Sexta-feira, Novembro 15, 2024

Santo Agostinho e a infalibilidade dos Concílios universais

Falar da posição de Santo Agostinho sobre a infalibilidade dos Concílios universais não é uma tarefa fácil, pois o Santo Doutor nunca tratou do tema ex professo. O que podemos concluir com facilidade é que negou a infalibilidade de Concílios regionais, como se depreende de sua visão sobre o Concílio de Cartago sob São Cipriano (cf. Carta 93,38 e Tratado sobre o Batismo, livro 6, cap. 2, 3) e do Concílio de Bagai (cf. Réplica à carta de Parmeniano, livro 3, cap. 6,29 e Carta 23,5).

 

No entanto, uma busca minuciosa nas obras de Santo Agostinho traz várias considerações importantes do Doutor da Igreja ao tratar de Concílios universais, vejamos:

 

1) Na sua visão, os Concílios universais são a última instância de julgamento na Igreja:

“Concedamos que aqueles bispos que julgaram em Roma não eram bons juízes; ainda os ficava o concílio plenário de toda a Igreja, no qual se poderia discutir a causa frente a esses mesmos juízes; se fosse demonstrado que eles julgaram mal, anularia-se sua sentença. Demonstrem os donatistas que eles executaram ambas as coisas. Eu provo facilmente que não as executaram, com somente ver que o mundo inteiro não está em comunhão com eles. Se as executaram, foram novamente vencidos, com sua própria separação demonstra”. (Carta 43, 19)

“Se ela, salvando a paz, uns creram ainda uma coisa e outros outra sobre este ponto, enquanto um concílio universal não havia tomado uma determinação clara e autêntica, cobriria a caridade da unidade o erro da fraqueza humana, como está escrito: O amor cobre uma multidão de pecados. Vou referir-me agora ao bem-aventurado mártir Cipriano, em cujos escritos encontramos preciosos documentos; e o faço precisamente porque estes donatistas querem apoiar-se carnalmente em sua autoridade quando na realidade é sua caridade a que os fulmina espiritualmente. (…) Com efeito, naqueles tempos, antes que a unanimidade de toda a Igreja houvesse confirmar com a sentença do concílio plenário o que se devia fazer nesta questão, pareceu-lhe, reunido com cerca de oitenta bispos africanos, que era preciso batizar de novo a todo aquele que vinha à Igreja tendo recebido o batismo fora da comunhão da Igreja católica”. (Tratado sobre o batismo, livro 1, cap. XVIII, 27-28)

 

2) Tacha de cismáticos aqueles que não obedecem a decisão de um Concílio universal:

“Ainda seguem batizando fora da Igreja; se pudessem, rebatizariam à própria Igreja. Oferecem seu sacrifício na dissenção e o cisma e saúdam ao povo em nome da paz, enquanto lhe privam da paz da salvação. Rasgam a unidade de Cristo, blasfemam contra a herança de Cristo, expulsam o batismo de Cristo”. (Carta 43,21)

“eles que estão convictos de haver perpetrado uma ruptura cismática da Unidade Cristo não por trezentos e dez bispos, mas pela autoridade dos do mundo inteiro”. (Réplica à carta de Parmeniano, livro 3, cap. 6, 29)

 

3) Diz aos donatistas que, após uma controvérsia obscura sobre um ponto teológico, um Concílio universal confirma qual é o “pensamento seguro de salvação”:

“Já é tempo, creio, de não dar a impressão de servir-me de argumentos humanos. Já nos tempos precedentes da Igreja, antes do cisma de Donato, a obscuridade desta controvérsia fez que ilustres varões e mesmo bispos animados de grande caridade, ficando sempre a salvos a paz, discutissem entre si e flutuassem de tal modo que não coincidiam os variados estatutos dos concílios em suas diversas regiões, até que, dissipadas todas as dúvidas, confirmou-se em um concílio plenário de todo o orbe qual era o pensamento seguro de salvação”. (Tratado sobre o batismo, livro 1, cap. 8, 9)

 

4) Diz que os Padres conciliares estabeleceram o termo ‘homousios” no Concílio de Nicéia com a autoridade da verdade e com a verdade da autoridade:

“Logo o Pai e o Filho são de uma mesma substância. É isto que significa aquele ‘homousios’, que os Padres católicos estabeleceram com a autoridade da verdade e com a verdade da autoridade no Concílio de Nicéia contra os hereges arianos” (Contra Maximino e Ário, II, XIV, 3)

 

Tudo isso é suficiente para concluir que Santo Agostinho defendia a infalibilidade dos Concílios universais? Tendo a crer que sim, e vários teólogos católicos têm argumentado através dessas passagens, desde São Roberto Bellarmino[1] e Melchor Cano[2] até aos mais modernos[3]. No entanto, é inegável que ainda abre espaço para um protestante tergiversar, ainda mais lembrando que o protestantismo tem uma visão eclesiológica bem diferente da nossa.

