Sexta-feira, Novembro 15, 2024

Revolução protestante e a suposta corrupção da Igreja Católica – Parte 1

O que os leitores terão o prazer de ler agora é uma sequência os artigos de Diane Moczar sobre a revolução protestante e a suposta corrupção da Igreja Católica na Idade Média como motivo para isso.

Sobre a autora: Diane Moczar, ph.D, ensina História na Nothern Virginia Community College. Entre as suas obras, destacam-se: Islam at the Gates, sobre a guerra da Europa contra os turco-otomanos, e Ten Dates Every Catholic Should Know.

Uma Igreja corrompida até o topo

A mentira: a Reforma Protestante foi necessária, pois a Igreja Católica estava inteiramente corrompida por imoralidade e falsa doutrina.

A mentira apresentada neste capítulo, assim como outras mentiras históricas, já foi refutada por pesquisas de estudiosos católicos e não católicos. O problema é que a pesquisa erudita, cuidadosamente conduzida e amparada por numerosas notas de rodapé não é muito atrativa ao leitor comum. Há, no entanto, algumas obras sobre o assunto – de protestantes e católicos, – que são de leitura mais fácil e expõem o tema de modo imparcial. Algumas serão mencionadas neste capítulo, outras estão incluídas na bibliografia indicada no Apêndice 2.

Para resumir, a versão popular desta mentira é a seguinte: A reforma era inevitável. (Até mesmo o historiador de arte Sir Kenneth Clark, em sua série de filmes Civilisation, diz, “ela tinha que vir”). No século XVI, a situação na Igreja Católica era intolerável e alguém tinha de fazer alguma coisa. Felizmente, apareceram benfeitores da humanidade como Martinho Lutero, João Calvino e Henrique XVIII, dispostos a cumprir a tarefa de purificar o cristianismo que, há séculos, vinha sendo corrompido pela ganância e superstição dos católicos.

O clero católico era ignorante e moralmente corrupto; vivia em concubinato ou até mesmo em libertinagem e vendia indulgências pelos pecados (ver as cartas dessas indulgências em Contos de Cantuária [ Lisboa, Publicações Europa-América, 1992], de Geoffrey Chaucer). Os mosteiros eram fossas de iniqüidades. Nos níveis mais altos, os clérigos compravam e vendiam seus cargos e influências políticas e eclesiástica. Os papas levavam vidas imorais, em grande luxo, preocupados principalmente com questões políticas. Viviam como príncipes mundanos. Os leigos eram miseráveis ignorantes, prejudicados pelos dízimos e tributos infligidos pelo clero e devotos de superstições que lhes eram ensinadas sobre o pretexto de doutrina. Dificilmente poderiam viver como seres humanos racionais, em razão da sua preocupação com relíquias e com pós-morte e de práticas arcaicas como a Missa.

Entretanto, a corrupção da Igreja era mais evidente na sua doutrina. A vida dos sacerdotes não apenas não se assemelhava em nada à vida dos apóstolos, mas o que eles ensinavam não se baseava nas Escrituras. Indulgências, por exemplo, certamente não estão na Bíblia; todavia, foram uma grande fonte de lucro para o clero corrupto. A Igreja Católica como um todo, com sua misteriosa liturgia, sacramentos mágicos e doutrinas incompreensíveis, não tinha semelhança alguma com aquelas simples comunidades cristãs sobre as quais lemos na Bíblia. Já que, então, a Igreja Católica era incapaz de reformar a si mesma – o concílio chamado de reformista, realizado no século XVI (Quinto Concílio de Latrão) não realizou absolutamente nada -, era o momento de os cristãos devotos, que sabiam o que significava o verdadeiro cristianismo, iniciarem uma mudança radical e uma limpeza completa.

Essa é a história da grande Reforma contada pelos protestantes. Como escreveu um historiador protestante francês, E. G. Leonard, em The Reformation: Revival or Revolution, editado por W. Stanford Reid:

“(…) os protestantes afirmaram por muito tempo, e ainda o fazem ocasionalmente, que a Reforma foi uma reação contra a falta de moral dos padres e os abusos do papado; essa visão baseia-se em um escrito tardio de Lutero, no qual ele afirma que sua revolta começara a partir do momento em que, durante sua visita a Itália, descobriu o horror das práticas vergonhosas de Roma.”

