Sábado, Maio 18, 2024

A bênção hebraica, ou berakhah, e a anáfora cristã

Nota preliminar do tradutor: ao longo do texto, entenda o leitor termos como bênção, bendizer, abençoar etc. no sentido mais usado nas Escrituras, em que o ato de bendizer parte do homem e dirige-se a Deus, como na expressão “bendito seja Deus”.

Autor L. Ligier, S.J.

Tradução de Caio Lopes

 

1. A berakhah na história e nos costumes dos hebreus

No Antigo Testamento

     A berakhah, antes de tornar-se um gênero literário e também litúrgico, era um modo comum de saudação entre os homens (Gen 14,19; 1 Sam 25,33 e 26,25; Jdt 5,24), prestando-se especialmente para dirigirem-se a Deus e O louvarem (Gen 14,20 e 24,27; Ex 18,10; 1 Reis 8,15-21 e 56,60). Em primeiro lugar, tinha a função de louvar a Deus como autor de certo benefício recebido (Ex 14,20), embora admitisse a introdução de “súplicas” em sua estrutura própria (1 Reis 8,56-60, especialmente 57-59), ou mesmo se fazendo com que esta estrutura e as petições ficassem entremeadas, como sucedeu no dia da Dedicação do Templo: as súplicas estão entre a primeira e a última bênção (1 Reis 8, 23-52).

Estrutura no judaísmo

     Depois de destruído o Segundo Templo, a berakhah tornou-se um gênero litúrgico fixo cujo uso é reservado à oração obrigatória, ainda que privada. Assim, quem pretenda criar nova prece não pode usar da forma estabelecida para a berakhah(1).

a) Forma breve: praticamente todas as bênçãos constituem-se da palavra “de abertura” (Bendito) e da menção tanto do Nome (Yahvé) quanto do Reino (Rei do universo); em seguida, vem a lembrança do benefício recebido (p. ex.: “que produz da terra o pão”). Não é necessária nenhuma conclusão.

b) Na forma longa, podem-se adicionar, depois dos benefícios relembrados, petições e súplicas (ex.: “Ahabhah rabbah”(2)), louvores do Deus santo (“Yotsér”(3)). Por conta disso, exige-se uma conclusão, na qual se retorna ao tema inicial.(4)

c) Por fim, a forma concatenada, quando diversas bênçãos sucedem-se de forma imediata. Neste caso, apenas a primeira exibe a fórmula de bendição no princípio; as demais, apenas no final.

      Assim, seja por conta da existência da forma longa, seja por causa da faculdade de concatenarem-se diversas bênçãos, o gênero da bênção admite muitos e variados temas. Deste modo, a “shemoneh-essreh”(5) traz bênçãos de invocação e louvor, súplicas, petições, uma prece para fazer com que o culto seja agradável a Deus, ação de graças e um pedido de paz.

A estreita ligação da bênção com a liturgia e a História da Salvação

a) A Mishná (Tamid 5,1) refere que os sacerdotes recitavam todos os dias, no Templo, três bênçãos: “Emet weyatsihh”(6), “Abhodah”(7) e “birkat-kohanin”(8). Podemos nos perguntar se estas preces tinham relação com seu ministério propriamente sacrificial.

b) Bênçãos concatenadas podem ser recitadas em celebrações públicas ou privadas junto com trechos bíblicos. Assim, os versículos do Shema Israel (Deut 6,4-9 e 11,13-21; Num 15,37-41) são precedidos das bênçãos Yotsér e Ahabhah rabbahe concluem-se com a “Emet we-yatsihh”(9).

c) Além disso, há bênçãos que podem receber em sua estrutura um embolismo narrativo para rememorar algum evento da Salvação. Assim, na oração para depois das refeições e no “shemoneh-essreh”, o birkat hod’ah admite uma narração que comemora a Dedicação(10). Na berakhah mesma, porém, nunca se faz memória de um sacrifício.

d) Apesar disso, num gênero literário próximo, mas de caráter poético, o piyyut, i.e. hino, encontra-se, na festa da Expiação a memória dos sacrifícios de Levítico 16, após a anamnese da Salvação(11).

 

2. A berakhah no Novo Testamento

Documentos

a) Das cartas de Paulo e da primeira epístola de Pedro fica evidente que a bênção era-lhes conhecida: 1 Pedro e São Paulo quase sempre começam bendizendo e dando graças (vide o início de Romanos, 1 Coríntios, Filipenses, Colossenses, 1 Tessalonicenses e 2 Tessalonicenses). Por vezes, entretanto, o uso do gênero literário é explícito, como em 2 Coríntios 1,3-4 e Efésios 1,3-15. Ainda, a pondo-se Efésios 1,3-14 ao lado do versículo 15, tem-se a impressão de que os versículos de 3 a 14 compunham, talvez, uma bênção litúrgica. Veja-se também Efésios, 5,19-20 e Colossenses 4,17.

b) Nos Evangelhos, as bênçãos aparecem como saudações entre os homens (Lc 1,42) e na forma do cântico Benedictus(Lc 1,68-79).

