto da especial predileção de Nosso Senhor Jesus Cristo, segundo as profecias de Isaías e os ensinamentos do próprio Cristo. Se nossos sacerdotes diocesanos querem fazer chegar eficazmente as verdades religiosas aos acatólicos de sua própria Igreja, deverão imitar a inteligência, a piedade e a energia empregadas pelos sacerdotes europeus na propagação da J. O. C. Contudo, haverá alguns sacerdotes diocesanos que terão que trabalhar em situações mais difícil que o cônego Cardijn e seus companheiros, e, ao mesmo tempo, com menos êxito. Mas não por isso deverão desfalecer nem deixar de levar a verdade aos acatólicos pobres de seu próprio território, recordando que não lhes chamou Deus a uma vida fácil e cômoda, mas o trabalho sublime, enquanto difícil, de estender o reino de Cristo.

Os membros do presbitério não cumprem suas obrigações para os pobres em somente instruí-los nas verdades cristãs; estão, ademais, obrigados a trabalhar por aliviar as necessidades e sofrimentos de todos, particularmente dos membros da Igreja. Os sacerdotes seculares estão consagrados a “edificação” de uma diocese rica em fé e em caridade fraterna, e para conseguir este objetivo é preciso que reine nela o amor de Deus, assim como um amor de fraternidade fervente, sincero e eficaz, para todos, especialmente os irmãos pobres. Este cuidado dos pobres deve ser da incumbência de toda a diocese em comum e de todos os membros deste que possam socorrer a seus irmãos necessitados. Deve se fazer compreender aos ricos que estão obrigados a ajudar aos pobres e aliviar a dor dos que sofrem, e que somente cumprirão plenamente esta obrigação cooperando no trabalho benéfico da Igreja de Cristo.

A diocese somente poderá obter a perfeição espiritual que Deus exige quando o sacerdote diocesano instrua bem ao povo acerca da necessidade e o privilégio de atender devidamente aos pobres de Cristo e, sobretudo, quando os mesmos sacerdotes sejam os primeiros em dar exemplo de caridade efetiva para com todos os necessitados de ajuda. É evidente que toda exortação resultará infrutuosa se o próprio sacerdote se mostra indiferente ante as angústias dos pobres e não manifesta verdadeiro interesse em ajudar-lhes e solucionar seus problemas. O sacerdote que mostre inclinação para os ricos e não quer rebaixar-se a tratar com os pobres, a visitar-lhes e consolar-lhes, trairá sua própria igreja e impedirá seu progresso para a perfeição da caridade e do amor fraterno.

O interesse que o próprio Cristo manifestou pelos pobres e a missão divina confiada à Igreja e ao colégio apostólico de ajudar e consolar aos atribulados provam claramente que o sacerdote diocesano deve cumprir pessoal e diretamente seus deveres para com os pequenos de Cristo. Se na instrução da doutrina cristão não deve mediar ninguém entre o sacerdote e o povo, tampouco será necessária mediação alguma entre o sacerdote e os pobres no que se refere a obra caritativa que Deus encomendou a sua Igreja. Contudo, o sacerdote tem sempre a sua disposição diversas associações de leigos piedosos (como as Conferências de São Vicente de Paulo) das que pode e deve se aproveitar para aliviar as penas dos irmãos em Cristo. Mas estas ajudas, eficazes e muito estimáveis, não eximirão o sacerdote de intervir direta e pessoalmente em favor dos necessitados. Para fazê-lo de um modo adequado, tem que visitar aos pobres, aos enfermos e atribulados, tem que pôr-se em contato com estes fiéis, verdadeira coroa de sua Igreja, a fim de aproximá-los mais ao divino Salvador.

Este interesse imediato e operante do sacerdote diocesano pelos fiéis de Cristo é especialmente necessário em nossos dias e em nossa nação. Os elementos anticristãos, em sua aguerrida luta contra Deus e sua Igreja, se apóiam, sobretudo, na desgraça e miséria dos pobres. Não ganhará muito a causa de Nosso Senhor com a conduta daqueles, talvez com boa intenção, se desinteressam precisamente do bem das pessoas mais necessitadas e que tem um direito especial e um lugar preeminente no reino de Deus. Os verdadeiros responsáveis da ruína espiritual das massas de muitos povos europeus foi, pelo menos em grande parte, os sacerdotes e prelados que somente se preocuparam dos ricos e poderosos. Tendem atualmente a contrabalancear estes males alguns movimentos católicos (como o antes mencionado do cônego Cardijn) que procuram que o povo volte a apreciar o lavor dos sacerdotes consagrados a seus serviço.

