Segunda-feira, Setembro 16, 2024

Rito católico x Serviço anglicano

NOTA DO TRADUTOR: O estudo a seguir é uma comparação, lado a lado, do ordinário da Missa de Sarum e do Serviço Anglicano com suas implicações teológicas. O autor demonstra como o Livro de Oração de Thomas Cranmer modifica ou simplesmente retira aquelas partes do Ordinário católico que denotavam claramente as doutrinas católicas sobre o sacrifício em sentido próprio e verdadeiro, o fim propiciatório da Missa e a presença objetiva de Cristo na Eucaristia. O artigo é da pena do canonista James Moyes, um grande especialista sobre o anglicanismo, tendo inclusive servido em 1896 na Comissão Papal em Roma sobre assuntos anglicanos nos quais ele era uma autoridade.

Queremos destacar que as partes do ordinário de Sarum, que o autor considera claras em demonstrar a fé católica e que o anglicanismo rechaça, estão presentes no Missal Romano restaurado. Por isso editamos o artigo para que se mantesse apenas aquelas partes presentes na única lex orandi do Rito Romano.

 

IX.- UM VEREDITO SOBRE O TESTEMUNHO DOS COMPILADORES – UM RESUMO DA MISSA DE SARUM E DO SERVIÇO DE COMUNHÃO DO PRIMEIRO LIVRO DE ORAÇÕES.

Nosso veredito sobre as evidências do grupo de compiladores é o seguinte.

Do seu testemunho, na medida em que foi expressado ou registrado, surgem as seguintes quatro conclusões:

  1. — Os Reformadores — os autores efetivos dos formulários anglicanos — negaram que a Eucaristia fosse um Sacrifício Propiciatório.
  2. — Eles negaram que a presença de Cristo na Eucaristia fosse objetiva e substancial (isto é, uma presença independente da fé do comunicante, ou consistindo em algo mais do que a graça ou influência de Cristo).
  3. — Eles negaram que o sacerdócio da nova lei fosse sacrificial.
  4. — Eles mantiveram que a Eucaristia era uma comemoração do Sacrifício oferecido por Cristo uma vez, e que a presença de Cristo nela era eficaz, isto é, “pela fé” ou “pela graça” na alma do comunicante.

[Está claramente aberto a qualquer leitor que possa contestar a exatidão das conclusões acima colocá-las à prova decisiva, da seguinte maneira. Que ele pegue os escritos dos membros do grupo, como o corpus testimonii. Eles são bastante acessíveis e, tomados em conjunto, formam uma coleção suficientemente volumosa. Que ele então veja se pode encontrar, da pena de qualquer um deles, qualquer uma das seguintes afirmações: (a) A Eucaristia é um Sacrifício Propiciatório. (b) A presença de Cristo na Eucaristia é substancial e objetiva. (c) O sacerdócio cristão é sacrificial. (d) A Eucaristia é um sacrifício real, e a presença de Cristo nela é algo mais do que mera presença de fé ou presença de graça na alma do comunicante. Achamos que qualquer busca por essas afirmações, seja nos escritos do grupo de compiladores dos Reformadores, seja no círculo mais amplo dos teólogos elizabetanos, seria infrutífera. No entanto, esse teste está ao alcance de todos os que desejarem fazer o experimento.]

Isso, entendemos, é de fato a doutrina da Reforma Inglesa.

Ela é sólida e construída como um todo lógico e indivisível.

O ponto-chave é B., (negação da presença objetiva).

Em um artigo anterior, apontamos a ligação lógica entre B. e C. Se não há mudança substancial nem presença objetiva na Eucaristia, por que precisaríamos invocar poderes sobrenaturais no sacerdócio? (Como disse Cranmer: “Eleição e nomeação são suficientes”). B., ao remover a presença substancial e objetiva, praticamente induz C. e destrói a lógica do sacerdotalismo.

Mas o vínculo lógico entre B. e A. não é menos imperativo.

A razão clara pela qual os Reformadores não acreditavam que Cristo era oferecido na Eucaristia era porque eles não acreditavam que Cristo estava realmente e substancialmente lá para ser oferecido. Não se pode oferecer algo que não está substancial e objetivamente presente. A vítima deve estar presente, caso contrário, não podemos avançar, pois a primeira condição do sacrifício está ausente. Uma vítima que está presente apenas pela nossa fé ou pela graça obviamente não pode ser oferecida. No momento em que B. remove a presença objetiva e substancial da vítima, isso induz A. e torna o sacrifício propiciatório impossível.

