Autor: Pe. Bernard Lucien
Tradução: Witor Lira
PREFÁCIO DOS EDITORES DA SEDES SAPIENTIÆ
A questão da liberdade religiosa no Concílio Vaticano II e sua situação em relação aos ensinamentos anteriores do magistério fizeram fluir, em todos os setores da Igreja, uma grande quantidade de tinta. Um fato interessante a ser observado, para os autores do chamado movimento “tradicionalista”, é o seguinte. Quatro teólogos dessa família de pensamento abordaram sucessivamente o estudo desse tema do ponto de vista de que o Vaticano II apresentava uma contradição formal com a magistério anterior da Igreja. Após estudos aprofundados e por diferentes caminhos — que às vezes se chocam — eles finalmente chegaram à conclusão de que, apesar das significativas deficiências da declaração Dignitatis Humanæ , documento que expõe a doutrina da liberdade religiosa no Concílio, tal contradição não existia. Eles são o reverendo Brian Harrison ) [1], os editores de Sedes Sapientiæ[2], Pe. Basile Valuet [3] e Padre Bernard Lucien.
Escrevemos de nossa parte, juntando alguns pontos de vista do Padre Victor-Alain Berto: “Nós podemos definitivamente dizer que a declaração é fraca, equívoca, perigosa, mas não errônea em seu ensino principal [4]. Fraca em suas considerações: algumas são muito condicionadas pelo contexto histórico e cultural e por uma visão pouco realista, esquecida das condições e dos exemplos concretos do exercício da liberdade enfraquecida pelo pecado, bem como da perversidade de certas forças diante das quais os fracos estão indefesos. Equívoca em várias de suas expressões: a tal ponto que, apesar das explicações do Relator, é invocada para justificar a emancipação dos teólogos em relação ao magistério. Perigosa sobretudo porque seus silêncios a abrem para a interpretação indiferentista. Mas, na sua afirmação central (…) Dignitatis humanæ não contraria o magistério anterior e ainda apresenta um desenvolvimento homogêneo da doutrina na ordem social” [5]
E nós exigimos uma “batalha teológica” a ser travada pela correta interpretação do ensino central e a correção das deficiências da Dignitatis humanae. Os debates sobre a tradição da Igreja e os danos do secularismo na sociedade confirmam a importância dessa empreitada lançada há dezoito anos. Após o discurso do Santo Padre em 22 de dezembro de 2005, Pe. Bernard Lucien reabre este arquivo ainda em chamas, definindo sua posição.
INTRODUÇÃO-ABBÉ BERNARD LUCIEN
O agora famoso discurso de Sua Santidade o Papa Bento XVI à Cúria Romana em 22 dezembro de 2005 [6] convida todos os fiéis a acolherem o Concílio Vaticano II não segundo uma hermenêutica de ruptura e descontinuidade com o ensinamento magisterial anterior, mas em um espírito de continuidade e harmonia, aberto aos desenvolvimentos e as reformas legítimas. Quem estudou cuidadosamente os textos do último concílio ecumênico está ciente de que se muitas passagens podem deixar espaço para interpretações de ruptura, apenas uma parece verdadeiramente, em seu sentido mais óbvio, irredutível à doutrina anterior: é a definição do direito à liberdade religiosa formulada no centro do n° 2 da declaração Dignitatis humanae.
De nossa parte, pensávamos ter estabelecido precisamente a realidade dessa aparente contradição em um trabalho publicado em 1990 [7], concretizando um trabalho iniciado há dez anos anteriormente. No entanto, pela graça de Deus, apareceu-nos, no final de dezembro de 1991, um elemento essencial não sublinhado pelos autores que abordaram o assunto e que invalidou a conclusão do nosso trabalho.
Em março de 1992, tornamos pública uma retratação relativa à conclusão de nosso livro sobre liberdade religiosa. Mas as circunstâncias da época não permitiram a transmissão deste desenvolvimento para além dos leitores de nosso trabalho que nos eram pessoalmente conhecidos. A situação eclesial criada pelo discurso do Santo Padre nos anima a responder ao pedido de Sedes Sapientiæ e assim divulgar mais amplamente, através desta revista, uma apresentação que contribui com os esforços atuais para retornar à plena clareza doutrinária sobre os assuntos escurecidos nas últimas décadas [8].
A APARENTE CONTRADIÇÃO E AS SOLUÇÕES INSATISFATÓRIAS
A aparente contradição entre a declaração do Vaticano II e a doutrina anterior consiste nisto: segundo o Vaticano II, o homem tem por natureza o direito de agir livremente (isto é, sem sofrer constrangimento por parte dos homens) no campo religioso, enquanto Gregório XVI e Pio IX negaram a existência de tal direito natural [9]. As várias tentativas sérias [10] de eliminar esta contradição tornadas públicas no momento da escrita do nosso trabalho são examinadas neste. Em particular, mostramos a natureza insuficiente da tese do Padre Harrison, estendida pelo trabalho dos Padres de Blignières e Saint-Laumer.
