Segunda-feira, Dezembro 30, 2024

Rezar com os não-católicos – É possível?

Rezar com os não-católicos – É possível?

Por Pe Thomas Crean O.P.

 

Este artigo procura oferecer uma reflexão teológica sobre uma característica nada desconhecida do mundo cristão contemporâneo, a saber o culto divino público realizado em conjunto por católicos e não-católicos. Deverei considerar, em primeiro lugar, a título de contextualização histórica, o ensino tradicional de teólogos sobre a communicatio in sacris; em segundo lugar, as referências a communicatio in sacris e à oração comum contidas no Decreto sobre o Ecumenismo” do Vaticano II e em alguns documentos posteriores; e, por fim, se certas práticas correntes de oração comuns são teologicamente defensáveis. Eu não deverei considerar a recepção pelos católicos de sacramentos de ministros não-católicos, nem o inverso, uma vez que tais práticas por si mesmas não implica em um culto público e comum.

 

Communicatio in sacris

O ensino tradicional da teologia católica sobre se os católicos podem participar de serviços religiosos não-católicos é resumida por Santo Afonso de Ligório em sua Theologia Moralis. Este doutor da Igreja escreve, “Não é permitido apresentar-se nos ritos sagrados de infiéis e hereges, caso contrário você será julgado por estar em comunhão com eles.[1]A razão para este ensino é clara: compromissos religiosos são naturalmente manifestados por atos externos; realizar um ato exterior expressivo de um compromisso religioso falso é um pecado contra a verdadeira fé. Isso é verdadeiro mesmo se a pessoa em questão mantém a verdadeira fé em seu coração. Assim, para tomar o exemplo clássico, os cristãos no Império Romano perceberam que não deveriam lançar incenso diante de uma estátua do imperador, mesmo que eles definitivamente não acreditassem em sua divindade – pois o ato era, de si mesmo, em seu contexto, expressivo de tal crença, e, portanto, pecaminoso.

Este ensinamento não implica que a simples presença de um católico em um serviço religioso não-católico seja um pecado. Portanto, teólogos moralistas antes do Vaticano II, seguindo o exemplo de Santo Afonso, reconheciam existir uma boa razão para um católico participar de um serviço como esse, como quando a amizade leva a participar de um casamento não-católico. Isso é chamado por alguns teólogos de “communicatio in sacris passiva”. É participação ativa em um serviço religioso não-católico, que é proibido pelo ensinamento tradicional na communicatio in sacris, por exemplo, unir-se aos salmos e hinos no decurso de uma Eucaristia luterana. Os exemplos a seguir podem servir para mostrar a unanimidade dos teólogos pré-conciliares sobre este ponto.

Pe. D. Prummer OP, ao escrever em 1910, afirma em seu Manuale Theologiæ Moralis que nunca é lícito para um católico participar de um culto não-católico, com a intenção de adorar a Deus na maneira de não-católicos, more acatholicorum. Tal ato, declara ele, nada mais é que uma negação da fé católica.[2] No mesmo ano, ao escrever um artigo sobre “Heresia” para a Catholic Encyclopœdia, Pe. J. Wilhelm SJ afirma que um católico pode assistir a serviços não-católicos, mas “desde que não se tenha qualquer participação ativa neles”. Em um artigo sobre o mesmo assunto, o Dictionnaire de théologie catholique reitera, em 1920, que a participação ativa em ritos não-católicos é toujours interdite [N.T.: proibidas sempre]  – a razão é que “equivale a uma negação da fé católica“. Em 1930, Pe. B. Merkelbach OP em sua Summa Theologiæ Moralis escreve que “a participação ativa nas coisas sagradas de um culto público [não-católicos] é ilegal, uma vez que implica na aprovação do culto e um reconhecimento da seita”.[3] Usando uma terminologia levemente diferente, mas ensinando a mesma doutrina, Pe. L. Fanfani OP escreve, em 1950, “communicatio in sacris material [‘material’ no sentido de que a pessoa em questão não pretende renunciar à sua fé católica], se é ativo e imediato, nunca é permitido para os católicos.[4] a razão para isso, explica ele, é que tal comportamento manifesta necessariamente um compromisso com um cultus herético ou pelo menos ilegítimo.