Assim, a negação B. atua em ambas as direções — ela afasta o sacerdote com a mão esquerda e a vítima com a mão direita.

Colocamos assim B., como a negação raiz, no meio, porque nos parece que está logicamente vinculada com A. de um lado e com C. do outro.

Mas, dado que A., B. e C. limparam o terreno com suas negações, então D. é indispensável para ocupá-lo, se os homens devem acreditar que a Eucaristia tem alguma referência à morte de Cristo, e deve ser considerada, não apenas como um símbolo, mas como um sacramento. Assim, B. é a pedra angular, e todas as quatro crenças nas consciências dos homens certamente permanecerão ou cairão juntas.

Essa coesão intrínseca dessas doutrinas principais não é sem um efeito significativo sobre o mundo religioso de nosso tempo. Homens que sinceramente mantêm B. instintivamente defendem todas as quatro. Eles permanecem pela Reforma e discordam do “Ritualista” e de todos os seus caminhos. Por outro lado, homens que perdem o apoio a B. e sentem o encanto irresistível da Presença objetiva de Cristo na Eucaristia — “o Emanuel” — relaxam seu apoio a todas as quatro. Eles elevam seus olhos para as coisas que são Católicas e discordam da Reforma e de todas as suas obras.

Tão verdadeiro é isso que uma definição genuína, franca, direta e autoritativa sobre a verdade ou falsidade de B. — talvez pela próxima Conferência de Lambeth? — dividiria a Comunhão Anglicana ao meio diante dos olhos dos homens, assim como já está dividida neste momento aos olhos daquele diante de quem os corações dos homens estão como um livro aberto.

Ao tentar estimar a natureza das mudanças litúrgicas da Reforma Inglesa, procuramos mostrar, em primeiro lugar, quem foram os autores efetivos dos formulários; e, em segundo lugar, quais eram as quatro principais crenças notáveis que inspiraram esses autores no trabalho de reforma.

Agora devemos perguntar em que medida e de que maneira eles imprimiram essas crenças na nova liturgia?

Em outras palavras, temos diante de nós os trabalhadores e seus motivos de trabalho. Agora vamos confrontar ambos com seu trabalho manual e ver até que ponto um se reflete no outro.

Quando os Reformadores propuseram introduzir uma liturgia reformada, foi tanto razoável quanto natural que eles tomassem como base de trabalho as formas existentes às quais a nação estava acostumada e apegada, transformando-a em seu ideal de culto verdadeiro e puro ao preservar o que consideravam bom e remover o que consideravam falso ou supersticioso.

Essa base eles encontraram principalmente na Liturgia existente, que havia sido usada desde tempos imemoriais neste país — a Liturgia Romana, que se desenvolveu naquilo que era conhecido como o uso de Sarum.

Este era o uso litúrgico dominante e quase universal do país, e de fato poderia ser chamado, em certo sentido, o único uso, já que as diferenças entre ele e os outros usos — York, Hereford, Bangor, etc. — eram poucas e imateriais, e certamente não do tipo que pesaria por um momento na mente dos Reformadores.

Vamos agora considerar a parte principal e mais central da Liturgia — a Missa de Sarum — o supremo trabalho de adoração que havia sido celebrado diariamente diante dos olhos de gerações de ingleses por séculos.

Para efeito de nossa investigação, dividiremos esta Missa em sessenta pequenas partes ou articuli de oração e ação dos quais ela é composta.

Vamos apresentar esta Missa diante do grupo de Reformadores e observar o que eles farão com ela.

Naturalmente, eles examinarão suas partes componentes uma por uma. Como eles lidarão com elas?

Em quatro formas:

  1. Se não tiverem objeção a uma parte, podem mantê-la como está, pelo menos substancialmente, ou seja, sem fazer qualquer mudança proposital ou significativa nela. Isso marcaremos como RET.
  2. Se eles objetarem a uma parte porque contém alguma frase doutrinária desagradável, podem manter a parte em si, mas alterar a redação da frase, para retirar dela o significado doutrinário que não gostam ou condenam. Essa mudança marcaremos como CH.
  3. Se encontrarem uma parte inteira desnecessária ou objetável, podem abolir completamente. Isso marcaremos como AB.
  4. Se considerarem que uma parte inteira deve ser removida, podem substituí-la por uma nova parte, substancialmente de sua própria composição. Isso marcaremos como SUB.

Todo católico sustenta que a Liturgia Romana, assim como todas as Liturgias Orientais, tanto em seu uso romano quanto nos usos de Rouen, Paris, Colônia, Sarum, York ou Hereford, é um expoente compacto das doutrinas da presença substancial e objetiva de Cristo, e de Seu Sacrifício sobre o altar cristão.