Para a questão central que nos preocupa, essa tese a [a dos padres antes citados, Harrison e cia] acredita que pode remover a contradição fundando-se essencialmente na menção aos “justos limites” no texto de Dignitatis humanæ. Mostramos que, conforme o alcance que tem no próprio texto do Vaticano II, esta menção restritiva não elimina, a nosso ver, a oposição à doutrina anterior.
Este aspecto do nosso trabalho parece-nos manter toda a sua atualidade. Com efeito, o caminho aberto pelo Padre Harrison parece ter sido recebido por vários autores que desde então escreveram, às vezes com uma notável erudição digna de admiração [11] (na nota de rodapé, Padre Lucien se refere também ao Pe Basile Valuet. No entanto, em nossa opinião, quando seguimos esse caminho para tentar solucionar a aparente contradição, somos levados a minimizar a doutrina católica definida no século XIX, século de acordo com a prática e o ensino de séculos anteriores. E os autores que minimizam esta doutrina anterior não respeitam realmente o significado dos “justos limites” como é encontrado no texto de Dignitatis humanæ.
Mantemos, portanto, neste ponto — que está no cerne do nosso trabalho — os argumentos apresentados e as conclusões resultantes.
2. O PRINCÍPIO DA RESOLUÇÃO
Ao nosso ver, a diferença essencial entre o direito afirmado por Dignitatis humanæ personæ e aquele condenado por Gregório XVI e Pio IX consiste nisso:
• Dignitatis humanæ personæ afirma o direito natural à liberdade [externa] de agir, em matéria religiosa, SEGUNDO A SUA CONSCIÊNCIA;
• Os dois papas citados negam a existência de um direito natural à liberdade externa de agir, em assuntos religiosos, COMO SE QUER[12].
Mas é bem possível, e infelizmente muito comum, que um homem aja como quer, sem agir de acordo com sua consciência. Muitas vezes, de fato, o pecador age contra sua consciência, embora em outros casos ele aja de acordo com sua consciência culposa e equívoca. Pode até acontecer que um homem, tendo se endurecido e se tornado indiferente tanto ao bem quanto ao mal, aja sem qualquer julgamento de consciência.
Além disso, em cada homem, o juízo de consciência é exercício pela razão prática que apreende primeiro os princípios gerais da ordem moral. Este conhecimento dos princípios universais é acessível a toda a inteligência humana. E essa acessibilidade objetiva também se aplica ao Fato da Revelação divina completada em Jesus Cristo, porque esta Revelação é acompanhada de sinais de credibilidade muito certos e adaptados à inteligência de todos os homens [13]. Claro, o conhecimento dos princípios gerais de moralidade e religião varia entre as pessoas, de acordo com as condições do meio social, educação, bem como em virtude de outros dados individuais. Mas essas várias condições que modularam o acesso ao conhecimento de princípios gerais e universais são por si observáveis de um ponto de vista externo.
E assim, pelo menos em parte e em alguns casos, é possível julgar cuidadosamente do lado de fora (supondo que se tenha uma razão legítima para fazê-lo) se uma pessoa age de acordo com sua consciência ou não [14].
Para aqueles que desejam se aprofundar nesse aspecto, recordamos às discussões clássicas em torno da noção de guerra justa [15]. Claramente, embora muitos teólogos a partir do século XVI tenham se esforçado por atenuar esta doutrina, os autores da Idade Média, São Tomás na liderança, alegavam que a culpa comprovada do adversário é uma das condições necessárias para a guerra justa. Isso mostra claramente que, para esses teólogos sensatamente realistas, nem sempre é impossível emitir um juízo legítimo sobre o estado de consciência dos outros: um juízo que certamente não possui a infalibilidade da ciência divina, mas que pode alcançar a certeza moral necessária para a ação humana em matéria grave.
Segue-se que o direito de agir como se deseja não apenas difere formalmente do direito de agir de acordo com sua consciência, mas concede concretamente muito mais — pelo menos sob certas condições da sociedade — em termos de liberdade de coerção [16].
Não há, portanto, contradição entre a condenação da primeira e a afirmação da segunda.
3. UM OLHAR SOBRE A PRÁTICA DA IGREJA
Entendida como acabamos de explicar, a afirmação central [17] da Dignitatis humanæ personæ não desafia essencialmente a prática da Igreja na cristandade.
