Sábado, Dezembro 21, 2024

Três razões para entender João 6 literalmente!

A Última Ceia

  “A primeira tarefa do intérprete é deixar o autor dizer o que ele diz, ao invés de atribuir-lhe o que achamos que deveria dizer”

  O discurso do “Pão da Vida”, registrado no Evangelho de João, capítulo 6, é um dos fundamentos bíblicos da Presença Real de Cristo na Eucaristia. No entanto, a maioria[1] dos irmãos protestantes insiste que essa passagem bíblica não deve ser interpretada literalmente, mas como uma espécie de parábola, ou uma metáfora.

  Geralmente a conversa acontece deste modo:

Católico: Jesus disse ‘quem não comer a minha carne e não beber meu sangue, não terá a vida eterna’ (João 6,53). Vários discípulos de Jesus O abandonaram, escandalizados, pois pensaram que se tratava de canibalismo. Jesus não “explicou” essas palavras, logo, devem ser interpretadas literalmente.

Protestante: Jesus não quis dizer isso. Em várias ocasiões, “corpo” e “sangue” são usadas como metáforas. Logo, essas palavras necessariamente são metáforas em João 6.

Católico: E daí? Só porque uma palavra foi usada como metáfora significa que ela sempre será usada como metáfora?

  A verdadeira questão não é se essas palavras foram usadas metaforicamente na Bíblia. Isso seria o mesmo que afirmar: Metáforas existem. Logo, isto é metáfora. A questão que importa é se existem razões para interpretar essa passagem literalmente. Em minha opinião, existem 03 razões.

RAZÃO N. 1: Os judeus interpretaram Jesus literalmente, e Ele não os corrigiu

  Abra sua Bíblia em João 6, versículos 30 a 71. Será necessária para você acompanhar o raciocínio.

  O texto começa com os discípulos pedindo um sinal para acreditarem em Jesus (v. 30). Eles citam o maná, o pão enviado por Deus no deserto, como o tipo de sinal que esperavam dEle (v. 31).

  Ninguém afirma que o maná do deserto era apenas um símbolo, exceto os leitores mais liberais. Mas Jesus diz ser o pão mais verdadeiro que o maná (v. 32). Ele é o “pão da vida” (v. 35).

  Essa afirmação de Jesus poderia ter um sentido espiritual. O maná do deserto era real, os judeus comeram e morreram. Cristo, no entanto, é o “pão” através do qual se obtém vida eterna. É assim que a maioria dos protestantes compreende o discurso de Cristo.

  Mas não foi isso que pensaram os primeiros a ouvir Cristo quando ele afirmou ser o “pão vivo” (v. 51): “Como nos pode dar sua carne a comer?” (v. 52). A polêmica é compreensível, porque era um pecado gravíssimo comer carne humana e beber sangue[2].

  Então, se as palavras de Cristo eram apenas simbólicas, este era o exato momento de explicar o verdadeiro sentido à Sua audiência. Mas Ele não explica. Pelo contrário, Cristo repete Suas palavras, com mais ênfase: “Na verdade, na verdade vos digo que, se não comerdes a carne do Filho do homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós mesmos. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia.” (vs. 53-54).

  E logo depois – preste muita atenção – Jesus afirma que não está falando metaforicamente:Porque a minha carne verdadeiramente é comida, e o meu sangue verdadeiramente é bebida.” (v. 55)

  Traduzo: “Ah, Jesus só está usando uma figura de linguagem aqui.”. Jesus responde: “Não senhor, minha carne é comida de verdade”. Jesus afirma com mais ênfase:quem de mim se alimenta, também viverá por mim.” (v. 57)

  A situação aqui é bem mais complicada que a alegada metáfora da palavra “sangue” na Última Ceia. Em nosso caso, se Jesus usou uma metáfora, a palavra “carne” e até a palavra “verdadeira” deveriam ser metáforas. Se Jesus usou uma metáfora e os judeus entenderam literalmente, Jesus, ao invés de corrigi-los, piora sua confusão afirmando com mais ênfase Sua metáfora.

  “Duro é este discurso; quem o pode ouvir?” (v. 60). Os discípulos de Cristo continuavam a compreender Suas palavras literalmente. Após as “explicações” de Cristo, eles estavam ainda mais certos de que Jesus queria ser entendido literalmente.

