Domingo, Dezembro 22, 2024

Κεχαριτωμένη em Lc. 1, 28 Estudo exegético e teológico

 Ignace de la Potterie

Κεχαριτωμένη en Lc 1,28 Étude exégétique et théologique, in Biblica 68, nº4 (1987) pp. 480-508.

            O que dissemos no fim do artigo precedente[59], apenas do ponto de vista filológico, era já muito importante: agora deveria ficar claro que, aplicando a Maria, em 1,28, o particípio perfeito passivo κεχαριτωμένη do verbo causativo χαριτοῦν, Lucas não queria falar da eleição divina da sua pessoa, mas do que já tinha sido cumprido nela, que ia tornar-se a mãe do Messias. Prossigamos agora este estudo do ponto de vista exegético, examinando sucessivamente Ef. 1,6 (o único paralelo do NT), depois a história da exegese do versículo de Lucas e por fim, e sobretudo, o seu contexto imediato. Assim se revelará todo o conteúdo teológico do epíteto utilizado pelo anjo para se dirigir a Maria.

 

3.      O texto paralelo de Ef. 1,6.

 

            Mais de uma vez na tradição, se relacionou Lc. 1,28 com Ef. 1,6 (p. ex. Dídimo o Cego, Lutero). O segundo texto pertence ao hino grandioso da epístola aos Efésios (1,3-14) sobre a graça que nos foi dada na obra da redenção. Eis a passagem de 1,4-8 (citamos provisoriamente a tradução da BJ):

 

v. 4 «Nele nos escolheu, desde antes da criação do mundo, para sermos santos e imaculados na sua presença, no amor,

v. 5 determinando de antemão que nós seríamos para Ele filhos adoptivos por Jesus Cristo.

Tal foi o beneplácito da sua vontade,

            v. 6 para o louvor de glória da sua graça

com a qual ele nos agraciou no Bem-amado.

            v. 7 Nele encontramos a redenção, pelo seu sangue,

a remissão dos pecados,

segundo a riqueza da sua graça,

            v. 8 que ele nos concedeu em abundância

com toda a sabedoria e inteligência».

 

            Nestes versículos, podem distinguir-se dois temas principais: a) a eleição divina, a predestinação «antes da criação do mundo» (ἐξελέξατο, v. 4; προορίας, v. 5a; κατὰ τὴν εὐδοκίαν τοῦ θελήματος αὐτοῦ, v. 5b); b) a realização histórica deste plano divino da salvação na obra de Cristo (ὀ θεὸς … ἐχαρίτωσεν ἡμᾶς ἐν τῷ ἠγαπημένῳ, v. 6; ἔχομεν τὴν ἀπολύτρωσιν, etc., v. 7). Ora, uma coisa é certa, o verbo ἐχαρίτωσεν, no v. 6, não serve para descrever o primeiro tema, a «predestinação» divina que muitos autores crêem, no entanto, poder ler no emprego do mesmo verbo em Lc. 1,28), mas a obra da salvação realizada na missão de Jesus: a redenção pelo seu sangue, a remissão dos pecados. O mesmo é dizer que o sentido causativo de χαριτοῦν (que nós já estabelecemos antes) se encontra de novo muito nitidamente aqui, visto que o verbo descreve o efeito produzido em nós pela graça de Deus. Infelizmente este aspecto do verbo não aparecia muito na tradução citada («com a qual ele nos agraciou»). Será preciso, portanto, procurar encontrar uma melhor.

            Esta força de ἐχαρίτωσεν ἡμᾶς foi particularmente bem sentida e exprimida no comentário de São João Crisóstomo: «Este (Paulo) que é cheio de louvor e de admiração para com a graça que lhe foi dada (τὴν εἰς αὐτὸν χάριν γεγενημένην) redobra de atenção e de zelo: ‘Pela qual ele nos tornou agradáveis a seus olhos’, diz ele. Ele não disse: a graça com a qual ele nos concedeu o favor (ἧς ἐχαρίσατο), mas sim: (pela qual) Ele nos tornou agradáveis (ἐχαρίτωσεν ἡμᾶς, gratos fecit); por outras palavras: ele não só nos livrou dos pecados, mas também nos tornou amáveis (ἐπεράστους ἐποίησε, fecit amabiles)»; e mais adiante: «Ele tornou-nos agradáveis a seus olhos (ἐπιχάριτας ἐποίησε) e dignos do seu próprio amor»[60]. À luz destas fórmulas paralelas tão sugestivas propostas por Crisóstomo, poder-se-ia traduzir de uma maneira mais precisa as palavras de Ef. 1,6 que nos interessam directamente: «Para louvor e glória da sua graça, pela qual ele nos transformou»; porque ἐχαρίτωσεν ἡμᾶς descreve a transformação operada em nós pela graça de Deus. Os versículos vizinhos do hino são, eles também, muito claros: segundo o v. 4, o plano divino da salvação era «que nós sejamos santos e imaculados (ἀγίους καὶ ἀμώμους) em sua presença, no amor». O que é dito aqui para todos os cristãos será retomado no fim da epístola para descrever os efeitos da obra salvífica de Cristo sobre a Igreja: Cristo entregou-se pela Igreja, para a santificar, «porque ele queria apresentá-la a si mesmo toda resplandecente … santa e imaculada» (5, 27). É para esta santificação e para esta purificação da Igreja que fora orientada a «transformação (dos cristãos) pela graça», descrita em ἐχαρίτωσεν ἡμᾶς de Ef. 1,6.

            Tudo isto é de um interesse considerável para a compreensão do emprego do mesmo verbo (κεχαριτωμένη) aplicado a Maria em Lc. 1,28. Há, no entanto, uma diferença importante entre os dois textos: em Ef. 1,6, o verbo está no aoristo activo, para descrever a obra da redenção que Deus realizou pelo seu Filho; no texto de Lucas, o verbo, que se encontra no particípio perfeito passivo, indica o resultado de uma acção passada. Antes da Incarnação, Maria encontrava-se já «transformada pela graça», em vista do papel que a esperava, o de se tornar a Mãe do Filho de Deus. Nada impede que se retome aqui a fórmula «santa e imaculada» dos Efésios (5,27; cf. 1,4), que explicava a «transformação pela graça» de que o autor tinha falado em 1,6. Portanto, se Maria era κεχαριτωμένη pelo efeito da graça de Deus, pode dizer-se igualmente que ela tinha sido tornada «santa e imaculada», como o devia ser um dia a Igreja, a Esposa de Cristo.

            Poderá pensar-se, sem dúvida, que nós tiramos muitas coisas duma única palavra. Mas não podemos esquecer que Lucas utiliza aqui um verbo raro; além disso, com Origenes, o Pseudo-Gregório o Taumaturgo e Santo Ambrósio[61] é preciso assinalar que, em toda a Escritura, o apelativo κεχαριτωμένη («gratia plena») é reservado a Maria; e não se pode ignorar o facto de que o verbo χαριτοῦν, no único texto do NT onde ele reaparece uma vez mais (Ef. 1,6), assume fortes ressonâncias salvíficas e eclesiológicas. A exegese atenta do relato da Anunciação mostra que isto já era um pouco verdade em Lc. 1,28: Maria fora aí interpelada pelo Anjo como a Filha de Sião messiânica[62]. Se ela tinha sido «transformada pela graça», é porque ela estava destinada a tornar-se a mãe do Messias.

            Mas perguntemo-nos agora como é que κεχαριτωμένη foi compreendido na Tradição.

 

II. Análise sobre a história da exegese de κεχαριτωμένη

 

            Temos a sorte de dispor aqui da monografia de F. Marchisano, já citado no início[63]; mas como o autor só publicou uma parte dela, voltaremos sobretudo a este extracto que é mais facilmente acessível[64]. Limitemo-nos a citar aqui as principais conclusões deste estudo muito detalhado, ilustrando-as com alguns textos criteriosamente escolhidos.

            Mais que em qualquer outro lugar, importa distinguir aqui o mundo grego do mundo latino, porque no Ocidente estamos ligados à tradução adjectiva e estática «gratia plena», que, por um lado, acrescenta ao grego uma nuance de plenitude e, por outro lado, não exprime nada o carácter verbal e o aspecto dinâmico do particípio κεχαριτωμένη (a ideia de transformação).

 

3.      A tradição grega.

 

            Duas notas essenciais é preciso fazer aqui. A primeira é que, para os Padres e os escritores eclesiásticos do mundo grego, aplica-se exactamente o que J. Ledit constatava por seu lado para a liturgia bizantina[65]: na saudação do anjo em Lc. 1,28, estes autores, sobretudo nos primeiros séculos, evidenciaram sobretudo e desenvolveram magnificamente o χαῖρε inicial, isto é, o convite à alegria, esta alegria que devia acompanhar o anúncio da abertura dos tempos messiânicos[66]. Em virtude da raiz comum (χαρ-) entre χαῖρε e κεχαριτωμένη e da aliteração das duas palavras, muitos Padres viram simplesmente no segundo termo um convite à alegria, como se χάρις fosse mais ou menos sinónimo de χαρά[67]. Um dos exemplos mais eloquentes desta leitura lê-se ainda numa homilia de São Teodoro Estudita († 828), que se perdeu entre as obras de São João Damasceno[68].

            Alegra-te, cheia de graça, tu que, pela tua pessoa e pelo teu nome, és mais graciosa que toda a alegria, tu por quem nasceu neste mundo Cristo, alegria imortal, remédio para a tristeza infligida por Adão[69].

Ao lado desta primeira interpretação, que praticamente apresenta «cheia de graça» no sentido de «cheia de alegria», uma outra se expandiu largamente e se foi consolidando cada vez mais no Oriente: a que vê no κεχαριτωμένη uma indicação explícita da santidade de Maria, da sua pureza e das suas virtudes. Um dos bons testemunhos desta tradição é o Pseudo-Gregório o Taumaturgo, cuja identidade e data são incertas:

Alegra-te, cheia de graça…, anuncia (o anjo); porque nela estava encerrado o tesouro da graça (μετ’αὐτῆς ὅλος ὁ θησαυρὸς τῆς χάριτος ἐναπέκειτο). De todas as gerações, só esta Virgem era santa de corpo e de espírito; só ela levava aquele que tudo leva pela sua palavra. E é preciso admirar não somente a beleza daquela que era santa de corpo, mas também as virtudes da sua alma[70].