Will Durant, no volume sobre a Reforma da sua obra História da Civilização, aproveita a oportunidade para pintar uma imagem sensacionalista de corrupção generalizada dentro do clero e ainda acrescenta, de maneira maliciosa e astuta,

“precisamos ser justos com aqueles padres luxuriosos e levar em conta que o concubinato sacerdotal não era devassidão, mas sim uma rebelião quase geral contra a regra do celibato, imposta pelo papa Gregório VII a um clero que não a queria.”

Ele chama o celibato de “uma regra arbitrária desconhecida dos apóstolos e do cristianismo oriental”.

Jack L. Arnold, do Third Millenium Ministers, resume de forma sucinta em seu website[1] a descrição convencional do protestantismo evangélico sobre a Era da Reforma:

“A Igreja Católica Romana estava teologicamente doente e sua teologia havia gerado uma corrupção atroz. Estava espiritualmente exausta, debilitada e quase sem vida. Roma se afastara dos ensinamentos da Bíblia e estava mergulhada em heresia.”

Em outro site, www.justforcatholics.org, lemos sobre aquela época: “a Igreja Católica desceu ao fundo dos infernos em matéria de corrupção, ganância, superstição, arrogância e imoralidade”.

Essa visão parece estar consolidada de tal modo na psique moderna que se torna imune a qualquer relato diferente. E não são apenas os interessados em perpetuar as 33 mil ou mais seitas que foram criadas desde a Reforma, todas trazendo o selo “cristão”, que continuam a papaguear a coleção de mentiras listadas anteriormente. Até mesmo trabalos acadêmicos são frequentemente contaminados. Isso levou um crítico literário, ao analisar os melhores estudos recentes sobre a Reforma (The European Reformation, do professor Euan Cameron), a observar que: “é revigorante encontrar uma obra que não comesse com a premissa de que o protestantismo era inevitável ou até mesmo desejado pelos leigos.”

Quanto aos pastores e fiéis das seitas protestantes, eles estão naturalmente predispostos a aceitar a versão da História que lhes é ensinada por seus livros e semináros e, depois, transmitirem-nas ao seu rebanho. Anos atrás, perguntei a uma aluna minha onde ela havia aprendido uma determinada mentira sobre a Igreja, que escrevera em um trabalho, e ela respondeu que fora na escola dominical. Expliquei-lhe pacientemente os fatos, mas foi em vão. Da mesma maneira que muitos protestantes, ela simplesmente “sabia” que a Igreja Católica estava corrompida antes de Lutero e companhia, e as provas em contrário simplesmente entravam por um ouvido e saíam pelo outro.

Suponho que muitos protestantes se prendem a essa idéia porque ela justifica a sua existência. Se a Igreja Católica não fosse (e continua sendo, é claro) tão corrupta e maléfica, qual seria a razão para se criar novas igrejas? Os secularistas, naturalmente, alegram-se em comprar qualquer versão da História que denigra a Igreja. Em razão do estreitamento mental dessas pessoas, o estudo imparcial da Igreja Católica pré-Reforma é muito raro.

E quanto aos católicos? Aqui, a situação é também muito ruim. Os mitos reformistas são parte da cultura americana, e apenas uma minoria de católicos não foi afetada por eles. A má formação também tem culpa: vinte anos atrás, quando eu havia começado a dar aulas, alguns de meus alunos católicos diziam ter aprendido mais sobre religião comigo que nas escolas católicas ou em aulas de educação religiosa. E eu acredito neles; a qualidade da catequese e educação histórica nas escolas católicas e outras instituições passaram por um declínio abissal nos anos 1960 e ainda apresenta um nível muito irregular. Os católicos de hoje estão dispostos a acreditar em qualquer bobagem sobre a Igreja que encontrem em livros didáticos, na mídia ou no ar que respiram.

Se, portanto, protestantes e católicos compram as mesmas mentiras sobre a Reforma, o que podemos fazer? Primeiramente, devemos ter certeza de que conhecemos os fatos. Em seguida, precisamos entender a razão pela qual poucos avanços são feitos na luta contra as mentiras da História – não somente nessa questão – e tentar lidar de maneira caridosa com os obstáculos que encontramos.

