Sábado, Dezembro 21, 2024

Reposta a William Webster sobre I Esdras da LXX em Hipona e Cartago

 

INTRODUÇÃO


William Webster, um popular apologista protestante americano, escreveu um livro sobre a formação do cânon das Escrituras. Juntamente com o seu material online sobre este assunto, ele essencialmente recicla muitos dos argumentos que outros protestantes já tiveram durante séculos sobre este assunto. Webster parece ser muito seletivo em seu uso de estudiosos, ignorando a evidência histórica mais ampla, que mais do que adequadamente refutam muitas das posições que ele toma. No entanto, há uma afirmação que ele faz sobre o cânon que é única e que não é sustentada por qualquer um dos principais estudiosos com os quais estou familiarizado sobre este assunto, mas incrivelmente está sendo usada também por protestantes brasileiros. Webster escreve:

…O cânone dos concílios do Norte da África diferem daquele decretado pelo Concílio de Trento, no século XVI em um importante ponto. Hipona e Cartago afirmaram que 1 Esdras e 2 Esdras eram canônicos, referindo-se a versão Septuaginta de 1 e 2 Esdras, a Bíblia em que sua versão latina foi baseada. Nessa versão, 1 Esdras era as adições apócrifas para Esdras e Neemias que eles combinavam em um livro. Estes últimos eram 2 Esdras na versão da Septuaginta. Foi Jerônimo (em sua Vulgata Latina) que separou Esdras e Neemias em dois livros, chamando-os de 1 Esdras e 2 Esdras, respectivamente. Isto tornou-se padrão para a Vulgata e a base sobre a qual Trento declarou 1 Esdras da Septuaginta como não canônico. 1 Esdras na Septuaginta, então, tornou-se 3 Esdras na Vulgata… Agostinho citou o livro de Esdras III (I Esdras na Septuaginta) em sua obra A Cidade de Deus. Assim, quando o Concílio de Cartago deu a sua lista de livros canônicos para o Antigo Testamento, seguiu a tradução da Septuaginta. Ao se referir a Esdras como dois livros, eles estavam se referindo I e II Esdras da Septuaginta. E quando Cartago enviou estes decretos a Roma para confirmação, foram esses livros que foram confirmados como canônicos. Inocêncio I afirmou isso em sua carta ao Exuperius e eles foram posteriormente incluídos nos decretos dos papas Gelásio e Hormisdas… Isto contradiz o decreto passado por Trento que seguiu Jerônimo na atribuição de I e II Esdras aos livros hebraicos canónicos de Esdras e Neemias, respectivamente. Portanto, Trento declarou como não canônico o que o Concílio de Cartago e os bispos de Roma, no quarto, quinto e sexto séculos, declararam ser canônicos”. (William Webster, The Old Testament Canon And The Apocrypha (Christian Resources, 2001), pp. 48-50)

Webster afirma que o cânon bíblico promulgado nos Sínodos Norte Africanos em Hipona e Cartago no final do 4º e início 5º séculos d.C diferem do concílio de Trento no que diz respeito aos “dois livros de Esdras”. Ele usa como sua principal evidência o conteúdo dos principais códices da Septuaginta e o uso de Santo Agostinho do apócrifo 1 (3) Esdras na Cidade de Deus. Neste artigo, vou examinar mais detalhadamente os pormenores de sua reivindicação e responder à evidência que ele acredita que apoia este ponto de vista.

 ESDRAS-NEEMIAS E I ESDRAS


Antes de rever brevemente Neemias-Esdras e 1 (3) Esdras, é necessário explicar as diferenças na forma como cada um é nomeado para evitar confundir o leitor. O livro profético hebraico Esdras-Neemias é uma obra única na tradição judaica, que às vezes é dividida em dois livros separados como “Esdras” e “Neemias” em muitas Bíblias cristãs. Nos primeiros manuscritos, a obra de duas partes é por vezes colocada em conjunto, como “Esdras B” ou “2 Esdras” nos principais códices da Septuaginta, e separadamente como “1 Esdras” (Esdras) e “2 Esdras” (Neemias) na Vulgata. O apócrifo Esdras é conhecido como “Esdras A” ou “1 Esdras” na Septuaginta e como “3 Esdras” na Vulgata. Há também outra obra apócrifa de nome semelhante, conhecido como “3 Esdras” na Septuaginta e “4 Esdras” na Vulgata.