Mas muito mais explícito acerca deste ponto e mais lírico será São Sofrónio, patriarca de Jerusalém († 638). Segundo o testemunho de M. Jugie, «ninguém fez sobressair em termos tão magníficos e tão fortes… a transcendência da pureza de Maria sobre toda a criatura»[71]. A sua exegese de Lc. 1,28 merece, portanto, que nela muito particularmente se detenha a nossa atenção:

Alegra-te, ó cheia de graça (κεχαριτωμένη), porque, mais que toda a criatura, tu foste transformada pela graça (ἐχαρίτωσες). Eu conheço e sei a causa desta alegria e desta graça; é por isso que eu digo ainda e proclamo em alta voz: O Senhor está contigo… Ele está agora contigo, ele veio ao teu seio pela concepção e realizou em ti a sua surpreendente Incarnação… Alegra-te, ó cheia de graça, o Senhor está contigo. O que é que pode ser maior que esta graça que só tu recebeste de Deus em herança?[72].

Ou mais nitidamente ainda:

Muitos santos surgiram antes de ti; mas nenhum foi como tu transformado pela graça (κεχαρίτωται)…; nenhum foi como tu plenamente santificado (καθηγίασται)…; nenhum foi como tu purificado de antemão (οὐδεὶς κατὰ σὲ προκεκάθαρται)…; nenhum como tu recebeu a graça de Deus[73].

 Citemos, por fim, algumas fórmulas particularmente sugestivas de São José o Himnógrafo, do fim do período bizantino († 883)[74]. Notemos antes de mais que ele emprega audaciosamente o verbo χαριτοῦν na activa com Maria como sujeito, no sentido de transformar pela graça: «Toda a criatura bendiz o teu Filho que nos coroou de bênçãos, … ó toda bendita e só tu gloriosa, tu que transformaste pela graça (χαριτώσασα) o nosso género humano»[75]. Esta interpretação é confirmada pela frase correspondente: «Alegra-te, ó Rainha, tu que pela divina concepção deificaste (θέωσασα) os mortais»[76].

            Mas o mesmo verbo χαριτοῦν, que acabamos de ver usado na voz activa para Maria, foi também aplicado à própria Maria na voz passiva: «Eis que tu, ó casta, foste transformada pela graça (κεχαρίτωσαι) acima de todas as mulheres e tu superaste-as a todas pela tua santidade (τῇ ἀγιότητι)»[77]. Estes diversos empregos do verbo χαριτοῦν, para falar de Maria fazem já prever que o autor utilizará o particípio κεχαριτωμένη para descrever a sua perfeita pureza e santidade: de facto, κεχαριτωμένη está relacionado ora com παναγία (título clássico de Maria na tradição bizantina)[78], ora com ἀγνή ou com εὐλογημένη[79].

            Podemos parar por aqui esta análise acerca da tradição grega. Encontramos nela duas interpretações principais, que por vezes se misturam: as que são sobretudo sensíveis à aliteração entre κεχαριτωμένη e χαῖρε vêem no particípio e no imperativo de Lc. 1,28 um convite à alegria (mas assinalemos desde já que esta interpretação tem qualquer coisa de limitativo e redutor, que não faz plenamente justiça ao valor causativo do verbo). A outra interpretação, que vê no κεχαριτωμένη uma clara afirmação da santidade de Maria, tornar-se-á cada vez mais comum no Oriente a partir da época bizantina[80].

 

 

2. A tradição latina.

            Devemos fazer aqui uma nota preliminar[81]. Nos seus comentários de Lc. 1,28, os latinos baseiam-se na tradução da Vulgata: «Ave, gratia plena». Desde logo, o convite à alegria que exprimia tão bem em grego o χαῖρε inicial da saudação do anjo e que havia tocado tão fortemente os orientais, não é sentido realmente no Ocidente («ave» tem um outro sentido). Toda a intensidade vai recair doravante no «gratia plena». Duas questões estarão portanto na vanguarda: qual é esta graça recebida por Maria? De qual plenitude se trata? Sobretudo esta segunda problemática afasta-nos da perspectiva do κεχαριτωμένη grego: o valor verbal e causativo do verbo χαριτοῦν não é mais evidentemente apercebido; e pelo acento colocado na ideia de «plenitude», alguns comentadores arriscar-se-ão a cair em exageros, o que provocará as reacções críticas de hoje[82].

            Entretanto, como os gregos para κεχαριτωμένη, os latinos propuseram para «gratia plena» dois tipos fundamentais de interpretação. Deixando de lado os cotejos e sobreposições que se verificam sempre, pode dizer-se, grosso modo, que a transição de uma exegese a outra coincide com a passagem da patrística à Idade Média (a partir da época carolíngia).

            Comecemos pelo primeiro período. Os Padres Latinos não interpretaram gratia plena como uma indicação da santidade ou da pureza pessoal de Maria: a «graça» que ela recebeu, segundo os comentários patrísticas, é simplesmente a da sua maternidade a respeito do Filho de Deus. O seu ponto de vista é portanto mais cristológico que mariológico. Para esta primeira interpretação, será suficiente citar dois autores entre os mais importantes, Santo Ambrósio e São Jerónimo.

            Eis os comentário de Ambrósio († 397) sobre a saudação do anjo em Lc. 1,28:

 

Soli Mariae haec salutatio servabatur;

            bene enim sola gratia plena dicitur,

            quae sola gratiam quam nulla alia meruerat

            consecuta est, ut gratiae repleretur auctore[83].

 

            [N.T.: Esta saudação é reservada só a Maria;

pois só ela é apropriadamente chamada cheia de graça,

ela que fora a única a alcançar a graça que nenhuma outra

merecera, a ponto de ser repleta do autor da graça.] 

            A graça recebida por Maria não é portanto considerada como uma preparação para a Incarnação; é a graça concedida a Maria de receber nela o «autor da graça»: esta graça, para Maria, é a sua própria maternidade divina.

            Vejamos agora a interpretação semelhante de São Jerónimo († 420):

            Nam et sancta Maria, quia

            conceperat eum, in quo omnis

            plenitudo divinitatis habitat corporaliter,

            plena gratia salutatur[84]

 

            [N.T.: Com efeito, a Santa Maria, porque

concebera aquele em quem reside

corporalmente toda a plenitude da divindade,

é saudada como cheia de graça]

            Maria é chamada «cheia de graça» simplesmente porque ela concebeu no seu seio aquele em quem reside a «plenitude da divindade», Cristo. Note-se que é, no entanto, Maria, não Cristo, que, no texto do evangelho, é chamada «cheia de graça»; mas no comentário de Jerónimo, esta plenitude é reportada a Cristo que está nela. Incontestavelmente, um aspecto da saudação do anjo a Maria não foi suficientemente valorizado.

            Por volta do fim da Patrística latina, uma viragem de desenha. Os comentadores começam a ver no gratia plena da saudação do anjo uma indicação da pureza de Maria, da sua santidade, que é nela o efeito da graça. Já atestada num sermão falsamente atribuído a Eleutério de Tournai († 531), depois no século VIII em Ambrósio Autperto e Paulo Diácono, no século IX em Pascácio Radberto[85], no século XI em Fulberto de Chartres e Pedro Damião, ela torna-se por fim no século XII a interpretação praticamente comum e sê-lo-á daí por diante, à excepção de raras excepções[86]. Citemos dois autores, entre os mais conhecidos.

            São Bernardo († 1153), que não admitia a imaculada conceição de Maria, escreve entretanto na sua carta aos cónegos de Lião: «Fuit procul dúbio et Mater Domini ante sancta, quam nata» [N.T.: A Mãe do Senhor foi, sem dúvida, santa, antes de nascer][87]. Ele distingue nitidamente a graça que havia em Maria antes da Incarnação e a honra que teve de se tornar a mãe do Salvador: «Bene igitur gratia plena, quae et virginitatis gratiam tenuit, et insuper fecunditatis gloriam acquisivit» [N.T.: Portanto, com razão ela é cheia de graça, ela que não só teve a graça da virgindade, mas também ainda adquiriu a glória da fecundidade][88]. Note-se, por outro lado, que a «graça» recebe aqui uma especificação nova: é a graça da virgindade. Voltaremos a este ponto.

            E eis, dois séculos mais tarde, o comentário de Ludolfo Cartusiano († 1377), na sua célebre Vita Iesu Christi:

 

            Quae bene gratia plena dicitur

            quia aliis ad mensuram gratia datur;

            haec autem sola, gratiam quam

            nulla alia meruerat consecuta est,

            ut gratiae repleretur auctore. Quae

            cum gratia plena sit prius etiam

            quam concipiat, post conceptionem

            quanta Dei abundet gratia quis

            cogitare possit? Unde Hieronimus…[89]

 

            [N.T.:

Aquela que com razão se chama cheia de graça,

porque aos outros a graça é dada por medida,

ao passo que só ela alcançou a graça, que

nenhuma outra merecera,

a ponto de ser repleta do autor da graça. Ela que,

sendo cheia de graça, mesmo antes

de conceber, depois da concepção,

quem poderá imaginar a quantidade de graça

em que ela abundou? Por isso Jerónimo…]

 

            O elemento mais novo e mais importante deste comentário é a parte que nós sublinhamos: Maria era também cheia de graça, antes mesmo do momento da concepção de Jesus.

3. Conclusão

            O enfoque desta investigação é nítido. Devemos em primeiro lugar constatar que na época patrística não se tinha ainda dado ao termo utilizado pelo anjo a importância que se lhe atribuirá mais tarde. Foi preciso esperar alguns séculos, até que se tenha trazido à luz o sentido específico de κεχαριτωμένη ou «gratia plena»: esta «graça» que Maria possui já é diferente tanto da alegria (χαῖρε) à qual o anjo a convida agora, como da graça da maternidade que deve ainda receber. É notável que é por volta desta mesma época – o início do período bizantino para o Oriente e o renascimento carolíngio para o Ocidente – que a tradição grega e a tradição latina convergem cada vez mais em ordem à mesma interpretação da palavra do anjo: ambas viram aí a indicação da santidade de Maria[90] anterior já à Incarnação (e – podemos acrescentar sem dúvida – como preparação para ela)[91].

