Sábado, Dezembro 21, 2024

Uma análise bíblica da Imaculada Conceição.

A Imaculada Conceição é «a doutrina que sustenta que a beatíssima Virgem Maria, no primeiro instante da sua Conceição, por singular graça e privilégio de Deus onipotente, em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, foi preservada imune de toda mancha de pecado original» (cf. Bula Ineffabilis Deus, 41). Sem o pecado original, a Virgem preservou-se dos demais pecados pessoais sendo totalmente santa, totalmente imaculada. O motivo dessa preservação? Para exercer a maternidade divina, Deus preparou o tabernáculo que viria habitar entre os homens, tornando-a um santuário digno da divindade. Esta divindade que, por sua vez, é totalmente incompatível com o pecado (cf. 2 Cor 6, 14-16; Sab 1, 4). O objetivo deste estudo será sintetizar oito passagens (das quais quatro se referem diretamente à Virgem e outras quatro são tipológicas) que tratam a respeito do tema da Imaculada Conceição de Maria nas Sagradas Escrituras. 

Nos textos marianos

a) Gênesis 3:15

15 E porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.

Deus afirma que irá impor «inimizade» (do hebraico וְאֵיבָ֣ה-‘êybah) entre a mulher e a serpente. Em outras passagens do Antigo Testamento, esta mesma terminologia designa ou uma inimizade pessoal que leva ao assassinato (cf. Nm 35:21) ou uma inimizade destrutiva entre nações (cf. Ez 25:15). A inimizade que o autor se refere não se trata de algo meramente momentâneo, mas a um estado perpétuo (já que culminará com a morte de uma das partes envolvidas). A mulher é, portanto, a eterna inimiga de Satanás.

Ora, é muito difícil conciliar esta inimizade pessoal com a pessoa de Eva. Dela, as Escrituras dizem justamente o contrário: «Foi pela mulher que começou o pecado, e é por causa dela que todos morremos.»  (Eclesiástico 25:33); «E Adão não foi enganado, mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão.» (1 Timóteo 2:14);  «Quando a mulher viu que a árvore parecia agradável ao paladar, era atraente aos olhos e, além disso, desejável para dela se obter discernimento, tomou do seu fruto, comeu-o e o deu a seu marido, que comeu também.» (Gênesis 3:6). Ao ceder à tentação e cair em «amizade» para com Lúcifer, Eva foi derrotada pela Serpente. A profecia, no entanto, fala justamente o contrário: ele narra que a Mulher não só será a inimiga do demônio, como que ela também triunfará sobre ele através de sua semente. Esta «eterna inimizade» não consegue ser preenchida de maneira satisfatória na pessoa de Eva.

Diante disso, os primeiros cristãos viram nesta enigmática «Mulher» a figura da mãe do Senhor, a Virgem Maria. O primeiro que possivelmente a identificou desta maneira foi o próprio Apóstolo João, no Livro do Apocalipse. No capítulo 12 desta Sagrada Escritura, ele retoma o confronto de Gênesis, apresentando a «Mulher revestida de sol», seu «filho» e «o resto da sua descendência» em uma batalha contra «a primitiva Serpente». Esta Mulher, no entanto, claramente não corresponde à pessoa de Eva, mas à própria mãe do Messias (cf. Ap 12:5). Posteriormente outros Padres no século II, III e IV associarão o texto de Gênesis em um sentido messiânico-mariano. São eles: São Justino de Roma, Santo Irineu de Lião, São Cipriano de Cartago, Santo Ambrósio de Milão, Santo Efrém da Síria…

Nesse sentido, o texto de Gênesis 3:15 foge da estrutura dos demais versículos do seu capítulo que se referem ao tempo presente e insere um contexto profético no qual Deus promete que uma Mulher e sua semente sairão vencedores da batalha contra Satanás (da qual Adão e Eva haviam infelizmente perdido). Sendo Inimiga do demônio, esta Mulher exerceria o papel de antítese de Eva, uma espécie de «Nova Eva» cujo destino será, diferentemente do da primeira, triunfante. Através do princípio da recirculação, os primeiros cristãos concederam unanimemente à Maria este papel. Irineu de Lyon, por exemplo, escreveu que «o nó que a virgem Eva atou com a incredulidade, Maria o desatou com a fé»[1]. Ela é, portanto, aquela a quem Deus impôs inimizade para com o demônio, ela é a «Nova Eva» cujo texto falava profeticamente.

Ora, se Maria está em um estado de inimizade perpétua para com Satanás (que culminará com a morte dele), ela não poderia nem em sua conceição nem em qualquer outro momento de sua vida, estar, como Eva, em amizade para com ele. Maria e o diabo tornam-se imiscíveis, pois foi o próprio Deus que os impôs neste estado.

A identidade da semente da Mulher é muito discutida. Alguns dizem que esta semente é o próprio Messias, outros que é a Igreja em sua totalidade. Apocalipse parece apresentar que ela se trata tanto do Messias quanto da Igreja. É por isso que ele faz questão de reforçar a ideia de um confronto primeiramente entre o seu descendente principal (Cristo) e o dragão, e posteriormente, entre o “restante da sua descendência” e o mesmo. Paulo reforça essa interpretação ao dizer que: «O Deus da paz em breve não tardará a esmagar Satanás debaixo dos vossos pés.» (Romanos 16:20); ou seja, ainda que todos tenhamos uma certa participação nos desígnios divinos (cf. 1 Cor 3:9), aquele que é o «Deus da Paz» será quem efetivamente o «esmagará», cumprindo a primeira profecia. E quem seria este «Deus da Paz» senão aquele que Isaías chama de «Conselheiro admirável, Deus forte, Pai eterno, Príncipe da paz. » (9:6)? É o Filho da Mulher, o Messias esperado!