Mas nestas sessenta pequenas divisões da Missa que vamos examinar, há certas partes em que essas duas principais doutrinas eucarísticas são tão claramente destacadas, seja pela palavra Hóstia, Sacrifício ou Oblação em si, seja pela referência a Cristo como objetivamente presente na Hóstia — que, tomadas como estão, são proclamações inconfundíveis do ensino católico sobre a Eucaristia.

Essas partes serão marcadas com um X marginal.

São as partes litúrgicas que clamam alto e claro que a Eucaristia é um Sacrifício, e que Cristo como Vítima está, ou vai estar, substancial e objetivamente presente no altar.

O que os Reformadores Litúrgicos farão com tais partes e como lidarão com elas?

Vamos colocar a Missa de Sarum e o seu Serviço de Comunhão no primeiro Livro de Oração Comum de Eduardo VI lado a lado, e então, por meio desta sinopse, observar a transformação. [Uma sinopse mais concisa e muito mais eficaz dessas duas liturgias pode ser vista em Edward VI and the Book of Common Prayer, de Padre Gasquet e Sr. Bishop, p. 199]. O X marca, como dissemos, partes com expressão especial de sacrifício e presença objetiva. O leitor examinará a sucessão das partes da Missa e é convidado a verificar até que ponto o X corresponde às marcas AB ou CH, que significam abolição ou mudança pelos Reformadores.

OFERTÓRIO:
(Inclinando-se com as mãos unidas no meio do altar.)

X  No espírito de humildade e contrição de coração, possamos ser aceitos por Ti, ó Senhor, e que nosso Sacrifício seja feito diante de Ti de tal forma que seja recebido por Ti neste dia e seja agradável a Ti, ó Senhor Deus.

AB
X Orai, irmãos e irmãs, por mim, para que meu Sacrifício e também o vosso sejam aceitos pelo Senhor Deus.

(Resposta.)

X Que a graça do Espírito Santo ilumine teu coração e teus lábios, e que o Senhor receba dignamente esse Sacrifício de louvor de tuas mãos, pelos nossos pecados e ofensas.

AB

 

 

 

AB

Nota do Tradutor: A resposta é ligeiramente diferente no Rito Romano: “Receba, o Senhor, de vossas mãos este sacrifício, para louvor e glória de seu nome, para nosso bem e de toda a sua santa Igreja”.
X Oração secreta (geralmente se refere a “sacrifício” ou “oblação“). AB
CÂNON:
X (Canon) Portanto, humildemente oramos e suplicamos a Ti, Pai mais misericordioso, por meio de Jesus Cristo, Teu Filho, nosso Senhor. (“Beija o altar ao lado direito do Sacrifício”) que Tu te dignes aceitar e abençoar estes dons, estas oferendas, estes santos e imaculados sacrifícios. AB
(“Aqui, deixe o sacerdote voltar seus olhos para a hóstia com grande devoção”).

X Esta, portanto, a oblação de serviço e de toda a Tua família, nós Te suplicamos, ó Senhor, que Tu a aceites graciosamente; que Tu dispuses nossos dias em paz, nos livres da condenação eterna e te dignes a nos classificar no rebanho dos Teus eleitos. Por Cristo, Nosso Senhor.

(Aqui, novamente, deixe-o olhar para a hóstia.)

CH  Ó Deus, Pai celestial, que por Tua terna misericórdia deste Teu único Filho Jesus Cristo, para sofrer a morte na Cruz para nossa redenção, que fez ali (por Sua única oblação oferecida uma vez) um sacrifício completo, perfeito e suficiente, oblação e satisfação pelos pecados de todo o mundo, e instituiu e em Seu santo Evangelho nos ordenou celebrar uma memória perpétua de Sua morte mais preciosa, até Sua vinda novamente.