 

III. κεχαριτωμένη no contexto Lc. 1,26-38 

            Depois do estudo filológico de χαριτοῦν no artigo precedente, examinámos em primeiro lugar, nas duas primeiras partes deste, o texto paralelo de Ef. 1,6, e depois apresentámos uma síntese da história da exegese de κεχαριτωμένη. Resta-nos agora, nesta última etapa, situar exactamente o epíteto no seu contexto imediato e ver a função que ele exerce no relato da Anunciação. Isto permitir-nos-á precisar melhor e aprofundar os elementos de interpretação que já recolhemos.

            Dois paralelismos devem ser analisados aqui: a relação da saudação do anjo em 1,28 (χαῖρε κεχαριτωμένη) com o início da sua primeira mensagem (v.30), por um lado, e por outro lado também com a resposta de Maria (v.34).

 

3.      O paralelismo entre o v. 28 e o v. 30.

 

            A ligação entre estes dois versículos foi observada muitas vezes. Nós já falamos dela no nosso primeiro artigo, do ponto de vista sobretudo filológico. Devemos agora prolongar esta análise. Lembremos que, ao dirigir-se a Maria, o anjo refere-se nas duas vezes ao tema da «graça»:

 

            – v. 28: κεχαριτωμένη

            – v. 30: εὑρες χάριν παρὰ τῷ θεῷ

 

            Será verdade que a segunda fórmula explica simplesmente a primeira, como dizem muitos comentadores modernos (Schmid, Plummer, Brown, Fitzmyer, etc)? Esta posição, se é fundada, vai no sentido da exegese protestante, que não distingue aqui senão uma única graça de Maria, a de ter sido escolhida para ser a mãe do Filho de Deus. Mas nós já constatámos no estudo precedente, pelo exame das duas proximidades de semelhança de χαριτοῦν e de εὐρεῖν χάριν (em Dídimo o Cego e no Testamentum Joseph, 1,6), que é preciso atribuir a estas duas fórmulas funções diferentes: a primeira indica a preparação da pessoa (aqui, Maria); a segunda descreve a benevolência divina, o favor que ela obtém diante de Deus (um favor que precisamente χαριτοῦν preparava, indicando a razão deste favor). São pois duas etapas sucessivas. Mas para melhor precisar esta relação e esta diferença das duas expressões, examinemos mais atentamente a segunda, a do v. 30: «Tu encontraste graça diante de Deus».

            O aspecto é semelhante no AT[92]. Ora o exame destes diferentes empregos mostra claramente que esta fórmula, por sua vez, se dissocia em dois momentos: o primeiro é aquele em que alguém, um subalterno, «encontra graça» diante de um outro, colocado mais acima (muitas vezes, é o próprio Deus), isto é, que chega a lhe agradar, a obter a sua benevolência, o seu favor. Mas isto prepara e introduz imediatamente um segundo momento: aquele em que o soberano (ou Deus) manifesta a sua condescendência para com o seu subordinado, através de um benefício, através de um acto concreto. É por isso que a expressão que nós estudamos é muitas vezes como uma condição deste benefício («Se eu encontrei graça aos teus olhos…»). Eis um exemplo muito claro, a petição de Ester ao rei Assuero, em favor dos Judeus, seus correligionários: «Se tal é do agrado do rei, e se eu verdadeiramente encontrei graça (LXX: ει… εὗρον χάριν) diante dele, se o meu pedido lhe parece justo e se eu própria sou agradável aos seus olhos, que ele queira revogar expressamente as cartas que Aman… fez escrever para perder os judeus…» (Est. 8,5). Depois vem o próprio benefício que é concedido in loco: o rei fez redigir um decreto em favor dos judeus (8,8).

            Mas a expressão «encontrar graça diante de…» não é mais formulada sob a forma condicional, mas se ela é simplesmente afirmada por uma pessoa, então a fortiori o benefício está assegurado. É o caso, por exemplo, quando Yahvé diz a Moisés no Sinai: «Eu farei o que tu me pedes, porque tu encontraste graça aos meus olhos» (Ex. 33,17). Notem-se os dois tempos diferentes: o cumprimento futuro de Yahvé será uma consequência de um facto passado. A mesma coisa antes do dilúvio: foi dito de Noé que «ele encontrou graça aos olhos de Yahvé» (Gen. 6,8): ele tinha sido destinado através desta expressão (como o explica muito bem o P. Lagrange, que descreve assim o benefício que Noé receberá) a tornar-se o salvador da antiga humanidade»[93]. Ora, como nós vimos no artigo precedente, é precisamente no seu comentário desta passagem que Dídimo o Cego introduz o verbo χαριτοῦν, para explicar porque é que «Noé encontrou graça aos olhos de Deus». Com esta inserção de um novo verbo, antes do binómio de que temos vindo a falar, acabamos por distinguir assim um desenvolvimento em três movimentos:

a)      Pelas suas obras de virtude, Noé «tornou-se agradável (χαριτώσας ἑαυτόν)» a Deus; foi assim que ele se tinha preparado (ponto de vista humano) para receber o favor divino;

b)      por esta razão, «ele encontrou graça (εὗρεν χάριν) aos olhos de Deus (ponto de vista divino);

c)      foi assim que Deus concedeu por fim a Noé ser salvo do dilúvio (Gen. 6,14); benefício de Deus ao homem).

 

Ora, é muito importante para nós constatarmos que, no relato da Anunciação, encontramos exactamente a mesma sequência ternária, articulada sobre as duas mesmas expressões mais ou menos estereotipadas (χαριτοῦν, εὐρεῖν χάριν):

a)      O anjo declara a Maria que ela é já κεχαριτωμένη (1,28), «transformada pela graça»;

b)      é por isso que ela encontra graça (εὑρες χάριν) diante de Deus (1,30)[94];

c)      é por isso também que (γάρ) o anjo pode anunciar-lhe que ela vai tornar-se a mãe do Messias: «E eis que tu vais conceber e dar à luz um filho…» (1,31).

 

É portanto bem evidente que não pode tratar-se simplesmente de identificar ou de fazer coincidir os dois primeiros momentos: esta hipótese é, por outro lado, igualmente excluída pela diferença dos tempos (perfeito – aoristo). E acrescentemos que o terceiro momento, ele também, é nitidamente distinto dos dois primeiros, visto que se apresenta no futuro. Trata-se, portanto, de uma sequência temporal de três momentos sucessivos, necessariamente diferentes. Que o tema da predestinação esteja presente nesta passagem, como o pensa a exegese protestante, poder-se-ia de qualquer modo conceder; no entanto, este tema só poderia estar ligado ao segundo momento (cf. acima a palavra do P. Lagrange: a expressão «Noé encontrou graça diante de Deus» explica o destino de Noé). Mas a realização concreta deste destino só terá lugar depois, num futuro próximo. Para Maria, a realização do seu destino far-se-á no momento em que ela se tornará mãe. Mas este segundo e terceiro momentos são precedidos ambos pelo primeiro, que descreve a situação de Maria até esse momento: já de antemão ela era κεχαριτωμένη, como preparação para os acontecimentos que o anjo vinha anunciar-lhe. Assinalemos ainda que a tradução que propusemos adapta-se exactamente a esta situação: «Alegra-te por teres sido transformada pela graça». A interpretação principal da Tradição, que fala aqui da santidade de Maria, vai no mesmo sentido; mas falta-lhe talvez, bem como o «gratia plena» dos latinos, o não ligar suficientemente esta santificação de Maria à sua divina maternidade.

Precisemos ainda melhor a importância da ligação entre os três momentos de que temos vindo a falar. Κεχαριτωμένη, no v. 28, exprime portanto o primeiro momento ou antes o primeiro tempo (trata-se, com efeito, de um estado, duma situação de Maria, que dura desde há muito tempo). Se o anjo convida Maria a alegrar-se por «ter sido transformada pela graça, é porque estava aí uma preparação para o papel que Deus lhe destinava e ele, «o anjo Gabriel (que) tinha sido enviado de junto de Deus» (1,26), lhe vem revelar agora. Este segundo momento, na economia do relato, está indicado no v. 30: é a revelação do facto de Maria «ter encontrado graça diante de Deus», isto é, ela agradava a Deus. Mas isto é apresentado como uma consequência do κεχαριτωμένη precedente. O terceiro momento será a concepção e o dar à luz o Filho de Deus por parte de Maria (cf. v. 31), um episódio concreto da história para o qual estavam orientados os dois momentos precedentes. Entretanto, a relação entre o primeiro e o segundo momento tem aqui qualquer coisa de absolutamente único. No caso de Noé, que nós examinamos acima (o texto de Gen. 6,8 comentado pelos Padres), χαριτῶσας estava na voz activa, para explicar como o próprio Noé se tinha preparado «tornando-se agradável aos olhos de Deus»: ele tinha assim «encontrado graça diante de Deus» e tinha obtido o ser salvo. Em Lc. 1,28, pelo contrário, o verbo χαριτοῦν está no perfeito passivo e o sujeito (lógico) não é mais um homem, mas Deus (pela sua graça): Maria «tinha sido transformada pela graça». Mas resta que estava lá uma preparação para o que devia seguir-se, uma preparação querida e efectuada pelo próprio Deus, para a realização do seu desígnio sobre a Incarnação.

Na mensagem do anjo, as palavras do v. 30 explicam-se como uma revelação do agrado de Deus e indirectamente como uma revelação do seu desígnio acerca de Maria. Mas esta revelação está presente como uma consequência do que a própria graça de Deus tinha já operado em Maria, a fim de a preparar para o que Ele esperava dela.

A comparação com o caso de Noé em Gen. 6,8 é ainda interessante de um outro ponto de vista, o do valor da voz do verbo χαριτοῦν nos dois casos: pela sua prática de virtudes, Noé tinha operado em si mesmo uma acção eficaz, que o guardava da corrupção geral que havia à sua volta; o caso é análogo em Maria, mas com esta diferença, que a transformação que tinha sido operada nela não era consequência do seu esforço moral, mas sim da acção da graça. Da voz activa passa-se para a passiva, do aoristo passa-se para o perfeito e do esforço humano passa-se para a acção da graça de Deus.

Para melhor compreender em que consistia concretamente esta acção da graça que tinha actuado em Maria, resta-nos agora confrontar a nossa expressão com o v. 34, onde, pela primeira vez, Maria vai falar.

