Sábado, Novembro 16, 2024

Santo Agostinho e a “Babilônia”

INTRODUÇÃO

Recentemente, eu estava debatendo com um pastor evangélico (Fernando García Sotomayor, reitor do Seminário Teológico Rhema Internacional, da Colômbia) e o tema acabou se bifurcando na típica apologia fundamentalista que acusa a Igreja Católica (e as igrejas evangélicas que participam do movimento ecumênico) de ser a “prostituta da Babilônia”. Entre os comentários que o meu amigo pastor suscitou é que tal fato era reconhecido, inclusive, pelos Padres da Igreja, entre eles Santo Agostinho. Quanto a este [personagem], informou:

“Santo Agostinho, em seu livro ‘A Cidade de Deus’, chama Roma de segunda Babilônia: ‘Babilônia é uma Roma anterior e Roma, uma Babilônia posterior. Roma é filha da Babilônia'”.

Muito bem: Santo Agostinho realmente enxergava na Roma pagã (não na Roma cristã) uma segunda Babilônia, como cheguei a observar ao pastor. Em razão disso, enfatizei a questão e pedi para que ele me dissesse se acreditava mesmo que, quando Santo Agostinho falava de Roma, estaria se referindo à Igreja Católica. Entre outras coisas, me respondeu:

“Quem diferencia entre Roma pagã e Roma cristã é você, não estes insígnes homens da fé”.

Apontou, ainda, a seguinte fonte: “Franck M Boyd. ‘A Bíblia ao seu Alcance’. Ed. Vida, pp. 200-229”.

Neste estudo, farei uma breve análise da obra de Santo Agostinho, “A Cidade de Deus”, assim como de algumas outras de suas obras, para demonstrar se é mesmo “coisa minha” e não do insígne Santo Agostinho a diferenciação entre Roma pagã e Igreja Católica Romana. Isto permitirá conhecer melhor o pensamento agostiniano e evitará que, futuramente, volte a ser descontextualizado.

Os texto da obra “A Cidade de Deus” serão tomados a partir do espanhol, conforme veiculado pelo site protestante http://www.iglesiareformada.com/Agustin_Ciudad.html

CONTEXTO E FINALIDADE DA OBRA

No Proêmio do Livro I, Santo Agostinho fala da finalidade pela qual escreve. Em suma, as suas razões são duas:

1) Para defender a glória da cidade de Deus.

A respeito disto, aponta:

“Nesta obra, que vai dirigida a ti e te é devida mediante a minha palavra, Marcelino, filho caríssimo, pretendo defender a gloriosa Cidade de Deus”

(Proêmio, Livro I).

2) Para denunciar o destino da cidade terrena:

“Da mesma forma, tampouco nos silenciaremos acerca da Cidade terrena – que embora pretenda reinar mais ambiciosamente com despotismo, ainda que as nações oprimidas pelo seu insuportável jugo já lhe rendam obediência e vassalagem, o próprio apetite de dominar passa a reinar sobre ela – nada daquilo que pede a natureza desta obra e que penetro com minhas luzes intelectuais”

(Proêmio, Livro I).

Entretanto, o que eram, para Santo Agostinho, a cidade de Deus e a cidade terrena? Ele mesmo explica no Livro XV da obra:

“No entanto, percebo que ficam plenamente satisfeitas e comprovadas as questões mais árduas, espinhosas e difíceis, que são citadas acerca do princípio ou fim do mundo ou da alma, ou da própria linhagem humana, a qual distribuímos em dois gêneros: o primeiro, daqueles que vivem segundo o homem; o outro, segundo Deus. A isto chamamos também, misticamente, de ‘duas cidades’, isto é, duas sociedades ou congregações de homens, das quais uma está predestinada a reinar eternamente com Deus e, a outra, a padecer o eterno tormento com o demônio“.

No pensamento de Agostinho, convivem na terra duas cidades: uma terrena e outra celeste, que é a Igreja peregrina composta pelos cristãos.

Ele parte daqui para fazer frente aos partidários do Paganismo que atribuíam aos cristãos e ao nome de Cristo as calamidades que se abatiam sobre Roma. Santo Agostinho, para quem a Igreja é a cidade de Deus sobre a terra, realiza esta defesa apologética para combater tais acusações; e, em virtude disso, intitula o primeiro livro da obra como “A devastação de Roma não foi castigo dos deuses em razão do Cristianismo”.