 

X  A qual oblação, ó Senhor Todo-Poderoso, Te suplicamos, em todas as coisas digna-Te abençoar, aprovar, ratificar e aceitar, para que se torne para nós o Corpo e o Sangue do Teu mais amado Filho, nosso Senhor Jesus Cristo. CH  Ouve-nos, ó Pai misericordioso, nós Te suplicamos, e com o Teu Espírito Santo e palavra digna-Te abençoar e santificar estes Teus dons e criações de pão e vinho, para que sejam para nós o corpo e o sangue do Teu mais querido Filho Jesus Cristo.
X Portanto, ó Senhor, nós, Teus servos, assim como Teu povo santo, recordando a bem-aventurada paixão do mesmo Cristo, Teu Filho, nosso Senhor, Sua ressurreição dos mortos e Sua gloriosa ascensão ao céu, oferecemos à Tua Majestade excelentíssima, dos Teus dons concedidos a nós, uma Hóstia pura, uma Hóstia santa, uma Hóstia imaculada, o Santo Pão da vida eterna e o Cálice da salvação eterna. CH Portanto, ó Senhor e Pai Celestial, segundo a instituição de Teu querido Filho, nosso Salvador Jesus Cristo, nós, Teus humildes servos, celebramos e fazemos aqui diante da Tua divina Majestade, com estes Teus santos dons, o memorial que Teu Filho nos ordenou fazer; lembrando Sua bendita paixão, poderosa ressurreição e gloriosa ascensão: rendendo-Te mais sinceros agradecimentos pelos inúmeros benefícios adquiridos para nós por meio do mesmo: desejando inteiramente a Tua bondade paterna aceitar este único sacrifício de louvor e ação de graças, suplicando-Te humildemente que concedas, que pelos méritos e morte de Teu Filho, Jesus Cristo, e através da fé em Seu sangue, nós e toda a Tua Igreja possamos obter remissão dos nossos pecados e todos os outros benefícios da Paixão.
X  Sobre os quais digna-Te olhar com uma face propícia e serena, e aceitá-los, assim como Te agradou aceitar os dons do Teu justo servo Abel, e o sacrifício do nosso Patriarca Abraão, e aquele que o Teu sumo sacerdote Melquisedeque ofereceu a Ti, um sacrifício santo, uma vítima imaculada. AB
RITO DE COMUNHÃO:
X  [Dito pelo sacerdote segurando uma partícula da Hóstia em suas mãos] Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo. Tem piedade de nós. Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo. Tem piedade de nós. Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo. Dá-nos a paz. [Coloca a partícula no cálice] Cristo, nosso Cordeiro pascal, é oferecido por nós, de uma vez por todas, quando carregou nossos pecados em Seu corpo sobre a Cruz, pois Ele é verdadeiramente o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo. Portanto, celebremos uma festa alegre e santa com o Senhor.
Nota do autor: A oração “Cordeiro de Deus” é, claro, sacrificial no sentido de que se refere a Cristo como a vítima propiciatória. Mas ela não contém nada em si mesma que determine se sua aplicação é apenas a Cristo na Cruz ou também a Cristo na Missa. Assim, é uma fórmula aberta e seria igualmente aceitável e apropriada em um serviço católico ou protestante. Os católicos dirigiriam as palavras à Hóstia consagrada na Missa e presente no Altar. Os reformadores dirigiriam as palavras a Cristo no Céu e refeririam ao Sacrifício da Cruz, que seu Serviço de Comunhão é projetado para comemorar. Que o uso de Sarum fixou a aplicação no sentido católico é claro, pois o sacerdote, enquanto a dizia, segurava a própria Hóstia em suas mãos, e o diácono e o subdiácono saíam de seus lugares naquele momento e se juntavam a ele na invocação. Por outro lado, a liturgia reformada remove explicitamente as palavras da boca do sacerdote e as dá aos clérigos para cantar durante o momento da Comunhão.
Nota do tradutor: No Missal Romano restaurado a prece “Cordeiro de Deus” é cantada no momento da fração da hóstia e da mistura. Além disso, após as orações silenciosas, o sacerdote ostenta a hóstia e a mantém elevada retomando o dito da prece: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”.

 

Temos agora diante de nós a antiga liturgia católica e o novo serviço que foi a primeira obra completa dos reformadores.

Não temos o desejo de forçar evidências ou pressionar indevidamente indicações características, mas achamos que esta sinopse sustenta a conclusão de que a ideia motivadora que guiou a primeira mudança litúrgica foi uma determinação de remover do culto do povo inglês as doutrinas do Sacrifício Propiciatório e da Presença Objetiva de Cristo na Eucaristia.

Os compiladores atacam as expressões dessas doutrinas onde quer que ocorram. Dos dezesseis locais em que essas indicações estão distintamente evidentes, nenhum é poupado.

Os compiladores lidam com essas partes sobre o sacrifício ou presença objetiva, seja abolindo-as completamente ou modificando sua redação.

Isso apenas significa que o trabalho está em harmonia com a mente dos que o realizaram.

 

FONTE: Canonista James Moyes, The Tablet, 30 march 1895, pp. 483-490.

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