É importante notar que esta proibição não é apresentada por esses teólogos como uma proibição eclesiástica. Não é a lei da Igreja, que tradicionalmente se entende como excluindo os católicos de participar em serviços não-católicos; é a lei divina, que requer que os atos exteriores de culto expressem a fé interior. Não apenas o culto comum é proibido quando as orações ou traduções bíblicas utilizadas pelo grupo não-católico tenha um sentido herético: o simples ato de compartilhar o culto de um grupo não-católico, de acordo com o ensinamento dos teólogos acima citados, implica em uma comum unidade de religião com esse grupo, e, portanto, constitui um pecado contra a fé. Isso explica por que, como Pio XI recordou na encíclica de 1928 Mortalium Animos, “esta Sé Apostólica nunca permitiu aos seus estarem presentes às reuniões de acatólicos.

Há mais duas características desse ensino tradicional, que são relevantes para o tema deste artigo. Enquanto a communicatio in sacris ativa é sempre julgada impossível para um católico, o mesmo não é verdade para um não-católico. Não somente não é proibido, é em si mesmo bom que um não-católico possa entrar em uma Igreja Católica para assistir a Missa ou o ofício divino. Em segundo lugar, não é considerado impossível que um católico e um não-católico possam rezar juntos fora do contexto do culto divino público. Assim Fanfini observa que para um católico e um não-católico rezarem o “Pai Nosso” juntos privadamente é permitido em determinadas circunstâncias, e não é de fato um sacrum, um rito sagrado, de forma alguma.[5]

 

Unitatis Redintegratio e além

O Concílio Vaticano II deu a sua aprovação para se trabalhar pela unidade dos cristãos no Decreto Unitatis redintegratio. Depois de estabelecer, em sua primeira parte, alguns princípios católicos sobre o ecumenismo, o documento passa a falar do ecumenismo na prática. Ao tratar do papel necessário da conversão do coração e da oração na busca da unidade, o documento afirma:

Em algumas circunstâncias peculiares, como por ocasião das orações prescritas «pro unitate» em reuniões ecumênicas, é lícito e até desejável que os católicos se associem aos irmãos separados na oração.[6]

 

Será que esta afirmação contradiz o ensino tradicional em communicaio in sacris que delineamos? Não, pois não se afirma que esta oração comum deva levar os católicos a tomar parte em quaisquer orações além daquelas autorizadas pela Igreja Católica e lideradas por Seus ministros consagrados. Os Padres Conciliares, entretanto, não buscam diretamente relacionar suas observações sobre a oração em comum com o que eu chamei de ensino tradicional na communicatio in sacris; em vez disso, continuam a afirmar que dois princípios devem ser considerados para estabelecer uma doutrina sólida em tal communicatio, ou seja, a necessidade da unidade da Igreja seja visivelmente manifestada e a graça que possa ser assim obtida. Eles fazem uma observação adicional:

O testemunho da unidade frequentemente a proíbe. A busca da graça algumas vezes a recomenda.[7]

Os Padres Conciliares não dizem mais nada nesta passagem sobre as implicações práticas de tudo isso, exceto que é melhor deixar para a prudência do bispo local. Nem indicam se a communicatio in sacris, que às vezes é para ser acolhida como um meio de graça, é uma communicatio ativa ou passiva, nem em que “direção” da communicatio deva-se ir: assim, eles não indicam o que deve ser, algumas vezes, acolhido é a participação ativa dos católicos em serviços não-católicos, ou a participação ativa de não-católicos em serviços católicos, ou a simples presença de um católico em serviços não-católicos, ou a simples presença de um não-católico nos serviços católicos, ou a presença ativa por ambos católicos e não-católicos em “serviços ecumênicos”, especialmente concebidos. Pode ser que todas essas cinco formas de communicatio in sacris teriam, de fato, sido aceitas ou bem recebidas pelos Padres do Concílio, mas o próprio texto não nos diz.