Canon Hebraico Septuaginta Vulgata
Esdras * 2 Esdras (Esdras B) * 1 Esdras (Esdras) *
Neemias * 2 Esdras (Esdras B) * 2 Esdras (Neemias) *
1 Esdras (Esdras A) 3 Esdras
3 Esdras 4 Esdras

* Esdras-Neemias estão unidos no chamado cânon hebraico[1]

As Bíblias Católicas seguem principalmente a designação desses livros da Vulgata, como pode ser visto na antiga tradução de Douay-Rheims, embora em traduções para o inglês atuais 1 Esdras é normalmente chamado de “Esdras” e 2 Esdras é chamado de “Neemias”. Para evitar confusão, vou me referir ao material canônico como “Esdras-Neemias” principalmente, mas também como “Esdras canônico”. Ao apócrifo Esdras vou me referir como “1 (3) Esdras” com o primeiro número sendo a designação da Septuaginta e o segundo número a designação da Vulgata. Às vezes, também devo me referir a ele como “Esdras apócrifo”. 

Nosso Esdras-Neemias canônico foi escrito em algum momento do século 5 a.C e a visão predominante entre a maioria dos estudiosos é que ele e I e II Cronicas vem de uma única fonte desconhecida, comumente referida como “cronista”. Pensa-se que 1-2 Crônicas e Esdras-Neemias já foram reunidos em uma única longa história, embora a evidência clara para isso não seja demonstrada. Uma das razões para esta opinião é que o último parágrafo de 2 Crônicas e do primeiro parágrafo do Esdras são idênticos. Enquanto Esdras-Neemias é separado em muitas Bíblias como os dois livros de Esdras e Neemias, o material foi compilado em conjunto como um livro no chamado cânon hebraico e é geralmente referido como “Esdras-Neemias” por muitos estudiosos hoje. Ele conta a história do retorno dos judeus para a Palestina vindos do Exílio babilônico, a reconstrução do Templo Sagrado em Jerusalém, o rearmamento de Jerusalém, e as reformas de Neemias[2].

1 (3) Esdras foi escrito provavelmente em algum momento do século 3 a.C em hebraico ou aramaico, embora ele só chegou até nós em grego, e como David deSilva diz:

pertence ao gênero de literatura conhecida como a ‘Bíblia reescrita’, que era uma parte tão importante da produção literária do período intertestamental (ver, por exemplo, Testamentos dos Doze Patriarcas, Apocalipse de Abraão, jubileus, e os manuscritos de Qumran)” (David A. deSilva, Introducing the Apocrypha (Baker Academic, 2002), p. 280)

É muito paralelo, embora não sem alterações, de grande parte do material canônico do final de 2 Crônicas, todo Esdras e Neemias 8. 1 (3) Esdras 3, 1-5, 6 fornece material original com a história dos três guarda-costas. A ordenação do material em 1 (3) Esdras, deve-se notar, é muito diferente do nosso canônico Esdras-Neemias e estranhamente não tem um final, sendo cortado no meio da frase[3].

Paralelos entre 1 (3) e Esdras Esdras-Neemias[4]

1 (3) Esdras 1 2 Crônicas 35-36
1 (3) Esdras 2, 1-15 Esdras 1
1 (3) Esdras 2, 16-30 Esdras 4:7-24a
1 (3) Esdras 3, 1-5:6
1 (3) Esdras 5, 7-73 Esdras 2:1-4:5
1 (3) Esdras 6, 1-9:36 Esdras 4:24b-10:44
1 (3) Esdras 9, 37-55 Neemias 7, 73b-8:13

 

Estudiosos por séculos tem se dividido sobre qual é a relação de 1 (3) Esdras e do nosso canônica Esdras-Neemias. Embora a visão predominante hoje parece ser que 1 (3) Esdras é derivado de Esdras-Neemias (junto com os capítulos que terminam 2 Crônicas), também tem sido teorizado que Esdras-Neemias foi derivado de 1 (3) Esdras e ambos vieram do trabalho do cronista cujo original agora está perdido[5]. Acredita-se ter sido uma versão alternativa de Esdras-Neemias no primeiro século d.C, e entre os Padres da Igreja. Josefo utilizou 1 (3) Esdras, em vez de Esdras-Neemias em sua obra Antiguidades Judaicas (11.1-158) “embora não exclusivamente, e não sem alguma correção de seus erros históricos[6]. Entre os Padres da Igreja, DeSilva observa que 1 (3) Esdras:

 parece ter exercido uma influência principalmente por conta do episódio que ele não compartilha com Esdras-Neemias: A disputa dos três guarda-costas. O discurso de Zorobabel na verdade, previsivelmente, é a parte mais frequentemente citada do livro: Clemente de Alexandria (Stromata 1,21), Orígenes, Cipriano, Eusébio, Atanásio, Ambrósio, Efrém da Síria, João Crisóstomo e João de Damasco todos se referem a ou citam esta passagem; Agostinho (De civitate Dei 18, 36) cita 1 Esdras. 3, 12, também por causa da referência lá à verdade sendo mais forte. Até as autoridades da igreja primitiva estavam preocupadas, parece que era o novo material em 1 Esdras, que era considerado utilíssimo; quanto ao resto, eles preferiram Esdras-Neemias. O conto do tribunal surge, assim, de fato, como a principal razão tanto para a composição do livro quanto sua preservação”. (David A. deSilva, Introducing the Apocrypha (Baker Academic, 2002), p. 284).

