A rica noção de Tradição cunhada por Santo Irineu está intimamente ligada a sua concepção eclesiológica. Isso significa que, além de ressaltar a importância da Tradição na vida da Igreja, Irineu representa o modo como os membros dela constituem a sua Tradição. Irineu expressa, assim, a consciência da Igreja, naquele momento delicado.
A teologia da Tradição de Irineu foi muito importante para a Igreja, pois sistematizou tudo o que estava esboçado anteriormente por São Clemente de Roma, Santo Inácio de Antioquia, São Justino e Egesipo.
Viu-se que as situações pastorais da Igreja no século II reclamaram de Irineu uma postura apologética, ou seja, uma exposição clara da teologia do Cristianismo primitivo e da sua noção de Tradição, com implicações eclesiológicas. Irineu mostrou, assim, o papel da Tradição na vida da Igreja, que percorre a história dos homens, transmitindo o Evangelho do seu Senhor. Novamente, percebe-se a doutrina da recapitulação se fazendo presente noutra posição da doutrina de Irineu. É a Igreja, tendo o Cristo como a sua cabeça, a responsável pela perpetuação da obra de renovação da humanidade.
A Igreja, fundada por Jesus, da qual é a cabeça, foi confiada especialmente aos apóstolos e a seus sucessores. É dessa forma que se pode manter viva a mensagem de Jesus, sem alteração, através da sucessão apostólica. Irineu valorizava também a tradição oral,[1] embora diferentemente dos gnósticos, os quais diziam que poucos iniciados a possuíam. A tradição oral foi a responsável pela variedade de ritos e costumes, testemunhada pelos Padres da Igreja, inclusive Santo Irineu: ela é a força da unanimidade das Igrejas na conservação do depósito da fé.[2]
Além da Tradição das Igrejas, lideradas por bispos sucessores dos apóstolos, e da tradição oral, Irineu estava também atento à tradição dos presbíteros, a “tradição presbiteral”.[3]
Para Irineu, a Tradição é, de certo modo, superior à Escritura, pois os autores sacros antes pregaram, e só depois escreveram o que ensinaram.[4]
Os gnósticos reclamavam a sua participação no grupo apostólico, e Irineu refutava essa possibilidade, apontando a esses as divergências entre as escolas gnósticas, e contrapondo a essas divergências a unidade do ensinamento da Igreja.
Irineu também é uma das testemunhas do primado da Igreja de Roma,[5] embora, para alguns, teologicamente imperfeita.[6] Ele afirma que a Igreja de Roma “é a maior, mais antiga e mais conhecida de todas, fundada e estabelecida (em Roma) pelos dois gloriosíssimos apóstolos Pedro e Paulo, demonstrando que a tradição recebida dos apóstolos e a fé anunciada aos homens chegaram até nós pela sucessão dos bispos […]. Com essa Igreja, em razão da sua primazia de poder, todas as outras Igrejas, isto é, os fiéis de todo o universo, têm obrigação de se conformar: de fato, é nela que todas, em toda a parte e sempre, conservam a tradição que vem dos apóstolos”.[7]
A Tradição da Igreja reconhece, nessa passagem, um dos testemunhos do primado. Alguns protestantes, porém, como o historiador W. Walker, afirmam que o que Irineu tinha em mente era a “liderança na preservação da fé apostólica, e não a supremacia em matéria de jurisdição”, e que, com a “generalização” de um sentimento católico romano, “estava aberta a porta para a afirmação mais ampla da autoridade romana”.[8] Temos em conta que o papado teve diversas encarnações históricas e que, inegavelmente, nas expressões de Irineu, temos um testemunho respeitável, não o primeiro, do papado na história.[9]
Além de ter escrito sobre o primado da Igreja de Roma e de seu bispo, em vários momentos de sua vida, podemos perceber que Irineu encarnou a comunhão eclesial, que tem no bispo de Roma uma de suas garantias. A história registrou três desses momentos: quando presbítero, Irineu intercedeu junto ao papa Eleutério para que houvesse paz nas comunidades cristãs, quando da crise montanista; [10] na Questão Pascal, Irineu intercedeu junto ao papa Vítor pelas comunidades de Éfeso; Irineu também testemunha as peregrinações que seus fiéis faziam a Roma.[11]
Com relação ao ministério ordenado, esse é testemunhado pela obra de Irineu, não de forma sistemática, mas os seus três graus – episcopado, presbiterato e diaconato – são contemplados. Isso significa que os bispos, presbíteros e diáconos ocorrem na obra de Irineu, mesmo que não de forma alinhada como ocorre em Santo Inácio de Antioquia. Este último, algumas décadas antes de Irineu, testemunha como os três graus do sacramento da ordem estavam alinhados na importante Igreja de Antioquia, no final do século I,[12] noção que permitiu a sua padronização pela Igreja católica.