 

Para o final do documento, na seção 15, os Padres reafirmam que algumas formas de communicatio in sacris com as Igrejas Orientais separadas devem ser encorajadas, tendo em vista a validade apreciada dos sacramentos por estas comunidades; novamente, no entanto, eles não dizem se são os católicos que estão sendo incentivados a entrar em comunhão na sacra dos irmãos orientais, ou aqueles que estão sendo incentivados a entrar em comunhão na nossa. Também não é especificado se essa comunhão é para ser ativa ou passiva; assim, um católico que participou de uma liturgia em uma comunidade Oriental separada para “saborear a atmosfera” e rezar privadamente seria engajar-se em uma forma de communicatio passiva – e os Padres Conciliares não disseram expressamente qualquer coisa além do que para ser “encorajado”.

 

Estas considerações parecem mostrar que o texto da Unitatis Redintegratio não contém nada que contradiga o ensinamento tradicional dos teólogos sobre communicatio in sacris. Sempre que esta prática é elogiada pelo documento conciliar, nunca é dito explicitamente que é a participação ativa de um católico em serviços não-católicos que está em questão. Esse pode ter sido o ‘tom do Concílio – mas não é a letra do texto.[8]

 

No dia 14 de maio de 1967, o Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos – um organismo criado em 1960 com um propósito prático e não com uma finalidade estritamente doutrinária – emitiu um documento chamado Ad Totam Ecclesiam, sendo a primeira parte de um ‘diretório ecumênico. Em dois aspectos-chaves o Ad Totam Ecclesiam vai além da carta de Unitatis Redintegratio. Primeiro de tudo, ele expande a observação do Concílio sobre a conveniência da oração comum nos serviços de oração pela unidade e durante encontros ecumênicos. Na forma como está descrita esta oração em comum, é uma questão não de não-católicos tomarem parte nos serviços católicos, nem dos católicos e não-católicos rezarem juntos silenciosamente (ambas alternativas foram deixadas em aberto pelo texto da Unitatis redintegratio), mas antes da participação de católicos e não-católicos nas formas de culto público especialmente concebidas por representantes de suas diversas comunidades. Esses representantes “devem estar de acordo e cooperar … para decidir quem deve participar, quais são os temas, hinos, leituras bíblicas e similares que devem ser utilizados”. Tais serviços, o documento afirma ainda, devem ser modelados sobre as formas de oração comunitária ‘recomendados pela renovação litúrgica’.[9]

 

Será que isso contradiz o ensino tradicional dos teólogos sobre communicatio in sacris? À primeira vista, parece oferecer um novo caso, não considerado pelos teólogos pré-conciliares, pois não é uma questão de católicos tomarem parte em serviços protestantes (ou ortodoxos ou não-cristãos), mas de sua associação com outros cristãos em serviços destinados a ser simplesmente serviços cristãos, e, como tais, aceitáveis para todos os interessados. Esta questão será analisada na última seção deste artigo

 

A segunda inovação de Ad Totam Ecclesiam, no entanto, contradiz, sim, a doutrina tradicional dos teólogos sobre communicatio in sacris. Os autores afirmam que não só pode um católico frequentar os serviços de uma comunidade ortodoxa ou de uma protestante, ele também pode tomar parte nas respostas comuns, hinos e açõesda comunidade em questão, ‘desde que eles não estejam em desacordo com fé católica’.[10] Os autores pré-conciliar, como vimos, teriam considerado isso uma manifestação de fidelidade a um cultus que era herético ou, pelo menos, objetivamente ilegítimo e, como tal, uma falta contra a virtude da fé.