Hoje em dia, o sacerdote diocesano deve ter presente que o principal fator para a renovação da vida cristã no mundo é a intensificação da ajuda espiritual e material aos pobres, a preocupação constante de que chegue até os pobres e humildes a divina mensagem de Cristo. O interesse pelos necessitados não é algo puramente sentimental: está baseado na própria mensagem divina, no fato inegável de que o labor da Igreja e, conseguinte, do colégio apostólico e do sacerdócio diocesano, deve estar orientado especial e preferentemente, segundo a vontade de Deus, ao bem dos pobres de Cristo.

O cardeal Newman, sendo ainda protestante, já havia se ocupado da situação dos pobres na Igreja. Mais tarde, como sacerdote católico, escrevia o seguinte:

Não se pode negar que a Igreja, enquanto admite em seu seio a todos os homens, mesmo aos ricos, contudo, considera aos pobres como seus membros mais aptos e privilegiados. Na Sagrada Escritura se censura com freqüência a riqueza e se louva de sobremaneira a pobreza: “Se prega o evangelho aos pobres”. “Deus escolheu aos pobres deste mundo para fazê-los ricos na fé e herdeiros do reino”. “Se queres ser perfeito, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres”. Além disso, é inegável que a Igreja foi sempre tanto mais pura e perfeita quanto mais se preocupou com as pessoas humildes e simples[40].

Em conclusão, a diocese perfeita segundo Deus, a verdadeira Igreja descrita e louvada por São Paulo em suas epístolas, é e deve ser essencialmente a Igreja dos pobres. O objetivo do sacerdote diocesano é converter a comunidade católica onde trabalha em uma igreja perfeita como a anteriormente descrita. É vontade de Deus que todas suas atividades se ordenem a consecução deste fim imediato. Com esta mesma finalidade se devem empregar todos os recursos de ciência e espiritualidade concedidos por Deus ao sacerdote secular. Entra também na missão imediata do presbitério o amor afetivo e a união com os pobres de Cristo, essenciais para a consecução de dito objetivo.



[1] Lc 4, 16.21.

[2] Mt 11, 2-6; v. também Lc 7, 18-23.

[3] Cf. Jn 13, 30.

[4] Mc. 14, 5; v. também Mt. 26, 9; Jn 12, 4.

[5] Mc. 14, 7; v. también Mt. 26, 11; Jn 12, 8.

[6] Cfr. Mt. 19, 21; Mc. 10, 21; Lc. 18, 22.

[7] Atos 4, 34-35.

[8] Atos, 5,4.

[9] Lc. 14, 12-14.

[10] Lc 19, 8-9´.

[11] Lc 6, 20.

[12] Mt. 5, 3.

[13] Lc. 14, 21.

[14] Mt. 19, 27; v. também Mc. 10, 28; Lc. 18, 28.

[15] Cfr. Atos. IV, 34.

[16] Cfr. Atos. 6, 1-4.

[17] Cfr. Atos.9, 36-42.

[18] Atos. 10, 4.

[19] Gal. 2, 9-10.

[20] Cf. Rom 15, 25-27.

[21] Cf. I Cor 16, 1.

[22] Cf. I Cor 16, 1-4; 2 Cor cc. 8-9.

[23] Cf. 2 Cor 8, 3-4.

[24] Cf. São Tiago 2, 2.

[25] São Tiago 2, 5-6.

[26] São Tiago 2, 6-7.

[27] I Cor. I, 26-27.

[28] São Tiago 2, 15-16.

[29] Cf. Prima Clementis, I, 2

[30] Cf. Secunda Clementis XVI, 4.

[31] Cf. Didaqué, I. 5.

[32] Eusebio, Historia Ecclesiastica, IV, 23, 10.

[33] Cf. o. c., IV, 23, 9.

[34] Especialmente na Epist. 7.

[35] Cf. Hefele-Leclerq, Histoire des Coneiles, Paris 1908, II, 456.

[36] Mt 25, 37-40.

[37] Cf. Act 9, 4-5.

[38]  Jn 3, 17.

[39] Cf. Col 3, 12; 1 Petr 1, 1.

[40] Encontra-se essa passagem em Primitive Christianity, “Historical Sketches”, Londres 1920, I, p. 341 s. Se halla también en Newman, Essays and Sketches, editado por Harrold (Londres 1948, 1, 87).

 

FONTE


FENTON, Mons. Joseph C. “El Concepto del Sacerdocio Diocesano” (1951), cap. IV. <http://engloriaymajestad.blogspot.com.ar>

 

PARA CITAR


FENTON, Mons. Joseph C. A Diocese e os Pobres de Cristo <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/catequese/espiritualidade/832-a-diocese-e-os-pobres-de-cristo> Desde 20/11/2015.

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