O texto a seguir de Santo Tomás foi fonte imediata desta frase da Constituição Pastoral Gaudium et Spes:
“Esta semelhança torna manifesto que o homem, única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma, não se pode encontrar plenamente a não ser no sincero dom de si mesmo.” (Gaudium et Spes, 24).
E isso fica claro na nota 17 que constou na Disceptatio da Constituição nas Atas do Vaticano II:
Cf. S. THOMAS, Contra Gentiles, III, 112. (Quod creaturae rationales gubernantur propter seipsas): “Sic igitur per divinam providentiam intellectualibus creaturis providetur propter se, ceteris autem creaturis propter ipsas… Sola igitur intellectualis natura est propter se quaesita in universo, alia autem omnia propter ipsam”. (Acta Synodalia Sacrosancti Concilii Oecumenici Vaticani II, Volumen IV: Periodus Quarta, Pars I, p. 450.)
SANTO TOMÁS DE AQUINO
SUMA CONTRA OS GENTIOS
CAPÍTULO CXII
AS CRIATURAS RACIONAIS SÃO ORDENADAS EM VISTA DELAS MESMAS, MAS AS DEMAIS CRIATURAS EM VISTA DAS RACIONAIS
Por conseguinte, deve-se primeiramente considerar que a própria condição da natureza intelectual, que a faz senhora de seus atos, exige da providência um cuidado de modo a ser atendida por causa dela mesma, ao passo que a condição das outras naturezas, que não têm domínio sobre os seus atos, está a indicar que elas não são cuidadas por causa delas mesmas, mas como ordenadas para outras coisas. Com efeito, o que é somente atuado por outrem é de natureza instrumental, mas o que atua por si mesmo é de natureza de agente principal. Ora, não se busca o instrumento por causa dele mesmo, mas para que, por meio dele, o agente principal opere.
Por isso, é necessário que todo cuidado que se tenha com o instrumento seja referido ao agente principal como fim. No entanto o cuidado tido com o agente principal por ele mesmo ou por outrem, enquanto é agente principal, é um cuidado por causa dele mesmo. E também por isso as criaturas intelectuais são dispostas por Deus como cuidadas por elas mesmas, ao passo que as outras criaturas, como ordenadas para as criaturas racionais.
Além disso, o que tem domínio sobre o seu próprio ato é livre na operação, pois é livre o que é causa de si mesmo (I Metafísica 2, 982b; Cmt 3,58). Mas o que é atuado por outro para operação é sujeito à servidão. Por isso, toda outra criatura é naturalmente sujeita à servidão, e somente a criatura intelectual é livre. Ora, em qualquer regime, cuida-se dos livres por causa deles mesmos; mas, dos servos, para que sejam usados pelos livres. Assim, pois, as criaturas intelectuais são cuidadas pela divina providência por causa delas mesmas, mas as demais criaturas, por causa daquelas.
Além disso, sempre que há coisas ordenadas para o fim, e entre elas há algumas que por sim mesmas não o podem atingir, elas são ordenadas para as que atingem o fim e que, por si mesmas, para ele se ordenam. Por exemplo: como o fim do exército é alcançar a vitória, a qual é alcançada pelos soldados que lutam por si mesmos, eles são convocados para o exército devido a eles mesmos; mas todos os outros convocados para outros serviços no exército, como os que tratam do cavalos ou os que preparam as armas, são convocados para servirem aos soldados. Ora, depreende-se do que acima foi dito (cc. XXVss). Por isso, somente a criatura intelectual é cuidada por Deus no universo por causa de si mesma, ao passo que todas as demais criaturas o são por cauda dela.
Além disso, em qualquer todo, as partes principais são por causa de si mesmas exigidas para a constituição desse todo, ao passo que as outras o são para a conservação ou melhoria daquelas. Oras, das partes do universo, as mais nobres são as criaturas intelectuais, porque se aproximam mais da semelhança divina. Logo, as naturezas intelectuais são cuidadas pela providência por causa de si mesmas, mas as outras, por causa delas.
Além disso, é manifesto que todas as partes se ordenam para a perfeição do todo, pois o todo não é por causa das partes, ao passo que estas são por causa do todo. Ora, as naturezas intelectuais têm mais afinidades com o todo do que as outras naturezas, pois cada criatura intelectual identifica-se de certo modo com todas as coisas, enquanto compreende pelo seu intelecto todo ente; mas qualquer outra substância tem somente participação limitada no ente. Por isso, todas as demais substâncias estão sujeitas à providência divina por causa das substâncias intelectuais.