 

O Catecismo da Igreja Católica, em sua seção sobre a unidade da Igreja, não usa o termo communicatio in sacris, embora se refira muito brevemente à questão da oração em comum com os não-católicos. O Catecismo afirma que a oração em comum é uma parte necessária do movimento ecumênico, e, em seguida, cita a seguinte frase de Unitatis Redintegratio:

 

A oração em comum, porque «a conversão do coração e a santidade de vida. unidas às orações, públicas e privadas, pela unidade dos cristãos, devem ser tidas como a alma de todo o movimento ecumênico,…[11]

 

Será que esta afirmação implica na adoção pelo Catecismo da primeira inovação do Ad Totam Ecclesiam, o de serviços ecumênicos especialmente preparados? Não necessariamente, pois, como vimos no caso da Unitatis Redintegratio, esta recomendação da oração pública compartilhada para a unidade dos cristãos poderia ser cumprida pela participação de não-católicos em serviços católicos; tanto mais que, como esta frase da Unitatis Redintegratio precede imediatamente aquela em que os Padres conciliares descrevem o costume de longa data dos católicos, como tal, rezando publicamente para o cumprimento da oração de Cristo, ut unum sint.

 

Por fim, o Papa João Paulo II, na encíclica Ut Unum Sint, semelhantemente recomenda a prática da oração comum entre católicos e não-católicos, mas não estipula em qual oração deveria consistir. Assim, ele estabelece como obrigatório para os católicos não mais do que estava previsto cerca de trinta anos antes pelo Concílio Vaticano II.

 

 

Que tipo de oração comum é possível?

Até agora temos argumentado que a Unitatis redintegratio e os documentos magisteriais posteriores não contêm nada que contradiga formalmente o ensinamento tradicional dos teólogos sobre a communicatio in sacris. No entanto, como vimos também, um outro documento, produzido por um órgão cuja função era aparentemente mais prática do que doutrinária, ambos realmente contradizem esse ensinamento, e também introduz uma pergunta aparentemente nova, a do ‘serviço de oração ecumênica’. Nesta última seção nós iremos oferecer algumas observações sobre estas duas inovações feitas pelo Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos. 

Primeiramente, como poderia um defensor da participação de católicos em cultos ortodoxos ou protestantes responder a condenação disso pela teologia tradicional? Muito comumente se diz que atualmente, ‘estamos em um novo contexto’. Assim, enquanto no passado essa participação poderia ter sido vista como uma rejeição pela pessoa da própria Igreja, ou pelo menos como indiferença tão culposa quanto, hoje os cristãos estão cada vez mais sob o cerco de uma sociedade secular, e assim pode-se certamente fazer uma causa comum contra tal.

No entanto, a este pode-se responder que, embora nossas circunstâncias atuais, sem dúvida, sejam muito diferentes daquelas do século 16 ou do século 11, as circunstâncias por si só nunca podem justificar um ato que é intrinsecamente ilícito. A teologia clássica é unânime em afirmar que a participação ativa dos católicos, por exemplo, em um serviço protestante é ilegal por si só, e não que ele possa simplesmente ser causa de escândalo por força das circunstâncias, ou se a intenção final do católico seja menosprezar sua própria igreja. A razão para isso, como vimos, é que tal culto por si só exprime unidade de religião; a boa fé dos devotos é, neste sentido, irrelevante.

 

Um defensor de tal culto poderia objetar: todavia, a história da salvação nos dá exemplos de ações que em uma época são corretamente consideradas como intrinsecamente ilícitas, e, no entanto, são permitidas e, até mesmo, recompensadas por Deus em outro – por exemplo, a poligamia. Não poderia a participação em serviços não-católicos ser um exemplo de tal ação?