Santo Agostinho fala [aqui] de como os pagãos se refugiaram nos sagrados templos católicos durante a destruição de Roma.

No capítulo 1 do livro I, Santo Agostinho começa falando como estes inimigos da Igreja Católica deveriam estar agradecidos, já que muitos conseguiram salvaram suas vidas durante a destruição da cidade por encontrar refúgio nos templos católicos da cidade de Roma. Por isso, intitula esse primeiro capítulo assim: “Dos inimigos do nome ‘cristão’ e de como estes foram perdoados pelos bárbaros por reverência a Cristo, após terem sido vencidos, durante o saque e destruição da cidade”.

Em relação a isto, escreve:

“…muitos [pagãos], abjurando seus erros, tornaram-se bons cidadãos; porém, a maior parte destes manifesta contra ela [=a Igreja] um ódio inexorável e eficaz, mostrando-se tão ingrata e desconhecedora dos evidentes benefícios do Redentor; na verdade, não poderiam mover contra ela [=a Igreja] suas línguas maledicentes, pois [para ela acorreram] quando fugiram, caso contrário perderiam a vida com que tanto se ensoberbecem em seus sagrados templos. Por acaso, não perseguem o nome de Cristo os mesmos romanos a quem, por reverência a este grande Deus, os bárbaros lhes pouparam a vida? Testemunhas desta verdade são as capelas dos mártires e as basílicas dos Apóstolos que, durante a devastação de Roma, acolheram em seu interior aqueles que precipitadamente e temerosos de perder suas vidas puseram suas esperanças na fuga, entre eles não apenas os gentios, mas também cristãos: até nestes santos lugares o inimigo executava o seu furor, porém, ali mesmo amortizava ou apagava o furor de cruel assassino e, por fim, os piedosos inimigos conduziam a estes lugares sagrados aqueles a quem pouparam as vidas, mesmo tendo sido encontrados fora dos santos asilos, para que não caíssem nas mãos daqueles que não exercitavam semelhante piedade. É, aliás, muito digno de se fazer notar que uma nação tão feroz, que por toda parte se manifestava cruel e sanguinária, proporcionando cruéis danos, logo que se aproximou dos templos e capelas, onde era proibida a sua profanação, assim como exercer as violências que em outras partes era permitido exercitar pelo direito da guerra, refreava totalmente o ímpeto furioso da sua espada, desligando-se também do sentimento de cobiça que possuíam, de obter uma grande presa em cidade tão rica e abastecida. Desta forma, conseguiram manter suas vidas muitos daqueles que hoje difamam e murmuram contra os tempos cristãos, imputando a Cristo os trabalhos e penalidades que Roma padeceu, deixando de atribuir a este grande Deus o incomparável benefício que conseguiram: de ter suas vidas conservadas em razão de seu Santo Nome”

(Livro I, capítulo 1).

Qualquer pessoa que acredite que Santo Agostinho considerava a Igreja Católica como “a prostituta” pode achar “curioso” que ele, desde o início da obra, classifique os templos [católicos], as “capelas dos mártires e basílicas dos Apóstolos” como “santos lugares”. Mais adiante, continua:

“Estes vis impugnadores deveriam, pelo mesmo motivo, atribuir aos tempos em que florescia o dogma católico a graça particular de os bárbaros ter-lhes feito a mercê de suas vidas e agirem de modo contrário ao estilo observado durante a guerra – ao que tudo indica, por sua submissão e reverência a Jesus Cristo – concedendo-lhes este singular favor em qualquer lugar que fossem encontrados e, em especial, aos que foram acolhidos pelos templos sagrados, dedicados ao augusto Nome de nosso Deus

(Livro I, capítulo 1).