 

Há outra forma, no entanto, de evidenciar que para Santo Agostinho os Concílios universais são infalíveis. Nessa forma de argumentar recorrerei a um silogismo, demonstrando que as premissas, maior e menor, encontravam-se, claramente, no pensamento de Santo Agostinho, e que a conclusão, portanto, é inevitável pela lógica. Provavelmente a genialidade de Santo Agostinho não se furtaria à conclusão que suas próprias premissas demandam. O silogismo é uma argumentação dedutiva. Exemplificando: Premissa maior: Todo homem é um animal racional. Premissa menor: Carlos é um homem. Conclusão: Carlos é um animal racional. A premissa maior que “1) a Igreja universal não pode errar” estava presente em Santo Agostinho. A premissa menor que “2) os Concílios universais são expressões da Igreja universal”, igualmente. Daí que Santo Agostinho devesse concluir, portanto, que os Concílios universais não podem errar. Estando esses dois pressupostos referidos abundantemente no pensamento do Santo Doutor é muito improvável que Santo Agostinho negasse a infalibilidade dos Concílios universais.

 

1) A IGREJA UNIVERSAL NÃO PODE ERRAR

 

Foram várias as passagens encontradas nesse sentido nas Obras do Doutor de Hipona. Os dizeres são muito fortes e dificilmente questionáveis.

“Por conseguinte, embora não se apresente nenhum exemplo certo a este respeito tomado das Escrituras canônicas, mantemos, contudo, neste assunto a verdade das mesmas Escrituras, ao praticar o que já pareceu bem à Igreja universal, que recomenda a autoridade das mesmas Escrituras. Assim, como a santa Escritura não pode enganar, qualquer um que teme ser enganado pela obscuridade desta questão, deve consultar a mesma Igreja, assinalada sem ambiguidade pela santa Escritura. Mas se duvidas que a santa Escritura recomenda a esta Igreja que se estende em número tão abundante por todos os povos, e se não o duvidasse não estarias ainda no partido de Donato, eu te abrumarei com testemunhos abundantes e claríssimos, tomados da mesma autoridade, a fim de que com tuas concessões, supondo que não te aferras à tua obstinação, façam-te confessar isso. Ainda antes te mostrarei que nada verdadeiro pudeste responder a minha carta, que trataste de combater”. (Réplica ao gramático Crescônio, Livro 1, cap. 33, 39)

Contra o donatista Crescônio, Santo Agostinho refutava o rebatismo de hereges. Santo Agostinho argumenta que, embora não haja nas Escrituras nenhum exemplo claro a esse respeito, deve-se praticar o que a Igreja universal admite. E em seguida acrescenta o que é mais importante: como a Santa Escritura não pode enganar, qualquer um que teme ser enganado por causa da obscuridade do tema, deveria consultar a própria Igreja, assinalada pela Santa Escritura. Nada mais claro! Quem consulta a Igreja universal não pode ser enganado, já que a Bíblia não pode enganar ao recomendar essa mesma Igreja. Ou seja, Santo Agostinho prova a infalibilidade da Igreja universal através da autoridade das Escrituras inerrantes.

“Vêm, pois, estes sedutores e perguntam a um homem que não entende as divinas Escrituras como podem estar no céu os governadores das trevas, para que, ao não saber responder, seja arrastado por eles ao engano, pois toda alma ignorante é curiosa. Mas quem conhece bem a fé católica e vive protegido pelos bons costumes e a verdadeira piedade, embora não conheça sua heresia, sabe como responder-lhes. Pois ninguém pode enganar ao que conhece o que atém a fé católica, difundida pelo mundo inteiro, já que ela vive segura, sob o governo de Deus, frente aos ímpios e pecadores e frente aos próprios católicos negligentes”. (O combate cristão, cap. IV, 4)

Santo Agostinho nesta passagem é claríssimo que quem conhece o que atém a fé católica, difundida pelo mundo inteiro, não pode ser enganado, já que ela vive segura, sob o governo de Deus. Dito em outras palavras: o fiel que conhece o que crê a Igreja universal não pode ser enganado, pois essa crença vive segura sob a assistência de Deus