Dada a quantidade de material em 1 (3) Esdras que deriva de nossos livros canônicos, além da história dos três guarda-costas que era muito popular no início da Igreja, não é de estranhar que muitos dos primeiros Padres viram essa obra apócrifa como uma outra versão do nosso canônico Esdras-Neemias.

Existe também outro apócrifo Esdras, conhecido como “3 Esdras” na Septuaginta e “4 Esdras” na Vulgata. A sua data de composição é desconhecida, mas acredita-se datar de algum momento entre o 1º a.C final do século e meados do segundo século d.C. Ele também é às vezes chamado o Apocalipse de Esdras. Este trabalho tem pouca relação com o material que estamos revisando aqui além de seu título, mas foi frequentemente citado por muitos Padres primitivos, mesmo aqueles que não o consideravam canônico. Também foi usado nas liturgias cristãs primitivas.

 

 Esdras & Os Códices da LXX


O nome “Septuaginta” geralmente refere-se às versões do Antigo Testamento (AT) traduzidas para o grego antes da época de Cristo. A Septuaginta é conhecida também como a “LXX”, porque a Carta de Aristeu menciona setenta ou setenta e dois tradutores judeus (dependendo da versão) que traduziram as Escrituras Hebraicas para o grego para o rei egípcio Ptolomeu. A lenda diz que cada um desses 70 estudiosos judeus fez sua própria tradução independentemente dos outros, mas cada um dos textos resultantes foi idêntico. Na verdade, uma crença piedosa surgiu entre muitos dos primeiros Padres – provavelmente devido ao uso da LXX e a influência da Carta apócrifa de Aristeu do Novo Testamento – que a LXX foi entregue pelos Apóstolos como o tradicional AT cristão e que ela era inspirada. Foi essa tradição textual do AT que foi amplamente utilizada no início da Igreja, tanto no grego original ou em traduções, como a antiga versão latina. A LXX não só foi uma importante testemunha de leituras alternativas do AT com algumas diferenças textuais significativas entre os textos gregos e hebraicos[7], mas também foi usada com frequência pelos escritores do Novo Testamento (NT) e os Padres da Igreja quando eles citavam o AT. Existem três grandes antigos códices da LXX que sobrevivem hoje: Vaticanus (início do século 4), Sinaiticus (início do século 5) e Alexandrino (início do século 5).

Parte da suposta evidência de Webster para uma contradição entre os cânones bíblicos dos Sínodos do Norte da África e o de Trento, vem da maneira que Esdras-Neemias e 1 (3) Esdras foram nomeados nos principais códices  da Septuaginta em contraste com os nomes usados na Vulgata. Ele afirma que, por causa dos maiores códices da LXX reconhecerem Esdras apócrifo como “1 Esdras” e Esdras-Neemias ser chamado de “2 Esdras”, respectivamente, significa que os “dois livros de Esdras” referidos pelos Sínodos da África do Norte referem-se à utilização da LXX. Entretanto, o Concílio Ecumênico de Trento se refere ao uso da Vulgata em que “1 Esdras” e “2 Esdras” são Esdras e Neemias.

