Domingo, Junho 1, 2025

Tertuliano e a Tradição Apostólica.

Em 211d.C Tertuliano escreve uma obra denenominada De Corona em resposta a um caso específico: um soldado cristão se recusou a usar a coroa militar (corona) em uma cerimônia pública em honra ao imperador romano — um gesto considerado de lealdade e patriotismo na sociedade romana. Esse soldado foi punido por sua recusa, o que gerou debate inclusive entre os próprios cristãos: muitos consideraram sua atitude radical, pois não havia mandamento direto das Escrituras proibindo o uso da coroa.

Tertuliano escreve para defender o soldado cristão e justificar o valor da Tradição, mesmo quando não há um mandamento explícito nas Escrituras. Ele argumenta que muitos costumes cristãos se baseiam não em textos bíblicos explícitos, mas na Tradição viva da Igreja, reforçada pelo costume e pela razão. Ele usa o caso da recusa à coroa como ponto de partida para um argumento muito mais amplo sobre a autoridade das tradições não escritas.

A obra De Corona é um dos primeiros testemunhos patrísticos explícitos sobre a legitimidade da Tradição oral — uma das pedras angulares da teologia católica e da apologética contra o sola scriptura protestante. Tertuliano mostra que a Tradição apostólica existia antes da canonização do Novo Testamento, e que os cristãos sempre viveram também por costumes não escritos.

Tertuliano prova: 

  1. Autoridade da Tradição oral: Muitos costumes cristãos (como fazer o sinal da cruz, jejuar em certos dias, batizar de certas formas, etc.) não têm mandamento explícito na Escritura, mas vêm da tradição apostólica e do costume universal da Igreja.

  2. Costume como critério de ortodoxia: Tertuliano afirma que o costume universal e antigo é sinal de tradição verdadeira.

  3. A razão como fundamento da lei: Mesmo que não haja uma lei escrita, a razão também fundamenta o que é correto e justo, principalmente quando está em conformidade com a fé.

  4. Cristianismo contra o culto imperial: A recusa à coroa era também uma afirmação da fidelidade exclusiva a Cristo e uma rejeição aos rituais pagãos e ao culto ao imperador.

A obra inteira é um balde de água fria  em quem tenta achar um paralelo entre a doutrina protestante e a Igeja primitiva. Selecionamos 2 Capítulos mais importantes para traduzir e vermos como tal conceito era totalmente alheio as práticas da Igreja primitiva.

DE CORONA CAPÍTULO 3 E 4


E até quando continuaremos a serrar esta linha para frente e para trás, quando já temos uma prática antiga que, antecipadamente, estabeleceu para nós o estado da questão? Se nenhuma passagem das Escrituras a prescreve, certamente o costume, que sem dúvida fluiu da tradição, a confirmou. Pois como algo poderia entrar em uso, se primeiro não tivesse sido transmitido?

Mesmo ao apelar à tradição, dizeis que deve ser exigida uma autoridade escrita. Perguntemos, então, se a tradição, a menos que esteja escrita, não deve ser admitida. Certamente diremos que não deve ser admitida, se não houver casos de outras práticas que, sem nenhum instrumento escrito, mantemos apenas com base na tradição — e que, depois, o costume confirmou — nos ofereçam algum precedente.

Para tratar brevemente desta questão, começarei com o batismo: Quando vamos entrar na água, pouco antes, na presença da congregação e sob a mão do presidente, professamos solenemente que renunciamos ao diabo, à sua pompa e aos seus anjos. Em seguida, somos imersos três vezes, fazendo um compromisso algo mais amplo do que o que o Senhor prescreveu no Evangelho.

Então, ao sermos levantados (como crianças recém-nascidas), provamos primeiro uma mistura de leite e mel, e a partir desse dia, abstemo-nos do banho diário por uma semana inteira.

Também tomamos, nas congregações antes do amanhecer, e apenas das mãos dos presidentes, o sacramento da Eucaristia, o qual o Senhor ordenou que fosse comido durante as refeições, e que fosse recebido por todos igualmente.

