CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA
SOBRE A REVELAÇÃO DIVINA
Paulo, Bispo,
Servo dos servos de Deus,
em união com os Padres do Santo Concílio
para perpétua memória
O título
O que nos esquemas aprovados pela Comissão preparatória tinha sido chamado de Defontibus revelationis, falando no plural das fontes, ficou a chamar-se De divina revelatione, desde o esquema preparado (22 de Abril de 1963) pela Comissão mista, composta pela Doutrinal e pelo Secretariado para a unidade. Assim não se percebia a questão vexata, sobre os número das fontes da divina revelação.
Se por fonte, entendemos o manancial primeiro de onde sai a água, a revelação brota, evidentemente, duma só fonte que é Deus. Deus, que nos falou muitas vezes e de muitas maneiras, quer nos Patriarcas do Antigo Testamento e nos Profetas, quer, nos últimos tempos, no seu Filho (Heb. 1,1). Também o Espírito, que é Deus, levou os Apóstolos a toda a verdade (Jn. 14,26; 16,12). Em qualquer destes casos a revelação é, manifestamente, divina e procede do único Deus.
Mas todos os modos como nos chegou a locução ou revelação divina, estão perfeitamente unificados entre si, formando uma só, compacta e homogênea revelação de Deus. Toda ela constitui a mensagem de Cristo, a sua “boa nova” e o seu Evangelho. A revelação de Jesus Cristo, que é divina, por ser de pessoa divina, não veio desvalorizar o revelado por Deus no Antigo Testamento, mas cumpri-lo e aperfeiçoá-lo. A revelação do Espírito Santo, também divina e anunciada por Cristo, completa a mensagem de Jesus, levando aos Apóstolos o conhecimento pleno da verdade revelada por Cristo e ao total desenvolvimento desta mensagem. E os Apóstolos transmitem a mensagem de Cristo, quer recebida da própria boca d’Ele, quer através da inspiração do Espírito Santo.
Até aqui pode falar-se duma só fonte da revelação divina, enquanto brota dum só Deus, e enquanto o conteúdo desta mensagem é totalmente divino e homogêneo, formando uma perfeita unidade plenamente harmônica.
Se passamos, agora, a perguntar quais os meios ou canais que nos transmitem esta mensagem, então teremos que responder que há vários. A Sagrada Escritura, que inspirada pelo Espírito Santo e sendo Deus seu autor, contém a palavra de Deus, escrita.
A Tradição, não escrita por Deus, mas sim, comunicada por Ele, tanto oralmente, por Cristo aos Apóstolos, tanto pelo Espírito Santo; são as sine scriptio tradiciones(D 783), que contém também a mensagem de Cristo e constituem a palavra de Deus transmitida ou falada (D 1792). Se à Escritura e Tradição chamamos fontes de revelação, entende-se que, então, falamos no sentido de correntes de água ou de canais, por onde nos chega a mensagem que brota da única fonte, Deus. Os Apóstolos, S. Paulo em concreto, diziam aos cristãos: “tende firmeza, irmãos, e mantei as Tradições (paradoseis) que aprendestes quer pelas nossas palavras quer pelas nossas cartas” (2Tes. 2,15). Eram dois modos de lhes transmitir a mensagem de Cristo e a sua revelação: a palavra, a pregação apostólica, a tradição não escrita; e a carta, o escrito, a escritura inspirada.
Mas a Escritura e a Tradição divino-apostólica são também fontes da revelação enquanto contém essa mesma revelação. São correntes dessa mesma água que brota do manancial. Não são meros canais ou transmissores, como podem sê-lo o Magistério da Igreja, o consentimento unânime dos Padres e dos teólogos e fiéis.
Mediante o Magistério da Igreja conhecemos a revelação divina; e, certamente, que este Magistério é para nós a norma próxima e imediata de conhecê-la. Mas o Magistério não constitui, ele mesmo, não faz, por si, a doutrina revelada; transmite-a, guarda-a, declara-a. Tão pouco o consentimento unânime dos Padres faz a verdade revelada; é apenas, um critério para conhecê-la. O mesmo se diga do consentimento dos teólogos e dos fiéis. Tanto estes consentimentos como o Magistério são meios para conhecermos o que Deus revelou. E neste sentido, podemos falar, e fala-se, de diferentes fontes da doutrina revelada que são o Magistério e o consentimento dos Padres, teólogos e fiéis. São fontes da doutrina teológica, porque são meios para argumentar e raciocinar em teologia.
A Escritura e a Tradição não são só meios para conhecer a doutrina revelada. São-no, sem dúvida. Mas, além disso, constituem eles mesmos essa doutrina revelada; contém-na e transmitem-na, certamente; mas além disso são lugares teológicos, ou fontes teológicas“constituintes”.