“Como contraponto destes dentes, aparecem os dentes da Igreja, sob cuja autoridade os crentes se vêem cortados do erro dos gentios e das doutrinas heterogêneas, e se vêem transvasados a ela que é corpo de Cristo”. (Salmo 3)

Santo Agostinho está comentando ao verso 7 do Salmo 3. Este verso fala sobre Deus quebrando os dentes dos pecadores. O contraponto desses dentes dos ímpios são os dentes da Igreja, sob cuja autoridade os católicos se vêem cortados do erro e das doutrinas heterodoxas. Não é preciso dizer mais nada.

“É algo evidente, o aceita a fé, o aprova a Igreja, é verdade”. (Sermão 1)                           

Em latim a frase é assim: Manifestum est, admittit fides, approbat Ecclesia catholica, verum est. Repare que ele toma por verdadeiro algo pelo fato da Igreja católica o aprovar. A Igreja o aprova, verdadeiro é.

“A Igreja de Deus, cercada por tanta palha e cizânia, tolera muitas coisas, mas Ela não aprova nem faz aquilo que é contrário à fé ou à virtude, nem tampouco Ela se cala perante essas coisas.” (Ep. 55. n 35 al 119)

Mais uma vez a infalibilidade da Igreja universal é manifesta em Santo Agostinho. A Igreja não aprova nem faz aquilo que é contrário à fé ou à virtude.

“Vejamos, então, o que me ensina Manes. Examinaremos antes de tudo aquele livro ao que denominais Carta do Fundamento, no qual se contém quase tudo o que vocês crêem. Quando nos lia naquele tempo de minha miséria, dizia-nos que éramos iluminados por vocês. Começa assim: “Manes, apóstolo de Jesus Cristo pela providência de Deus Pai. Estas são as palavras saudáveis que emanam da fonte perene e viva”. Se os agrada, considera com boa paciência o que pergunto. Não vejo que o seja apóstolo de Cristo. Suplico-vos que não se irritem e comeceis a maldizer-me. Sabeis que me propus não crer temerariamente em nada o que é dito por vocês. Pergunto, então, quem é esse Manes. Respondeis: O apóstolo de Cristo. Não o creio. Não terás já o que dizer ou fazer. Prometeste-me a ciência da verdade e agora me obrigar que creia o que ignoro. Talvez me leias o Evangelho e tente mostrar-me nele quem é Manes. E se te encontrasses com alguém que ainda não crê no Evangelho, que farias se te dissesse: Não o creio? Eu, na verdade, não creria no Evangelho se não me movesse a ele  autoridade da Igreja católica”. Portanto, se obedeci aos que me diziam que cresse no Evangelho, por que não iria obedecer aos que me dizem: “Não creias nos maniqueus”? Escolhe o que queres. Se diz: “Creia nos católicos”, eles me admoestam que não os outorgue a mais mínima fé; portanto, crendo-lhes, não posso crer-te a ti; se dizes: “Não creia nos católicos”, não agirás retamente ao obrigar-me a crer em Manes em virtude do Evangelho, porque cri nele pela pregação da Católica. Se, pelo contrário, diz: “Fizeste bem em crer nos católicos enquanto louvam o Evangelho, mas não fizeste bem em crê-los quando vituperam a Manes”, crês-me tão néscio como para crer o que tu queres e não crer o que tu não queres, sem dar razão alguma? Meu comportamento é, então, muito mais justo e mais cauto ao não passar a ti, dado que ao menos uma vez cri nos católicos, a não ser que no lugar de mandar-me crer, faça-me saber algo com toda claridade e evidência. Por consequência, se vai dar-me alguma razão, deixa de lado o Evangelho. Se te agarras ao Evangelho, eu me agarrei naqueles por cujo mandato cri no Evangelho, e por cuja ordem em nenhum modo crerei em ti. Porque se, casualmente, pudesses falar algo claro no Evangelho sobre a condição de apóstolo de Manes, terás que encerrar peso ante mim à autoridade dos católicos que me ordenam que não te creia; mas reduzida essa autoridade já não poderei crer nem no Evangelho, posto que havia crido nele amparando-me na autoridade deles. E dessa maneira, nenhum valor terá para mim o que saques dele. Portanto, se no Evangelho não se fala nada claro sobre a condição de apóstolo de Manes, crerei nos católicos antes que a ti. Se, por outro lado, lês nele algo claro em favor de Manes, não te crerei e nem neles. A eles não crerei porque me enganaram a respeito de ti; a ti tampouco porque me apresentas uma Escritura na qual havia crido graças aqueles que me mentiram. Mas longe de mim não crer no Evangelho! Crendo nele não acho modo de poder crer também em ti. Entre os nomes dos apóstolos que ali se lêem não se acha o de Manes. Nos Atos dos Apóstolos lemos quem ocupou o lugar do que entregou a Cristo. Se creio no Evangelho, necessariamente crerei nesse livro porque a autoridade católica me recomenda igualmente um e outro escrito. No mesmo livro lemos também o relato conhecidíssimo da vocação e apostolado de Paulo. Lê-me agora, se podes, um texto do Evangelho onde se nomeie a Manes como apóstolo, ou de qualquer outro livro no que confesse haver já crido. Vai ler-me, acaso, aquele no que o Senhor prometeu aos apóstolos o Paráclito? Em relação a esse texto, considera quantas e de quão grande peso são as razões que me apartam e me impedem crer em Manes”. (Réplica à carta chamada “do Fundamento”, 5)