  Mesmo vendo a dificuldade dos discípulos, Jesus não muda Seu discurso, pelo contrário: “Isto escandaliza-vos?” (v. 61) – talvez estas palavras ofendam meus discípulos, que as compreenderam literalmente; bom, era isso que eles deveriam fazer. Jesus dobra: “Que seria, pois, se vísseis subir o Filho do homem para onde primeiro estava?” (v. 62).

  Traduzindo: Vocês acham isso difícil? Esperem pra ver minha Ascensão. Aí vocês terão algo difícil de explicar.

  O próximo versículo é usado pelos protestantes para provar que Cristo falava metaforicamente: “O espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos digo são espírito e vida.” (v. 63)

  O problema com esse argumento não é apenas interpretar “espírito” como “metáfora” (nossos espíritos são metáforas ou coisas reais?). O problema também é que esse argumento ignora que Jesus está respondendo à dificuldade dos seus discípulos aceitarem o ensinamento da Eucaristia, não à dificuldade deles entenderem seu significado. O que Jesus diz é que eles devem aceitar o ensinamento não com base na razão humana, mas na fé espiritual. Esta é a explicação de Jesus, e não “calma aí, pessoal, eu só usei uma figura de linguagem”.

  Depois de pedir para aceitarem o ensino pela fé, muitos discípulos O abandonam (v. 66-68). Por que fizeram isso? Porque mesmo dizendo “a carne para nada aproveita (v. 63) eles ainda compreendiam Suas palavras literalmente.

  Jesus então se dirige aos Seus apóstolos e diz: “Vocês também não entenderam?”. Não. Jesus diz a eles: “A vós foi concedido o mistério do Reino de Deus; aos de fora, entretanto, tudo é pregado por parábolas, com o propósito de que: ‘mesmo que vejam, não percebam; ainda que ouçam, não compreendam, e isso para que não se convertam e sejam perdoados’?.[3]. Não. Ele diz: “Quereis vós também retirar-vos?” (v. 67). Jesus não dá nenhum sinal de que foi mal compreendido. E Pedro responde: “Senhor, para quem iremos nós?” (v. 68). Não são palavras de confusão, mas de abandono em Cristo. São palavras de fé acima das limitações da razão humana.         

  Sabe quem começa a abandonar Jesus nesse momento? Judas (vs. 70-71). É interessante notar que foi a doutrina da Presença Real que fez Judas abandonar Cristo.

RAZÃO N. 2 – A severidade de São Paulo ao falar da Eucaristia

  Eu lembro como fiquei impressionado, 02 anos antes de tornar-me católico, com a dureza das palavras de S. Paulo quando ele tratou da Eucaristia:

Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice anunciais a morte do Senhor, até que venha.

Portanto, qualquer que comer este pão, ou beber o cálice do Senhor indignamente, será culpado do corpo e do sangue do Senhor.

Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma deste pão e beba deste cálice.

Porque o que come e bebe indignamente, come e bebe para sua própria condenação, não discernindo o corpo do Senhor.[4]

  Me impressionou a última frase do texto, onde S. Paulo ensina que é preciso discernir (reconhecer) o Corpo do Senhor. Mais que isso, eu fiquei impressionado com a clareza do texto: qualquer um que participa da Eucaristia “indignamente”, ou seja, em estado de pecado mortal, é culpado da Crucificação.

  É difícil entender essas palavras se a Eucaristia é apenas um símbolo. Mas elas fazem todo o sentido se a Eucaristia é, literalmente, o corpo, sangue, alma e divindade de Cristo. A crucificação não foi de um corpo simbólico; assim também é a Eucaristia. Esta é a ligação que Paulo faz: crucificação e Eucaristia.

RAZÃO N. 3 – O testemunho unânime da Igreja Primitiva

  E eu quero dizer unânime.