E finaliza [o capítulo] atirando-lhes na cara como muitos dos que nesse momento atacavam a Igreja tinham chegado ao ponto extremo de fingir ter abraçado a fé católica. Porém, uma vez salvos agora, passavam a se comportar com ingratidão, atacando a Igreja e demonstrando que sua confissão não fôra de coração:

“…porque, muitos destes que vês que com tanta liberdade e desacato escarnecem dos servos de Jesus Cristo só escaparam de sua ruína e morte porque fingiram ser católicos. Agora, com ingratidão, soberba e sacrílega demência, com o coração destruído, se opõem àquele Santo Nome que, no tempo de suas infelicidades, lhes serviu de antemuro. Irritam, deste modo, a justiça divina e dão razão para que sua ingratidão seja castigada com aquele abismo de males e dores, que foi preparado perpetuamente para os maus, pois sua confissão, crença e gratidão não foram de coração, mas só de boca, para que pudessem desfrutar por mais algum tempo das felicidades momentâneas e caducas desta vida”.

Posteriormente, no capítulo 3 do mesmo Livro, fala de “quão imprudentes foram os romanos ao crerem que os deuses Penates, que não puderam proteger Tróia, seriam propícios a eles”. Questionava, assim, não a Igreja de Roma – que não foi quem encomendou a cidade aos cuidados dos deuses de Tróia – mas aos partidários dos romanos pagãos, inimigos da Igreja na cidade.

COMO SANTO AGOSTINHO SE REFERE ÀQUELES QUE ABANDONAM A IGREJA CATÓLICA

No capítulo 25 do Livro XXI, [Agostinho] fala de como os hereges e heresiarcas pertinazes que abandonaram a Igreja Católica não se livrariam do tormento eterno, ainda que tivessem sido batizados nela e recebessem o sacramento da Eucaristia, uma vez que seu estado de apostasia os tornavam piores que os infiéis:

“Por outro lado, tampouco estes – que sabem muito bem que não se deve comer o Corpo de Cristo quando não se está no Corpo de Cristo – prometem erroneamente aos que da unidade daquele Corpo caíram em heresia ou na superstição dos gentios, a libertação do fogo eterno. Primeiramente, porque devem considerar quão intolerável seja tal coisa e quão extremamente afastasta e desviada da sã doutrina estão a maioria ou quase todos aqueles que saíram do grêmio da Igreja Católica, fazendo-se autores de heresias e tornando-se heresiarcas. Estes não são melhores do que aqueles que nunca foram católicos ou que caíram sob os seus laços. Pensam tais heresiarcas que se livrarão do tormento eterno porque foram batizados na Igreja Católica, tendo sido por ela recepcionados no princípio, estando em união com o verdadeiro Corpo de Cristo: o sacramento do sacrossanto Corpo de Cristo. Contudo, não há dúvidas de que é pior aquele que apostatou e abandonou a fé, e que de apóstata torna-se cruel combatedor da fé, do que aquele que não deixou ou abandonou o que nunca teve. Em segundo lugar, porque também a estes apontou o Apóstolo, após ter apresentado as obras da carne, ameaçando-os com a mesma verdade: ‘os que praticam semelhantes coisas não possuirão o Reino de Deus'”

(Livro XXI, capítulo 25).

Entretanto, no capítulo 2 do Livro XVI, acrescenta que o surgimento de heresias fortalece a fé católica, já que oferece ocasião para pregar a verdade com maior vigor e cria oportunidade para o aprendizado:

“Não obstante tudo isto, vem redundar na utilidade dos proficientes, conforme a expressão do Apóstolo: ‘Convém que hajam heresias para que os bons queiram estar entre vós’; e por isso mesmo diz a Escritura: ‘O filho atribulado e exercitado nas penalidades será sábio, e do imprudente e do mau se servirá como de ministro e servo’. Porque muitas coisas que pertencem à fé católica, quando os hereges, com sua cautelosa e astuta inquietude, as perturbam e desassossegam, ocorrem para que sejam defendidas contra eles, pois são consideradas com maior escrupulosidade e atenção; percebidas com maior clareza; e pregadas com maior vigor e constância, para que a dúvida ou controvérsia que excita em sentido contrário sirva de ocasião propícia para o aprendizado” (Livro II, capítulo 2).

Por isso, no capítulo 51 do Livro XVIII fala de “Como pelas dissensões dos hereges se confirma também e corrobora a fé católica”.

Aqui, [Santo Agostinho] fala que esses hereges que abandonam a Igreja Católica e rejeitam de forma pertinaz a correção, perseverando na heresia, são causa de descrédito para o nome ‘cristão’. Ainda que se auto-intitulem cristãos – comenta – e contem com a Escritura e os sacramentos, com suas contínuas divisões e dissensões são causadores de blasfêmia para o nome de Cristo.