Em sua totalidade, os descendentes da Mulher (isto é, o Messias e a sua Igreja) formam o corpo místico de Cristo. Este Cristo total será o responsável pela destruição de Satanás. Vale lembrar que nenhuma das partes que o compõem (nem o Messias, nem a Igreja) possui mancha ou defeito. A Igreja de Cristo não tem participação alguma com as obras do mundo, pois, como diz o próprio Cristo, ela mesma não é deste mundo (cf. Jo 15:19). Tiago já dizia que «a amizade com o mundo é inimizade com Deus» (Tiago 4:4), no entanto, foi o próprio Deus que impôs uma eterna «inimizade» entre a Igreja e a descendência da Serpente. Essa «inimizade» a tornou imiscível para com o mundo e suas obras perversas, santificando-a desde o seu princípio (cf. Ef 4:27). E é essa esposa, Toda-Santa e sem qualquer tipo de mancha, que o próprio Cristo irá tomar para si no último dia (cf. Ap 22:17).

Deste versículo podemos concluir, portanto, que Deus prometera desde o princípio impor inimizade entre Maria e Lúcifer e entre Cristo (e seu corpo) e o mundo. Esta inimizade pessoal os tornou imiscíveis um ao outro e, em outras palavras, tornou impossível qualquer tipo de contágio pecaminoso que amigasse Maria a aquele cuja inimizade havia lhe sido imposta.

Esta passagem é talvez a principal passagem relacionada ao dogma da Imaculada Conceição. Escreve o próprio Papa Pio IX: «Razão pela qual, quando ilustrando as palavras com que Deus predizendo, nos princípios do mundo, os remédios de sua piedade dispostos para a reparação dos mortais, esmagou a ousadia da enganosa serpente e levantou maravilhosamente a esperança de nosso gênero, dizendo: Porei inimizade entre ti e a mulher, entre tua descendência e a dela; ensinaram que, com este divino oráculo, foi de antemão designado clara e patentemente o misericordioso Redentor do gênero humano, ou seja, o unigênito Filho de Deus, Cristo Jesus, e designada a santíssima Mãe, a Virgem Maria, e ao mesmo tempo brilhantemente postas em relevo as mesmas inimizades de ambos contra o diabo. Razão pela qual, assim Cristo, mediador de Deus e dos homens, assumiu a natureza humana, apagando a escritura do decreto que nos era contrário, foi pregado triunfante na cruz, assim a santíssima Virgem, unida a ele com apertadíssimo e indissolúvel vínculo, hostilizando com ele e por ele eternamente a venenosa serpente e do mesmo triunfo a todo o gênero, triturou sua cabeça com o pé imaculado. »[2].

b) Lucas 1:28

28 Entrando, o anjo disse-lhe: Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo.

A terminologia grega cujo anjo saudou Maria é κεχαριτωμένη. Segundo o Pe. De La Poterrie, este verbo, empregado no particípio perfeito, indica uma ação plenamente concluída no passado cujo efeito persiste no presente. Gramáticos gregos ratificam isso em outras palavras, afirmando que a terminologia escolhida pelo Arcanjo indica «uma completude com resultados permanentes»[4], ou, como está escrito na obra Mariology (presidida pelo Pe. Juniper), «significa corretamente não apenas a qualidade preteritativa do que é modificado por Ele, mas também implica uma continuidade invariável»[5]. Por κεχαριτωμένη se tratar de um verbo terminado em –όω, χαριτοω expressa ainda a ideia de plenitude:
 

  • “Χάρɩς quer dizer “graça”, “beleza”, que deve entender/-se com base no contexto, em sentido moral e não, como o faz Erasmo, em sentido físico (cf. Ef 1, 6). Χαρɩτόω é o verbo ativo correspondente, que inclui, como os verbos em όω, o conceito de abundância: “dar graça abundante”, assim, por exemplo, do mítico Argos se diz que é ὡμματωμένος, ou seja, “cheio de olhos”. Na forma passiva, tem-se o significado de “receber” ou “ser revestido”; e, no particípio perfeito, “de modo estável”" (cf. Simon-Dorado, Praelectiones Biblicae – Novum Testamentum I, Marietti, 1947, N. T., I, p. 283; Vosté, De Conc. virg. I. C., Romae, 1933, p. 9).
  • “Deve-se notar… que os verbos denominativos gregos em –όω têm todos um sentido de plenitude: αίματόω, ensanguentar; θαυμάστόω encher-se de estupor; σποδόω, cobrir com cinzas. κεχαριτωμένη, com o passivo perfeito, é, portanto, aquela que recebeu de forma estável a abundância da graça (Médebielle, Annonciation, dans DBS, I, col. 262-297, ef. col. 283).

Esta plena santificação prévia que o Arcanjo Gabriel diz que Maria recebeu para portar o Verbo em seu ventre é o que hoje chamamos pelo nome de Imaculada Conceição.

Vale lembrar que os primeiros cristãos viam nesta passagem a própria plenitude da graça divina. Foi São Jerônimo que traduziu o termo grego para «gratia plena» (plena de graça) em sua famosa Vulgata Latina. Para ele, Maria viveu «transbordando com as graças do Espírito Santo»[8]. Santo Ambrósio e Santo Agostinho talvez também reforcem indiretamente de alguma forma esta interpretação, ao enfatizarem que foi devido à graça divina (e, segundo Santo Agostinho, a “abundância” desta) que Maria viveu uma vida sem pecados[9]. No Oriente, por sua vez, Epifânio de Salamia afirmou que Maria é aquela que «é descrita como toda cheia de graça» (em grego «χατὰ πἀντα Κεχαριτωμένης»)[10].

c) Apocalipse 12:1

1 Apareceu em seguida um grande sinal no céu: uma Mulher revestida do sol, a lua debaixo dos seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas.

Neste post específico não será discutido a questão da identidade da Mulher de Apocalipse 12 (já que este tema já foi tratado aqui). Daremos foco apenas ao que tange o dogma da Imaculada Conceição. As explicações dadas neste estudo para os dois versículos estão presentes também no artigo que trata especificamente sobre a identidade da Mulher Apocalíptica. Para todos os efeitos, adotaremos aqui apenas a interpretação primária do texto que se refere claramente à Virgem Maria.

