Domingo, Dezembro 22, 2024

A Autoridade do Magistério Atual

Sobre a crise na Igreja, o Padre Claude Barthe demonstra frequentemente perspicácia. A pertinência de seu ponto de vista nos parece particularmente relevante em relação à fenomenologia da crise em questão. Embora ele se destaque na avaliação do equilíbrio de forças (recurso, comum do autor, o sistema binário “esquerda-direita”), uma tal visão realmente muito “política” da Igreja não é, obviamente, decisiva para explicar o mistério da Igreja – nem, por conseguinte, do que poderia ser chamado de “mistério da crise”. O Padre Barthe, no entanto, não se esquiva do que ele percebe ser a questão fundamental, aquela da autoridade do magistério atual. É aqui, parece-nos, que reside o problema.

Posição de C. Barthe

Apresentamos primeiramente o pensamento do autor não só a partir do seu recente livro Quel chemin pour lEglise?Propositions pour une transition dans lEglise[1], mas também artigos anteriores e assim como crônicas religiosas publicadas na revista Catholica. Para C. Barthe, o Magistério inaugurado pelo Concílio Vaticano II, não é voluntariamente definitivo, ostensivamente pastoral e decididamente novo; é apenas um magistério autêntico, que ao não se expressar na forma de uma “lei da fé”, não impôs ao assentimento dos fiéis mais que uma obediência da vontade e da inteligência, e não uma adesão da fé propriamente dita. Estaríamos, portanto, na presença de um “não-concílio ” e de um “vazio magisterial” – ou ainda em um estado de “ausência magisterial”!

–         No que tange à proposta de não definição e pastoral do Concílio Vaticano II, o autor baseia-se na famosa abertura Gaudet Mater Ecclesia, pronunciada por João XXIII em 11 de outubro de 1962 , que se constitui a rigor em uma verdadeira declaração de intenção: proceder atualizações (aggiornamenti), que não visam a substância da antiga doutrina do “depositum fidei“, mas “a formulação com que são enunciadas” em “usar a maneira de apresentar as coisas que mais corresponda ao magistério, cujo caráter é prevalentemente pastoral”; aplicar um novo relacionamento da Igreja com o mundo, discordando dos “profetas da desventura” que vêem “nos tempos atuais […] prevaricações e ruínas”, preferindo “usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade”. C. Barthe também se refere à Notificação do Secretariado do Concílio de 16 novembro de 1964 sobre o significado teológico da Constituição sobre a Igreja: “Tendo em conta a praxe conciliar e o fim pastoral do presente Concilio, este sagrado Concilio só define aquelas coisas relativas à fé e aos costumes que abertamente declarar como de fé”. Aqui C. Barthe encontra solo fértil para escrever, em outro livro (Trouvera-t-il encore la foi sur la terre?[2]), que “Paulo VI explicou que tal jamais aconteceu”, seja em seu discurso de encerramento de 7 de dezembro 1965: o magistério não procurou “pronunciar-se com sentenças dogmáticas extraordinárias sobre nenhum capítulo doutrinal”, seja em um discurso em 12 de janeiro de 1966: “Dado o caráter pastoral do Concílio, evitou pronunciar dogmas com a nota infalibilidade [ …]”.

–         Acerca da novidade do Concílio Vaticano II, C. Barthe menciona posições conciliares sobre a liberdade religiosa, o ecumenismo e o diálogo interreligioso. Ele toma como posto a ruptura entre aquilo dito pelo Vaticano II e o Magistério precedente. Segundo o autor, as autoridades magisteriais atuais não assumem além disso a responsabilidade de interpretação: “Os debates intermináveis sobre a correta interpretação do Concílio Vaticano II mostraram a multiplicidade de leituras possíveis,  cada um afirmando ser a interpretação correta.”

–         No tocante à adesão mínima necessária ao textos em questão, ela seria resultante de uma falha de compromisso da autoridade magisterial, que se recusa a usar seu carisma de infalibilidade. C. Barthe indica como prova “o documento pós-conciliar, que mais parece se aproximar de um ato infalível do magistério” é a carta apostólica Ordinatio Sacerdotalis, de 22 de maio de 1994, quando João Paulo II absteve-se claramente de envolver a sua autoridade infalível! Neste campo tão sério da questão do acesso das mulheres ao sacramento da ordem, não se deveria esperar uma palavra mais autorizada possível?

Nossa resposta

De bom grado concedemos a C. Barthe que o Vaticano II representa sem dúvida um tipo de excessão magisterial. No entanto, os argumentos de C. Barthe são todos questionáveis.

–         Se não há dúvida de que o fim pastoral do Vaticano II se traduziu em uma abstenção voluntária de definições dogmáticas solenes, C. Barthe ignora o alcance magisterial não-definitório e, portanto, a autoridade dos documentos conciliares. A ausência de definições dogmáticas extraordinárias, disse ele, implicaria “uma presunção de compromisso não magisterial”. Que o Vaticano II não seja definitório não diminui em nada o fato de que ele possa ter um alcance definitivo. Que desejasse expressamente ser um concílio pastoral não altera em nada o fato de que a pastoral seja apoiada por uma doutrina. Que quisesse abster-se de definições infalíveis não impede que ele seja infalível em seu ensinamento ordinário e universal. Mesmo que, a princípio, não rejeite o conceito de “magistério ordinário universal”, C. Barthe parece na prática desqualificá-lo, uma vez que aponta um magistério definitório, seja conciliar, seja papal (ex cathedra). Recordemos aqui a diferença entre o magistério definitivo e o magistério ordinário. Este trata do conteúdo (já revelado), enquanto o primeiro visa uma declaração (é verdade que se revelou). Privilegiar o magistério definitivo em relação ao magistério ordinário é promover a verdade formal sobre a verdade objetiva, o que é estranhamente … moderno!