“Aqueles que na Igreja de Cristo estão imbuídos em algum erro contagioso, tendo sido corrigidos e advertidos para que saibam o que é são e reto, no entanto, resistem vigorosamente e não querem se emendar das suas pestilentas e mortíferas opiniões; antes, com mente obstinada, as defendem, tornando-se hereges; e, saindo do grêmio da Igreja, são tidos no número dos inimigos que a exercitam e afligem. Pois, ainda deste modo, através de seu mal, aproveitam também os verdadeiros católicos, que são membros de Cristo, tirando Deus o bem ainda que dos maus (…) Em razão deles (=os hereges), se desacredita e blasfema o nome cristão e católico; este [nome], quanto mais é amado e estimado por aqueles que querem viver santamente em Cristo, tanto mais causa dor naqueles que praticam o mal dentro [da Igreja]; estes não desejam que seja tão amado e apreciado [esse nome], como querem as almas piedosas. Os mesmos hereges, quando mantêm o nome cristão, os sacramentos cristãos, as Escrituras e a profissão [de fé], causam grande dor nos corações dos piedosos porque, para muitos, que também querem ser cristãos, estas discórdias e dissensões os obriga a duvidar, e muitos maledicentes encontram também neles matéria conveniente e ocasião para blasfemar o nome cristão, já que entendem por cristã qualquer denominação a que pertençam”

(Livro XVI, capítulo 1).

Também fala de como os profetas vaticinaram a Cristo e sua Igreja, a qual já não está cativa, mas que agora todas as pessoas podem buscar a proteção da fé católica:

“Resta-nos, pois, três Profetas, dos Doze Menores, que profetizaram nos últimos anos do cativeiro: Ageu, Zacarias e Malaquias. Entre estes, Ageu, com toda a clareza, nos vaticina sobre Cristo e sua Igreja nestas breves e compendiosas palavras: ‘Isto diz o Senhor dos exércitos: dentro de pouco tempo moverei o céu e a terra, o mar e a terra firme; moverei todas as nações e virá o que é desejado por todas as gentes’. Esta profecia a vemos cumprida em parte; e o que falta para cumprir, esperamos que ocorra no fim do mundo, pois o céu já foi movido com o testemunho dos anjos e estrelas quando Cristo encarnou; moveu a terra com o estupendo milagre do parto da Virgem; moveu o mar e a terra firme já que nas ilhas e em todo o mundo já é pregado o nome de Jesus Cristo; e, assim, vemos que todas as gentes estão vindo se acolher sob a proteção da fé católica

(Livro XVIII, capítulo 35).

ROMA, UMA SEGUNDA BABILÔNIA, DESDE QUE OBSERVADO O SEU VERDADEIRO CONTEXTO

Em vários pontos da obra, Santo Agostinho se refere à Roma pagã (não-cristã) como uma segunda Babilônia. Abordemos cada uma delas, para analisarmos o seu verdadeiro contexto. Uma delas encontra-se no capítulo 17 do Livro XVI:

“Na Ásia prevaleceu o império e domínio da cidade ímpia, cuja cabeça era Babilônia, nome muito apropriado para esta cidade terrena, pois Babilônia significa ‘confusão’. Nela reinava Nino após a morte de seu pai, Belo, que foi o primeiro que reinou ali por 65 anos. E seu filho Nino, falecido o pai, sucedeu no reino e reinou 52 anos. Corria o 43º ano de seu reinado quando nasceu Abraão, por volta do ano 1200, antes da fundação de Roma, que FOI como que uma segunda Babilônia, mas no Ocidente

(Livro XVI, capítulo 17).

Aqui Agostinho fala de Roma, como uma segunda Babilônia, empregando tempo “passado”, ou seja, quando esta cidade foi fundada e veio a ser – no passado – como que uma segunda Babilônia. Observe-se que ele se refere à Cidade de Roma, não à Igreja cristã que ali se encontra.

E no capítulo 2 do Livro XVIII:

“Porém, os assuntos que deveríamos inserir nesta obra, para comparar ambas as Cidades entre si, ou seja, a terrena e a celeste, o faremos melhor que os gregos e os latinos, entre os quais se encontra a própria Roma, como que a segunda Babilônia

(Livro XVIII, capítulo2).