A consciência, de fato, segundo a teologia católica [18], tem como função própria a aplicação de padrões gerais de moralidade a uma determinada ação a ser tomada pelo sujeito [19]. Então quando uma pessoa não leva em conta, em sua ação, dados morais gerais objetivos (naturais ou sobrenaturais) que estão efetivamente à sua disposição, a autoridade legítima pode legitimamente assumir que essa pessoa não está agindo de acordo com sua consciência.
No entanto, a religião católica possui fundamentos para a sua credibilidade “adaptados às inteligências” [20]; e, em clima de cristianismo, os dados desses fundamentos estão efetivamente ao alcance de todos. A Igreja podia, portanto, legitimamente presumir que aqueles que não levavam em conta esses dados em suas ações (sejam os hereges e equivalentes, ou, diferentemente, os infiéis que pretendiam espalhar seus erros em uma nação católica) não estavam agindo de acordo com a sua consciência [21].
Na situação atual do mundo, obviamente, não se pode mais presumir de maneira geral, a nível de um Estado, que a religião católica e os seus fundamentos de credibilidade são suficientemente apresentados aos homens, mesmo em um país de maioria “católica”. A atitude prática da Igreja, tendo em conta a lei enunciada pelo Vaticano II, é, portanto, normalmente modificada. Isto não nos impede de pensar que uma razão muito mais eficaz e fundamental em favor de uma ampla tolerância civil, no mundo de hoje, é extraída das exigências específicas do bem comum [22].
Esta referência à apresentação eficaz dos fundamentos da credibilidade, de forma verdadeiramente acessível às pessoas ou grupos em questão, já foi examinada no século XVI, em conexão com a descoberta recente da América. Eis a reflexão de Francisco de Vitória:
“Os índios não são obrigados a acreditar assim que ouvem a pregação da fé cristã, para que pecassem mortalmente contra a fé, pelo simples fato de que lhes é dito e assegurado que a religião cristã é a verdadeira (…). Ainda não está claro para mim que a fé cristã até agora foi suficientemente proposta e anunciada a eles, de modo que sejam obrigados a aceitá-la sob pena de pecado. Eles não seriam obrigados a crer, de fato, a menos que a fé cristã fosse proposta com provas dignas de persuadi-los. Mas eu não ouço que eles fizeram milagres, nem que lhes mostraram exemplos extraordinários de santidade. Pelo contrário, nós os temos concedido como espetáculo múltiplos escândalos, crimes horríveis e inúmeros atos de impiedade. Consequentemente, não me parece que a religião cristã lhes tenha sido pregada de maneira tão santa e proporcional que eles sejam obrigados a aderir a ela. E ainda muitos religiosos e muitos sacerdotes teriam bastado para a tarefa com sua vida, seu exemplo, seu apostolado, se não tivessem sido impedidos por homens que têm outras preocupações em suas mentes [23].”
4. DETALHES TÉCNICOS ADICIONAIS
PARA DOUTRINA CLÁSSICA
De acordo com o levantamento lexicográfico publicado em nosso trabalho [24], pode parecer que “liberdade de consciência” designava na época –nos referimos aos dois primeiros terços do século XIX — a liberdade de agir, em matéria religiosa, de acordo com a própria consciência. Alguns dos textos citados falam, de fato, sobre liberdade de consciência”, como opiniões religiosas em que “se acredita estar em conformidade com a verdade” [25].
Mas outros textos igualmente numerosos não mencionam nada assim [26]. Além disso, os textos da primeira categoria geralmente distinguem “liberdade de consciência” de “liberdade de culto”, e não mencionam agir “de acordo com o que se acredita ser verdade” para a segunda noção.
Desta situação emerge, portanto, que a referência à “crença de conformidade com a verdade” não é um elemento essencial e comumente aceito da descrição lexical da expressão “liberdade de consciência (e cultos)” na época considerada.
Acrescentemos que não devemos esquecer que sob a pena de muitos autores do século XIX a palavra “acreditar”, especialmente em tal contexto, podia assumir um significado puramente subjetivo ou mesmo emocional.
É, portanto, o exame dos arquivos sobre o contexto e a preparação das encíclicas, bem como o próprio texto destes arquivos que permitem assegurar que é efetivamente o direito à liberdade de “agir como se quer” que foi então visado. O levantamento lexicográfico fornece apenas uma boa presunção nesse sentido.
No que diz respeito a este contexto, apenas chamamos a atenção para o texto de Rozaven [27] para Mirari vos, e para a primeira das cinco proposições [28] para Quanta cura. O padre Rozaven foi um dos teólogos encarregados de apresentar suas proposições para a redação da encíclica. Em sua apresentação, lemos:
“Liberdade religiosa. Por estas palavras se entende a plena e completa liberdade de todas as religiões; e que no sentido mais amplo e ilimitado. (…) Em virtude desse suposto direito, qualquer governo teria a obrigação de permitir o livre exercício, não só de todas as seitas cristãs sem distinção, mas também do maometismo, paganismo, deísmo e qualquer outra religião que uma imaginação impura ou delirante poderia inventar; porque nenhum governo pode violar os direitos legítimos dos indivíduos”.