Essa passagem tem uma frase muito utilizada pela apologética católica: “Não creria no Evangelho, se não me movesse a ele a autoridade da Igreja”. Para contextualizarmos, Santo Agostinho replica um livro que se dizia revelado de Manes, chamado “Carta do Fundamento”. Os maniqueus queriam incentivar Santo Agostinho a crer na inspiração deste livro. Santo Agostinho responde, primeiramente, no capítulo imediatamente anterior, por que encontra-se na Igreja católica. Fala dos motivos que lhe sujeitam ao seu seio: o consenso dos povos, a autoridade incoada com milagres, a sucessão apostólica da cátedra do Apóstolo São Pedro, até o episcopado de seu tempo, o nome “católica” que só esta Igreja obteve entre tantas heresias. Santo Agostinho, após isso, explica porque não pode aceitar a suposta inspiração de Manes. Ele explica que somente crê no Evangelho por causa do mandato da autoridade da Igreja Católica, que contém “tantos e tão poderosos laços”. Explica que essa mesma Igreja Católica ordena que ele não creia nos Maniques. No caso em que os maniqueus comprovassem pelo Evangelho a existência clara em favor de Manes, Santo Agostinho disse que já não poderia crer nos católicos. Acrescenta que, neste caso, não poderia mais crer no Evangelho, pois foi através daquela autoridade que foi movido a crer no Evangelho. Calvino quis explicar as palavras de Santo Agostinho no sentido de que um infiel é induzido a crer no Evangelho por causa da reverência à Igreja, da qual ele aprende sobre o Evangelho. Mas essa interpretação é uma distorção gritante ao contexto. Santo Agostinho não está dizendo que crê no Evangelho simplesmente no sentido de que outros católicos lhe levaram a esse conhecimento. Diz que a autoridade da Igreja lhe recomenda crer no Evangelho e por isso crê, e se a Igreja errasse sobre Manes já não poderia crer nem mesmo no Evangelho. Acrescenta depois que crê nos Atos dos Apóstolos e no Evangelho porque a Igreja recomenda (obriga) um e outro. Se a Igreja apenas o levasse ao conhecimento da existência do Evangelho, como quer Calvino, como é que ele diz que já não creria no Evangelho se a Igreja errasse sobre os Maniqueus? Não faz o menor sentido.

Santo Agostinho faz alusão claríssima a infalibilidade da Igreja. Não faz sentido crer numa autoridade como inerrante (as Escrituras), baseado numa autoridade falível (a Igreja, como querem os protestantes). Além disso, ele é claro que a Igreja não poderia errar sobre o que diz sobre Manes, pois do contrário já não poderia crer no Evangelho.