 

2. O paralelismo entre o v. 28 e o v. 34.

 

            O que acabamos de dizer sobre a estrutura ternária do tema da graça no nosso relato vai permitir-nos, pelo jogo das correlações, identificar enfim de uma maneira precisa o sentido de κεχαριτωμένη.

            O primeiro momento, digamos, é orientado para o terceiro: Maria foi preparada, «transformada pela graça» (primeiro momento), em vista do papel específico que, no desígnio de Deus (evocado no segundo momento), ela fora chamada a desempenhar como mãe na Incarnação (terceiro momento). Mas qual é o papel específico que Maria ia desempenhar? Comporta dois aspectos. Também ele é descrito pelo anjo em duas mensagens sucessivas: ele anuncia em primeiro lugar à Virgem que, tendo encontrado graça junto de Deus, ela vai tornar-se mãe; ela vai conceber e dar à luz o Filho do Altíssimo (vv. 30-33). Diante da dificuldade que a Virgem levanta imediatamente (v. 34), o anjo responde, na segunda mensagem, que esta concepção e este dar à luz serão obra do Espírito Santo (v. 35), e dá-lhe como sinal o facto de Isabel, a estéril, também ir tonar-se mãe (vv. 36-37). O conjunto desta revelação pode resumir-se em duas palavras: o anjo anuncia a Maria um facto extraordinário: uma maternidade que será virginal; ela será a mãe do Filho de Deus, mas permanecendo virgem.

            Ora a saudação inicial do anjo continha já em germe toda esta mensagem: o κεχαριτωμένη do início indica como Maria foi preparada pela graça (v. 28), para que se realizasse nela o desígnio de Deus evocado no v. 30; por outro lado, o segundo membro da saudação inicial («o Senhor está contigo») anuncia a realização concreta deste desígnio de Deus na história, isto é, a concepção virginal de Maria. É que não foi suficientemente assinalado que esta fórmula, frequente no AT, contém a promessa de uma ajuda e de uma assistência especiais de Deus, para missões particularmente difíceis[95]. Ora, no caso de Maria, que era já legalmente casada, nada parecia dificultar a sua maternidade, depois da coabitação com José, se se tratasse simplesmente de uma maternidade ordinária; o que, ao contrário, era para ela humanamente impossível era o tornar-se mãe, mas permanecendo virgem. Para ela, como para Isabel, vale a palavra do anjo: «Nada é impossível a Deus» (v. 37). Foi a isto que ele já tinha feito alusão no segundo membro da saudação inicial; um paralelismo aliás o sublinha:

            – v. 28: «O senhor está contigo»;

            – v. 35: «O Espírito Santo virá sobre ti».

 

            Para que Maria possa dar à luz virginalmente, isto é, pela acção do Espírito Santo, é evidentemente necessário que «o Senhor esteja com ela».

            É para esta maternidade virginal que Maria tinha sido, portanto, preparada pela graça de Deus. A «transformação pela graça» operada nela fora orientada para esta virgindade que ela devia conservar ao tornar-se mãe. É aqui que o paralelismo entre o v. 28 e o v. 34 começa a ser particularmente interessante. No v. 28, o anjo convidava Maria a «alegrar-se de ter sido transformada pela graça»[96]: este segundo verbo, um particípio perfeito («transformada pela graça»), indica a completiva do primeiro, a razão de ser do «alegra-te»; ora, visto que este primeiro verbo é um verbo de sentimento («alegrar-se»), o segundo, que lhe serve de complemento, deve sê-lo também de uma maneira ou de outra: κεχαριτωμένη, como objecto de χαῖρε, refere-se portanto a uma experiência de Maria, a uma experiência misteriosa em virtude da qual o anjo a convida precisamente a alegrar-se. Desde o início, se assim se pode dizer, ele faz alusão ao que ela própria tinha experimentado, aos seus sentimentos profundos, ao que, até aqui, tinha sido sem dúvida para ela uma causa de espanto, talvez mesmo de perturbação (cf. v. 29), mas que devia agora tornar-se uma causa de alegria, adquirindo todo o seu sentido, graças à mensagem do anjo. Ora, o aspecto existencial destes sentimentos de Maria, durante o longo período precedente, é descrito pela própria Maria na sua resposta ao anjo. Neste v. 34, ela deixa transparecer os seus sentimentos, mas em termos mais precisos que os do anjo: «Como será isto, visto que eu sou virgem[97]. Não é agora ocasião para se fazer uma exegese detalhada deste versículo controverso. Contentemo-nos com dizer que a melhor solução parece ser a seguinte: estas palavras exprimem em Maria, não tanto uma decisão, um propósito deliberado de ficar virgem (como explicar, neste caso, o seu casamento?), mas um secreto desejo de virgindade, uma propensão profunda para vida virginal[98].

            É precisamente neste sentido que nos orienta o paralelismo entre o v. 28 e o v. 34: «transformada pela graça» e «virgem» correspondem-se. Desde as suas primeiras palavras, antes de formular a sua dupla mensagem (vv. 30-33.35-37), o anjo tinha interpelado Maria do ponto de vista daquilo que – apesar do anacronismo da fórmula – se é obrigado a chamar a sua «vida interior»; ele convidava-a a alegrar-se, em razão da transformação que se tinha operado nela, sob a acção da graça. Desta transformação, Maria devia ter feito necessariamente a experiência. É esta «mais profunda orientação da sua vida» (R. Guardini) que ela exprime ao dizer: «… eu sou virgem». O que a graça tinha suscitado nela era, portanto, um «desiderium viginitatis» [N.T.: desejo de virgindade], como o dizia já São Tomás[99].

            Outros autores também, na tradição medieval, se exprimiram de uma maneira semelhante. Lembremos o texto de São Bernardo, já citado mais acima: «Bene igitur gratia plena, quae et virginitatis gratiam tenuit, et insuper fecunditatis gloriam acquisivit» [N.T.: Portanto, com razão ela é cheia de graça, ela que não só teve a graça da virgindade, mas também ainda adquiriu a glória da fecundidade]. A explicação articula-se em dois membros; mas só o primeiro retoma a palavra «gratia» da saudação do anjo; a maternidade de Maria, no segundo membro, é chamada «fecunditatis gloria» [N.T.: glória da fecundidade]. É portanto mais particularmente a virgindade de Maria, anterior à sua maternidade, que Bernardo apresenta como o efeito da graça. Uma interpretação quase semelhante lê-se na Glossa ordinária[100]:

           

            Vere gratia plena

quae prima inter foeminas

                 virginitatis gloriosum munus Deo obtulit

quae etiam ideo Angelico visu et alloquio

                 meruit perfrui

quae gratiae totius auctorem mundo edidit. 

 

[N.T.:

É de verdade cheia de graça

aquela que foi a primeira entre as mulheres

     a oferecer a Deus o dom glorioso da virgindade,

                aquela que também mereceu desfrutar

                     da visão e da palavra do anjo,

                aquela que deu ao mundo o autor da toda a graça].

 

            Desta vez a frase tem três membros: eles correspondem à estrutura ternária que nós identificamos anteriormente no texto. Só o primeiro membro está directamente ligado à gratia plena, no sentido de que Maria fez a Deus a oferenda da sua virgindade, sendo esta considerada como um «dom» (note-se um certo paralelismo entre gratia e virginitatis munus). A aparição e a mensagem (alloquio) do anjo, no segundo membro, vêm juntar-se ao primeiro (cf. etiam), como o que Maria tinha merecido (meruit) pela sua oferenda. Quanto à maternidade de Maria (terceiro membro), isto é, o facto de que ela ia dar ao mundo o autor de toda a graça, é como uma consequência das duas etapas precedentes, embora – em si – seja o elemento principal. Mas a própria oferenda que Maria tinha já feito da sua virgindade está directamente orientada, independentemente da mensagem (alloquio) do anjo, ao dom que ela ia fazer ao mundo, dando à luz o autor de toda a graça. Todavia, do ponto de vista de Maria, a expressão do início, gratia plena, descreve o primeiro momento, a oferenda (obtulit) que ela tinha feito do «dom glorioso da sua virgindade». Remetida para a palavra grega (κεχαριτωμένη), esta interpretação significa que Maria foi «transformada pela graça», no sentido de que ela tinha oferecido a Deus a sua virgindade. Certamente, nestas fórmulas medievais exprime-se uma exegese que nós próprios julgamos excessiva (cf. supra), a do «votum virginitatis» [N.T.: voto de virgindade][101]. Mas se reduzirmos este «votum», este propósito, a um «desiderium», a uma orientação profunda, a um anelo secreto, sempre submetido e disponível ao desígnio de Deus, mantemos o essencial da exegese tradicional de Lc. 1,34 e chegamos, para a exegese de Lc 1,28 (graças ao paralelismo destes dois versículos), à melhor e mais bela das interpretações que se propuseram para a primeira palavra do anjo a Maria, interpretação que é esclarecida pela resposta de Maria ao anjo. Acrescentemos ainda esta nota: mais que um eventual propósito deliberado de Maria (que seria uma decisão da sua vontade), é bem mais o seu desejo íntimo, a sua profunda propensão para a virgindade, que merece, no pleno sentido do termo, ser chamada graça.

            Será que esta interpretação de κεχαριτωμένη não se afasta da da tradição? Num sentido sim, visto que em vez de dizer que o efeito da graça em Maria era a sua santidade, a sua pureza, nós falamos sobretudo do seu desejo de ficar virgem.