 Neste versículo João apresenta Maria como a «Mulher revestida do sol» (cf. Ap 12,1). Isso se deve ao fato de que «os justos resplandecerão como o sol, no reino de seu Pai » (Mateus 13:43) após a ressurreição de seu corpo. Paulo utiliza uma linguagem semelhante para dizer que na ressurreição, Deus «transformará nosso mísero corpo, tornando-o semelhante ao seu corpo glorioso, em virtude do poder que tem de sujeitar a si toda criatura» (Filipenses 3:20-21). Este «Sol» representa ao próprio Deus (cf. 1 Jo 1,5; Lc 1,78). O «resplandecer» dos corpos dos santos refere-se à «graça divina» derramada sobre eles em seu estado glorioso. Note que Maria não apenas «resplandece» (do grego ἐκλάμψουσιν) como o Sol, mas ela está «revestida» (do grego περιβεβλημένη) dele. Isso se deve ao fato de que Maria, devido à sua Imaculada Conceição, possui a plenitude da graça divina (cf. Lc 1,28), sendo seu corpo glorioso muito superior ao nosso. Dessa forma, João nos revela que o corpo de Maria já está glorificado nos Céus, de uma fora extraordinária: revestida de luz.

Percebe-se também que a Mulher está com «a lua debaixo dos seus pés». Ninguém pode explicar melhor tal característica senão o próprio Papa Bento XVI: «Esta mulher tem debaixo dos pés a lua, símbolo da morte e da mortalidade. Com efeito, Maria está plenamente associada à vitória de Jesus Cristo, seu Filho, sobre o pecado e sobre a morte; está livre de qualquer sombra de morte e totalmente repleta de vida. Pois a morte já não tem poder algum sobre Jesus ressuscitado (cf. Rm 6, 9), também por uma graça e um privilégio singulares de Deus Omnipotente, Maria deixou-a atrás de si, superou-a. E isto manifesta-se nos dois grandes mistérios da sua existência: no início, o facto de ter sido concebida sem pecado original, que é o mistério que hoje celebramos; e no fim, o facto de ter sido elevada ao Céu em corpo e alma, na glória de Deus. Mas também toda a sua vida terrena foi uma vitória sobre a morte, porque se dedicou totalmente ao serviço de Deus, na oblação total de si a Ele e ao próximo. Por isso, Maria é em si mesma um hino à vida: é a criatura na qual já se realizou a palavra de Cristo: «Vim para que tenham vida, e a tenham em abundância» (Jo 10, 10).»[12].

d) Apocalipse 12:14-16

15 A Serpente vomitou contra a Mulher um rio de água, para fazê-la submergir. 16 A terra, porém, acudiu à Mulher, abrindo a boca para engolir o rio que o Dragão vomitara.

De acordo com João, no vs. 14 do Livro de Apocalipse, Maria se vê finalmente livre da perseguição do Dragão. O vs. 15, no entanto, retoma a batalha entre ele e a Mulher. Esta retomada se dá no intuito de explicar a origem do furor do Dragão pela Mulher e por sua descendência.

Em Apocalipse podemos observar dois rios: um é o «rio de água viva» que procede do Cordeiro e do Trono Divino (cf. Ap 22,1); o outro, é o «rio que o Dragão vomitara» presente no texto de Apocalipse 12,14-15. O primeiro é fonte de vida, que leva a salvação eterna aos homens. O segundo é o contrário do primeiro: é aquilo que nos traz a morte e que tem o intuito de fazer os homens «submergirem». Este segundo é, sem dúvidas, a primeira «amizade» que se contraí com o diabo, o chamado «pecado original».

Apocalipse mostra que o demônio tenta fazer com que a Mãe do Senhor «submergisse» (isto é, tenta ter domínio sobre ela através da transmissão do pecado original), mas a «terra» (simbologia da nossa carne que foi formada do barro da terra, cf. Gn 2,7), obedecendo aos desígnios de Deus (que preparava Maria para conceber Jesus) não permitiu que ocorresse esta transmissão («abrindo a boca para engolir o rio que o Dragão vomitara»). Não contraindo «amizade» com o demônio, a profecia de Gênesis 3,15 é cumprida e surge na Terra a única criatura que obtêm verdadeiramente «inimizade» com Satanás: Esta criatura é, sem dúvidas, a Virgem Maria através de sua Imaculada Concepção.

João conclui o texto dizendo que após não ter conseguido fazer com que a Mulher submergisse «se irritou contra a Mulher e foi fazer guerra ao resto de sua descendência» (vs. 17). Esta guerra é travada por todos os cristãos até hoje e será vista mais adiante.

Olhando Maria sob a perspectiva de que ela é a Nova Arca da Aliança (cf. Ap 11,19), São Francisco de Sales associa este texto com Josué 3,11-16, onde a Antiga Arca da Aliança passa pelas águas do Jordão sem ser tocada por ele. A partir disto, São Francisco de Sales, no seu «Tratado do amor de Deus», escreve: «A torrente da iniqüidade original veio lançar as suas ondas impuras sobre a conceição da Virgem Sagrada, com a mesma impetuosidade que sobre a dos demais filhos de Adão; mas chegando ali, as vagas do pecado não passaram além, mas se detiveram, como outrora o Jordão no tempo de Josué, aqui respeitando a arca da aliança a torrente parou; lá em atenção ao Tabernáculo da verdadeira aliança, que é a Virgem Maria, o pecado original se deteve.».