E novamente no capítulo 22 do Livro XVIII:

“Para não me deter demasiadamente, direi que a CIDADE de Roma FOI FUNDADA como que uma segunda Babilônia; e como filha da primera Babilônia, Deus foi servido pela conquista de todo o âmbito da terra, que foi pacificada, reduzindo-se tudo ao governo de uma só república e sob as mesmas leis”

(Livro XVIII, capítulo 22).

Nestas três ocasiões, Santo Agostinho nada fala da Igreja [romana], mas da cidade que logo após a sua fundação chegou a ser uma segunda Babilônia. Em todos estes textos faz referência à Roma pagã e não à Roma cristã. Isto concorda perfeitamente com a interpretação tradicional católica, de que a Roma pagã perseguidora e opressora dos cristãos representava o mesmo que em outros tempos a [antiga] Babilônia representou para o povo judeu. Nós, católicos, cremos inclusive que, quando São Pedro em sua Epístola saúda a partir da “Babilônia”, o faz em código para indicar que se achava em Roma. Maior absurdo seria crer que a Igreja de Roma fosse “a prostituta”, sendo que o próprio São Paulo não economiza elogios [para esta igreja] em suas Epístolas.

É por isso que assumir incautamente [a idéia] de que Santo Agostinho simplesmente estaria se referindo à Igreja de Roma [como “a prostituta”], ignorando o contexto, resultará numa imensa descontextualização de seu pensamento. Se se conhecesse um pouco [o pensamento de Santo Agostinho] poder-se-ia deduzir que tal raciocínio [contrário à Igreja de Roma] não é coerente, nem faz sentido. Porém, para nos aprofundarmos um pouco mais sobre isso, passemos para o próximo ponto.

QUAL ERA A POSIÇÃO DE SANTO AGOSTINHO ACERCA DA IGREJA DE ROMA?

Para Santo Agostinho, em Roma encontrava-se a Sé de Pedro, confirmada pela sucessão dos bispos; por isso, se refere a ela freqüentemente como “a Sé Apostólica“. Assim, aos maniqueus que tinham se afastado da Igreja Católica, escreve:

“Ainda prescindindo da sincera e genuína sabedoria (…), que em vossa opinião não se encontra na Igreja Católica, muitas outras razões me fazem manter-me em seu seio: o consentimento dos povos e das gentes; a autoridade, erigida com milagres, nutrida com a esperança, incrementada com a caridade, confirmada pela antigüidade; a sucessão dos bispos a partir da própria sé do apóstolo Pedro, a quem o Senhor confiou, após a ressurreição, o apascentamento de Suas ovelhas, até o atual episcopado; e, enfim, o próprio apelativo de ‘católica’, que não sem razão somente a Igreja alcançou (…) Estes vínculos do nome cristão – tantos, grandiosos e dulcíssimos – mantêm o fiel no seio da Igreja Católica, apesar de a verdade ainda não se apresentar em razão da torpeza da nossa mente e indignidade da nossa vida”

(C. ep. Man. IV,5).

E em sua Epístola 53 escreve:

Se a sucessão dos bispos é considerada, quanto mais certa e beneficiosa a Igreja que reconhecemos chegar até o próprio Pedro, aquele que portou a figura da Igreja inteira, a quem o Senhor disse: ‘Sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela’! O sucessor de Pedro foi Lino; e seus sucessores, em ordem de sucessão ininterrupta, foram estes: Clemente, Anacleto, Evaristo, Alexandre, Sisto, Telésforo, Higino, Aniceto, Pio, Sótero, Eleutério, Victor, Zeferino, Calisto, Urbano, Ponciano, Antero, Fabiano, Cornélio, Lúcio, Estêvão, Sisto, Dionísio, Félix, Eutiquiano, Caio, Marcelino, Marcelo, Eusébio, Milcíades, Silvestre, Marcos, Júlio, Libério, Dâmaso e Sirício, cujo sucessor é, presentemente, o bispo Anastácio. Nesta ordem de sucessão nenhum bispo donatista é encontrado”

(Ep. 53,2 )

Nesta epístola, Santo Agostinho é particularmente claro porque, referindo-se à Igreja de Roma, a assinala como a que chega até o próprio Pedro e menciona, um a um, os bispos de Roma.