            Mas estes dois temas estavam já ligados muito antes de São Bernardo e da Glossa ordinária, no hino bizantino citado no nosso primeiro artigo: nós observamos aí, por um lado, o paralelismo entre «virgem imaculada» (tema tradicional da pureza de maria) e «virgem transformada pela graça» (tema lucano do aspecto causativo da graça). Por outro lado, deve também notar-se que estes dois termos (ἀμίαντε [N.T.: imaculada] e κεχαριτωμένη) estão ambos aí justapostos a παρθένε [N.T.: virgem], isto é, ligados a um terceiro tema, o da virgindade de Maria, o que nos aproxima ainda mais do texto de Lucas[102]. A virgindade de Maria e a sua «transformação pela graça» estão ligadas. Tudo isto mostra que a interpretação de Lc. 1,28 proposta acima (a graça da virgindade) não é senão uma especificação ulterior da interpretação tradicional (e que estava já talvez implicitamente presente no relato do evangelho), isto é, que a graça da virgindade, em Maria, é um aspecto essencial da sua santificação: «Ela vive para Deus na confiança», diz muito bem R. Guardini; é a atitude que ele chama propriamente «mariale»: a virgindade exprime-se em Lc. 1,34 «como este comportamento fundamental que caracteriza Maria no seu ser e no seu sentimento íntimo»[103]. Podemos ainda esclarecer isto através do texto clássico de Paulo sobre a virgindade cristã. Maria é levada a viver integralmente para o Senhor: ela «tem o cuidado das coisas do Senhor, ela procura como agradar ao Senhor» (1Cor. 7,35). Embora ela esteja ligada a um homem, ela declara que «não conhece homem» (Lc. 1,34); ela vive «como se não o tivesse» (cf. 1Cor. 7,29). É por isso que pode dizer-se que a virgindade cristã, bem antes de ser proclamada como um ideal por Jesus, nasceu, sob o efeito da graça (Lc. 1,28), no coração de Maria, como preparação para a Incarnação. Ela viveu a virgindade do coração antes de conhecer a virgindade da carne.

            Acrescentemos que a referência aos sentimentos íntimos de Maria é melhor na realidade do que a indicação geral da sua santidade, que teria aqui qualquer coisa de abstracto, de longínquo, de irreal, em comparação com a situação presente; ao contrário, o desejo de virgindade em Maria era a preparação concreta e existencial que a graça tinha operado nela, para aquilo a que Deus a destinava: a sua maternidade virginal. Reencontramos assim a ligação orgânica e o papel funcional dos três momentos do episódio descrito acima: eles colocam em plena luz a perfeita coerência e a bela harmonia do desígnio de Deus.

 

Conclusão

            Tivemos de percorrer um longo itinerário, porque os materiais que era preciso inventariar e analisar eram abundantes e variados. Mas ao terminar, é fácil mostrar brevemente o sentido desta investigação e fazer ver todo o seu impacto sobre a interpretação de Lc. 1,28.

1. A base de análise era estritamente filológica. Era necessário. É que até ao dia de hoje, é preciso reconhecê-lo, nunca se tinha tomado um ponto de partida assim, no estudo exegético e teológico deste versículo, o que é no mínimo paradoxal. Sem dúvida, o resultado da nossa investigação não tem nada de revolucionário. Mas se é verdade que ele era já conhecido, é preciso reconhecer também que ele não se tinha imposto e, sobretudo, não se tinha tirado dele todas as consequências, no que diz respeito ao sentido teológico de κεχαριτωμένη. Era portanto útil meter no debate um dossier em boa parte novo, praticamente completo, para mostrar, mais claramente que antigamente, o que doravante deveria impor-se a todos, dado que se trata de um ponto indiscutível. Ei-lo: o verbo χαριτοῦν, aplicado a Maria em Lc. 1,28, pertence à categoria dos verbos causativos (chamados pelos ingleses e alemães «factitivos»), cujo sentido se exprime melhor em francês [português] pelo verbo «tornar», seguido de um predicado que descreve o efeito produzido (por exemplo: tornar livre, tornar cego); χαριτοῦν, desde logo, significa na língua comum «tornar gracioso» (Bailly), tornar agradável ou amável, o que nós pudemos documentar através de numerosos exemplos (o predicado é tomado aí umas vezes no sentido físico, outras vezes no sentido moral e religioso); este verbo causativo descreve portanto uma verdadeira mudança (comparado com a situação anterior), uma transformação operada pela χάρις, seja ela qual for, a tal ponto que esta «graça» se manifesta ou transparece, na pessoa ou na coisa que dela beneficia. Lembremos a feliz fórmula de Crisóstomo no seu comentário de Ef. 1,6: ἐχαρίτωσεν ἡμᾶς [N.T.: Ele nos tornou agradáveis] = ἡμᾶς ἐπιχάριτας ἐποίησε [N.T.: Ele tornou-nos agradáveis a seus olhos].

            Em Lc. 1,28, certamente, nós temos um particípio passivo, mas ele mantém o seu valor verbal; a dinâmica que implica este verbo em –οῦν permitiu-nos portanto propor como tradução de κεχαριτωμένη aplicado a Maria: «transformada pela graça». É que era impossível traduzir ainda aqui esta forma verbal como «tornada graciosa»[104]; neste texto do evangelho, isto teria sido errado e falso, porque o adjectivo «gracioso» não tem senão um sentido profano; pelo contrário, o substantivo «graça», que nós reintegramos, compreende todo o campo semântico da graça de Deus, no sentido teológico em que o NT o entende. Resta, no entanto, que depois da investigação filológica faltasse mostrar a seguir em que consistia concretamente esta «transformação pela graça» operada em Maria; aqui o texto paralelo de Ef. 1,6 era já precioso, porque ele faz ver que ἐχαρίτωσεν ἡμᾶς descreve a «redenção» realizada por Deus, «a remissão dos pecados» que ele nos concede, para nos tornar «santos e imaculados na sua presença». O sentido é fundamentalmente o mesmo para Maria, como o compreendeu bem a Tradição. Mas ele pode ainda ser mais preciso, como se vai ver.

            2. É que uma segunda conclusão (inteiramente nova desta vez) pôde ser tirada de uma confrontação precisa de Lc. 1,28.30 com outros casos onde se encontra a mesma ligação de χαριτοῦν e εὐρεῖν χάριν. Muitíssimas vezes são vistos erradamente como sinónimos. Mas estas duas fórmulas deviam ser distinguidas; mais ainda, apesar das aparências (visto que não se trata, dir-se-á, senão de duas fórmulas semelhantes), elas pertencem  de facto a uma estrutura  ternária (κεχαριτωμένη – εὑρες χάριν – καὶ ἰδοὺ συλλήμψῃ). Ora – eis o paradoxo – estes momentos sucessivos pertencem os três, de uma maneira ou de outra, ao tema geral da graça, da realização do desígnio da salvação[105]. Daí a confusão compreensível que nós pudemos constatar na história da exegese, sobretudo na época moderna. É que quis-se aplicar «gratia plena» a cada um destes três momentos (que estão indubitavelmente ligados entre eles, mas são distintos); e um Ludolfo Cartusiano, no seu eclectismo (cf. acima), parece mesmo tê-los agrupado aos três. Vejamos isto mais de perto.

            a) Alguns, como Ambrósio e Jerónimo, situaram esta «graça» de Maria no terceiro estádio da realização do desígnio de Deus sobre ela, isto é, eles identificaram-na com a sua divina maternidade. Mas esta exegese é difícil de sustentar: que Maria tenha levado no seu seio o «autor da graça» era evidentemente para ela uma grande «graça»; mas este momento ainda vindouro («tu conceberás») não podia ser designado antecipadamente pelo anjo por meio de um particípio perfeito κεχαριτωμένη[106].

            b) Outros, sobretudo os protestantes – depois da Reforma até aos nossos dias – reduzem muitas vezes «gratia plena» a «tu encontraste graça diante de Deus» (v. 30), isto é, ao segundo estádio da nossa estrutura temporal; esta «graça» à qual o anjo se refere, é vista por eles unicamente do lado da fonte, do lado de Deus e não reconhecem aí senão a «benevolência de Deus», o favor divino, ou ainda, a eleição de Maria, a sua predestinação[107]. Mas uma tal interpretação parece-nos totalmente excluída por uma série de razões: em primeiro lugar, κεχαριτωμένη e εὗρες χάριν, já o mostrámos, não são sinónimos; além disso, nunca se apresentou nenhuma prova de que o verbo χαριτοῦν pode indicar a eleição ou a predestinação; a expressão do v. 30 nunca pode ter este sentido (neste relato, aliás, Lucas, diferentemente de Paulo em Ef. 1,5-6, não menciona em parte nenhuma a eleição, mesmo que a suponha em todo o lado): «encontrar graça diante de Deus» significa «agradar a Deus»; mas no nosso contexto, se o anjo revela a Maria que ela «agrada a Deus», é em razão de uma acção divina anterior, que tinha já exercido o seu efeito sobre ela, e que está descrita aqui no κεχαριτωμένη que vem antes (no v. 28); enfim, o emprego do verbo causativo χαριτοῦν (e numa forma passiva do qual Maria é o sujeito) obriga a situar a acção da «graça» do lado do efeito que ela já produziu, isto é, em Maria.

            c) Por fim, para um terceiro grupo (para a tradição católica no seu conjunto), a graça (χάρις) designada em «gratia plena» (ou em κεχαριτωμένη) é a graça já recebida e possuída por Maria, antes da maternidade e mesmo bem antes da Anunciação (o que explica o emprego do verbo no perfeito passivo). No nosso esquema ternário, este período anterior (sem dúvida bastante longo) constitui o primeiro dos três tempos; este, no entanto, é dinamicamente orientado para os outros dois: se Maria foi «transformada pela graça», era unicamente como preparação para a sua maternidade virginal.

            É este tipo de interpretação que se tornou dominante na história da exegese de Lc. 1,28, a partir do fim da idade patrística. A nossa própria análise procurou especificá-la mais, estabelecendo proveitosamente o paralelismo entre os vv. 28 e 34: κεχαριτωμένη, já o dissemos, não descreve simplesmente a santidade de Maria (era a exegese da Tradição), mas o seu desejo profundo da virgindade, um desejo de ser de Deus, que lhe fora inspirado pela graça de Deus, precisamente para a preparar para uma maternidade virginal.

            3. Tais são as conclusões essenciais de toda esta investigação. Elas não podem deixar de levantar um problema, sobretudo se nos lembrarmos do nosso estado da questão na primeira parte do artigo precedente: como pode acontecer que, desde o século XVI, reine ainda um desacordo entre protestantes e católicos acerca do sentido a dar ao epíteto κεχαριτωμένη aplicado a Maria?