A mesma interpretação é feita pelos Padres Aidan Carr e German Williams na famosa obra “Mariology”, escrita por uma Comissão internacional de especialistas sob a presidência do Pe. Juniper B. Carol: «O diabo originalmente fez seu esforço para vencer Maria, quando seduziu os primeiros pais, de quem a infecção do pecado passou para a posteridade, e de fato teria engolido Maria, se não fosse por sua preservação especial através da causalidade do Verbo Encarnado. Sua humanidade tomada de Maria e da terra, tornou-se o instrumento que desviou a maré do pecado para que não varresse sua mãe nas águas amargas que flui de uma fonte envenenada. Esta é a interpretação dos versículos 15 e 16 do capítulo 12 do Apocalipse: “E a serpente lançou fora a sua boca depois da mulher, a água como um rio, para que ela fosse levada pelo rio. Ajudou a mulher, e a terra abriu a sua boca, e engoliu o rio que o dragão lançou de sua boca.”

O contexto total do capítulo 12 é, mais do que qualquer outra coisa, uma exaltação da Maternidade espiritual de Maria, mas fornece uma confirmação, bem como uma interpretação da inimizade entre a mulher e a serpente narrada no Protoevangelho contido no Gênesis. Maria foi protegida da queda sob a influência da serpente através do ato redentor de Cristo, tornando-se uma vítima satisfatória para a Humanidade de acordo com a profecia de Isa. 53: 6. A morte piacular do Salvador teve uma eficácia especial para a Mãe do Messias, e é por isso que a serpente, o dragão, nas palavras de Apoc. 12,17: “… estava zangado contra a mulher e foi fazer guerra com o resto de sua semente…”.

Esta passagem no último dos livros inspirados é, portanto, um argumento clássico, talvez de menor peso, para confirmar a imunidade de Maria do pecado original. É o cumprimento da promessa contida no primeiro dos livros inspirados, para este prometido alívio em favor de uma Mãe de Cristo e de sua semente: a humanidade sagrada, e cada pessoa, a Virgem e seu Filho, que gozavam de liberdade de todos os pecados. Esta conjuntura sem pecado, natural de Cristo devido a Sua divindade, especial para Maria devido à sua humanidade, era um requisito para sua vitória conjunta sobre Satanás por seus sofrimentos.»[13].

Nas tipologias marianas

a) A Nova Arca da Aliança

A Arca da Aliança no Antigo Testamento era um verdadeiro ícone do sagrado. Era uma imagem da pureza e santidade que Deus apropriadamente exige dos objetos e/ou pessoas mais intimamente associadas a si mesmo e ao plano de salvação. Por conter a própria presença de Deus simbolizada por três tipos do Messias vindouro – o maná, os Dez Mandamentos e o bordão de Aarão -, ele devia ser mais puro e intocável pelo homem pecador (ver II Sam. 6: 1-9 Êxodo 25: 10ss, Números 4:15, Hebreus 9: 4). Por isso, Deus a preparou de modo especial: mandou ser construída com «madeira de acácia» (uma madeira muito resistente, fina e indestrutível por insetos) e mandou ser bordada com ouro puro por dentro e por fora (cf. Ex 25,11).

No Novo Testamento, a nova e verdadeira Arca não seria um objeto inanimado, mas uma pessoa – a Mãe Santíssima. Quanto mais pura seria a nova e verdadeira Arca quando considerarmos a arca antiga como uma mera «sombra» em relação a ela (ver Hb 10: 1)? Esta imagem de Maria como a Arca da Aliança é um indicador de que Maria seria apropriadamente livre de todo contágio do pecado para que ela fosse um vaso digno para carregar Deus em seu ventre. E o mais importante, assim como a arca da Antiga Aliança era pura desde o momento em que foi construída com explícitas instruções divinas em Êxodo 25, Maria também seria mais pura a partir do momento de sua concepção. Deus, de certa forma, preparou seu próprio lugar de habitação tanto no Antigo quanto no Novo Testamento para portar a Palavra de Deus.

Se a Antiga Arca carregava, como lembra Hebreus 9:4, maná, a vara de Araão, e a Palavra de Deus em pedra, Maria, por sua vez, carrega em seu ventre o pão que desceu do Céu (Jo 6,51), o verdadeiro Sumo Sacerdote de Deus (Hebreus 5,1-10) e a Palavra de Deus em carne (cf. João 1,14): Trata-se da Arca da Nova Aliança.

Um paralelo pode ser facilmente percebido entre Maria e a Arca da Aliança a partir do primeiro capítulo do Evangelho de Lucas e o sexto capítulo do Segundo Livro de Samuel. De acordo com Samuel, a Arca da Aliança viajou para a casa de Obede, em Edom, ficando três meses com ele (cf. 2 Sm 6,11). Lá, diante da arca, Davi «saltou e dançou» (2 Sm 6,16). No início do capítulo, Davi chega a exclamar: «Como entrará a arca do Senhor em minha casa?» (cf. 2 Sm 6:9). Após sua estadia na casa de Obede, sua casa foi abençoada, e a arca retornou ao seu lugar (cf. 2 Sm 6:12). De acordo com o Evangelho de Lucas, Maria viajou para a casa de Isabel e Zacarias, onde passou três meses com eles (cf. Lc 1,56). Lá, ao ouvir a saudação de Maria, João Batista «saltou» no ventre de sua mãe (cf. Lc 1,41). Esta, então, exclamou em alta voz: «Donde me vem esta honra de vir a mim a mãe de meu Senhor?» (Lucas 1:43). Após sua estadia na casa de Zacarias, sua casa é abençoada e Maria retorna à Nazaré (cf. Lc 1:56).