 

Para isso pode-se responder que a história da salvação nos mostra como o homem tem sido gradualmente esclarecido relativamente às exigências da lei natural, e por isso tem sido gradualmente levado a uma moral mais rigorosa e mais perfeita. Não há, contudo, qualquer exemplo de um homem que esteja sendo gradualmente levado por inspiração divina à prática de uma adesão menos rigorosa para com a lei moral. No caso específico da poligamia, Sto. Tomás ensina que a dispensa era possível para os patriarcas na medida em que a prática deixaria intacta o objetivo primário do matrimônio, a geração de filhos, e prejudicar apenas a segunda, o companheirismo entre o marido e a esposa. A poliandria, constata ele, além do mais, nunca poderia ser permitida, pois tal prejudicaria o objetivo principal de casamento. No caso do culto divino público o objetivo principal é que Deus deva ser devidamente honrado e a construção de laços fraternais entre os devotos é apenas o propósito secundário. Assim, mesmo supondo que, per impossibile, a humanidade estivesse sendo divinamente inspirada para cumprir as exigências da lei natural menos perfeitamente do que antes, no que diz respeito ao culto divino, não poderia estar no caminho sugerido pela objeção, pois isso implicaria em sacrificar o objetivo principal do culto divino pelo propósito secundário.

 

Concluímos, portanto, que as restrições tradicionais contra a participação ativa dos católicos em serviços não-católicos mantêm a sua força persuasiva.

 

Em segundo lugar, o que vem a ser ‘serviços ecumênicos’? (Por esta expressão entendo que sejam serviços onde os católicos e não-católicos se reúnem para oferecer o culto divino de acordo com um texto e ritual destinados a ser, portanto, utilizados em comum.) Como vimos, a schola de teólogos pré-conciliares afirma que os católicos nunca devem participar ativamente no culto não-católico, uma vez que tal iria manifestar adesão a uma religião não-católica. Como pode um defensor do culto ecumênico, como hoje comumente é visto, responder a esta severa interdição? Ele poderia negar ou que o culto ecumênico está corretamente descrito como o culto “não-católico“, ou ainda negar que ele manifesta a adesão a uma religião não-católica.

 

Deixe-me começar com a primeira opção. O adágio lex orandi, lex credendi mostra que o caráter religioso de uma determinada forma de adoração é determinada pelas crenças que incorpora: culto católico é católico porque incorpora crenças católicas e culto protestante é protestante porque incorpora crenças protestantes. Quais são as crenças que o culto ecumênico, como tal, incorpora? Claramente, as crenças consideradas comuns a todas as grandes formas históricas do cristianismo. Assim, muitas doutrinas da fé católica podem ser expressas em tal adoração; mas não estarão presentes porque são católicos, mas por outra razão, ou seja, que são aceitas por algumas comunidades não-católicas. O culto ecumênico, formalmente falando, portanto, não é católico, porque não é concebido para expressar o catolicismo como tal; é, portanto, um culto não-católico.

 

Alguém poderia objetar: é verdade que o culto ecumênico, para um não-católico, não é uma expressão da fé católica, pois ele não tem essa fé para expressar; no entanto da parte da Católica, esta adoração expressa de fato a verdadeira fé, pois todas as doutrinas expressas pelo culto são realizadas pelo Católico precisamente em virtude de sua fé católica. Assim, o serviço é, do seu ponto de vista, um serviço religioso católico e, portanto, legítimo.

 

No entanto, isso parece insuficiente. Para um serviço religioso ser genuinamente católico, as crenças que transmite devem estar presentes, porque são ensinadas pela Igreja Católica por serem reveladas por Deus. Caso contrário, será, na melhor das hipóteses, materialmente católica, mas formalmente não. E o critério que os organizadores de um serviço ecumênico usam para decidir quais doutrinas podem ser expressas em seu serviço não é o ensinamento da Igreja Católica, mas um acordo de facto entre católicos e os demais quanto à verdade dessas doutrinas. O fato de que um participante Católico acredita em todas essas doutrinas, porque elas foram propostas a ele pela Igreja não muda o fato de que ele está participando de um culto que é formalmente não-católico, do mesmo modo se ele estivesse,digamos, cantando salmos em uma eucaristia luterana – e isso, se aceitarmos o ensinamento tradicional dos teólogos, não é possível.