Uso de bênçãos pelo próprio Cristo

a) Jesus, antes de comer, costumava abençoar. Veja-se, como exemplo, o que sucedeu antes da multiplicação dos pães e em Sua Ceia: εὐλογεῖν (Mt 14,19 e 26,26, bem como nos lugares paralelos) e εὐχαριστεῖν (Mt 15,16; Mc 8,6; Jo 6,11;23 e Mt 26,2).

b) Apesar disso, nunca são referidas bênçãos de Cristo na forma mais usual (“Sois bendito, Senhor, Rei do universo…”). Sempre ocorre a forma ativa e direta, em que Cristo afirma-Se a Si mesmo na presença do Pai: “Eu te louvo, ó Pai…” (Mt 11,25-26 e Lc 10,21-22); “Dou-te graças, ó Pai, porque Me ouviste…” (Jo 11,41); “Pai, veio a hora: glorifica Teu Filho” (Jo 17,1-26). Donde fica sugerido que Ele não usasse forma fixa de bênção.

 

3. A berakhah na Anáfora cristã(12)

A berakhah e a origem da Anáfora

      Nos nossos dias, muitos invocam a influência da berakhah para explicar a origem da Anáfora: H. Lietzmann, Gr. Dix, J. A. Jungmann, B. Fraigneau-Julien , J. Godard, L. Bouyer etc. Esta tese pode ser admitida, desde que se faça referência não à forma breve, mas à longa ou, antes, à concatenada (especialmente a birkat ha-mazon e a shemoneh-essreh).

     Apesar disso, não há certeza histórica. Permanecem diferenças e dificuldades. Há quem dissinta, como B. Botte, e os que estão de acordo na generalidade discordam entre si no que toca a questões particulares. Como exemplo, veja-se que L. Bouyer invoca a shemoneh-essreh, enquanto os demais recorrem à birkat ha-mazon, seja em sua forma comum, seja na forma pascal.

A berakhah e a ação de graças

     Nenhuma dificuldade particular nasce da diferença entre as duas. Como fica claro do que dissemos, a berakhah é mais ampla, podendo incluir súplica, petição de que se aceite um sacrifício, pedido de paz etc. A ação de graças, chamada hoda’ah (do verbo iadah, na voz hifil, i.e, causativa), é uma bênção específica pela qual se dá graças a Deus pelos dons da Aliança. Ela ocorre nas bênçãos após as refeições, em que é a segunda(13), e na shemoneh-essréh, onde ocupa o penúltimo lugar(14).

      De maneira semelhante, na Missa, a Oração Eucarística inteira pode ser chamada “eucaristia”, cânon ou anáfora e compreende louvor a Deus, memória dos prodígios da salvação, ação de graças, súplicas, petições e a doxologia. A ação de graças, entendida de maneira específica, é apenas uma certa parte do cânon ou eucaristia, como a hoda’ah é uma maneira peculiar de berakhah.

 

Liger, S.J.

 

NOTAS

(1) Cfr. J. Heinemann, The Prayers of Israel, Jerusalém, 1951 e, do mesmo autor, Prayer in the Period of the Tanna’im and Amora’im, Jerusalém, 1966.

(2) Ligier, Textus selecti de magna oratione eucharistica, addita Haggadah Paschae et nonnullis Iudaeorum benedictionibus, Roma, 1962, pp. 132.

(3) Ibid., pp. 131.

(4) Ibid.

(5) Ibid., pp. 135-137.

(6) Ibid., pp. 132-134.

(7) Ibid., pp. 16.

(8) Hänggi-Pahl, 53.

(9) Ligier, op. cit., 130-134.

(10) Hänggi-Pahl, 52-53.

(11) Ibid., 55-57.

(12) Veja-se L. Ligier, Les origines de la prière eucharistique: de la cène du Seigneur à l’Eucharistie, in Questions liturgiques, 53, 1972, 181-201.

(13) Ligier, Textus selecti…, 106,107 e 201; Hänggi-Pahl, 10-12,27.

(14) Ligier, Textus selecti…, 17; Hänggi-Pahl, 43,51-53.

 

FONTE: L. Ligier, S.J. De benedictione hebraica seu “Berakhah” et Anaphora christiana. Notitiae, Sacra Congregatio pro Cultu Divino 84 (1973), pp. 221-224. Tradução: Caio Lopes.

 

 

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