Porém, se ainda restam dúvidas sobre o pensamento de Agostinho, nada mais claro que as seguintes palavras:

“Não é possivel crer que guardais a fé católica se não ensinais que se deve guardar a fé romana”

(Serm.120,13).

Para Santo Agostinho, a primazia da catédra apostólica residiu sempre na Igreja de Roma:

“…viram que Ceciliano estava unido por cartas de comunhão à Igreja romana, na qual sempre residiu a primazia da cátedra apostólica…”

(Ep 43,3,7).

Além disto, não devemos deixar passar em branco que nos conflitos com os pelagianos, Santo Agostinho recorre à autoridade da Sé Apostólica (Roma) para confirmar os Concílios de Cartago e Milevi (411, 412 e 416), condenando o Pelagianismo. Eis um extrato da carta enviada por 61 bispos – inclusive Santo Agostinho – ao papa Inocêncio:

Visto que Deus, por um dom especial de Sua graça, vos colocou na Sé Apostólica e nos deu, em nossos tempos, alguém como vós, para que melhor seja imputada a nós como falta de negliência se falhamos em mostrar a Vossa Reverência o que se sugere à Igreja, porque podeis receber as mesmas com desprezo ou negligência, rogamo-vos que envolvas vossa diligência pastoral neste grande perigo para os membros débeis de Cristo (…) Ao insinuarmos estas coisas ao vosso peito apostólico, não precisamos dizer muito e amontoar palavras acerca desta impiedade, já que sem dúvida vos movereis com tal sabedoria que não podereis vos abster de corrigí-las, para que não possam se infiltrar ainda mais (…) Dizem que os autores desta perniciosa heresia são Pelágio e Celestino que, na verdade, deveriam preferir ser curados com a Igreja ao invés de serem desnecessariamente separados da Igreja. Dizem que um deles, Celestino, inclusive alcançou o sacerdócio na Ásia. Sua Santidade foi melhor informada pelo Concílio de Cartago acerca do que foi feito contra ele há alguns anos. Pelágio – nos informam as cartas de alguns de nossos irmãos – encontra-se em Jerusalém e dizem que vem enganando a muitos ali. Porém, muitos mais, que puderam examinar melhor os seus pontos de vista, o estão combatendo em nome da Fé Católica, em especial vosso santo filho, nosso irmão e companheiro sacerdote, Jerônimo. Contudo, consideramos que com a ajuda da misericórdia de nosso Deus, a quem rezamos para que vos aconselhe e escute vossas preces, aqueles que mantêm estas perversas e banais opiniões cederão mais facilmente diante da autoridade de Sua Santidade, que recebestes a autoridade a partir das Santas Escrituras (auctoritati sanctitatis tuae, de sanctarum scripturarum auctoritate depromptae facilius….esse cessuros), para que possamos nos regozijar com sua correção ao invés de nos entristecermos pela sua destruição. Porém, escolhendo eles mesmos o que quiserem, Vossa Reverência deve considerar ao menos a necessidade de se cuidar destes muitos que podem ser enredados por suas redes, caso não se submetam honradamente. Escrevemos isto a Sua Santidade a partir do Concílio da Numídia, imitando nossos companheiros bispos da Igreja e província de Cartago, que escreveram acerca desta questão à Sé Apostólica que Sua Graça adorna

(Epístola do Concílio de Milevi ao papa Inocêncio I).

E assim o papa Inocêncio I confirmou as decisões dos concílios, reservando-se o dever de citar Pelágio e Celestino, para reformar, se fosse necessário, a sentença de Dióspolis, que condenara a doutrina incriminada em uma carta conhecida como “In requirendis”, dirigida aos bispos que se reuniram em Cartago e Milevi.

Santo Agostinho então escreveu para dar por finalizada a questão, já que a “Sé Apostólica” havia se pronunciado:

“Iam de hac causa duo concilia missa sunt ad sedem apostolicam: inde etiam rescripta venerunt. Causa finita est, utinam aliquando finiatur error”

Que pode ser assim traduzido:

“Por este motivo foram enviadas duas cartas à Sé Apostólica e dali vieram dois rescritos. A causa foi encerrada, para que finalmente o erro seja encerrado

(Sermo 131,10,10; Ep 150,7).