O fenômeno complexo conhecido por Reforma não veio do nada. Foi precedido por mil e quinhentos anos de civilização cristã, desde as primeiras comunidades de fiéis dentro do Império Romano, passando pela lenta conversão da Europa bárbara, até chegar à desenvolvida civilização da Idade Média. Como discutimos anteriormente, o período medieval viu o esplêndido desenvolvimento da cultura, da educação, dos serviços sociais, das instituições políticas e econômicas, e contou com grande número de santos que atuaram em diversos âmbitos da vida. *

Os conturbados séculos que precederam a Reforma

Os dois séculos anteriores ao século XVI, o século da Reforma, foram pontuados por desastres de vários tipos. A Guerra dos Cem Anos havia minado a energia de duas grandes potências, Inglaterra e França. Havia devastado particularmente a França, outrora o centro do pensamento e cultura europeus. Mudanças climáticas no começo do século XIV trouxeram penúrias deliberantes, e a estas se seguiu a grande pandemia famosa até os tempos modernos: a Peste Negra, que trouxe consigo discórdia social e declínio moral. De acordo com um cronista da época, após a praga seguiu-se uma baixa na qualidade (assim como na quantidade, em muitos locais) do clero e os religiosos. Conforme a doença se espalhava, os padres e os religiosos, bondosos e dedicados, cuidavam dos doentes e enterravam os mortos – contraindo assim a doença e morrendo logo depois. Os não tão dedicados, no entanto, fugiram para áreas isoladas, onde conseguiam sobreviver. Eles retornaram quando a praga havia acabado para ocupar a vaga deixada pelos padres heróicos que haviam morrido.

O papado também passou por crises sucessivas durante aquele período negro. Primeiro foi a amarga disputa entre o papa Bonifácio VIII – que não foi um exemplo brilhante de pontífice – e a coroa francesa, sobre a tributação do clero, o que levou a um confronto entre o papa, uma delegação francesa e um grupo de inimigos políticos italianos do papa. Qual deles (provavelmente os italianos) realmente colocou as mãos no velho pontífice e o agrediu no escritório de sua casa de férias? Não se sabe, mas ele retornou a Roma muito abalado e morreu pouco tempo depois do incidente. O papa seguinte, um francês, nunca saiu da França e estabeleceu a corte papal em Avignon, onde ela permaneceu por quase setenta anos. A mudança fazia sentido por certos ângulos, mas não havia como fugir do fato de que esse sucessor de Pedro havia deixado Roma; a cristandade estava escandalizada. (Lembre-se de que a guerra, a praga e a desagradável mudança climática ocorriam na mesma época).

Em Avignon, o governo da Igreja foi muitas vezes dirigido com eficiência, mas a situação anômala impediu a realização de grandes planos como a convocação de um concílio para lidar com os formidáveis problemas da época. Como observa o historiador Christopher Dawson, em The Dividing of Christendom, a eficiência do sistema de tributação implantado pelo papado de Avignon andou de mãos dadas com o declínio de seu prestígio e poder dentro da cristandade, pois o papado aumentava escandalosamente sua riqueza e crescia em secularismo. Por fim, em grande parte por causa do “puxão de orelhas” (palavras do papa) de Santa Catarina de Sena, o papa Gregório XI retornou a Roma, em 1337. Agora a vida e a atividade da Igreja poderiam voltar ao normal – exceto pelo fato de que a guerra ainda estava em curso, os turcos invadiam as regiões costeiras e o deslocamento do papado continuava a afetar muitas áreas da vida européia.

A volta à normalidade não ocorreu. O papa morreu logo após o retorno a Roma, e o papa eleito em seguida foi rapidamente rejeitado por um grupo de cardeais – que tinha segundas intenções -, após terem visto o tipo de reformista rígido que ele seria. Eles decidiram que não o queriam e elegeram outro papa. Assim, começou o Grande Cisma do Ocidente, que continuou até o século seguinte, produzindo dois e, por vezes, três demandantes do trono papal, cada um com suas próprias cortes e grupos de cardeais. Poucos na Europa sabiam quem era o verdadeiro papa e havia santos em lados opostos da disputa. Além do mais, como observa Dawson, o escândalo do papado de Avignon não fora eliminado; pelo contrário, era duplicado ou até triplicado, dependendo do número de cortes “papais” que existissem ao mesmo tempo.