Lucas em seu Evangelho utiliza-se da tipologia bíblica para descrever a Virgem Maria como a Nova Arca da Aliança. E é neste mesmo sentido que João, no texto de Apocalipse 11:19, refere-se ao reaparecimento da arca: «Abriu-se o templo de Deus no céu e apareceu, no seu templo, a arca do seu testamento. Houve relâmpagos, vozes, trovões, terremotos e forte saraiva.». Ora, essa arca não pode ser a Antiga Arca da Aliança que Jeremias profetizou que jamais seria lembrada: «E sucederá que, quando vos multiplicardes e frutificardes na terra, naqueles dias, diz o Senhor, nunca mais se dirá: A arca da aliança do Senhor, nem lhes virá ao coração; nem dela se lembrarão, nem a visitarão; nem se fará outra.» (Jeremias 3:14-17). Mas é, como lembra o próprio João um versículo depois, trata-se de «uma mulher vestida do sol, tendo a lua debaixo dos seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça. Estava grávida (…) E deu à luz um filho homem que há de reger todas as nações com vara de ferro» (Apocalipse 12,1). João se refere à arca como uma Mulher, a quem atribui a maternidade messiânica. Dessa forma, concluímos de acordo com São Pascásio Radberto e toda a Tradição da Igreja que «O templo de Deus foi aberto e a Arca da Aliança foi vista (cf. Ap 11:19). Esta certamente não era a arca feita por Moisés, mas é a Bendita Virgem, cujo [título] já foi transferido para ela.» (São Pascásio Radberto, PL 96,250A).

Assim afirma uma homilia do século V atribuída a São Proclo, bispo de Constantinopla: “Graças a ela todas as mulheres são abençoadas. Não é possível que a mulher deva permanecer sob sua maldição; ao contrário, ela agora tem um motivo para superar até mesmo a glória dos anjos. Eva foi curada(…) Hoje, uma lista de mulheres é admirada(…) Isabel é chamada abençoada por ter concebido o precusor, que pulou de alegria em seu ventre, e por ter testemunhado a graça; Maria é venerada, pois ela se tornou a Mãe, a nuvem, a câmara nupcial, e a arca do Senhor.” (São Proclo de Constantinopla, Homilia 5, 3; PG 65:720 B). No mesmo século de São Proclo, ainda temos o testemunho de Crisipo, presbítero de Jerusalém: “A Arca verdadeiramente real, a Arca mais preciosa, foi a Theotokos sempre-Virgem; a Arca que recebeu o tesouro de toda santificação” (Crísipo de Jerusalém, In S. Mariam Deip., PO 19,338).

b) O Santuário imaculado de Deus

No Antigo Testamento, o Tabernáculo (isto é, o lugar onde Deus habitava), era detentor de uma eterna santidade: «A santidade convém à tua casa, Senhor, para sempre.» (Salmos 93:5) e também «Um rio alegra a Cidade de Deus: o Altíssimo santificou ao seu próprio Tabernáculo.» (Salmo 45:5). Ora, no Novo Testamento, Maria tornou-se o Tabernáculo da Encarnação, gerando, portando e nutrindo o próprio Deus em seu ventre. Nesse sentido, ela é o Tabernáculo do Novo Testamento e, portanto, da mesma forma que o antigo tabernáculo, convêm a ela a eterna santidade.

No Antigo Testamento, «a nuvem cobriu a tenda da revelação, e a glória do Senhor encheu o tabernáculo» (Êxodo 40:34). No Novo Testamento, o anjo anuncia à Maria que «O poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra» (Lucas 1,35) e o próprio Espírito Santo desce sobre ela fazendo-a conceber virginalmente a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Lucas está apresentando Maria, de certa forma, também como o tabernáculo do Deus Vivo.

Por tudo isso, a Tradição da Igreja costuma atribuir a tipologia do tabernáculo como uma designação não somente do corpo de Jesus, mas também do ventre de Maria que era igualmente imaculado.

c) Maria enquanto “Tipo da Igreja” (Ecclesia Typus)

De acordo com o Concílio Vaticano II e com o atual Catecismo da Igreja Católica, Maria é o tipo perfeitíssimo da Igreja (em latim Ecclesia Typus[14] [15]. Da mesma forma que no Antigo Testamento, a figura feminina da Filha de Sião representava todo o povo de Israel, no Novo, a figura da Virgem Santíssima representa toda a Igreja.

Santo Ambrósio nos explica: «Sim, ela (Maria) é noiva, mas virgem, porque é tipo da Igreja, que é imaculada, mas é esposa: virgem concebeu- nos por obra do Espírito, virgem deu-nos à luz sem dor» (Santo Ambrósio, In Ev. sec. Luc., II, 7, CCL 14, 33, 102-106). Ora, o paralelo é perfeito: a Igreja é virgem espiritualmente (cf. 2 Cor 11,2), mãe dos cristãos (cf. Gl 4,26) e totalmente imaculada (cf. Ef 5,27). Da mesma forma, Maria é virgem corporalmente (cf. Lc 1,34), mãe dos cristãos (cf. Jo 19, 26-27) e completamente sem mancha (cf. Gn 3,15).

O paralelo entre Maria e a Igreja é apostólico. Nos primeiros séculos, Clemente de Alexandria[16], Irineu de Lião[17] e Tertuliano de Cartago[18] o utilizaram. No século IV e V, vemos seu uso por parte principalmente de Ambrósio e Agostinho no Ocidente enquanto que no Oriente encontramos Santo Efrém chamando-a de «Igreja de Cristo»[19], e a proclamando-a «o símbolo da Igreja»[20].  Além dele, encontramos também no Oriente a obra Acta Archelai, escrita por Hegemônio que descreve Maria como «Virgem castíssima, a Igreja Imaculada»[21] e São Gregório de Nissa que ressaltava que aquilo que havia sucedido corporalmente em Maria acontecia espiritualmente em toda alma virgem[22]. Epifânio de Salamia, por sua vez, comparava a Igreja-Esposa com Maria-Esposa de Cristo (no sentido de que toda a alma é esposa de Cristo; assim ele deduzia isso do texto «dois em sua só carne», onde ele aplicava antes tudo isto a Cristo e a Maria, e depois a Cristo e à Igreja[23]). No século V, São Cirilo de Alexandria prega Maria em Éfeso como «sempre virgem Maria, isto é, a santa Igreja»[24].