Daqui que não seja infrequente falar da Escritura e Tradição como das fontes da doutrina revelada. Os autores de Teologia usaram e usam esta expressão no tratado De fontibus revelationis (v. gr. Hurter, Van Noort, Felder, Specht, Zubizarreta, Tanquerey…).
O mesmo se diga dos documentos eclesiásticos como a encíclica Humani generis de Pio XII[1].
É, portanto, um modo legítimo de falar. Mas será mais ou menos oportuna. E muitos duvidaram, da sua oportunidade; tratando de explicar-se a doutrina católica num ambiente ecumênico. Por isso mudou-se o título de modo que não pressupusesse a unicidade ou a pluralidade de fontes. Mais adiante (n.9), ao explicar a relação mútua entre a Escritura e Tradição, teremos que voltar a este ponto, que agora apenas nos interessou por causa do título – no singular – da Constituição De divina revelatione.
Encabeçamento
Acerca dos que anunciam a Constituição poderíamos observar o mesmo que já notamos noutros comentários a documentos conciliares[2]. Quem anuncia esta Constituição não é somente o Papa, mas o Papa, juntamente com os Padres conciliares: “Paulo, Bispo, servo dos servos de Deus, em união com os Padres do Sagrado Concílio, para perpétua memória.”. Já recordamos noutras ocasiões que quando se celebrou o Concílio Vaticano I, quem anunciava e promulgava as Constituições aprovadas era o Papa Pio IX “com aprovação do Sagrado Concílio”[3]; no Vaticano II, o anúncio da Constituição aprovada, é feito diretamente, por todo o Concílio: conjuntamente pelo Papa e Padres conciliares. Todos formam o Concílio ecumênico.
Do mesmo modo, na fórmula final de aprovação: “todas e cada uma destas coisas que se dizem nesta Constituição dogmática, agradam aos Padres do Sagrado Concílio. Nós (o Papa) em virtude do poder apostólico que nos foi conferido por Cristo, em união com os veneráveis Padres aprovamos no Espírito Santo estas coisas, as decretamos e determinamos e mandamos que estas coisas, estabelecidas conciliarmente, sejam promulgadas para a maior glória de Deus”[4]. Seguem as assinaturas do Cardeais, Patriarcas, Arcebispos primazes, etc.[5].
Também podemos observar, como fizemos nas ocasiões já ditas, esta mudança no modo de anunciar e promulgar a Constituição. Parece responder à consciência mais expressa da colegialidadeque imperou no Concílio. O mesmo poder pleno e supremo que se encontra pessoalmente no Papa, está no Concílio, colegialmente.
PROÊMIO (n.1)
Finalidade que se propõe o Concílio
1. Este sagrado Concílio, ouvindo religiosamente e proclamando com desassombro a Palavra de Deus, obedece ao dito de S. João: “Nós vos anunciamos a vida eterna, que estava junto do pai e nos apareceu: anunciamo-vos o que vimos e ouvimos, para que também vós estejais em comunhão conosco, e a nossa comunhão seja com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo” (1 Jo. 1, 2-3). Por isso, seguindo os Concílios Tridentino e Vaticano I, entende propor a genuína doutrina sobre a revelação divina e a sua transmissão, para que, ouvindo o anuncio da salvação, o mundo inteiro acredite, acreditando espere, esperando ame[6].
As palavras de S. João (I Jo. 1, 2-3), que aparecem no princípio da Constituição, são palavras que o Concílio, como uma expressão muito comedida e matizada, segue, obedece (obsequitur)[7], não diz que faz suas, uma vez que são palavras próprias de Apóstolos e testemunhos imediatos[8]. São palavras de íntimo sabor kerygmático, que o Concílio, “escuta religiosamente”, e “proclama confiadamente”. Porque S. João, nesta sua primeira carta, anuncia, o que o próprio do kerygma[9], e anuncia, em forma concreta, o concreto e sensível que viu e ouviu, ou seja, a Jesus Cristo Nosso Senhor; “o que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e tocamos com nossas mãos, o Verbo da Vida…” (1Jo 1,1). Chama-lhe a “vida eterna que estava no Pai e se nos manifestou” (v.2). E a finalidade desta manifestação e anúncio, em João e no Concílio, é que todos comunguem conosco, que é uma comunhão com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo (v.3). A finalidade destas palavras não parece ser outra senão pôr em relevo o caráter de mensagem e mensagem de vida eterna e de comunhão com Deus Pai e com Jesus Cristo, que há na revelação divina, e de que se falará nesta Constituição.
O Concílio propõe-se a dar-nos a doutrina autêntica sobre a revelação divina e sobre a maneira como nos é transmitida. Evidentemente que não inventará esta doutrina, mas seguirá os rastos dos Concílios Tridentino e Vaticano I[10].