Estou bastante surpreso como Webster pode basear as suas pretensões sobre este assunto, particularmente fazendo comentários anteriores em seu livro sobre a Teoria desacreditada do Cânon Alexandrino[8]. “Pretendendo refutar as suposições Católicas Romanas”, Webster observa “que os manuscritos da Septuaginta são todos de origem cristã a partir dos séculos IV e V”, “não sabemos com certeza que a própria Septuaginta incluiu os livros apócrifos como Escritura canônica”, e que “havia livros nestes manuscritos que nunca foram considerados canônicos pelos judeus ou a Igreja”. Webster resume isso ao escrever que apenas porque um livro foi listado nos manuscritos não quer dizer que era canônico. Significa simplesmente que estes livros eram lidos na Igreja”. Embora eu acredite que Webster é muito crítico à Septuaginta como testemunho do cânon[9], no que diz respeito aos próprios códices seus comentários aqui são essencialmente corretos. O que eu acho incrível é que depois de lançar tais dúvidas sobre a Septuaginta, ele acredita que esses códices fornecem uma testemunha esterlina à sua reivindicação sobre Esdras. Precisa ser perguntado que se os códices da LXX fornecem um testemunho tão pobre à canonicidade dos livros deuterocanônicos, como é que eles ajudam a “provar” que Hipona & Cartago canonizaram 1 (3) e Esdras Esdras-Neemias quando falam dos “dois livros de Esdras”, como parte do Cânon das Escrituras? Certamente Webster não pode basear sua afirmação sobre Esdras levando em conta o fato de que os livros de Esdras foram designados de forma diferente na Septuaginta e na Vulgata sem contradizer sua opinião anterior sobre o valor da LXX para determinar a extensão do cânon. Enquanto os principais códices da Septuaginta listam o Esdras apócrifo como “Esdras A” (ou 1 Esdras) e Esdras-Neemias como “Esdras B” (ou 2 Esdras), não há maneira de determinar a partir deles o status de cada livro no cânone da Igreja, como o próprio Webster reconhece, pelo menos no que diz respeito aos deuterocanônicos. Deve também ser notado que Esdras-Neemias foi encontrado em alguns manuscritos gregos como livros separados, os quais foram chamados de “1 & 2 Esdras”.

Ao contrário do que afirma Webster, a divisão de Esdras-Neemias em dois livros separados não se originou com a Vulgata de São Jerônimo no fim do 4ª e início 5ª século, mas veio muito mais cedo[10]. O primitivo e respeitado biblista do século 3 Orígenes mais de cem anos antes de São Jerônimo “conhecia este material como dois livros em grego[11]. O costume de dividir Esdras-Neemias em dois livros parece ter vindo de fontes cristãs. Os judeus continuaram a ter este material como um único livro até o século 15.

O dicionário de Oxford contradiz Webster:

Numa fase inicial, os livros de Esdras e Neemias foram considerados como um. A partir do tempo de Orígenes (século III d.C), eles foram divididos como os temos hoje.” The Oxford Companion to the Bible (Oxford University Press, 1993 Bruce Metzger & Michael Coogan editors), p. 219.

O The Anchor Bible Dictionary (Doubleday, 1992, Vol. 2, David Freedman chief editor) afirma esse costume surgiu com o próprio Orígenes::

Os livros de Esdras e Neemias foram originalmente considerados como uma única obra literária chamado Esdras. Embora este trabalho foi separado em dois livros por Orígenes (século 3 d.C) e Jerônimo (quarto século d.C), a divisão não aparece em bíblicas hebraicas antes do século 15…” (p. 731)

Não se sabe, quando o costume cristão de separar o material em dois livros surgiu exatamente. Ambos Orígenes e São Jerônimo listam esses livros, como se a divisão de Esdras-Neemias em dois livros fosse um costume antigo e não algo que se originou com qualquer um deles. Eusébio em sua História Eclesiástica citou listagem dos livros canônicos, “como os hebreus foram perpetuaram” onde Orígenes, escreve “Esdras, primeiro e segundo em um, Ezra, isto é, ‘um assistente’[12]. St. Jerônimo em seu prefácio a Samuel e Reis lista este livro como “o oitavo, Esdras, que em si é igualmente dividido entre gregos e latinos em dois livros[13]. Observe que São Jerônimo não diz nada sobre ele próprio estar dividindo ou tirando 1 (3) Esdras do Cânon da Igreja. Orígenes também não diz nada parecido com isso.

Orígenes e São Jerônimo não eram as únicas fontes iniciais que mostraram que Esdras-Neemias eram divididos em livros separados com os títulos de 1 e 2 Esdras.

1)      O Sínodo de Laodicéia no século 4 no Oriente e Santo Atanásio ambos indicam o material em Esdras-Neemias como dois livros “Primeiro e Segundo Esdras[14].

 2)      Rufino se referiu aos “dois livros de Esdras[15],

 3)      Enquanto Cirilo de Jerusalém observa que “o primeiro e segundo de Esdras são contados em um” .

Cada uma destas fontes se referiam a Septuaginta ou aversões como a Vetus Latina, que havia sido traduzida do grego. O próprio Webster em seu livro, e em seus artigos on-line, cita todas essas fontes como evidência para o chamado Cânon do AT hebraico. Ele deveria ter lido suas fontes com mais cuidado.