Da mesma forma que a Igreja de Deus não possui mancha alguma, Maria não pode possuir mancha alguma. Esta é a conclusão lógica de mais uma das tantas tipologias marianas.

d) A “amada” de Cântico dos Cânticos

Uma figura bíblica de Maria é a enigmática Sulamita, a amada de Cântico dos Cânticos. Sulamita, em hebraico הַשּׁ֣וּלַמִּ֔ית (Schlomit), é um adjetivo que significa “aquela que possui a perfeição”. Alegoricamente, ela possui vários significados: pode representar o povo de Israel (que é a “amada” de Deus Pai, cf. Is 54,5), pode representar a Santa Igreja (que é a “amada” de Deus Filho, cf. Ef 5, 21-33), e, por fim, pode representar a Santíssima Virgem (que é a “amada” do Espírito Santo, cf. Lc 1,35).

Em Lucas 1:35, o Evangelista escreve: “O Espírito Santo descerá sobre ti, e a força do Altíssimo te envolverá com a sua sombra (ἐπισκιάσει).”. A terminologia ἐπισκιάσει  é uma terminologia nupcial. Os equivalentes semíticos do termo grego ἐπισκιάσει são o hebraico סָלַל (“salal”) e aramaico “Tallel”, do qual veio “tallith”. Ambos denotam relações conjugais: “tallith” era o manto que um homem erudito ou piedoso cobria sua mulher durante a noite de núpcias. Ele é utilizado, por exemplo, no livro de Rute: “Estende o teu manto sobre a tua serva, porque tens o direito de resgate.” (Rute 3:9). A mesma linguagem é encontrada em Ezequiel 16:8: “E, passando eu junto de ti, vi-te, e eis que o teu tempo era tempo de amores; e estendi sobre ti a aba do meu manto, e cobri a tua nudez; e dei-te juramento, e entrei em aliança contigo, diz o Senhor DEUS, e tu ficaste sendo minha.”.

O’Caroll comenta que nesta mesma passagem ainda há outro termo que indica o matrimônio espiritual entre a Virgem e o Espírito Santo: «Na literatura rabínica a vida de Rute é muitas vezes interpretada como prefigurando eventos messiânicos. Uma outra terminologia utilizada pelos rabinos para a união marital “colocar o seu poder” (reshuth) sobre a mulher ecoa em Lc 1,35, “o poder do Altíssimo te ofuscará”. Assim, a Anunciação tem um caráter nupcial, com insistência no cônjuge humano como virginal, isto é, exclusivamente dado a Deus.»[25].

Tudo isso indica obviamente não uma relação conjugal, mas uma íntima união marital entre a Virgem e o Espírito Santo. Nesse sentido, é válido aplicar alegoricamente a este belo amor, os textos de Cântico dos Cânticos.

São várias passagens de Cânticos dos Cânticos que se encaixam perfeitamente à figura da mãe do Messias. Cânticos fala por exemplo que «as donzelas proclamam-na bem-aventurada, rainhas e concubinas a louvam.» (Cânticos 6:9), o que é um símbolo da Virgem Santíssima, que, segundo Lucas, seria proclamada «bem-aventurada» perante todas as gerações (Lucas 1:48). É dito também que ela possui lábios de «leite e mel» (Ct 4:11), e Cristo seria nutrido com «manteiga e mel» (Is 7:15). Ela é a «Mais bela das mulheres» (Ct 1:8) e Maria é a «Bendita entre as mulheres» (Lc 1,42). Por fim, percebe-se uma íntima união entre o quadro de Cânticos 6:10 e Apocalipse 12:1: «Quem é esta que aparece como a alva do dia, formosa como a lua, brilhante como o sol, terrível como um exército com bandeiras?» e «E viu-se um grande sinal no céu: uma mulher vestida do sol, tendo a lua debaixo dos seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça.».

Entre os Padres da Igreja que utilizaram imagens do Cântico dos Cânticos para atribuí-las a Maria podemos citar: Ambrósio de Milão, Jerônimo de Estridão, Epifânio de Salmia, Apônio, Santo Isidoro, Germano de Constantinopla, João Damasceno[26]… Até que o primeiro que interpretou completamente o Cântico à Maria foi Rupert Deutz. Ambrósio, por exemplo, escreveu: «“Beija-me com os beijos de tua boca!” (1: 1) simboliza a graça do Espírito na Anunciação. “o teu nome é como um perfume derramado”(1: 3) é referido o conceito virginal e nascimento como uma virgem deu à luz bom odor, ou seja, o Filho de Deus»[27].

Ora, se os textos de Cântico dos Cânticos são válidos para descrever a Virgem Maria, então o suporte para a Imaculada Conceição é evidente: «És toda bela, ó minha amiga, e não há mancha em ti.» (Cânticos 4:7) e também «meu amor, pomba minha, imaculada minha» (Cânticos 5:2). Afinal, para Deus, «beleza» se refere não ao conceito físico, mas espiritual.

e) Outras figuras bíblicas de Maria:

O Papa Pio IX nos lembra ainda de outras figuras bíblicas que tipologicamente trataram da Imaculada Conceição de Maria: «Deste nobre e singular triunfo da Virgem, da sua excelentíssima inocência, pureza e santidade, da sua imunidade do pecado original, e da inefável abundância e grandeza de todas as suas graças, virtudes e privilégios, viram os mesmos Padres uma figura na arca de Noé, que, construída por ordem de Deus, ficou completamente salva e incólume do naufrágio comum (cf. Gn 7,23); na escada que Jacó viu, da terra, chegar até ao céu: escada por cujos degraus os Anjos subiam e desciam, e em cujo topo estava o próprio Senhor (cf. Gn 28,12); na sarça que, embora vista por Moisés arder no lugar santo, por todos os lados, em chamas crepitantes, contudo não se consumia nem sofria dano algum, mas continuava a ser bem verde e florida; naquela torre inexpugnável, posta defronte do inimigo, da qual pendem mil escudos e toda a armadura dos fortes (cf. Ex 3,1–4,17); naquele jardim fechado, que não devia ser violado ou danificado por nenhuma fraude ou por nenhuma insídia (cf. Ct 4,12); naquela resplandecente cidade de Deus, que tem os seus fundamentos sobre as montanhas santas (cf. Sl 87,1); naquele augusto templo de Deus que, refulgente dos divinos esplendores, está cheio da glória do Senhor (cf. Dn 3,53); e, enfim, em todas aquelas outras inúmeras figuras em que os Padres divisaram (e lhe transmitiram o ensinamento) o claro prenúncio da excelsa dignidade da Mãe de Deus, da sua ilibada inocência e da sua santidade, nunca sujeita a qualquer mancha.» (Papa Pio IX, Ineffabilis Deus, 24).