 

A única maneira de negar que os serviços ecumênicos seriam formas de culto não-católico era negar que eles tivessem qualquer verdadeira unidade. Assim, pode-se dizer que, embora os vários participantes estivessem, materialmente, realizando as mesmas ações, mas por causa de suas diferentes visões religiosas, eles não seriam participantes de um único e mesmo serviço; ao cantarem hinos e salmos juntos, e ao oferecerem as mesmas orações a uma só voz, católicos e protestantes, por exemplo, estariam de fato oferecendo dois serviços diferentes, um católico e um protestante. E talvez esta seja a melhor descrição do que realmente acontece em um culto ecumênico, quando todas as partes agem de boa fé. No entanto, se é isso que está acontecendo, não é defensável? Parece que não, e por duas razões. Primeiramente, isso significaria adorar a Deus com um culto que não é o que aparenta – parece oferecer um culto em união com todos os presentes, mas na realidade não o faz. E isso certamente não é tolerável – non enim est dissensionis Deus sed pacis (1 Cor 14: 33.). Em segundo lugar, implicaria, pelo menos por parte dos organizadores do serviço, um convite para não-católicos fazer algo objetivamente ilegítimo, ou seja, oferecer culto público não-católico.

 

Agora consideremos a segunda alternativa: um defensor do culto ecumênico pode perfeitamente admitir que tal culto não foi formalmente católico, mas continua a argumentar que permanece, no entanto, intocado pelas restrições pré-conciliares contra a communicatio in sacris proibida. Tais restrições, ele poderia dizer, aplicam-se apenas às formas de culto não-católicas que se manifestam adesão a uma religião não-católica. O culto ecumênico, ele poderia acrescentar, pode de fato não expressar a adesão à religião católica; porém não expressa também adesão a uma religião não-católica – pois não expressa a adesão a qualquer religião. É precisamente projetado para permitir que diferentes cristãos adorem a Deus juntos, sem expressar adesão a um entendimento comum de cristianismo. É, portanto, legítimo.

 

Tal ponto de vista é plausível; mas é defensável? Pode realmente haver um culto divino público, que se manifeste a adesão a nenhuma religião definida? Vamos considerar o que um ser humano, qualquer que seja a sua religião, procura ao se envolver em um ato religioso. Ele está tentando colocar-se ou manter-se em uma relação correta com a Divindade: é o que faz o seu ato religioso. Ele não está apenas à procura de expressar certas convicções sobre Deus, como alguém pode fazer por meio do preenchimento de um questionário – ele está procurando colocar-se na presença de Deus, e estar ‘ordenado’ para Deus como o Próprio Deus deseja. Então, ao se envolver em um determinado ato religioso, uma pessoa expressa seu desejo de estar em um relacionamento correto com Deus por meio dele. Mas agora vamos supor que o ato religioso em questão seja um ato público, ou seja, o ato de uma comunidade. Ao envolver-se neste ato essencialmente público, a pessoa estaria agora expressando seu desejo de estar em um relacionamento correto com Deus nesta ou por meio desta comunidade. Visto que a comunidade que é o sujeito do ato religioso em questão, ao tornar-se uma parte do agir comunitário, ele expressa que isto tem, para ele, o poder de realizar um ato propriamente religioso, ou seja, colocá-lo na devida relação para com Deus. Ele não pode não acreditar de fato nisto – mas é o seu ato, como tal, significa.