As palavras de S. Agostinho com que termina este proêmio, referem-se à finalidade teologal que o Doutor de Hipona, quer ver na catequese cristã: com a pregação da mensagem vem a fé; com a fé o desejo e a esperança; com a esperança o amor[11]. Essa mesma finalidade, certamente muito ampla, eminentemente pastoral[12], é a que o Concílio assinala a esta Constituição, que, por outro lado, pode também olhar-se como introdução a todos os documentos e mensagens conciliares, uma vez que se baseiam na revelação divina[13].
As palavras iniciais deste proêmio “Dei verbum religiose audiens et fidenter proclamans”, correspondem ao desejo de, desde o início, caracterizar este documento. A Comissão introduziu-as, ao examinar os “modos” da última hora, antepondo-as às que já existiam e continuaram (“sacrossanta synodus”); facilmente se reconheceu que estas últimas não eram aptas para distinguir esta Constituição das demais[14].
Na expressão “Dei verbum… fidenter proclamans” reconhece-se facilmente a reminiscência dos Atos dos Apóstolos 4, 31: “loquebantur verbum Dei cum fiducia”(falavam a palavra de Deus com confiança)[15].
[1] Verum quoque est, theologis semper redeundum esse ad divinae revelationis fontes: eorum enim est indicare qua ratione ea quae a vivo Magisterio docentur, in Sacris Litteris et in divina « traditione », « sive explicite, sive implicite inveniantur » AAS 42 (1950) 568; DENSINGER, Ench. Symbolorum(D) 2314. Cf. D 2313.
[2] Constituição litúrgica do Vaticano II. Texto e Comentário teológico e pastoral, Madrid 1965. Pp. 19-20; A Igreja do Concílio Vaticano II. Comentário à Constituição dogmática “Lumen Gentium”,Bilbau 1966, pp. 45-46.
[3] Na Constitutio De Ecclesia usava-se a seguinte fórmula: Pius episcopus, servus servorum Dei, sacro approbante concilio ad perpetuam rei memoriam.” MANSI, SS. Concil. 52, 1330.
[4] AAS 58 (1966) 830.
[5] Ibid., pp. 830-835. Todo o texto oficial da Constituição está em AAS 58 (1966) 817-836; foi o que seguimos confrontando também as notas da edição típica.
[6] Cf. S. AGOSTINHO, De catechizandis rudibus, 4, 8; PL 40, 316.
[7] O verbo obsequor tem os matizes de secundar, concordar, obedecer.
[8] A Comissão recusou expressamente esta interpretação de fazer suas, uma vez que alguns pensavam que o Concílio não podia utilizar como próprias essas palavras de S. João, que valem, unicamente, para os Apóstolos e testemunhos imediatos de Cristo. De propósito tinha-se dito obsequitur. Cf. Schema de divina Revelatione, c. I-VI (entregado depois de 26 de Outubro de 1964), Relatio nº 1, A, p. 8; Schema Constitutionis dogmaticae de divina revelatione. Modi a patribus Conciliaribus propositi, a Commissione doctrinali examinati, Typispolyglottis Vaticano, 1965, Proemium n.1, p3. Designamos este fascículo com a denominação de Modie o anterior com a abreviatura Schema c. I-VI, (Oct. 1964).
[9] Kerysso, proclamar, anunciar, pregar…
[10] A adição do Tridentino é da última hora, ao admitir-se pela Comissão um dos “modos” propostos. Cf. Modiproem. n.2, p.4.
[11] De catechizandis rudibus, 4,8: MIGNE, Patrologia Latina (ML) 40, 316.
[12] Para indicar este fim pastoral utilizaram-se as palavras de S. Agostinho com que termina o Proêmio. Cf. Schema Constitutionis de divina Revelatione (3 de Julho de 1964), Typispolyglottis aticanis 1964, Relatio n.1, C, p. 10. Este fascículo designá-lo-emos com a abreviatura Schema (iulii 1964).
[13] Cf. Schema de divina revelatione c. I-VI (Oct. 1964), Relatio n.1, A. p. 8.
[14] Cf. Modi proem. N.1, p.3. A Constituição da Sagrada Liturgia começa com palavras parecidas: Sacrosanctum Concilium.
[15] A este lugar de Act. 4, 31, alude a relação do Cardeal Florit ao apresentar a “expensio modorum” sobre este n.1: Modi, p. 71, n.1.
FONTE
NICOLAU, Miguel. Escritura e Revelação segundo o Concílio Vaticano II, texto e comentário da Constituição Dogmática “Dei Verbum”, Livraria Apostolado da Imprensa, ano. 1968, pp. XX-XX.
PARA CITAR
NICOLAU, Pe. Miguel. Título e começo da Constituição Dei Verbum. Disponível em <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/concilio-vaticano-ii/revelacao/846-titulo-e-comeco-da-constituicao-dei-verbum>. Desde 21/01/2016.