Parece-te que disse algo muito agudo quando interpretas que o nome de Católica não significa uma comunhão universal, mas a observância de todos os divinos preceitos e de todos os sacramentos. Embora a Igreja chama-se Católica porque retém toda a verdade, enquanto que as diversas heresias retém uma só parte dessa verdade, quem te disse que nos apoiamos nesse nome de Católica para demonstrar que a Igreja está estendida por todas as nações, e não na promessa de Deus e nos manifestos oráculos da própria Verdade? Pelo visto, tudo o que pretendes persuadir-me é, em resume, que somente há ficado os rogatistas com direito e apelidar como católicos, porque observais todos os preceitos divinos e todos os sacramentos, e que unicamente em vós achará a fé o Filho do Homem quando voltar. Perdoa, não o creio. Talvez tenhas a audácia de afirmar que vós não estais na terra, mas no céu, para que entre vós possa achar-se a fé, que o Senhor anunciou que não encontraria na terra. Contudo, o Apóstolo nos impôs tanta cautela, que nos mandou anatematizar ao anjo do céu se no evangeliza uma coisa distinta da que temos recebido. Como pelas divinas letras teríamos a confiança de haver recebido a Cristo manifesto, se não recebemos pelas mesmas fontes a Igreja manifesta? Por muitos expedientes e subterfúgios que urdais contra a simplicidade da verdade, por muitas névoas de falsidade astuta que difundes, será anátema quem pregar que Cristo não padeceu nem ressuscitou ao terceiro dia, posto que isso o temos recebido pela verdade evangélica: Era necessário que Cristo padecesse e ressuscitasse dentre os mortos ao terceiro dia. Pois do mesmo modo será anátema quem pregar uma Igreja fora da comunhão de todas as nações, posto que temos recebido pela própria verdade o que se diz na continuação: E que seja pregada em seu nome a penitência e remissão dos pecados por todos os povos, começando por Jerusalém. Devemos, então, reter sem vacilar: Quem os pregar algo fora do que haveis recebido, seja anátema… Temos que dizê-los mais alto o que dizemos a todos os donatistas. Suponhamos, por um impossível, que alguns achem motivo bastante justo para separar sua comunhão da comunhão do mundo inteiro. Suponhamos o que se chama Igreja de Cristo pode haver-se separado justamente da comunhão de todos os povos. Como sabeis que na sociedade cristã, tão difundida por toda parte, não houve uma justa e distante separação antes da vossa? Talvez por ser antiga não pôde chegar até vós a fama de sua justiça. Por que a Igreja está entre vós, no lugar de que entre aqueles que talvez se separaram antes? “Veja como, por não saber isso, convertestes em um problema para vós mesmos”. (Carta 93, 23, 25)

Aqui um donatista explicava que a expressão “Católica” não se deve entender como uma comunhão universal, mas como a observância de todos os divinos preceitos e de todos os sacramentos. Santo Agostinho responde que é justamente este o conceito que os católicos dão ao termo “Católica”. Acrescenta que não existe Igreja Católica fora da comunhão de todas as nações. Diz em seguida que é impossível achar um motivo justo para separar-se da comunhão do mundo inteiro. A Igreja de Cristo nunca seria outra senão a comunhão de todos os povos. Portanto, para Santo Agostinho a Igreja que observa todos os divinos preceitos, e que, por isso, chama-se “Católica”, é justamente esta do mundo inteiro. A infalibilidade, portanto, é inegável, a partir do termo “Católica”, por onde “retém toda a verdade”.

“Pedes-me que trate com prudência e cautela a questão da Trindade, isto é, da unidade de divindade e da distinção de pessoas, para que a cordura e minha doutrina e ingênio, como tu dizes, dissipe a névoa de tua mente e assim possas ver com teus olhos, iluminados pelo fulgor de minha inteligência, o que agora não podes pensar. Mas olha, de repente, se esta súplica está conforme com tua anterior convicção. Ao princípio da mesma carta, na qual me apresentas tua súplica, afirmas haver-te convencido de que “é necessário averiguar a verdade por meio da fé, no lugar que por meio da razão. Se a fé da santa Igreja, diz, houvesse de se aceitar pela razão e disputa e não pela piedade e a crença, ninguém alcançaria a bem-aventurança senão os filósofos e oradores. Mas aprouve a Deus escolher o débil deste mundo para confundir o forte, e salvar aos que creram pela estultícia da pregação. Por isso, não tanto há que buscar a razão quanto o seguir a autoridade dos santos”. Segundo estas palavras tuas, máxime neste ponto fundamental em que se apoia toda nossa fé, deverias pensar em teu dever de seguir a autoridade dos santos sem pretender de mim uma razão para entender”. (Carta 120, 2)

Neste caso, Santo Agostinho responde um consulente chamado Consencio, que queria explicações sobre o tema da Trindade. Santo Agostinho relembra as próprias palavras de Consencio que diziam que é necessário averiguar a verdade por meio da crença da Igreja universal, portanto, é mais importante buscar a autoridade dos santos do que a razão. Santo Agostinho diz que as palavras de Consencio é um ponto fundamental em que se apoia toda nossa fé. Se devemos seguir a autoridade da Igreja antes de seguir à razão, não se vê como a falibilidade da Igreja universal pode ser compatível com esse pensamento de Santo Agostinho. Como crer que a autoridade dos santos seria um ponto fundamental em que se apoia toda nossa fé se tal autoridade é falível? Como a verdade seria averiguada por meio da crença da Igreja universal se esta é falível?