Irineu testemunha o Sacramento da Ordem, como se configurava no século II. Pelo final desse século, o monoepiscopado, também chamado “episcopado monárquico”, já era difundido universalmente, mas não ainda padronizado. Irineu reconhece o bispo ou o presbítero como chefe da comunidade,[13] e os diáconos como colaboradores diretos dos dois primeiros.[14] Na obra de Irineu, os bispos/presbíteros foram constituídos pelos apóstolos como chefes ministeriais e, desde então, os sucedem nas diversas comunidades.
Irineu recorda o princípio da Tradição, pela qual se reconhece como garantia da fé e da comunhão somente o que, do tempo apostólico, foi transmitido pelo ministério episcopal. Isso significa que a verdadeira doutrina deve ser procurada na Tradição recebida dos apóstolos através dos bispos por eles instituídos, os quais, por sua vez, a transmitiram aos seus sucessores até o presente. Diversamente, os hereges não podem reivindicar essa sucessão.[15]
A necessidade de ter um ponto de vista seguro na confusão criada pelos gnósticos estimula a fundação do monoepiscopado sobre o conceito de “sucessão apostólica” visível e verificável.[16] Consequentemente, atendo-se ao princípio da sucessão apostólica, os fiéis dispõem de um critério seguro para discernir os verdadeiros dos falsos bispos/presbíteros, e para manter a comunhão com os verdadeiros.[17]
Irineu é o primeiro dentre os Padres da Igreja a registrar a teologia do diaconato, pois é o primeiro a identificar “os sete” de At 6 com os diáconos: “os nicolaítas tiveram por mestre um tal Nicolau, um dos sete diáconos ordenados pelos apóstolos”[18]. De Irineu em diante, esta identificação será quase unânime. É curioso que Irineu, para identificar a instituição dos “sete diáconos”, utiliza o verbo ordenar, que não ocorre em At 6, e não faz menção ao gesto de imposição das mãos por parte dos apóstolos, como presente no texto lucano. O verbo “ordenar”, na obra de Irineu, no âmbito da teologia ministerial, ocorre mais duas vezes, ao referir-se ao apóstolo Matias, que foi “ordenado” no lugar de Judas Iscariotes.[19]
NOTAS
[1] Cf. C. F. Gomes, Antologia dos Santos Padres, p. 106.
[2] Cf. Eusébio de Cesareia, H. E., V, 24,11s; A. G. Martimort, A Igreja em Oração, p. 41.
[3] Cf. AH, II, 22,25; IV, 27-28; 30, 1; V, 5, 1; 30, 1; 33, 3; 36, 1, II, 22, 25; IV, 27-28; 30, 1; V, 5,1; 30, 1; 33, 3; 36, 1.
[4] Cf. Ribeiro, H. , op. cit., p. 24.
[5] Cf. Gomes, C. F., op. cit., p. 106; Llorca, J., Historia de la Iglesia Catolica, v. 1, p. 264.
[6] Cf. Altaner, B., op. cit., p. 123.
[7] AH, III, 3, 2.
[8] W. Walker, op. cit., p. 93s.
[9] Irineu apresenta uma notável página dedicada à Igreja de Roma e à sucessão de seus bispos: cf. AH, III, 3, 3.
[10] Testemunhada por Eusébio de Cesareia, H. E., V, 4, 2.
[11] Cf. B. Altaner, op. cit., p. 123.
[12] Cf. Inácio de Antioquia, Carta aos Tralianos 3, 1; Carta aos Esmirnenses. 8, 1.
[13] No texto bíblico mais referencial sobre a noção de “sucessão apostólica”, é o relato da despedida de São Paulo em Éfeso (At 20,17-38), quando o Apóstolo fala que sua missão está cumprida e que a missão dos dirigentes daquela Igreja prossegue. Isso significa que Paulo encarrega os dirigentes daquela Igreja de prosseguir o mesmo trabalho por ele realizado a serviço do Evangelho e da Igreja. Os termos “epíscopo” (v. 28) e “presbítero” (v. 17) ocorrem referindo-se às mesmas pessoas, como ocorre em Tt 1,5-6.7-9, e também na obra de Irineu. Só mais tarde o termo “epíscopo-bispo” designará o responsável por uma Igreja local.
[14] Cf. E. Castellucci, Il ministero ordinato, p. 100-101.
[15] Cf. AH, III, 3, 1.
[16] Cf. E. Castellucci, op. cit., p. 103.
[17] Cf. AH, IV, 26, 2.4.
[18] AH, I, 26, 3.
[19] AH, II, 20, 2. 5.
FONTE
IRINEU DE LIÃO. Demonstração da Pregação Apostólica (vol. XXXIII) – São Paulo: Paulus, 2014. – (Patrística) p.24-26