 

Culto comum não precisa implicar em um acordo completo sobre todos os assuntos atinentes à Deus e ao homem. Assim, dentro da Igreja Católica, um escotista e um tomista podem alegremente adorar juntos. Mas se o raciocínio acima exposto estiver correto, o culto comum implica reamente em um acordo em que a comunidade que assim adora junto é uma comunidade na qual Deus quer ser adorado, e que é capaz de colocar a pessoa em uma devida relação com Ele. Neste sentido, o culto comum sugere, sim, uma religião comum.

 

O Católico, no entanto, acredita que é na Igreja Católica visível, e somente lá, que Deus quer ser adorado e que ele pode salvar sua alma. Ele não acredita que qualquer outra comunidade possa levá-lo a um relacionamento correto com Deus ou mantê-lo em uma tal relação, exceto a Igreja. Ao envolver-se no culto ecumênico, portanto, ele parece estar em uma posição contraditória; ele estaria manifestando um compromisso religioso com uma comunidade que ele pessoalmente acredita não ter poder salvífico; nenhum poder para colocá-lo no devido relacionamento com Deus. Seu ato, como um ato religioso público, implica que ele atribui um tal poder religioso à comunidade; sua fé o proíbe de acreditar nisso. Pois ele acredita que se deixar a Igreja Católica,mesmo para envolver-se em culto exclusivamente ecumênico, perderia sua alma.

 

Pode-se observar que a mesma contradição pode não ser aplicável aos protestantes de várias denominações envolvidas em conjunto em oração pública. Embora possam ter divergências graves, até mesmo no próprio conteúdo da revelação divina – por exemplo, se é vontade de Deus que os bebês devam ser batizados – eles normalmente iriam acreditar que é possível salvar a alma de alguém em uma comunidade onde a oração é oferecida em nome de Cristo e ‘a palavra de Deus é pregada‘. Tal comunidade poderia ser composta por membros de várias denominações se reunidas. O Católico, no entanto, acredita que ele está em um, corpo histórico particular, a Igreja Católica, que Deus quer ser adorado. A este respeito, as divergências das várias denominações protestantes são mais parecidas com aquelas que possam existir entre os teólogos católicos de ‘escolas’ díspares.

 

Pode-se ainda observar que se, como já argumentamos, o culto ecumênico coloca o Católico em posição anômala, ele não pode escapar da anomalia ao decidir ou mesmo declarar expressamente que, em seu caso, tal adoração não pode expressar uma comunhão de religião com aqueles com os quais ele adora publicamente, mas que será simplesmente um gesto de boa vontade para com eles. Pois a expressão de comunhão de religião é intrínseca ao ato de culto comum, e não depende da intenção do adorador: é um finis operis e não um finis operantis. Da mesma forma, se alguém disser uma mentira para dar prazer a outro, embora sua boa intenção atenuaria os eu ato, ele não poderia defender-se, alegando que “ele tinha decidido” que suas palavras seriam, neste caso, uma expressão não do seu pensamento, mas simplesmente de sua boa vontade para com o seu interlocutor. Pois é uma propriedade intrínseca do discurso que ele deva expressar um pensamento.

Para prosseguir a analogia: pode-se, naturalmente, dizer palavras que sejam materialmente falsas a um grupo onde todo mundo saiba perfeitamente bem que não se teve a intenção de dizê-las. Isso seria, então, não mentir, mas brincar ou fazer de conta. Mas tal exceção, evidentemente, não pode servir de desculpa para o católico no caso do culto ecumênico. Mesmo supondo que não-católicos presentes soubessem perfeitamente que ele – católico -acredita que Deus queira ser adorado somente na Igreja Católica, eles ficariam satisfeitos, seria consonante com a reverência, que ele deva participar ativamente em um culto ecumênico desde que ficasse claramente compreendido de que isto para ele não passa de uma aparência ou de um faz de conta? 