Quanto às “cinco proposições”, este é um elemento essencial da memória de Bilio, que foi o principal arquiteto da preparação final de Quanta cura. A primeira proposição a ser condenada afirmava:
“A chamada liberdade de culto ou de consciência em matéria de religião, para que todos sejam livres para seguirem qualquer religião, mesmo falsa, é um direito de todo homem, que não deve ser impedido nem pela Igreja nem pelo governo civil.”
PARA DIGNITATIS HUMANAE
Certas passagens da declaração conciliar parecem redigidas na perspectiva de um direito à liberdade de agir “como se quiser”, e não apenas “de acordo com a própria consciência”. O mais característico encontra-se no final do nº 2:
“Portanto, não é por uma disposição subjetiva da pessoa, mas por sua própria natureza, que se funda o direito à liberdade religiosa. É por isso que o direito a essa imunidade persiste mesmo naqueles que não cumprem com a obrigação de buscar a verdade e aderir a ela; (…)”
Apesar da impressão que uma leitura superficial pode deixar, a segunda frase não afirma o direito para agir como quiser. A imunidade em questão é o direito previamente definido, portanto o direito agir de acordo com sua consciência. A sentença afirma que quem não cumprir a obrigação indicada retém este direito: é verdade. Mas a frase não afirma (mesmo que pareça sugerir) que aquele que se comporta assim age sempre, e por assim dizer indiscutivelmente, de acordo com sua consciência. Tampouco diz que se deve necessariamente e sempre considerá-lo como “agindo de acordo com sua consciência.”
De fato, de acordo com a primeira das duas frases citadas, o objetivo da passagem é enfatizar o caráter objetivo da fundação do direito afirmado, independente, portanto, do esforço do indivíduo para adquirir uma consciência correta, e não com base nesse esforço possível. Este ponto permanece intacto na leitura que nós propusemos. Essa leitura, por sua vez, baseia-se não apenas no sentido literal da passagem, mas também na referência feita neste lugar, pelo texto conciliar, às afirmações de Leão XIII e Pio XII: o que garante que o Concílo fala neste lugar, de fato, num sentido tradicional, realista e objetivo de “agir de acordo com a própria consciência”.
Talvez algumas outras passagens também pareçam registrar ou pressupor o direito de agir “como se quer”. Recordamos então [29] que somente a lei como definida no n° 2 do art. Dignitatis humanæ personæ se apresenta tanto como objeto direto do ensino conciliar e como fundamentado na revelação. Só ela pode reivindicar a garantia absoluta de assistência divina. É ela — perfeitamente compatível com a doutrina já definida, como vimos — quem deve servir como padrão para interpretar as passagens contestadas, e não o contrário.
Tocamos aqui em um ponto essencial que certamente será cada vez mais bem trazido à luz em ocasião dos debates revividos pelo discurso de Bento XVI sobre a hermenêutica do Vaticano II.
A assistência divina (com seus vários graus) diz respeito especificamente ao magistério que exerce seu ato, e não as discussões anteriores em que os homens intervêm apenas com suas próprias habilidades humanas. É por isso que o contexto que dá sentido a um novo texto do magistério é mais formalmente constituído pelo conjunto de doutrinas já ensinadas autenticamente do que pelas orientações pessoais das partes interessadas no desenvolvimento de documentos. Isso obviamente não implica que o estudo dos documentos preparatórios, discussões e as várias etapas do documento final não serve para sua compreensão. Mas não é ela quem fornece a luz decisiva. Este desenvolvimento é ilustrado pelo próximo parágrafo.
5. OBSERVAÇÃO QUASE EXPERIMENTAL DA ASSISTÊNCIA DIVINA
O estudo anterior sugere uma observação. No século 19, muitos teólogos, e talvez mesmo Gregório XVI e Pio IX, consideraram que o homem não tem o direito (natural) de agir em assuntos religiosos, no foro externo e público, logo que ele esteja em erro (portanto, mesmo que ele aja realmente de acordo com sua consciência). Este julgamento teológico foi, além disso, temperado, para a prática, desenvolvendo a teoria da tolerância civil para o bem comum. Esses teólogos, esses papas, talvez, estivessem, portanto, prontos para condenar a afirmação de um direito natural de agir de acordo com as próprias consciências em assuntos religiosos. E, no entanto, é apenas a afirmação de um direito à liberdade agir como se deseja (em assuntos religiosos) que foi condenada.