“Por causa do seguro julgamento de todo o mundo não podem ser bons aqueles cristãos que se separam do resto da terra em qualquer parte que estejam” (Réplica a carta de Parmeniano, livro 3, 24)

A evidência se encerra na expressão seguro julgamento ou juízo de todo o mundo (Securus iudicat orbis terrarum). Essa expressão de Santo Agostinho foi muito importante na conversão de Newman, como o mesmo relata. Newman disse que tais palavras de Santo Agostinho lhe impressionaram com um poder que ele nunca tinha sentido antes, comparando ao “Tolle, lege,—Tolle, lege”, da criança que converteu ao próprio Santo Agostinho[4].

“Assim o afirma a autoridade da madre Igreja, assim consta no cânon bem fundado da verdade: qualquer um que lance seus aríetes contra esta robustez e contra este muro inexpugnável, ele mesmo se arrebentará” (Sermão 294, 18)

A autoridade da santa Madre Igreja é uma regra seguríssima da verdade, qualquer um que tentar derrubar esse muro imbatível, será abatido. O contexto é sobre a prática universal do batismo infantil, que Santo Agostinho usava como argumento.

“Esta passagem aplica-se àqueles a quem o Senhor não abandona quando o procuram. Ele tem sua morada em Sião, o que significa contemplação e é o portador da imagem da Igreja atual, como Jerusalém é portadora da imagem da futura Igreja, isto é, da cidade dos santos que já desfrutam da vida dos anjos. Com efeito, Jerusalém se traduz por visão da paz. Por outro lado, a contemplação precede à visão, assim como esta Igreja precede aquela cidade imortal e eterna, objeto de promessas. Mas se trata de uma precedência temporal, não por razões de dignidade, uma vez que é mais digno de estima o fim em que nos esforçamos para chegar, do que os meios que usamos para atingir esse objetivo. De fato, praticamos a contemplação para chegar à visão. Mas mesmo uma contemplação, por mais minuciosa que fosse, levaria ao erro se o Senhor não residisse formalmente na Igreja atual. E a esta Igreja foi dita: o templo de Deus é santo, e esse templo sois vós. E em outra passagem: no homem interior, Cristo vive pela fé em seus corações. Nos é ordenado, então, cantar ao Senhor que reside em Sião, para louvar em unidade de coração ao Senhor que habita na Igreja. Narre suas ações entre os povos. Já foi feito e nunca vai deixar fazer-se “. (Salmo 9, 12)

Santo Agostinho explica que a palavra Sião significa contemplação e é imagem da Igreja atual. Explica que a Igreja atual pratica a contemplação para chegar a visão do bem do século vindouro. E o que é mais importante: esta contemplação, por muito minuciosa que fosse, cairia ao erro se o Senhor não residisse na Igreja atual. Ora, segundo Hebreus, “a fé é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos” (11,1). Com uma fé falsa é impossível fazer uma verdadeira contemplação. Segue-se que a Igreja é infalível.

 

2) OS CONCÍLIOS UNIVERSAIS SÃO EXPRESSÕES DA IGREJA UNIVERSAL

 

Há várias passagens de Santo Agostinho onde se refere aos “Concílios plenários do mundo inteiro” e que a Igreja universal, por vezes, se manifesta por meio dos Concílios plenários. Vejamos:

“Já é tempo, creio, de não dar a impressão de servir-me de argumentos humanos. Já nos tempos precedentes da Igreja, antes do cisma de Donato, a obscuridade desta controvérsia fez que ilustres varões e mesmo bispos animados de grande caridade, ficando sempre a salvos a paz, discutissem entre si e flutuassem de tal modo que não coincidiam os variados estatutos dos concílios em suas diversas regiões, até que, dissipadas todas as dúvidas, confirmou-se em um concílio plenário de todo o orbe qual era o pensamento seguro de salvação”. (Tratado sobre o batismo, livro 1, cap. 8, 9)