Textos supostamente contrários ao dogma

a) Lucas 1:47

46 E Maria disse: Minha alma glorifica ao Senhor, 47 meu espírito exulta de alegria em Deus, meu Salvador, 48 porque olhou para sua pobre serva. Por isto, desde agora, me proclamarão bem-aventurada todas as gerações, 49 porque realizou em mim maravilhas aquele que é poderoso e cujo nome é Santo.

Alguns protestantes argumentam a partir desta passagem que, por Maria chamar Deus de «meu Salvador», ela assume sua condição de uma pecadora que necessita se salvar e, logo, não pode ter tido uma Imaculada Conceição.

Ora, uma argumentação dessas mostra um profundo desconhecimento do dogma católico. Afinal, nós católicos acreditamos que Maria foi também salva por Deus do pecado original. Há duas formas de salvação: uma é a regeneração e a outra é a preservação. Cristo salvou Maria a preservando de cair sob o domínio satânico justamente devido à sua maternidade divina. Nós somos salvos por ele após a nossa queda. Dessa forma, nós católicos cremos que sim, Jesus é o Salvador de sua Mãe.

Judas lembra que Deus é capaz de nos preservar ilesos de qualquer queda: «Àquele, que é poderoso para nos preservar de toda queda e nos apresentar diante de sua glória, imaculados e cheios de alegria, ao Deus único, Salvador nosso, por Jesus Cristo, Senhor nosso, sejam dadas glória, magnificência, império e poder desde antes de todos os tempos, agora e para sempre. Amém.» (Judas 1:24,25). Ora, se ele pode nos preservar de qualquer queda e o pecado original certamente é uma queda, pode também preservar-nos da queda original. E foi dessa forma que Deus salvou Maria.

b) Romanos 3:23

23 Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus

Alguns protestantes argumentam a partir desta passagem que se todos pecaram, Maria certamente também pecou. No entanto, não é tão simples assim. Paulo está falando nesta passagem de uma lei geral. Ora, leis gerais possuem exceções. Por exemplo: São Paulo, também autor da epístola aos Hebreus, revela-nos a seguinte lei geral: «está determinado que os homens morram uma só vez, e logo em seguida vem o juízo» (Hebreus 9:27). No entanto, Lázaro é uma exceção para esta regra já que morreu, foi ressuscitado por Jesus e certamente voltou a morrer (ainda que São Paulo não o cite na passagem em questão).

Da mesma forma, a Lei do pecado teve realmente duas exceções: Jesus (Hb 4:15) e Maria (Gn 3:15). Ambos eram verdadeiramente humanos, mas, embora esta passagem não especifique, não estão sujeitos ao domínio satânico.

c) Lucas 2:22

 22 De igual modo, ao completar-se o tempo da purificação deles, de acordo com a Lei de Moisés, José e Maria levaram o bebê Jesus até Jerusalém para apresentá-lo a Deus no templo.

Alguns protestantes argumentam que como Maria foi purificar-se no templo, ela certamente possuía pecado. Este argumento é reforçado pelo fato de José e Maria terem cumprido todas as prescrições da Lei Levítica para a purificação de impurezas rituais (que Levítico considera como «pecados» em Lv 12,6-8).

No entanto, se lermos Levítico teremos uma ideia melhor para compreender do que se trata tal «purificação»: «O sacerdote os oferecerá ao Senhor, e fará a expiação por ela, que será purificada do fluxo de seu sangue. Tal é a lei relativa à mulher que dá à luz um menino ou uma menina.» (Levítico 12:7). A impureza ritual cujas mulheres precisavam ser purificadas era do fluxo de sangue derramado durante o parto! Ora, Isaías 7:14 diz que Maria não apenas conceberia Jesus enquanto virgem, mas que também daria a luz neste estado. Como o parto de Jesus foi virginal, não houve nem fluxo de sangue nem dores de parto e, portanto, não seria necessário esta purificação.

Mas então porque Maria foi purificada? A Virgem Santíssima foi purificada para dar o exemplo de obediência, assim como fez Jesus no episódio em que foi batizado pelo seu primo (Mateus 3:13); embora o Batismo perdoe-nos dos nossos pecados (Atos 2:38) e Jesus, segundo a Bíblia nunca cometeu o menor pecado (2 Coríntios 5:18-21).

Além disso, o texto grego de Lucas utiliza o plural: «καθαρισμοῦ αὐτῶν» (purificação deles). Ora, Lucas fala de uma purificação tanto da mãe quanto do Filho. Ambos certamente não tinham pecado nem estavam sujeitos a impurezas rituais. São Tomás, que também entendia que o rito da circuncisão era um remédio para as impurezas rituais, ao ser questionado sobre a questão da purificação da Imaculada, respondeu: «À medida que a plenitude da graça fluía de Cristo para a sua Mãe, era assim que a Mãe deveria ser como seu Filho na humildade: porque “Deus dá graça aos humildes”, como está escrito em Tiago 4:6.»[28].