Por outro lado, no Vaticano II, muitos padres foram certamente a favor da afirmação de um direito natural à liberdade de agir como quiser em assuntos religiosos. E foi provavelmente o caso dos autores do texto. No entanto, é apenas o direito natural à liberdade de agir de acordo com suas próprias consciências (em assuntos religiosos) que foi oficialmente proclamado pela declaração.
Podemos assim dizer que, em ambos os casos, o que foi ensinado oficialmente difere das ideias dos homens que mais contribuíram para a elaboração dos textos. Talvez até, especialmente no segundo caso, alguns desses homens não perceberam a distância entre a afirmação do texto promulgado e suas ideias. Esta observação é, aliás, uma chave indispensável para a hermenêutica da continuidade.
Parece, pois, legítimo ver na sequência destes dois episódios uma manifestação palpável de assistência divina ao Magistério infalível da Igreja.
6. O QUE IMPORTA?
Muitos não percebem claramente o motivo da importância atribuída desde a origem da atual crise da Igreja (período do Concílio Vaticano II) a esta questão da “liberdade religiosa”. Com efeito, todos concordam em admitir que, de fato, hoje, as sociedades devem permitir a liberdade civil a várias religiões (“dentro dos justos limites”). De qualquer forma, foi sob os auspícios do bem comum e da tolerância, a posição do projeto tradicional inicialmente planejado para o Vaticano II e apresentado pelo Cardeal Ottaviani.
A extrema importância do debate, portanto, não diz respeito às aplicações práticas. Vem do compromisso absoluto do Magistério da Igreja com um dos princípios fundamentais tocado nessa questão. É, portanto, por ocasião de um problema particular de moral política fundamental, a questão da infalibilidade do magistério que está profundamente em jogo.
Este ponto é muitas vezes deixado no escuro. De fato, os modernos, como sabemos, são ultra minimalistas em matéria de infalibilidade e, portanto, se abstêm de invocar essa garantia divina mesmo para ao qual estão ligados. E muitos tradicionalistas não encontraram outra maneira, para justificar a luta travada em face dos desvios modernos, do que excluir completamente qualquer infalibilidade no Vaticano II. Assim, as duas tendências concordaram tacitamente, e a única questão crucial geralmente é deixada no ralo.
Procuremos, portanto, ser precisos, ainda que de forma muito resumida. O princípio fundamental envolvido é o do “direito natural da pessoa à liberdade civil em matéria religiosa”. Nós vimos como o Vaticano II não afirma exatamente o que Gregório XVI e Pio IX condenaram (cf. supra nº 2). Vamos mostrar aqui sucintamente que a posição assumida por Gregório XVI e Pio IX, por um lado, e a do Vaticano II, por outro, gozam do direito de infalibilidade.
Gregório XVI [30] condena o princípio como uma “máxima absurda e errônea”, “delírio”, “erro pernicioso”: todas as notas que indicam claramente a natureza absoluta da condenação. Além disso, em seu escrito de 5 de outubro de 1833 ao bispo de Rennes [31], Gregório XVI afirma que não impõe nada mais (por Mirari vos) senão “o que foi estabelecido pela tradição dos Apóstolos e Padres”: o que significa que Lamennais (foi ele quem estava em causa neste escrito) deve seguir a doutrina exposta “única e absolutamente”. Finalmente, na encíclica Singulari nos de 24 de junho 1834 Gregório XVI fala expressamente da “doutrina católica que definimos na encíclica já citada [32]” em particular “sobre a plena liberdade de consciência que deve ser condenada” [33].
Pio IX, por sua vez, reafirma a condenação de Gregório XVI [34] e qualifica assim o princípio condenado: “uma opinião errônea, não poderia ser mais fatal para a Igreja Católica e para a salvação das almas, e que nosso predecessor (…) chamou de delírio”. Além disso, no parágrafo 14 de sua encíclica, Pio IX afirma, em nome de seu ofício apostólico, para todos os católicos, o julgamento absoluto:
“Em meio, portanto, de tal perversidade de opiniões corruptas, Lembrando Nosso encargo Apostólico, em nossa mais viva solicitude pela nossa santíssima religião, pela sã doutrina, e para a salvação das almas que nos foram confiadas por Deus, e para o bem da própria sociedade humana, achamos conveniente levantar novamente Nossa Voz Apostólica. Consequentemente, toda e qualquer das opiniões e doutrinas dementes evocadas em detalhes nestas Cartas, nós as reprovamos, proscrevemos e condenamos com Nossa Autoridade Apostólica; e nós vamos e ordenamos que todos os filhos da Igreja Católica as considerem absolutamente réprobas, proscritas e condenadas.”