            A razão, manifestamente, não se deve procurar na diferença de análises filológicas ou exegéticas do texto: ela é de ordem teológica e confessional; nós já o deixamos entender no início do nosso primeiro artigo. Os protestantes, que têm uma opinião forense da justificação só pela fé e para quem, em certo sentido, a graça é extrínseca ao homem e se reduz à pura misericórdia de Deus (sola gratia, a graça como favor Dei), o κεχαριτωμένη de Lc. 1,28, compreendemo-lo, não podia ser interpretado senão como a expressão «só da benevolência de Deus» para com Maria, segundo a expressão recente de E. Campi[108]; mas será que se faz justiça a todo o conteúdo causativo do verbo empregado no evangelho? Por outro lado, devemos reconhecer que, na tradição católica ocidental, que partia unilateralmente do «gratia plena» latino, alguns teólogos foram por vezes levados a considerar esta «plenitude» nela mesma, demasiadamente separada da fonte, ao passo que o texto original não fala de «plenitude», mas indica com força o efeito produzido em Maria pela graça de Deus. Para uns e outros, impõe-se o regresso ao evangelho.

            O Vaticano II, de facto, convidou os fiéis a considerarem o estudo da Santa Escritura como a alma da teologia (DV 24). Isto é fundamental igualmente para o diálogo entre protestantes e católicos, muito particularmente no estudo de uma passagem como Lc. 1,28, que é de uma grande importância, tanto para a teologia da graça, como para a teologia marial. Na medida em que todos, conscienciosamente e objectivamente, se esforcem por agarrar e aceitar este texto do evangelho em toda a sua riqueza, na sua precisão também e em toda a sua profundidade, pode esperar-se que, em vez de ele ser objecto de controvérsia, favorecerá a convergência das confissões e tornar-se-á talvez um factor de progresso no diálogo ecuménico.

           

 

Inácio de la Potterie, 1987

 Tradução: PZA, 2017

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[49] A este propósito, entretanto, ver J. LEDIT, Marie dans la liturgie byzantine (Paris 1976) 137: «κεχαριτωμένη não encontrou na patrística grega e na liturgia bizantina os mesmos desenvolvimentos senão a saudação inicial (…). Nos livros litúrgicos, eu encontrei quase continuadamente, sobretudo no vocativo, o termo θεοχαρίτωτε, cheia da graça de Deus. Maria é mesmo invocada como a única θεοχαρίτωτε. Temos aqui o mesmo sentido que foi dado no Ocidente ao ‘gratia plena’, plenitude de pureza, de santidade, de graça de Deus».

[50] J.G. TAIT (edição), Greek Ostraca in the Bobleian Library at Oxford (Londres 1930) 170, I, IV, 117. Mas nós completamos o texto, utilizando a nova leitura que dele fez S.-G. MERCATI, «Osservazioni sul testo e sulla metrica di alcuni papiri cristiani», Chronique d’Egipte 13 (1932) 183-201 (p. 189).

[51] Introduzimos no texto as correcções de ortografia e as interpretações seguras de palavras incompletas propostas pelo editor.

Damos aqui, para o último hemistíquio, uma tradução que retomamos também de Lc. 1, 28. Compare-se com a que propõe C. BUZZETTI, «Traducendo ΚΕΧΑΡΙΤΩΜΕΝΗ (Lc. 1, 28)», Testimonium Christi. Scritti in onore di J. Dupont (Paideia 1985) 111-116: «Egli ti há colmata di grazia» [N.T.: Ele te cumulou de graça]. Mas nós vemos nesta tradução um triplo inconveniente: ela toma um passivo por um activo; a atenção desloca-se assim de Maria para Deus; e não se assinala nada o aspecto causativo do verbo (o efeito produzido sobre Maria).

               

[52] Encontra-se ainda κεχαριτωμένη aplicado à Virgem em muitos hinos cristãos da época bizantina: P. Aberdeen, 4,3-4; 5,7; eis o primeiro destes textos (com correcção ortográfica): παρτένος καὶ μήτηρ, δοῦλε καὶ θεοτόκος, ἀπεχθὴς καὶ κεχαριτωμένη (virgem, mas mãe; serva, mas mãe de Deus; objecto de ódio, mas transformada pela graça). Ver ainda: W.E. CRUM, Coptic Ostraca (London 1902) 3, nº 518, linhas 1-2 e 12; 4, nº 521, Ad. 39, linhas 17 e 22; P. MAAS, «Ein frühbyzantinisches Kirchenlied auf Papyrus», ByZ 17 (1908) 307-311 (p. 311, linha 5). Não explorámos os textos da liturgia bizantina; ver a este respeito a nota 49.

                Mas ficamos especialmente espantados por constatarmos que o termo evangélico κεχαριτωμένη não se encontra em nenhuma parte da peça oficial que é a grande composição litúrgica da tradição bizantina chamada «hino acatistos» em honra de Maria (PG 92, 1336-1348), nem sequer nos hinos marianos de João o Geómetra (PG 106, 853-856) e doze vezes somente no Mariale (que é no entanto muito longo) de José o Hinógrafo (PG 105, 978-1414).

[53] Encontramos igualmente o indicativo aoristo activo em Ef. 1,6 o único lugar do NT fora de Lc. 1,28, onde se emprega o nosso verbo: ὀ θεὸς … ἐχαρίτωσεν ἡμᾶς: falaremos dele mais em detalhe no artigo seguinte.

[54] Com razão, G.M. Verd assinala que γυνὴ κεχαριτωμένη nesta citação de Sir. 9,8 poderia dizer-se igualmente: γυνὴ εὔχαρις, ἐπίχαρις, χαρίεσσα. Cf. «gratia plena» (citado na bibliografia, n. 1).

[55] E.R. Cole e G.M. Verd: ver bilbiografia, n. 1; é por isso que G.M. Verd propõe como tradução possível: «dichosa, afortunada, bendita»; outros autores espanhóis preferem; «favorecida» ou «agraciada»; em alemão, já o dissemos, traduz-se muitas vezes por «Begnadete». Mas nestas diversas traduções, o carácter verbal do particípio κεχαριτωμένη não é mais perceptível (ver a nota precedente, para Sir. 9,8). Por outro lado, isto é também verdade  para «gratia plena» da Vulgata.

[56] Ver acima.

[57] DELEBECQUE, «Sur la salutation de Gabriel à Marie», 352-355.

[58] Pode comparar-se a fórmula de Suídas: ὀ κεχαριτωμένα ἐργαζόμενος (cf. n. 24), onde o particípio perfeito passivo descreve o resultado da acção do verbo ἐργάζομαι; a junção dos dois verbos, o primeiro dos quais descreve o objecto da acção do segundo (é o complemento directo) requer por assim dizer que κεχαριτωμένα guarde o seu carácter verbal. Em suma, poderíamos conceder que o particípio perfeito passivo κεχαριτωμένος, por si só, pode ser o equivalente a um simples adjectivo (p. ex. «um belo menino», «uma bela mulher»); mas quando está junto de um outro verbo (assim, nos exemplos citados, ἐργάζομαι ou χαίρω) ou a um adjectivo que evoca ou supõe uma acção anterior (ἀ-μίαντος, não contaminado), mantém o seu valor verbal.

[59] «Κεχαριτωμένη em Lc. 1, 28. Estudo filológico», Biblica 68 (1987) 357-382.

[60] S. JOÃO CRISÓSTOMOS, In Eph. I, 3 (PG 62, 13-14); e já um pouco mais acima (I, 2, col 12): ἐποίησεν ἡμᾶς αὐτὸς ἀγίους. O emprego repetido de (ἡμᾶς) ἐποίησεν (fecit, na tradução latina) para comentar ἐχαρίτωσεν ἡμᾶς de Ef. 1,6, realça nitidamente o valor causativo («factitivo») do verbo ἐχαρίτωσεν.

                Para ressaltar ainda melhor, por meio de um jogo de palavras, o efeito produzido pela χάρις, Crisóstomo recorre a um adjectivo da mesma raiz (ἐπιχάρις / χάρις; gracioso/graça): ἡμᾶς ἐπιχάριτας ἐποίησε serve para explicar ἐχαρίτωσεν ἡμᾶς.

[61] ORÍGENES, In Lucam, hom. VI (GCS, Origenes IX, 37; PG 13, 1815-1816); PSEUDO-GREGÓRIO O TAUMATURGO, Hom. I in Annuntiationem Virginis Mariae (PG 10, 1152 D); a mesma ideia é retomada por S. AMBRÓSIO, Expos. Evang. Sec. Lucam, II, 9 (PL 15, 1636 B; CSEL 32, 45-46), mas num sentido diferente (cf. mais adiante),

[62] Cf. a este propósito o trabalho recente de N. LEMMO, Maria, «Figlia di Sion» a partire de Lc. 1,26-38. Bilancio exegético dal 1939 al 1982 (Extrato da Tese de Laurea; Roma, «Marianum» 1985).

[63] Ver no início do «Estudo filológico», nota 2.

[64] O extracto tem o mesmo título que a dissertação completa (foi publicado na série: «Excerta ex dissertatione ad Lauream in Facultate Theologica Pontificiae Universitatis Gregorianae»; Roma 1968, 103 p.). Para as referências à Tradição latina (esta parte não foi publicada), nós citaremos a própria dissertação (sigla: Diss.); designaremos o extracto pela palavra L’Interpretazione.

[65] Ver o seu estudo, mencionado no nosso primeiro artigo, nota 49: Marie dans la liturgie byzantine (Paris 1976) 137.

[66] Cf. S. LYONNET, Le recit de l’Annonciation et la Maternité divine de la sainte Vierge (Rome 1954) 9-10.

[67] MARCHISANO, L’Interpretazione, 85.

[68] Cf. M. JUGIE, «Jean Damascène», DTC, VIII/1, 703; ID., «La doctrine mariale de saint Théodore Studite», Échos d’Orient 25 (1926) 421-428. São Teodoro admitia e defendia a imaculada conceição de Maria, que era uma «doutrina comum aos teólogos bizantinos a partir do concílio de Éfeso» (p. 424; nas páginas seguintes são citados muitos textos); mas ele não pensou que este privilégio de Maria estivesse expresso no título κεχαριτωμένη (esta palavra tinha para ele um outro sentido); cf. MARCHISANO, L’Interpretazione, 64.

[69] Hom. II in Nativitatem B.V. Mariae (PG 96, 696 D; citado por MARCHISANO, L’Interpretazione, 63):

 

Χαῖρε, κεχαριτωμένη, τὸ πάσης χαρᾶς

χαριέστερον καὶ πρᾶγμα, καὶ ὄνομα, ἐξ ἧς

χαρὰ ἀδιάδοχος εἰς τὸν κόσμον Χριστὸς γεγέννηται, τῆς

Ἀδαμιαίας λύπης τὸ ἰαπεῖον.