Finalmente, o que dizer da afirmação comum que enquanto seja impossível para os católicos celebrar a Santa Eucaristia com aqueles que não estão em plena comunhão conosco, o culto ecumênico será a expressão apenas da realidade, qual seja, a comunhão parcial que temos com os nossos irmãos separados? É claro que é certo que esta ‘comunhão imperfeita’ deve ser reconhecida, e que nossa lealdade comum a Cristo manifestada na medida do possível. Isso poderia ser feito, por exemplo, por católicos e outros cristãos se reunindo para orar em silêncio diante de um crucifixo ou um ícone do Salvador. Mas assim que o culto se torna culto genuinamente público, seguido de um texto e ritual acordados com os não-católicos e talvez até liderado por alguém que não seja um ministro católico – e até mesmo talvez na presença de clero católico – então o ato torna-se o ato de uma comunidade não-católica, e ao participar da mesma, um católico está atribuindo um poder religioso e salvífico a uma comunidade que ele sabe que não o pode salvar.

 

 

Conclusão

 

Neste artigo eu argumentei que o ensino de teólogos pré-conciliares sobre communicatio in sacris é formalmente compatível com o ensinamento do Concílio Vaticano II (embora não com um documento posterior publicada pela Secretaria para a Promoção da Unidade dos Cristãos, um órgão cuja função foi mais prática que doutrinária). Também argumentei em defesa do ensino tradicional que o culto público em comum com os não-católicos, exceto dentro de serviços explicitamente católicos, implica em um compromisso religioso que é logicamente incompatível com compromisso para com a Igreja Católica visível como a Única Arca da salvação. Argumentei este último ponto, especialmente no que diz respeito àquele tipo de adoração que pode parecer mais plausível em exigir um desenvolvimento do ensino tradicional, a saber, sobre o culto ecumênico; Se o meu raciocínio está correto, então ele deve obrigatoriamente aplicar-se a fortiori a participação ativa nos serviços de uma outra Igreja ou comunidade eclesial.

 

 

 

Notas:


[1]Infidelium et haereticorum sacris non licet ita interesse, ut eis communicare censearis, Theologia Moralis, Lib.5, Tract. 1, Cap. 3.

[2]Manuale Theologiæ Moralis, Tomus I, Tract. VII, art. III.

[3]Communicatio activa seu participatio in ipsis sacris, scil. cultus publici.  Summa Theologiæ Moralis, I, 754.

[4]Etiam communicatio materialis in sacris, si est activa et immediata, nunquam catholicis licet…Re quidem vera, talis communicatio importat exercere actionem, etsi materialiter tantum, quae ex se vel ex circumstantiis necessario sese refert ad cultum falsum vel saltem illegitimum..Nunquam autem licet, neque externe tantum, adhaerere falsae religioni vel negare veram.Manuale Theorico-Practicum Theologiæ Moralis, Tomus II, Tract. II, Cap.IV, 38.

[5]Ibid

[6]U.R. 8

[7]Ibid.

[8]A ‘History of the Decree’ [História do Concílio] escrito por W.Becker (em Comentário sobre os Documentos do Vaticano II, ed. H. Vorgrimler, Vol. II p.36) sugere que alguns dos Padres teriam favorecido uma participatio ativa por orientais católicos no culto ortodoxo. No entanto, mesmo nas disposições para communicatio in sacris estabelecidas pelo Decreto sobre Igrejas Católicas Orientais, 26 e 29, tal não é explicitamente elogiado; embora estes parágrafos pareçam apenas disciplinares, e não doutrinais em caráter.

[9]Ad Totam Ecclesiam, 35.

[10]A. T. E. 50 & 59.

[11]Catecismo da Igreja Católica, 821.

  

Este artigo foi primeiramente publicado em Apropos, posteriormente em Christendom Awake e em nosso site com autorização do autor.

 

Versão de 8 de fevereiro de 2009.

 

 

PARA CITAR


CREAN, Pe. Thomas. Rezar com os não-católicos – É possível? Disponível em <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/concilio-vaticano-ii/ecumenismo/920-rezar-com-os-nao-catolicos-e-possivel> Desde 31/01/2016. Tradutor: JBF.

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