No início do século XV, a situação deu sinais de melhora. A Guerra dos Cem Anos terminou com Joana d’Arc ajudando a expulsar os ingleses e com a vitória dos franceses após a morte dela (os ingleses voltaram para casa, a fim de iniciar a Guerra das Rosas), e o Concílio de Basiléia finalmente acabou com o Cisma do Ocidente. Alguns membros do concílio, no entanto, começaram a argumentar que, por terem resolvido o problema dos reis papas (ao escolher um deles), o concílio era agora a autoridade última da Igreja: essa foi a heresia do conciliarismo. Demorou para que fosse eliminada. O Concílio de Basiléia também teve de lidar com o movimento herético que estava em curso na Boêmia, resultado das pregações do reformador João Huss, que, por sua vez, fora influenciado pela heresia do teólogo inglês John Wycliffe.

Não surpreende o fato de os papas seguintes, novamente em Roma e tentando retornar à normalidade, terem preferido lidar, em especial, com questões locais, particularmente a tentativa de recuperar e governar os territórios da Santa Sé, o que fazia parte da sua tarefa de líderes italianos. Seduzidos pelas glórias da Alta Renascença e sua cultura mundana, eles queimaram críticos severos como Girolamo Savonarola, e mesmo com seus expendidos corpos diplomáticos não estavam tão conscientes quanto seus predecessores medievais a respeito do que estava sendo fermentado na Alemanha, Boêmia, Inglaterra e na própria Itália.

E quanto as condições dos leigos católicos na maioria da Europa, durante os anos anteriores à reforma? Não é claro como a vida dos católicos foi afetada pelo Cisma do Oriente. Certamente, a liderança e os serviços sociais fornecidos pelas dioceses locais sofreram com o fato de que, durante muitas décadas, ninguém sabia com certeza quem era o verdadeiro papa. Instituições paralelas eram por vezes montadas por requerentes rivais ao trono papal, mas a falta de unidade deve ter comprometido a operação eficiente de todas essas instituições de educação e bem-estar, que estavam entre as grandes conquistas estabelecidas pela Igreja. Tal como no período negro do século X, os católicos na Europa pré-Reforma reclamavam da ignorância e imoralidade de muitos padres, da influência demasiada de autoridades políticas em assuntos da Igreja, da mundanidade de boa parte do alto clero (que estava apenas imitando alguns papas) e da falta de continuidade da reforma. Para a maioria, as coisas não haviam chegado ao ponto em que estavam no século X, mas a crescente alfabetização e a invenção da máquina de impressão, na metade do século XIV, permitiram que a discórdia se espalhasse mais amplamente. Enquanto isso, havia hereges individuais propagando seu próprio tipo de “reforma”, líderes políticos locais que desejavam controlar as finanças eclesiásticas e a tendência dos monarcas a se libertarem das restrições impostas pela Igreja (por vezes, de maneira abusiva, deve-se admitir) sobre suas ações.

Essas eram queixas constantes, como também as reclamações sobre os pesados dízimos e outras taxas que várias instituições da Igreja arrecadavam dos fiéis. É possível que circunstâncias como a Peste Negra e as revoltas subseqüentes tenham, de fato, aumentado a necessidade da Igreja por dinheiro, a fim de atender à crescente demanda de serviços de bem-estar, mas isso não foi culpa da Igreja ou dos leigos.

A despeito de todos esses problemas, no período pré-Reforma ainda haviam santos, incluindo Santa Catarina de Sena, Santa Brigite da Suécia e o grande pregador São Vicente Ferrer. Se houve um santo para a época, foi Vicente. Durante mais de vinte anos ele cruzou toda a Europa, pregando e lutando por almas. Chama a si mesmo de “o Anjo do Julgamento” e advertia que o fim do mundo viria caso as pessoas não se arrependessem de seus pecados. Muitos se converteram durante as suas pregações. Nesse período, instituições da Igreja ainda cuidavam dos pobres e doentes e educavam os mais jovens nas escolas. Os sacramentos ainda eram ministrados por padres que, no geral, faziam seu trabalho adequadamente, mesmo que não fossem tão letrados quanto deveriam. Pregadores de ordens monásticas ainda atuavam e, se trapaceiros eclesiásticos, como o Pardoner de Geoffrey Chaucer, tentavam vender indulgências e outros favores espirituais aos ingênuos, isso não era algo novo na História.

[Continua…]

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