 “Com efeito, naqueles tempos, antes que a unanimidade de toda a Igreja houvesse confirmar com a sentença do concílio plenário o que se devia fazer nesta questão, pareceu-lhe, reunido com cerca de oitenta bispos africanos, que era preciso batizar de novo a todo aquele que vinha à Igreja tendo recebido o batismo fora da comunhão da Igreja católica”. (Tratado sobre o batismo, livro 1, cap. 18, 28)

“Na África somente condenaram alguns. Mas estes foram respaldados logo pelo juízo favorável do mundo inteiro”. (Réplica à carta de Parmeniano, livro 1, cap. 3, 4)

“eles que estão convictos de haver perpetrado uma ruptura cismática da Unidade Cristo não por trezentos e dez bispos, mas pela autoridade dos do mundo inteiro”. (Réplica à carta de Parmeniano, livro 3, cap. 6, 29)

A lógica de Santo Agostinho é simples. Como cada Bispo administra a pessoa de sua igreja, vez que a igreja está no bispo, como ensina São Cipriano (cf. Epistola 66,8.3), a reunião de muitos deles numa assembléia conciliar pode chegar ao ponto de ser representativa de todo o mundo católico.

Os especialistas[5] discutem se nessas passagens Santo Agostinho se referia ao Concílio de Nicéia (325), ecumênico, ou ao Concílio de Arles (314). Por isso optamos no artigo em falar de infalibilidade de Concílios universais de modo genérico e não simplesmente de Concílios ecumênicos. Se um Concílio não ecumênico pode ser veículo de manifestação da Igreja universal por causa da sua representatividade, com muita mais razão o será um Concílio ecumênico. Eusébio mesmo chama o Concílio de Nicéia com 318 bispos de reunião do mundo inteiro (de vita Constantini, lib. 3).

 

A conclusão, portanto, é imperiosa. Essa forma de argumentar em favor da infalibilidade dos Concílios universais sempre foi usada pela apologética católica. Parece-me absurdo pretender que Santo Agostinho se esquivasse da conclusão contida em seus princípios. 

 

Para terminar, é importante resolver três objeções comumente lançadas por protestantes contra a tese, a partir de três passagens de Santo Agostinho.

 

Objeção 1: Santo Agostinho negou a infalibilidade dos Concílios universais, pois diz que os concílios plenários mais antigos “são frequentemente corrigidos por aqueles que os seguem”. (Tratado sobre o batismo, livro 2, cap. 3, 4). Se são corrigidos é porque admite-se que contêm erros.

Resposta: Santo Agostinho falava ou de questões de fatos não dogmáticos ou de questões disciplinares. Explico melhor: A Igreja Católica nunca negou que os Concílios universais podem errar em fatos não dogmáticos ou serem corrigidos em questões disciplinares. Os fatos não dogmáticos não dizem respeito à doutrina, mas à matéria profana. Por exemplo, se os bispos de Nicéia recebessem fraudulentos escritos de “Fulano de Tal” e por esta razão resolvessem condená-lo no Concílio Ecumênico sem conhecer da falsidade dos documentos apresentados, não haveria erro doutrinal, mas erro de fato. Assim, alguns teólogos argumentam com relação à condenação de Honório por alguns Concílios, eis que, explicam, as cartas apresentadas foram falsificações de orientais, e por isso os bispos enganados o condenaram. Outro exemplo, se um Concílio ecumênico diz que a capital do Rio Grande do Sul é Bagé o erro seria de fato. Os católicos defendem que os Concílios universais são infalíveis em questões de fé e moral e não de fato não dogmático. É possível que Santo Agostinho esteja falando em questões desse tipo, pois a questão particular dos católicos com os donatistas era sobre Ceciliano, se este devia ou não entregar os livros sagrados aos inimigos de fé. Por outra parte, as questões disciplinares de costumes podem ser corrigidas, mas não dogmas. Os preceitos são alterados de acordo com a mudança de tempos, lugares e pessoas, e essas mudanças podem ser chamadas de correções, não por causa de ser ruim no momento em que foi estabelecido, mas porque passou a ser ruim com a mudança de circunstâncias. As duas respostas podem ser confirmadas pela continuação das palavras de Santo Agostinho, pois fala de Concílios que são corrigidos quando o que foi fechado é aberto por algum experimento. A experiência tem como campo os fatos positivos, as questões de fato ou de costumes, não os assuntos de direito universal ou de fé.