–         No que diz respeito as “novidades” do Concílio Vaticano II, convém também ser distinguidos: o Concílio, que não quis se esquivar de um confronto com o mundo moderno, e alterou significativamente as questões de fé. Isso não significa que o conteúdo da fé mudou. É lamentável o fato de que os ensaios teológicos valorizando o desenvolvimento doutrinário homogêneo (pensa-se aqui, por exemplo, na tese de P. Basile Valuet sobre a liberdade religiosa) não sejam sequer mencionados por C. Barthe. É ainda mais surpreendente que o autor não mencione nada da interpretatio authentica (por exemplo, a declaração Dominus Iesus sobre questões pertinentes ao diálogo interreligioso) em que fica claro que o Magistério não desistiu, longe disso, de precisar uma instância hermenêutica decisiva, não hesitando mesmo em retomar o gênero literário de censura!

–         Ao rejeitar a autoridade do Concílio Vaticano II – por ser um concílio pastoral que não chegou a promulgar definições dogmáticas infalíveis – e do magistério seguinte – porque, com a carta apostólica Ordinatio sacerdotalis, o Papa preferiu fazer uso de “um ato do magistério pontifical ordinário, em si não infalível”, parece que se participa – sejamos de “esquerda ou direita”, para usar as categorias de C. Barthe – da mesma sobrestimação do corpo magisterial e, ao mesmo tempo, da mesma subestimação do depósito da verdade objetiva. Enfatiza-se mais o título jurídico da autoridade que o conteúdo propriamente dito. É verdade que, a este respeito, estamos hoje presenciando a uma deflação magisterial, mas , acreditamos, em favor de uma melhoria do depositum fidei em si, ou seja, o argumento da tradição! Assim a Ordinatio sacerdotalis onde se ato magisterial não era em si infalível, o “caráter infalível” ocorre inteiramente no lado do “ensino de uma doutrina já de posse da Igreja”.

–         Sobre o reduzir o nível de assentimento necessário, a atitude do “acolhimento dócil e sincero”, mencionada por Paulo VI no discurso de 12 de janeiro de 1966, à “submissão religiosa da vontade e da inteligência” a que se refere a Constituição Lumen Gentium sobre a atitude do fiel em face ao Magistério autêntico, é igualmente questionável! Em primeiro lugar, o “acolhimento dócil e sincero” corresponde um comportamento geral que implica um discernimento que o corpo magisterial queria, o discernimento que se realiza a partir de normas de interpretação teológica. Em segundo lugar, o magistério não definitivo pode requerer um assentimento  de fide tenenda (adesão de fé). Finalmente, mesmo a submissão religiosa da vontade e da inteligência esta não pode ser puramente exterior e disciplinar, mas deve colocar-se na lógica e sob o estímulo da obediência da fé” (Instrução Donum veritatis de 24 de maio de 1990) .

Podemos, portanto, dizer que a Igreja, no tocante ao Concílio Vaticano II, fez uso de uma forma magisterial extraordinária (um concílio ecumênico ) para um conteúdo ordinário (o Concílio absteve-se de propor definições dogmáticas infalíveis em formulações formais costumeiras). Esta assembléia constitui “uma comunhão em ação” dos sucessores dos apóstolos com o sucessor de Pedro, colocando em relevo particularmente o aspecto universal do magistério ordinário. O caráter pastoral do Concílio Vaticano II não diminui em nada o alcance doutrinal deste Concílio. Apesar da ausência de definições jurídicas, a infalibilidade da Igreja, no entanto, é exercida no Vaticano II, dependendo da natureza dos documentos conciliares, desde que tenha agido o magistério de confirmação ou reafirmação de acordo com o depósito revelado. Além do campo limitado da infalibilidade, a promessa de assistência divina não deixa de agir pelo “ensino que leva a uma melhor compreensão da Revelação em matéria de fé e moral.” Uma atitude geral “de acolhimento dócil e sincero” é exigido do fiel ao ensino magisterial do Vaticano II, essa atitude é formada a partir da “submissão religiosa da vontade e da inteligência, na lógica e sob o estímulo da obediência da fé” até à adesão da fé propriamente dita. Porque o Vaticano II faz parte de um magistério solene menos comum, e até mesmo devido a mudanças nas questões inerentes às respostas que o Concílio queria propor às expectativas do mundo moderno, estabelecendo a ligação de fidelidade entre este concílio e a Tradição (desta mesma universalidade considerada como diacrônica) continua a ser um verdadeiro desafio para a pesquisa teológica quanto à qualificação da autoridade do Concílio para uma melhor recepção do texto em si. Neste serviço, o Padre Barthe poderia oportunamente colocar o seu inegável talento!


[1] NT: Qual o caminho para a Igreja? Propostas para uma transição na Igreja.

[2] NT: Encontrará ainda a fé sobre a terra?

 

Fonte: Nef 158 (2004)

 

PARA CITAR


GOUYAUD, Pe. ChristianA Autoridade do Magistério Atual – Disponível em: < http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/concilio-vaticano-ii/valor-magisterial/688-a-autoridade-do-magisterio-atual >. Desde: 03/06/2014. Tradução: JBF.

 

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