 

                Marchisano observa muito bem que, jogando com a aliteração do texto de Lucas (χαῖρε κεχαριτωμένη), Teodoro procura explicá-la através de uma outra aliteração (χαρᾶς χαριέστερον). Mas o facto de ter escolhido o adjectivo χαρίεσσα (gracioso, amável) como sinónimo de κεχαριτωμένη mostra que Teodoro compreendia muito bem o sentido do particípio; resta entretanto que ele explique o carácter «gracioso» de Maria pela sua alegria, a sua χάρις pela sua χαρά.

[70] Sermo I in Annunt., 1 (PG 10, 1149 D).

[71] M. JUGIE, L’Immaculée Conception dans l’Écriture Sainte e dans la Tradition orientale (Romae 1952) 102.

[72] In SS. Deiparae Annuntiationem, 19 e 21 (PG 87/3, 3240 A, 3241 A); ver também a sua Epistola synodica ad Sergium (PG 87/3, 3160-3161).

[73] In SS Deiparae Annuntiationem, 25 (PG 87/3, 3248 A). Sobre a penúltima fórmula («… purificado de antemão»), ver a longa nota em Migne, e o comentário de JUGIE, L’Immaculée Conception, 104. Note-se que, neste texto com o indicativo perfeito passivo (κεχαρίτωται), como no precedente, com o particípio correspondente (κεχαριτωμένη), a «transformação pela graça» realizada em Maria é anterior ao momento da sua concepção e da Incarnação.

[74] Seguimos aqui muito de perto MARCHISANO, L’Interpretazione, 66-68.

[75] S. JOSÉ O HIMNÓGRAFO, Mariale, IV: Ex Canone feriae II ad Matutinum (PG 105, 1308 A). Ver também Ad Hymnum Acathiston, ode 6: «Ó causa da alegria, transforma pela graça o nosso espírito (χαρίτωσον ἡμῶν τὸν λογισμόν), para que nós posamos gritar-te: Alegra-te, sarça que não se consome, nuvem toda luminosa…» (PG 105, 1024 A).

[76] Ibid,: Ex Canone feriae VI ad Matutinum (PG 105, 1313 C).

[77] Idib.: Ex Canone in S. Fortunatum martyrem (PG 105, 1132 C).

[78] Eis dois textos essenciais: «Παναγία Παρθένε, κεχαριτωμένη» [N.T.: ó Virgem Maria, transformada pela graça] (PG 105, 1353 A); «… δοξάσωμεν τὴν παναγίαν κόρην τὴν κεχαριτωμένην» (PG 105, 1008 D).

[79] «Παρθένε μόνη ἀγνή κεχαριτωμένη» [N.T.: ó única virgem pura transformada pela graça] (PG 105, 1329 C); «χαιρέ σοι, κράζομεν ἀεί, εὐλογημένη καὶ κεχαριτωμένη» [N.T.: alegra-te, nós sempre te clamamos, ó bendita e transformada pela graça](PG 105, 1221 B); « μόνη ὐπερευλογημένη καὶ κεχαριτωμένη» [N.T.: ó única extremamente bendita e transformada pela graça] (PG 105, 1252 C).

[80] MARCHISANO, L’Interpretazione, 86.

[81] MARCHISANO, Diss, 131.

[82] Ver, no «Estudo filológico» as reacções de J. Fitzmyer e de Hortênsio da Spinetoli, e de um ponto de vista mais teológico, a de J. COPPENS, «La définibilité de l’Assomption», ETL 23. (1947) 16-17 (citada na p. 4, nota 14).

[83] S. AMBRÓSIO, Expositio Evangelii secundum Lucam, II, 9 (CSEL 32, 45-46; PL 15, 1636 B). Esta interpretação de Ambrósio é retomada quase à letra no comentário de Beda (CC 120, 31; PL 92, 316 D – 317 A); mas ver mais adiante nota 100.

[84] S. JERÓNIMO, Epist. 65, ad Principiam virginem sive explanatio psalmi 44, 9 (PL 22, 628).

                Este mesmo tipo de exegese encontra-se em QUODVULTDEUS, Sermo I de Symbolo, V, 11: «… eam Spiritus sanctus decundavit: … tunc repleta est gratia» [N.T.: o Espírito Santo fecundou-a: … então ficou repleta de graça] (PL 40, 643), em PEDRO CRISÓLOGO, De Annunt.: «Gratia plena, … in te tota gratiae pariter veniet plenitudo» [N.T.: ó cheia de graça, … a ti virá igualmente a plenitude da graça] (PL 52, 576 B; reminiscência de Jerónimo) e outros.

[85] PASCÁCIO RADBERTO, De partu Virginis, 1: «Ave, coelestis venerationis obsequium exhibet; cum autem dicit Gratia plena, ex integro iram expulsam ostendit, et restitutam gratiam declarat» [N.T.: O avé revela o obséquio da celeste veneração, porém, quando diz: ‘cheia de graça’, mostra de novo que a ira foi expulsa e declara que a graça foi restituída] (PL 120, 1372 AB). Mas ele teve sobretudo uma grande influência nos séculos seguintes (cf. n. 31) graças à sua homilia De Assumptione B. M. Virginis, porque ela foi transmitida sob o patrocínio de São Jerónimo (ela foi publicada entre as suas obras: Epist. IX, ad Paulam et Eustochium, PL 30, 126-147); cf. D.C. LAMBOT, «L’homélie du Pseudo-Jerôme sur l’Assumption et l?Évangile de la Nativité de Marie d’après une lettre inédite d’Hincmar», RevBén 46 (1934) 265-282. Eis uma passagem dela: «Plena siquidem gratia, plena Deo, plena virtutibus» [N.T.: Se na verdade ela é cheia da graça, então é cheia de Deus, cheia de virtudes] (143 B).

[86] Cf. MARCHISANO, L’interpretazione, 89.  Para a documentação, ver Diss., onde são citados estes diferentes autores.

[87] SÃO BERNARDO, Epist. 175: ad Canonicos lugdunenses, de Conceptione S. Mariae, 5 (PL 182, 334 C)

[88] Super missus est, hom. III, 3 (PL 183, 72 D).

[89] Vita Jesu Christi (ed. de Paris e Roma 1865) 20. Este texto é revelador da maneira como os comentadores medievais trabalhavam: na primeira frase, Ludolfo transcreve literalmente o comentário de Ambrósio (cf. supra); só a segunda frase (cujo início é sublinhado) parece ser nova. Na terceira, Ludolfo cita «Jerónimo (o Pseudo-Jerónimo, porque de facto, é Pascácio Radberto; cf. n. 27). Esta passagem de Ludolfo permite, no entanto, ver todo o progresso feito na interpretação de gratia plena, desde os tempos de Ambrósio.

[90] Notemos entretanto que, desde os tempos de Orígenes, os gregos chamavam já a Maria ἠ παναγία παρθένος [N.T.: a virgem santa]; mas nesta época não se lia ainda esta referência à santidade de Maria no particípio κεχαριτωμένη de Lc. 1,28.

[91] Cf. ainda as acertadas notas de JUGIE, L’Immaculée Conception, 47-48, acerca do emprego do perfeito no nosso epíteto: «κεχαριτωμένη é portanto o equivalente a ‘toda santa’ e sugere a ideia de que ela foi sempre santa». Se nos lembrarmos, com efeito, do que dissemos no nosso primeiro artigo sobre os diversos empregos de χαριτοῦν em grego, concordaremos com a explicação dada: «Se o Evangelho tivesse querido significar que Maria se tornou santa no momento da saudação angélica, o texto sagrado diria: χαριτουμένη (ver «Estudo Fonológico», o texto de Libânio). Se ele tivesse querido assinalar que ela tinha sido justificada anteriormente, num momento dado da sua vida, nós teríamos: χαριτωθεῖσα (como no texto de Gregório de Nissa citado). Em virtude do emprego de κεχαριτωμένη, é-nos permitido traduzir: Maria toda santa e ainda de qualquer modo: sempre santa». Observemos entretanto que o particípio não é equivalente a um simples adjectivo; ele mantém qualquer coisa do valor verbal. É o que nós procuramos fazer na nossa própria tradução, para melhor fazer sentir a acção transformante que indica o verbo em -οῦν: aqui a acção da graça (χάρις) em Maria.

                Notemos também o que disia Jugie um pouco antes; a graça de que Maria está cheia é uma «gratia gratum faciens: a graça que torna agradável a Deus» (l’Immaculé Conception, 47; cf. o que afirmava FITZMYER em sentido inverso, «Estudo Filológico»).

[92] Ver por exemplo Gen. 6,8; 18,3; 19,19; 30,17; Ex. 33,16.17; Est. 7,3; 8,5…

[93] M.-J. LAGRANGE, Évangile selon saint Luc (Paris 1921) 30; os itálicos são nossos.

[94] É chegado o momento de precisar melhor a concepção de εὑρες χάριν no v. 30, porque aqui reina uma grande confusão. Nós dizemos mais adiante que «de qualquer maneira» pode conceder-se à exegese protestante que aflore aqui o tema da predestinação. No entanto, isto não é totalmente exacto, como o mostra claramente uma nova confrontação com a passagem paralela de Ef. 1,4-6 (ver atrás): a predestinação como tal situa-se fora da história, em Deus (Rom. 8,29-30), «antes da criação do mundo» (Ef. 1,4), quando Deus determinou de antemão (προορίσας) o que nós seríamos para Ele (cf. 1,5): tudo isto é «anterior» à obra da salvação. Ao contrário, a acção salvífica de Deus tem lugar na história, no momento em que «ele nos transformou pela sua graça no Filho Bem-amado» (1,6). Assinalemos um facto significativo: a expressão lucana «encontrar graça diante de Deus» (Lc. 1,30) está ausente no hino dos Efésios, que é no entanto um dos textos clássicos sobre a predestinação! Logicamente, ela poderia no entanto ter aí lugar, mas unicamente depois do ἐχαρίτωσεν ἡμᾶς de 1,6, exactamente como em Lucas, εὗρες χάριν (v. 30) vem depois do κεχαριτωμένη do início (v. 28). Estamos a dizer que as palavras do anjo «tu encontraste graça diante de Deus» não descrevem a predestinação divina, mas uma consequência do κεχαριτωμένη que precede, e que era já, ele também, a execução histórica do desígnio de Deus. Este mesmo desígnio, a predestinação de Maria, é «anterior» a cada uma das três etapas de que fala o texto: ela situa-se no nível transcendente, em Deus. A bem dizer, Lucas não fala dela. O facto de Maria «ter encontrado graça junto de Deus» situa-se no plano de Deus. Na realidade, estas palavras descrevem uma etapa intermediária, transcendente, no próprio desenvolvimento do desígnio de Deus (é o segundo momento), entre os dois momentos históricos que enquadram: a transformação de Maria pela graça (v. 28) e a sua concepção virginal (vv. 31-35).