Outra possibilidade é que Santo Agostinho esteja usando o termo “emendari” no sentido de “melhorados”, na ótica de um desenvolvimento homogêneo de doutrina, e não de correção de erros. Robert B. Eno considera possível que a melhor definição seja esta no contexto, eis que põe entre parênteses a palavra “improved” com uma interrogação, representando uma pergunta retórica em seu artigo já citado Doctrinal authority in Saint Augustine, p. 163. Em nota de rodapé este autor também cita: “Sieben, op.cit.92. Para E.Benz, “emendari” significa “melhorar” ao invés de “corrigir”, Veja-se E.Benz, Augustins Lehre von der Kirche (Mainz,1954) 35”. Se Santo Agostinho quer falar de melhora nada disso é contrário à doutrina católica sobre os Concílios universais. De fato, só com essa melhora ou progresso poderia o Concílio de Trento definir uma verdade que o de Viena havia apresentado com a nota de provável (Denz. 483 e 800). Outro exemplo: O Concílio de Laodicéia rechaça certos livros canônicos, pois não havia certeza de sua canonicidade naquele tempo. O Concílio de Cartago III, com uma análise mais apurada do tema, pôde admitir tais livros.

 

Objeção 2: Santo Agostinho diz que os concílios posteriores são os preferidos “entre as gerações posteriores aos [concílios] de data anterior, e o todo é sempre, com razão, visto como superior às partes” (Tratado sobre o batismo, livro 2, cap. 9, 14). Logo, os concílios são falíveis.

Resposta: Santo Agostinho estava contrapondo o Concílio de Cartago sob Cipriano a um Concílio universal (de Arles ou Nicéia). É claro que um Concílio regional pode ser corrigido e preterido a um Concílio universal. Sto. Agostinho explica que para se conservar a unidade de todo o corpo deve-se aceitar o que diz um Concílio universal. Santo Agostinho diz que esse seria o procedimento do próprio São Cipriano se naquele tempo a unanimidade da Igreja, através de um concílio universal, tivesse resolvido a questão sobre o rebatismo.

 

Objeção 3: Santo Agostinho diz que não dever arguir o Concílio de Nicéia, nem seu adversário o Concílio de Rímini, mas ambos a autoridade da Sagrada Escritura (cf. Contra Maximino e Ário, II, XIV, 3). Logo, não considerou o Concílio de Nicéia infalível.

Resposta: Não se segue. Santo Agostinho apenas estava dizendo que por conta de Maximino não estar preso à autoridade do Concílio de Nicéia nessa disputa, e por Santo Agostinho não estar em relação ao Concílio de Rímini, seria uma perda de tempo que um e outro citassem um Concílio que um ou outro não considerava legítimo. Daí que devessem usar uma fonte que ambos concordassem para argumentar. Santo Tomás de Aquino tem um trecho bastante similar com relação a outras fontes: “os maometanos e pagãos, não convém conosco em admitir a autoridade de alguma parte da Sagrada Escritura, pela que pudessem ser convencidos, assim como contra os judeus podemos disputar pelo Velho Testamento, e contra os hereges pelo Novo. Mas esses não admitem nenhum dos dois. Temos que recorrer, então, a razão natural, que todos se vêem obrigados a aceitar, mesmo quando não tenha muita força nas coisas divinas”. (Suma contra os gentios, livro 1, cap. 2)

 

[1] On Councils, their nature and authority, St. Robert Bellarmine, SJ. Translated by Ryan Grant, Mediatrix Press. Kindle.

[2] De Locis Theologicis: http://www.documentacatholicaomnia.eu/03d/1509-1560,_Cano_Melchior,_De_Locis_Theologicis,_LT.pdf

[3] Dictionnaire de Théologie Catholique, verbete AUGUSTIN (Saint) . III. Doctrine: http://jesusmarie.free.fr/dictionnaire_de_theologie_catholique_lettre_A.html; Constancio Palomo, SAN AGUSTIN Y LA AUTORIDAD DE LOS CONCILIOS, Salmanticensis. 1961, volume 8, #3. Pages 581-602., este cita vários outros autores.

[4] http://www.newmanreader.org/works/apologia/part5.html

[5] Robert B. Eno, Augustinian Studies 12:133-172 (1981), Doctrinal authority in Saint Augustine, p. 162; Dictionnaire de Théologie Catholique, verbete AUGUSTIN (Saint) . III. Doctrine: http://jesusmarie.free.fr/dictionnaire_de_theologie_catholique_lettre_A.html 

 

PARA CITAR

SARMENTO, Nelson. Santo Agostinho e a infalibilidade dos Concílios universais. Disponível em < > Desde 31/12/2017.

 

 

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Artigos mais populares