Sempre que chega o aniversário (da morte), fazemos ofertas pelos mortos, como homenagens de aniversário natalício. Consideramos jejuar ou ajoelhar-se em adoração no Dia do Senhor algo ilícito. Alegramo-nos com esse mesmo privilégio também desde a Páscoa até o Pentecostes.

Sentimos dor caso algum vinho ou pão — mesmo que nosso — seja lançado ao chão. E a cada passo e movimento adiante, a cada entrada e saída, quando vestimos nossas roupas e calçamos os sapatos, quando nos banhamos, quando nos sentamos à mesa, quando acendemos as lâmpadas, no leito, no assento — em todas as ações ordinárias da vida diária — traçamos na testa o sinal (da cruz).

Se, para essas e outras regras semelhantes, você insiste em ter um mandamento positivo das Escrituras, não encontrará nenhum. A tradição será apresentada a você como a origem delas, o costume como seu fortalecedor e a fé como sua observadora. Que a razão sustente a tradição, o costume e a fé — você perceberá por si mesmo, ou aprenderá com alguém que já o tenha feito. Enquanto isso, você acreditará que há uma razão à qual se deve submissão.

Acrescento ainda mais um caso, pois será adequado mostrar-lhe como também era entre os antigos. Entre os judeus, é tão comum que suas mulheres estejam com a cabeça coberta, que são reconhecidas por isso. Pergunto, nesse caso, pela lei. Deixo o apóstolo de lado. Se Rebeca abaixou imediatamente seu véu ao ver de longe seu noivo, essa modéstia de uma mera particular não poderia ter feito uma lei — ou então a fez apenas para aquelas que tivessem o mesmo motivo que ela teve. Que somente as virgens sejam veladas, e isso apenas quando estão prestes a se casar, e não até que tenham reconhecido o marido destinado.

Se também Susana, que foi desvelada durante seu julgamento, serve de argumento para o uso do véu pelas mulheres, posso dizer aqui também: o véu era algo voluntário. Ela veio como acusada, envergonhada da desonra que trouxe sobre si, escondendo adequadamente sua beleza — justamente porque agora temia agradar. Mas não suponho que, quando seu objetivo era agradar, ela andasse com véu pelas alamedas da casa do marido. Suponhamos agora que ela estivesse sempre velada. Mesmo nesse caso, ou em qualquer outro, exijo uma lei que determine o traje. Se em lugar algum encontro uma lei, segue-se que a tradição transmitiu o costume, e este mais tarde encontrou (sua autorização) na sanção apostólica, a partir da verdadeira interpretação da razão.

Esses exemplos, portanto, deixam suficientemente claro que se pode defender a observância de uma tradição mesmo não escrita, quando estabelecida pelo costume — o testemunho adequado da tradição é justamente sua prática contínua. Mesmo em assuntos civis, o costume é aceito como lei quando falta um decreto legal positivo; e tanto faz se se baseia em escrito ou em razão, pois a razão, de fato, é a base da lei.

Mas você pode dizer: se a razão é a base da lei, tudo o que alguém apresentar com base na razão deverá ser considerado lei. Ou será que você acha que qualquer crente pode originar e estabelecer uma lei, desde que ela seja agradável a Deus, útil à disciplina, e promotora da salvação, quando o Senhor diz: ‘Por que vocês mesmos não julgam o que é justo?’ (Lucas 12,57)? E isso não apenas em relação a uma sentença judicial, mas a qualquer decisão nas questões que somos chamados a considerar. O apóstolo também diz: ‘Se em alguma coisa pensais de modo diverso, Deus vos revelará isso’ (Filipenses 3,15); ele mesmo, aliás, costumava oferecer conselhos, mesmo sem ter mandamento direto do Senhor, e ditava por si mesmo, como alguém que possuía o Espírito de Deus, que conduz a toda a verdade.

Portanto, seu conselho, pelo peso da razão divina, tornou-se equivalente a nada menos que um mandamento divino. Pergunte, então, com diligência a esse mestre, mantendo intacto seu respeito pela tradição — venha ela de quem vier; não considere o autor, mas a autoridade, e sobretudo a do próprio costume, que por esse motivo devemos reverenciar: para que não nos falte um intérprete. Assim, se também a razão é um dom de Deus, então você aprenderá — não se o costume deve ser seguido por você, mas por que ele deve.

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