[95] Assim, por exemplo, para a missão confiada a Moisés (Ex. 3, 12; 33,12.13.17), a Josué (Jos. 1,9), a Gedeão (juz. 1,9), a Jeremias (Jer. 1,8.19; 15,20). Para tudo isto, damos os mais amplos desenvolvimentos na nossa outra obra: Marie dans le mystère de l’Alliance, no prelo. [N.T.: Ignace de la Potterie, Marie dans le mystère de l’Alliance, (coll. Jésus et Jesus Christ, 34), Paris Desclée, 1988].

[96] Para esta tradução, ver o artigo de É. DELEBEQUE, «Sur la salutation de Gabriel à Marie (Lc. 1,28)», Biblica 65 (1984) 352-355.

[97] Esta tradução da TOB e do lecionário francês parece-nos inteiramente justificada; cf. os nossos dois artigos: «L’Annuncio a Maria (Lc. 1,26-38)», PSV 6 (1982) 55-73; «La vergine Maria», PSV 12 (1985) 95-114,

[98] Ver as páginas admiráveis de R. GUARDINI, La Mère du Seigneur (Paris 1961) 29-42; sobretudo estas duas frases: «Nada deixa supor que Maria tenha tido, antes da mensagem do Anjo, um propósito deliberado de ficar virgem» (p. 35); ela não tinha portanto excluído um casamento no sentido completo da palavra; «no entanto (…), a mais profunda orientação da sua vida contradizia isso» (p. 36).

[99] S. th., III, 28,6: «eam (virginitatem) in desiderium (habuit)» [N.T.: tinha a virgindade em desejo]. Ver também M.-J. LAGRANGE, L’Évangile de Jésus-Christ (Paris 1928) 18: «Maria quis dizer que, sendo virgem, como o anjo o sabia, ela desejava permanecer assim»; mas ele acrescenta: «… ou, como traduziram os teólogos [?], que ela tinha feito voto de virgindade e fazia conta de o guardar». Um pouco mais adiante, ele volta à sua primeira fórmula, que é a melhor: «”Eu não conheço”, no seu pensamento, é: “Eu desejo não conhecer”. Ela não diz: “Eu não conhecerei jamais”, para não contrariar os desígnios de Deus; ela aguarda o resultado desta abertura».

[100] Na recensão defeituosa da Glossa ordinaria que se lê em Migne (PL 114, 246 C), as palavras «gratia plena» não recebem nenhum comentário; o que nós vamos citar encontra-se na melhor edição da Glossa: Biblia sacra cum glossa ordinária…, T. V (Antuérpia, 1617) 682. O texto é aí precedido de um nome citado em abreviatura: Gr., o que significa sem dúvida Gregório Magno; mas nós não chegamos a encontrar este comentário nas suas obras. Na realidade, constatamos que o texto da Glossa é a fusão de duas passagens dos comentários de Beda: os dois primeiros membros (até «… perfrui») provêm de uma homilia sobre Lc. 1,26-28 (Hom., 1,3; CCL 122, 16), o terceiro és um resumo do que ele diz no seu comentário de Lucas (In Lc. 1,28: CCL 120, 31). O arranjo dos dois na Glossa foi feito com muita habilidade.

[101] Se nos referirmos ao próprio texto da homilia de Beda, donde este texto é retirado (através de ligeiras adaptações), esta referência ao voto torna-se evidente; Beda fala ainda mais claramente deste propósito de virgindade a propósito de Lc. 1,34 («disposui» [N.T.: decidi], Hom. 1,3: CCL 122,17; «propositum… decrevisse» [N.T. fez o propósito], In Lc. 1,34: CCL 120, 33); mas é significativo que ele tenha já descoberto este tema no gratia plena de 1,28. Beda viu bem que os dois textos (1,28 e 1,34) são paralelos; nós também o dissemos; mas nós preferimos falar de um desejo de virgindade para explicar 1,34, e é neste «desejo», cremos nós, que se exprimia concretamente o facto de que Maria tinha sido «transformada pela graça» (1,28).

[102] Ver ainda os hinos cristãos citados no «Estudo filológico», n. 52, e o de São José o Himnógrafo (acima n. 75). Mas a mesma ligação entre κεχαριτωμένη e παρθένε é ainda mais antiga; encontramo-la já numa homilia marial, escrita depois da controvérsia nestoriana, posterior ao Concílio de Éfeso, por TEODOTO DE ANCIRA († antes de 446), In Sanctam Mariam Dei Genitricem, 12: «Alegra-te, virgem transformada pela graça (χαῖρε… παρθένε κεχαριτωμένη), mãe entre as virgens e virgem entre as mães, imagem de umas e outras e superando umas e outras pela maneira de agir» (PO 19, 331, 29-32); cf. também o nº 11: θεοχαρίτωτο παρθένος (329,20).

                Pode mesmo dizer-se que a ligação dos dois termos estava já sugerido no próprio Lucas. Na introdução do relato (1,27), o evangelista emprega por duas vezes o substantivo «virgem» para designar Maria. Ora, é a esta «virgem», παρθένος, que o anjo diz imediatamente: χαῖρε κεχαριτωμένη (1,28). E uma vez que, seguindo a interpretação de É Delebecque para este versículo (cf. acima), a saudação do anjo à virgem significa: «Alegra-te de seres transformada pela graça», o contexto imediato sugere que «transformada pela graça» refere-se à situação que acaba de ser descrita, a saber: que Maria era «virgem»; por outras palavras, παρθένος (v. 27 bis) e κεχαριτωμένη (v. 28), que estão aqui ligados, parecem ter já em Lucas uma correlação directa: se Maria era «virgem», é precisamente porque ela tinha já sido «transformada pela graça». É a fórmula de Teodoto de Ancira: παρθένε κεχαριτωμένη, retomada nos hinos posteriores da tradição bizantina.

[103] GUARDINI, La Mère du Seigneur, 36-37.

[104] Esta tradução seria possível num texto não cristão, mas não no NT. Aprecie-se acerca deste ponto a posição preciosíssima do dicionário Bailly: ele dá como segundo sentido de χαριτόω: «tornar gracioso», mas cita unicamente como exemplos dois textos profanos (o do sofista Libânio e do retórico Nicéforo: ver no nosso primeiro artigo as notas 29 e 30); mas para o primeiro sentido do verbo, ele só indica os três textos bíblicos e traduz: «encher da graça divina» ou «ser cheio da graça divina». Aqui Bailly não emprega «gracioso»: ele viu bem que se trata da «graça»; e especifica: «divina» (mas isto não impede de maneira nenhuma que seja o homem a ser cheio dela). L. Cerfaux também sublinhava com razão que, na língua sagrada, χαριτόω «contém naturalmente qualquer coisa do valor próprio de χάρις» («Gratia plena, 36).

[105] O que mostra bem que estes três momentos sucessivos são apenas a realização de um desígnio único, o desígnio de Deus; dito de outra forma, a manifestação histórica da sua benevolência, do seu favor para connosco; mas este desígnio transcendente não está descrito no texto; Lucas fala apenas da sua execução temporal, neste momento central do desenvolvimento da história da salvação.

[106] É preciso reconhecer que o carácter paradoxal desta interpretação não podia parecer tão nitidamente para os que, como Ambrósio e Jerónimo, se baseavam no texto latino, porque «gratia plena» é estático e não implica nenhuma referência nem ao passado nem à acção e Deus. No entanto, mantinha-se nesta exegese uma real dificuldade: ver no «gratia plena» uma referência ao futuro («concipies … paries» [N.T.: conceberás … darás à luz]) não é possível senão á custa de uma audaciosa antecipação, que é difícil de legitimar.

[107] Eis um exemplo muito recente desta interpretação. Na sua recensão do livro de B. GHERARDINI, Lutero-Maria: pro o contro? (Pisa 1985), publicada no Protestantesimo 41 (1986) 156-162 (cf. 160), E. Campi remete para a sua própria obra aparecida no ano passado, cujo tema é paralelo ao de Gherardini, como o mostra o subtítulo: Zwingli e la Vergine Maria (Torino 1986) 74; ele apresenta uma interpretação de κεχαριτωμένη de Zwingle que se opõe à de Gherardini: a palavra do anjo, diz ele, não deve compreender-se no sentido de que «Maria era cheia de graça própria» (quem o pretendeu alguma vez?), mas que «toda a graça de que era enriquecida e cheia, provinha de Deus» (todo o fiel estará de acordo: a «graça» não pode provir senão de Deus). Mas ele conclui de uma maneira estranha: ser «cheia de graça», para Maria, significa portanto simplesmente: «ser sumamente amada por Deus» (era já a exegese indefensável de Flacius Illyricus, cf. o Estudo filoógico, nota 25), «ser escolhida entre todas as mulheres. É que graça é só a benevolência de Deus» (sublinhado nosso).

                Cá está: eis de novo o tema da eleição; mas eis, por outro lado, o famoso «sola» da Reforma. Nós perguntamos simplesmente: porque é que a «benevolência de Deus», porque é que a graça (que certamente «vem de Deus») não poderia também produzir um efeito de transformação em Maria? Será que a graça não opera em nós a redenção e a salvação? Vejamos o paralelismo de Ef. 1,6: se a graça não muda nada no homem, como explicar ἐχαρίτωσεν ἡμᾶς [N.T.: Ele nos tornou agradáveis], segundo o qual deus nos concedeu «a remissão dos pecados» (v.7), a fim de nos tornar «santos e imaculados na sua presença» (v. 4)?

 

[108] Ver a nota precedente (fim do primeiro parágrafo).

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