CONCLUSÃO

Qualquer vestígio de senso comum deveria perguntar aos fundamentalistas partidários desse argumento: como poderia ser possível que Santo Agostinho, se considerasse a Igreja de Roma como “Babilônia”, fosse apelar justamente a ela em questões de fé tão importantes? Estaria talvez louco? Como então afirma que sobre a Igreja de Roma sempre residiu o principado da cátedra apostólica e que não guarda a fé católica quem não guarda a fé romana? Estaria, por acaso, recomendando que se guardasse a fé babilônica e se abraçasse o Paganismo? Por que não apenas ele, mas todos os demais bispos dos Concílios africanos, apelaram para o Papa com uma linguagem tão submissa e obediente? Por que escreveu aos donatistas convidando-os a retornar à Igreja Católica, como vemos a seguir?

Venham, irmãos donatistas, se desejam se unir à videira. É penoso quando vos vemos assim cortados. Numerem os sacerdotes, inclusive a partir da sé de Pedro. E, nessa ordem, verifiquem quem os sucedeu. Essa é a pedra, a qual as portas do inferno não podem conquistar. Todos os que se regozijam na paz apenas julgam verdadeiramente”

(Salmo contra a Cerimônia Donatista 2; ano 393; in GILES, 182)

Por que logo depois que os decretos da Igreja de Roma sobre os pelagianos foram emitidos Santo Agostinho não perdia a oportunidade de relembrar aos pelagianos e aos fiéis os decretos emanados por essa autoridade?

[Celéstio] deveria manter seu assentimento ao decreto da Sé Apostólica, o qual foi publicado por seu predecessor de sagrada memória. O acusado, no entanto, rejeitou condenar as objeções feitas pelo diácono; contudo, ele não se atreveu a sustentar abertamente a carta do bendito papa Inocêncio

(Do Pecado Origninal; ano 418; in NPNF1,V:239).

“…ele contestou que consentiu às cartas do papa Inocêncio, de bendita memória, pelo qual toda a dúvida acerca desta matéria foi removida

(Contra as Duas Cartas dos Pelagianos 3,5; ano 420; in NPNF1, V:393).

Por que as cartas do papa Inocêncio, segundo Santo Agostinho, removeram toda dúvida entre os hereges, quando estes já haviam sido condenados por diversos Concílios africanos cheios de bispos? Se Santo Agostinho via a Igreja Romana como Babilônia, será que teriam mais autoridade os decretos da Babilônia que os de todos os bispos reunidos nos Concílios de Cartago e Milevi?

“As palavras do venerável bispo Inocêncio ao Concílio de Cartago referentes a essa matéria: o que poderia ser mais claro ou manifesto que o juízo da Sé Apostólica?

(Contra as Duas Cartas dos Pelagianos 3,5; ano 420; in NPNF1, V:394).

Eis aí as interrogações que devem responder honestamente aqueles que não pretendem dar o seu braço a torcer.

Espero, com estas breves reflexões, ter contribuído para dar a conhecer o verdadeiro contexto das palavras de Santo Agostinho e demonstrar que quando se referia a Roma como “segunda Babilônia” estava, na verdade, se referindo à cidade de Roma (a Roma pagã) e não à Igreja Católica Romana. Apresentar fragmentos isolados do seu pensamento, sem o texto em seu contexto, para insinuar que tinha posturas que jamais teve, não pode ser caracterizado senão de desonesto.

No entanto, apesar de ter apresentado estas provas ao pastor mencionado, ele não quis reconhecer o seu erro e ainda escutei o seguinte:

“Se a minha resposta sobre Santo Agostinho e sua obra não te satisfez, desculpe-me. Por isso é que sou especializado em Bíblia e não em Patrística, porque não baseio a minha fé no que outros eminentes cristãos disseram”.

Com isto, não há como resistir à tentação de perguntar: “ENTÃO, POR QUE QUISESTE ABRIR A BOCA???”

Autor: José Miguel Arráiz

Tradução: Carlos Martins Nabeto

Fonte: http://www.apologeticacatolica.com.br

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Artigos mais populares