Conclusão

Após a análise de todas essas passagens, conclui-se não só que a Bíblia sustenta a doutrina da Imaculada Conceição como que também as objeções protestantes mostram-se totalmente insustentáveis diante da lógica da própria Escritura. Professamos que a Mãe Santíssima do Senhor foi, como dizia Santo Ambrósio (+397) «uma Virgem não só imaculada, mas uma Virgem que a graça fez inviolada, livre de toda mancha de pecado»[29]; e São Proclo de Constantinopla (+446): «Ele veio dela sem qualquer falha, e fê-la para si mesmo, sem qualquer mancha»[30]: isto é, totalmente santa e sem culpa alguma.

NOTAS

[1] SANTO IRINEU DE LYON, Contra as Heresias 3,22,4.

[2] PAPA PIO IX, Ineffabilis Deus, 9.

[3] Ignace de la Potterie, Κεχαριτωμένη en Lc 1,28 Étude philologique, in Biblica 68, nº3 (1987) pp. 357-382; disponível em «http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/apologetica/virgem-maria/975-em-lc-1-28-estudo-filologico».

[4] Cf. H. W. SMYTH, Greek Grammar [Harvard Univ Press, 1968], p. 108-109, sec 1852:b; also BLASS AND DEBRUNNER, Greek Grammar of the New Testament, p. 175.

[5] Cf. PE. AIDAN CARR & PE. GERMAN WILLIAMS, in Juniper, Mariology, Volume I, pp. 339.

[6] Ignace de la Potterie, Κεχαριτωμένη en Lc 1,28 Étude exégétique et théologique, in Biblica 68, nº4 (1987) pp. 480-508; disponível em «http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/apologetica/virgem-maria/976-em-lc-1-28-estudo-exegetico-e-teologico».

[7] Ignace de la Potterie, Κεχαριτωμένη en Lc 1,28 Étude exégétique et théologique, in Biblica 68, nº4 (1987) pp. 480-508; disponível em «http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/apologetica/virgem-maria/976-em-lc-1-28-estudo-exegetico-e-teologico».

[8] SÃO JERÔNIMO DE ESTRIDÃO, Carta 22 Para Eustóquio, n. 38.

[9] Cf. Santo Ambrósio de Milão, Exposição ao Salmo 118, nº 30; PL 15:1521; Santo Agostinho de Hipona, De natura et gratia 36, 42: PL 44, 267.

[10] Santo Epifânio de Salamia, Panarion 78, 24.

[11] Pe Ze, “κεχαριτωμενη” em Lucas 1,28 X “κεχαριτωμένῳ” em Eclesiástico 18,17. Disponível em <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/apologetica/virgem-maria/978-em-lucas-1-28-x-em-eclesiastico-18-17>. Desde: 06/07/2017

[12] Discurso do Papa Bento XVI na Solenidade da Imaculada Conceição da Bem-Aventurada Virgem Maria, Quinta-Feira, 8 de Dezembro de 2011.

[13] PE. AIDAN CARR e PE. GERMAN WILLIAMS, Mariology (Juniper), Volume I, pp. 343-344.

[14] CONCÍLIO VATICANO II, Const. dogm. Lumen Gentium, 63: AAS 57 (1965) 64.

[15] CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, item 967.

[16] SÃO CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Paedagogus, I: 6.

[17] SANTO IRINEU DE LIÃO, Contra as Heresias, III,10; SC 34,164.

[18] TERTULIANO DE CARTAGO, Adv. Marc. 2,4,4-5; PL 2,289A.

[19] Efrém escreveu: “Ele caminhou sobre o mar (cf. Mt 14,25-31), apareceu na nuvem (Mt 17,5), ele liberou sua Igreja da circuncisão substituiu Josué, filho de Nun, por João, que era virgem e confiou a Maria, sua Igreja, como Moisés entregou o seu rebanho a Josué (cf. Dt 31: 7-8).” (Santo Efrém da Síria, Comentário no Diatessaron 12,5; SC 121,216).

[20] SANTO EFRÉM DA SÍRIA, Hinos na Crucificação, 4,17; CSCO 249,43.

[21] Cf. HEGEMÔNIO, Acta Archelai, 55,3; PG 10,1508.

[22] SÃO GREGÓRIO DE NISSA, De virg. 2: PG 46,324B.

[23] Cf. SANTO EPIFÂNIO DE SALAMIA, Panarion 78,19,3-6; GCS 3,469,31-470,14.

[24] Cf. SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA, Hom. Div. 4; PG 77,996B-C.

[25] O’CAROLL, MICHAEL, Theotokos: A Theological Encyclopedia of the Blessed Virgin Mary, pp. 357-358).

[26] Lista extraída da obra de Michael O’Carroll; Theotokos: A Theological Encyclopedia of the Blessed Virgin Mary, página 327.

[27] SANTO AMBRÓSIO DE MILÃO, De Virg. II, 65; PL 16,282C.

[28]  SÃO TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae III: 37: 4.

[29] «Vem, então, e procure sua ovelha, não através de seus funcionários ou homens contratados, mas faze-o sozinho. Dai-me a vida corporal e na carne, que está caída em Adão. Levante-me não de Sara, mas de Maria, uma Virgem não só imaculada, mas uma Virgem que a graça fez inviolada, livre de toda mancha de pecado.» (SANTO AMBRÓSIO DE MILÃO, Exposição ao Salmo 118, nº 30; PL 15:1521).

[30] SÃO PROCLO DE CONSTANTINOPLA, Homilías 1,3 ; PG 65:683 B.

Nota
Esse texto foi adaptado no dia 17/11/2020. Substituí a tradução do Padre De La Potterie, "transformada pela graça", pela tradicional "cheia de graça", por encontrar fundamentos mais sólidos em seu favor (além do grande suporte do Magistério, da Liturgia e da Tradição Católica em seu favor). Vale ressaltar que quando o supracitado sacerdote fala em "transformação", ele não quer dizer que a Virgem Imaculada teria passado de um momento sem a graça para um momento com a graça. Ele simplesmente afirma que ela foi santificada, isto é, recebeu a graça santificante.

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