São Justino, Mártir (100-165 d.C.):De fato, não tomamos essas coisas como pão comum ou bebida ordinária, mas da maneira como Jesus Cristo, nosso Salvador, feito carne por força do Verbo de Deus, teve carne e sangue por nossa salvação, assim nos ensinou que, por virtude da oração ao Verbo que procede de Deus, o alimento sobre o qual foi dita a ação de graças – alimento com o qual, por transformação, se nutrem nosso sangue e nossa carne – é a carne e o sangue daquele mesmo Jesus encarnado. [5]

Santo Inácio de Antioquia (morto em 107 d.C.):Considere aqueles que têm uma visão diferente da graça de Cristo que veio até nós, como estão contra a vontade de Deus… Eles se abstêm da Eucaristia e da oração porque eles não confessam que a Eucaristia é a carne do nosso Salvador Jesus Cristo, que sofreu por nossos pecados e que o Pai, pela Sua Bondade, ressuscitou. Os que falam contra este presente de Deus geram a morte como fruto das suas discussões.[6]

São Cirilo de Alexandria (morto em 444 d.C.):As oferendas, pelo poder misterioso de Deus Todo-Poderoso, são transformadas no Corpo e Sangue de Cristo[7]

São Cirilo de Jerusalém (morto em 386 d.C.):Porque o pão e o vinho da Eucaristia, antes da invocação da Santíssima e Agradabilíssima Trindade, são apenas pão e vinho, depois da invocação o pão torna-se o Corpo de Cristo e o vinho o Sangue de Cristo[8]

           

São Cirilo de Jerusalém (morto em 386 d.C.): Dado que Ele Mesmo declarou e disse do pão: ‘Isto é o Meu Corpo’, quem ousará duvidar? E dado que Ele Mesmo afirmou e disse ‘Isto é o Meu Sangue’, quem duvidará, dizendo que não é o Seu Sangue?[9]

 

  Quem ousará duvidar? Não basta mostrar que existem metáforas em outras passagens bíblicas ou mesmo em João 6, se você não consegue mostrar que estas palavras de Jesus (João 6,53-55) são metafóricas.

  Y é metáfora porque X é metáfora – isso não é argumento.

 X era metáfora quando usado lá, então é metáfora aqui – também não é argumento. É sofisma. É um truque para evitar o trabalho pesado da interpretação honesta e da pesquisa histórica.

  Bom, a interpretação (exegese) e a pesquisa histórica contrariam a ideia de que o Corpo e o Sangue de Cristo na Eucaristia são apenas símbolos. Essa ideia não resiste ao exame detalhado da passagem bíblica em questão, e também não encontra apoio entre os primeiros cristãos.

 

NOTAS


PS: a frase que inicia este texto é de CALVINO.[10]

[1] Com a notável exceção dos protestantes mais antigos, os luteranos. Conforme a Confissão de Augsburgo, artigo 10: “Da ceia do Senhor se ensina que o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue de Cristo estão verdadeiramente presentes na ceia sob a espécie do pão e do vinho e são nela distribuídos e recebidos. Por isso também se rejeita a doutrina contrária.

[2] Levítico 17,10.

[3] Marcos 4,12.

[4] 1 Coríntios 11,26-29.

[5] Primeira Apologia, 66, ponto 2. Extraído em 06/11/2017 de: http://www.monergismo.com/textos/apologetica/Justino_de_Roma_IApologia.pdf

[6] Carta à Igreja de Esmirna, capítulos 6 e 7. Tradução livre do texto disponível em: http://www.newadvent.org/fathers/0109.htm (acesso em 06/11/2017)

[7] Comentário ao Evangelho de Mateus, 26-27. Tradução livre do texto disponível em: http://www.calledtocommunion.com/2010/12/church-fathers-on-transubstantiation/ (acesso em 06/11/2017)

[8] Catequeses 19,7. Tradução livre do texto disponível em: http://www.newadvent.org/fathers/310119.htm (acesso em 06/11/2017).

[9] Catequeses 22,1. Tradução livre do texto disponível em: http://www.newadvent.org/fathers/310122.htm (acesso em 06/11/2017)

[10] Introdução dos Comentários aos Romanos, extraído de: http://cpaj.mackenzie.br/historiadaigreja/pagina.php?id=302 (acesso em 06-11-2017)

 

PARA CITAR


ERIC, Scott, 3 Razões para levar 6. Disponível em: <> Desde 14/11/2017. Traduzido por: João Marcos.

Adaptado do texto de Scott Eric Alt: http://www.patheos.com/blogs/scottericalt/three-reasons-to-take-john-6-literally/ (visita em 06/11/2017)

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