Além disso, no curso da natureza cada coisa se comporta de modo que lhe cabe agir. Ora, no curso da natureza, vemos as coisas se comportarem de modo que a substância intelectual usa de todas as outras por causa de si mesma, quer para a perfeição intelectual, enquanto busca a verdade; quer para a perfeição da virtude e aumento da ciência, à maneira de um artista que aplica a ideia artística na matéria corpórea; quer também para o sustento do corpo que está unido à alma intelectiva, como acontece cm os homens. Logo, fica esclarecido que as demais coisas estão sujeitas à providência divina por causa das substâncias intelectuais.
Além disso, o que alguém busca por causa de si mesmo, busca-o sempre, pois o essencial é para sempre. Mas o que se busca por causa de outra coisa não é necessário que se busque sempre, mas segundo a conveniência de quem por cuja causa aquilo é procurado. Como se conclui do que acima foi dito, (I. II, c. XXIII), o ser das coisas provém da vontade divina. Por isso, aquilo que sempre há nos entes foi querido por Deus por causa de si mesmo; mas aquilo que nem sempre há nas coisas não foi querido por causa de si mesmo, mas por causa de outra coisa. Com efeito, as substâncias intelectuais são as que mais se aproximam do ser eterno, porque são incorruptíveis; são também imutáveis, a não ser quando fazem alguma escolha. Logo, as substâncias intelectuais são governadas por causa de si mesmas, e as outras substâncias, por causa daquelas.
No entanto, não é contrário ao que foi demonstrado pelos argumentos supra que todas as partes do universo se ordenam para a perfeição do todo, pois se ordenam para a perfeição do todo enquanto uma serve à outra. Assim, por exemplo, no corpo humano, o pulmão contribui para a perfeição do todo enquanto serve ao coração; por isso, não há contrariedade em as outras partes existirem por causa da intelectuais e por causa da perfeição do universo. Com efeito, se houvesse falta das coisas exigidas pela perfeição das substâncias intelectuais, o universo não seria completo.
Por motivo semelhante, os argumentos supra não se opõem a que os indivíduos sejam para as suas espécies, pois, ordenando-se para elas, ordenam-se ulteriormente para a natureza intelectual. Com efeito, uma coisa corruptível não se ordena para o homem por causa de um só indivíduo humano, mas por causa de toda a espécie humana. Ora, não poderia uma coisa corruptível servir a toda espécie humana senão segundo a totalidade de uma própria espécie. Por isso, a ordem segundo a qual os corruptíveis ordenam-se para o homem exige que os indivíduos se ordenem para as espécies.
Quando dizemos que as substâncias intelectuais são ordenadas pela providência divina por causa de si mesmas, não queremos dizer que elas ulteriormente não se ordenem para Deus e para a perfeição do universo. São ditas serem cuidadas por causa de si mesmas e, por causa delas, as outras coisas, porque os bens, que recebem da providência divina, não lhes são dados para a utilidade das outras coisas; mas o que é dado às outras coisas destina-se, segundo a ordenação divina, ao uso delas.
Por isso, é dito na Escritura: Não vejas o sol, a lula e os demais astros, e, decepcionado pelo erro, adores estas coisas que o Senhor teu Deus criou, para o serviço de todos os homens que estão sob o sol (Dt 4,19); Submetestes todas as coisas aos seus pés; todas as ovelhas e bois, e ainda os animais campestres (Sl 8,8); E tu, Senhor poderoso, julgas tranquilamente e nos governas com muita atenção (Sb 12,18).
Por esses argumentos, refuta-se o erro dos que afirmam ser pecado ao homem matar os animais irracionais, pois eles, pela providência foram ordenados, na ordem natural, para o homem. Por isso, o homem se serve deles sem injúria, quer matando-os, quer utilizando-os de outro modo. Por isso, o Senhor disse a Noé: Vos dei toda a carne, como também as verduras (Gn 9,3).
No entanto, se há na Sagrada Escritura proibição de crueldade para com os animais, como a de não matar a ave com filhotes, isto é feito ou para afastar do homem o espírito de crueldade para com os animais, para que alguém, ao ser cruel com o animal, não estenda esta crueldade aos homens; ou porque vem em dano temporal para o homem a lesão dos animais, quer para o que a faz quer para o outro; ou ainda, por causa de alguma significação, como o que se lê no Apóstolo: Não atarás a boca ao boi que debulha (1Cor 9,9; Dt 25,4).
Tradução: Katia Cethamos.