Temos assim um compromisso absoluto e reiterado do magistério pontifício, por princípio moral fundamental, apresentado absolutamente a toda a Igreja, em nome do ofício apostólico em conformidade com a Tradição Apostólica. A condenação, portanto, constitui claramente um ponto necessariamente ligado à Revelação e que deve ser considerada por todos como definitiva (cf. cânon 750 § 2, com os detalhes fornecidos pela carta apostólica Ad tuendam fidem), porque é garantida pela infalibilidade do magistério divinamente assistido [35].
Passemos à proposta do Vaticano II sobre o direito à liberdade religiosa [36]. Em primeiro lugar, esta afirmação vem do magistério universal, constituído por todos os bispos com o papa: este “sujeito” é apto para propor infalivelmente a doutrina.
Então, a proposição sobre o direito à liberdade religiosa é, sem dúvida, um ponto (talvez seja o único nesse este documento) diretamente visado. Não se trata apenas de explicações, deduções, de ilustrações, mas do que o magistério ensina primordialmente e por si mesmo. Esta afirmação se beneficia, portanto, da assistência divina que conduz, por parte dos fiéis à adesão interna. Mas, como sabemos, tal adesão interna só pode ser provável, relativa, não definitiva.
Mas, neste caso, há algo mais. Com efeito, o texto não se contenta em simplesmente afirmar a existência da lei. O texto (o concílio, o magistério universal) “declara ainda que o direito à liberdade religiosa tem seu fundamento na própria dignidade da pessoa humana como dão a conhecer a Palavra de Deus e a própria razão”. O magistério universal apresenta assim explicitamente sua afirmação como necessariamente ligada (“fundado em”) à revelação. Isto é porque, embora esta passagem não contenha nenhuma fórmula particular que nos permita falar de “julgamento solene”, de “definição segundo o modo extraordinário”, cabe, no entanto, que é apresentado pelo magistério ordinário e universal como definitivo, como necessariamente ligada à revelação. Esta afirmação é, portanto, infalivelmente garantida pela assistência Divina.
Muitos autores tradicionalistas têm, é verdade, contestado que o Vaticano II alguma vez tenha empreendido a infalibilidade. Eles primeiro alegaram que o Vaticano II não era infalível porque era pastoral. Há claramente uma confusão aqui entre o ponto de vista da finalidade (o objetivo do Concílio era expressamente pastoral, de fato) com a da causa formal (o concílio, como pastoral, pode muito bem ter doutrinas infalivelmente afirmadas reveladas ou relacionadas à revelação). Todo católico sabe bem que não há nada mais importante para a pastoral do que a verdade doutrinal e mesmo a dogmática, apresentada com espírito de caridade.
O argumento às vezes se apresenta de forma diferente. Roma, diz-se, acrescentou oficialmente uma “cláusula de não infalibilidade” no Concílio Vaticano II. Para sustentar esta tese, seus autores apelam ao discurso de Paulo VI de 12 de janeiro de 1966: “Dado seu caráter pastoral, o Concílio evitou pronunciar dogmas dotados da nota de infalibilidade. Mas a citação autêntica de Paulo VI é esta:
“Dado o caráter pastoral do Concílio, ele evitou pronunciar de forma extraordinária dogmas com a marca da infalibilidade, mas ele dotou seus ensinamentos com a autoridade do magistério supremo ordinário; este magistério ordinário e manifestamente autêntico deve ser recebido com docilidade e sinceramente por todos os fiéis, de acordo com o espírito do concílio sobre a natureza e os objetivos de cada documentos [37]”.
É, portanto, bastante claro que o que o Concílio “evitou” foi implementar o magistério infalível de acordo com o modo extraordinário. Mas Paulo VI de modo algum afirmou, e o final de seu texto registra claramente o contrário, que o concílio não teria cometido infalibilidade de forma alguma. A infalibilidade está engajada na medida em que está ligada ao magistério supremo ordinário. E vimos precisamente que, no que diz respeito à afirmação central de Dignitatis humanæ, as condições da infalibilidade do magistério supremo ordinário — neste caso, do magistério ordinário e universal — estavam efetivamente reunidas.
7. CONCLUSÃO PROVISÓRIA
A não contradição n o ponto central entre o Vaticano II e a doutrina católica anterior certamente não resolve — longe disso! — quaisquer dúvidas que possam surgir sobre Dignitatis humanæ, ou sobre ensinamentos menos importantes sobre este tema do Concílio. Mas mostra que as orientações dadas por Bento XVI sobre o tema da hermenêutica do Vaticano II são efetivamente aplicáveis, no ponto, a priori, mais rebelde a tal tratamento.
Hoje, quando o Santo Padre parece determinado a devolver o seu lugar de direito ao chamado rito de São Pio V, e poderia até mesmo estabelecer as situações jurídicas necessárias para que cesse — ao nível das dioceses — a marginalização dos fiéis, clérigos e leigos, totalmente apegados a este rito e a toda a tradição espiritual e doutrinal que o cerca, seria penoso se as forças vivas da renovação ficassem de lado, enquanto parece cada vez mais que o obstáculo doutrinário, que se acreditava absoluto, pode ser superado.
[1] Brian W. Harrison, Le développement de la doctrine catholique sur la liberté religieuse. Un précédent pour un changement vis-à-vis de la contraception ?, coéd. Chémeré-le-Roi, Société Saint-Thomas-d’Aquin / Bouère, Dominique Martin Morin, 1988. Cf. aussi « Pie IX, Vatican II et
la liberté religieuse », in CICES, décembre 1987.
[2] Louis-Marie de Blignières et Dominique-Marie de Saint Laumer, « Nos recherches sur la liberté religieuse » et « Le droit à la liberté religieuse et la liberté de conscience », in Supplément au n° 22 de Sedes Sapientiæ, hiver 1988.
[3] Le magistère universel présente donc explicitement son affirmation comme liée nécessairement (« fondée sur ») à la Révélation [4] Seul cet enseignement, déclara le Rapporteur, est proposé auctoritative. « Il doit être clair que l’argumentation n’est pas proposée avec autorité » (Acta Synodalia, IV, VI, 735).
[5] L.-M. de Blignières, « Nos recherches sur la liberté religieuse », in Supplément au n° 22 de Sedes Sapientiæ.
[6] Cf. La Documentation catholique, n° 2350, 15 janvier 2006, pp. 56–63.
[7] Bernard Lucien, Grégoire XVI, Pie IX et Vatican II. Etudes sur la liberté religieuse dans la doctrine catholique, Tours, Ed. Forts dans la Foi, 1990. Comme le titre de l’ouvrage l’indique, il s’agit précisément d’examiner la question de la compatibilité entre l’enseignement de la déclaration Dignitatis humanæ personæ de Vatican II sur la liberté religieuse et la doctrine catholique antérieure, solennellement affirmée par Grégoire XVI et Pie IX. Nous renverrons à cet ouvrage par le sigle BL suivi de l’indication des pages.
[8] Pour les lecteurs qui auraient connaissance de notre livre, nous précisons que le retournement radical du côté de l’ultime conclusion ne semble pas ôter toute utilité aux nombreuses analyses contenues dans le corps de l’ouvrage. La présente mise au point fournira au lecteur les indications
nécessaires pour discerner et rectifier l’erreur, tout en retenant ce qui — nous l’espérons — demeure bon.
[9] Pour Vatican II, il s’agit de l’affirmation centrale du n° 2 de la déclaration Dignitatis humanæ (BL, p. 244) ; pour Grégoire XVI, le texte essentiel est dans le paragraphe 14 de l’encyclique Mirari vos (BL, pp. 10–11) ; pour Pie IX, il s’agit d’une affirmation contenue dans le paragraphe 3 de l’encyclique Quanta cura (BL, pp. 123–125).
[10] C’est-à-dire examinant la vraie question, sans détourner l’attention sur des sujets qui ne sont pas directement en cause, comme la liberté de l’acte de foi, l’indifférentisme, l’état chrétien, le jugement prudentiel à porter dans la situation mondiale présente, etc.
[11] Les lecteurs au fait de la bibliographie voient que ce que nous disons là vaut aussi, globalement, pour la position du père Basile Valuet dans sa thèse monumentale La liberté religieuse et la Tradition catholique, op. cit.
[12] On vérifiera aisément ces deux affirmations en se reportant à la phrase centrale de Dignitatis humanæ personæ pour la première, et aux deux premiers chapitres de notre ouvrage pour la seconde. Cf. aussi infra les « précisions techniques complémentaires ».
[13] . Cette dernière affirmation, très souvent méconnue par les auteurs modernes, est explicitement formulée par le concile Vatican I, constitution dogmatique Dei Filius sur la foi catholique, ch. 3, § 2 (Denzinger-Schönmetzer, n° 3009) : « Néanmoins, pour que l’hommage de notre foi soit conforme
à la raison [Rm 12, 1], Dieu a voulu que les secours intérieurs du Saint-Esprit soient accompagnés de preuves extérieures de sa Révélation, à savoir des faits divins et surtout les miracles et les prophéties qui, en montrant de manière impressionnante la toute-puissance de Dieu et sa science sans borne, sont des signes très certains de la Révélation divine, adaptés à l’intelligence de tous ».
[14] Bien que cette affirmation heurte le subjectivisme contemporain, elle appartient certainement au réalisme de la pensée chrétienne, et en particulier à la doctrine philosophique et théologique de saint Thomas, ainsi qu’à l’enseignement et à la pratique de l’autorité de l’Eglise. Soulignons qu’il ne
suffit pas d’accepter la distinction que nous avons posée au départ, mais qu’il faut en outre reconnaître la vérité de la présente affirmation, pour ôter l’apparente contradiction entre Dignitatis humanæ et la doctrine antérieure.
[15] On pourra pénétrer dans le thème en se reportant aux comptes rendus du Bulletin Thomiste, t. IV, n° 6, avril-juin 1935, pp. 433–436 et t. V, n° 7, juillet-sept. 1938, pp. 449–453 (par J.- A. Robilliard, o. p.).
[16] . Par là, nous avions répondu par avance à l’objection du père Basile, op. cit., t. I, fasc. B, note 3025, pp. 705–706. Voir encore le complément apporté ici par notre n° 3
[17] Nous désignons par ces mots la phrase définissant le droit à la liberté religieuse, dans le § 2 de Dignitatis humanæ personæ. Nous tenons en effet que, comme l’a établi le père Guérard des Lauriers, o. p., dans le n° 1 des Cahiers de Cassiciacum, cette affirmation est de soi garantie par l’infaillibilité. En revanche, nous maintenons que d’autres passages de cette déclaration peuvent être (au point de vue de la doctrine catholique sur le magistère et l’adhésion qu’il requiert), et méritent en fait d’être (selon leur contenu littéral) critiqués (cf. la fin de cet article ).
[18] Le n° 59 de l’encyclique Veritatis splendor du 6 août 1993 rappelle cette doctrine catholique réaliste. Comme cette notion du jugement de conscience est le point-clef de notre interprétation de la définition du droit à la liberté religieuse dans Dignitatis humanæ, nous pouvons voir dans cette détermination pontificale ultérieure une précieuse confirmation du caractère non arbitraire de notre lecture. Voici l’affirmation finale de ce n° 59 de Veritatis splendor : « Le jugement de conscience (…) formule la norme la plus immédiate de la moralité d’un acte volontaire, en réalisant “l’application de la loi objective à un cas particulier” ».
[19] Cette application ne se réduit pas à une déduction, vu le caractère contingent de l’action humaine singulière
[20] Doctrine traditionnelle solennellement proclamée par Vatican I (cf. supra, note 13)
[21] . On peut d’ailleurs estimer que, même en « climat de chrétienté », une telle présomption était trop systématique, ou trop peu nuancée. C’est une autre question, relevant du domaine de la prudence et non plus de la pure doctrine.
[22] Perspective traditionnelle, non développée à Vatican II
[23] De Indis recenter inventis, sect. 2, n° 10 et 14 (ouvrage paru en 1532). Nous citons d’après C. Journet, La volonté divine salvifique sur les petits enfants, Paris, DDB, 1958, pp. 95–96.
[24] BL, pp. 26–33.
[25] BL, pp. 27–32, C), D), DD), G) deuxième texte, L) parlant des « exigences de sa conscience ».
[26] Ibid., A), B), E), F), G) premier texte, H), J), K). Le texte G) [il s’agit du Littré, éd. 1875] présente cette mention dans un passage tiré du t. 3 et l’omet dans un passage tiré du t. 1.
[27] BL, p. 94.
[28] BL pp. 184–185
[29] Cf. ci-dessus note 9
[30] . Encyclique Mirari vos, 15 août 1832, § 14. Sur le débat à propos de l’infaillibilité du jugement porté dans Mirari vos, cf. BL, pp. 61–63, note 113.
[31] Cf. BL, p. 61.
[32] C’est-à-dire dans Mirari vos.
[33] Cf. BL, p. 68
[34] Quanta cura, § 3. Cf. BL, pp. 123–125
[35] Cf. Congrégation pour la doctrine de la foi, Note doctrinale expliquant la dernière formule de la Profession de foi, 29 juin 1998, n° 8.
[36] Déclaration Dignitatis humanæ personæ, n° 2, § 1. Précisons que l’affirmation d’infaillibilité que nous exposons ne concerne pas tout le concile Vatican II, ni toute la déclaration Dignitatis humanæ, mais seulement l’affirmation centrale du n° 2, énonçant le droit à la liberté religieuse (tel qu’il est défini dans ce même paragraphe 1 du n° 2).
[37] . Paul VI, audience générale du 12 janvier 1966. Les italiques sont de nous. Texte intégral en italien (et traduction française) dans Basile Valuet, op. cit., t. II, fasc. A, p. 1313. Ce texte avait déjà été cité et bien commenté par le père Guérard des Lauriers, in Cahiers de Cassiciacum, n° 1, mai 1979, pp. 15–16, note 8.
PUBLICADO EM SEDES SAPIENTIÆ N° 96”. ARTIGO ORIGINAL DISPONÍVEL EM: https://web.archive.org/web/20140808230911/http://www.chemere.org/hqpanel/uploads/file/formation/Formation%20(7).pdf