 

 HIPONA, CARTAGO E TRENTO SOBRE ESDRAS


O Sínodo de Hipona em 393 d.C adotou um cânon dos livros como Escritura, que é idêntica à encontrada no cânon da Bíblica Católica, listando os “dois livros de Esdras”. Embora os atos deste sínodo tenham sido perdidos, os seus cânones foram adotados quatro anos mais tarde, em 397 d,C no Terceiro Sínodo de Cartago:

O [Sínodo] de Cartago que ocorreu em agosto de 397 d.C teve duas sessões. A primeira, começando em 13 de agosto, foi composta por Aurélio, o Bispo de Cartago e os bispos de Bizacena (uma das seis divisões imperiais da África romana), que chegou cedo para o concílio e foram conduzidos por seu primaz, Mizonius. Este primeiro grupo trabalhou em conjunto editando uma versão resumida do cânon que tinha sido votado quatro anos antes, em 8 de Outubro, 393, no [Sínodo] de Hipona. Quando ocorreu, Hipona estava ao encargo pastoral do sacerdote Agostinho sob o bispo Valerius. Este breviário de Hipona Brevarium Hipponense incluiu uma versão do cânone da literatura sagrada. Foi este cânon, editado por Aurelius e a delegação de Bizacena, que foi ratificado em 13 de agosto, assim como todo o breviário em 28 de agosto, sem discussão pelos bispos proconsulares e os bispos da Numidia e da Mauritânia. (Pamela Bright – Augustine and the Bible (University of Notre Dame Press, 1999), p.31.)

Webster não tem nenhuma prova de que quando os Sínodos de Hipona e Cartago listaram os “dois livros de Esdras” eles tinham o apócrifo 1 (3) Esdras na mente como o primeiro deles. Quando examinamos a história do cânone bíblico de Hipona no final do século quarto até Trento no século na metade do século XVI, não encontramos nenhuma evidência de uma mudança nos livros de Esdras que estão listados no cânon. Devido a isso, é razoável acreditar que os “dois livros de Esdras”, adotados pela Hipona e Cartago foram Esdras e Neemias.

No final do século 4, o Papa São Dâmaso I (366-384 d.C) encomendou a São Jerônimo traduzir a Bíblia das línguas originais para o latim. Devido aos muitos erros e corrupções, que tinham invadido as várias versões latinas antigas da Septuaginta, o Papa São Dâmaso estava preocupado que as Escrituras utilizados pela Igreja tinham se perdido dos textos “originais” que haviam sido traduzidas. St. Jerônimo começou a trabalhar sobre os Evangelhos primeiro e completou-os em 384 d.C. Eles não foram recebidos sem controvérsia. Em 390 d.C, ele começou sua tradução dos livros do Antigo Testamento, usando o hebraico somente como sua fonte. Tudo isto provocou um acalorado debate na Igreja uma vez que suas traduções da Vulgata recusavam a tradicional versão Septuaginta e preferiam o hebraico do que o grego no Antigo Testamento. Sua tradução de Esdras foi concluída em algum momento de 394 d.C, o que significa que sua tradução desde livro foi contemporânea com o processo no Sínodo de Hipona em 393 d.C. Ele completou a sua tradução da Vulgata por volta de 405 d.C e apresentou-a ao Papa Santo Inocêncio I (401-417 d.C) no mesmo ano. A controvérsia sobre ela continuou. A insistência de São Jerônimo de que os livros deuterocanônicos não faziam parte do cânon, mas ao invés disso dos apócrifos trouxe muitos protestos igualmente. Na verdade, apenas a recepção que ele enfrentou de sua tradução dos Evangelhos é suficiente para dar a luz as intensas críticas que enfrentou:

Longe de ser imediatamente popular, a versão latina dos evangelhos melhorada por Jeronimo foi recebida com o grito de indignação que ele havia previsto. Isto é percebido em uma carta furiosa, mas reveladora que escreveu logo após o trabalho ser publicado. Personagens desprezíveis, ele protestou, “burros com duas pernas”, que preferiram se animar com riachos enlameados em vez de beber da fonte pelúcida do original grego, estavam atacando sua presunção em desprezar a tradição e adulterar as palavras inspiradas dos Evangelhos. Eles foram tão estúpidos que não perceberam que ele estava corrigindo, não os ditos do Senhor, mas os erros manifestos dos códices latinos. Para silenciá-los ele tocaria a trombeta em seus ouvidos, uma vez que uma lira não causaria nenhuma impressão a jumentos.” (J.N.D. Kelly’s Jerome: His Life, Writings, and Controversies (Hendrickson Publishers edition, 1998), p.89)

Independentemente dos méritos das posições de ambos os lados, São Jerônimo, obviamente, não sofria de timidez ao se expressar, nem poderiam seus críticos serem acusados de acanhados também[16]. No entanto, se formos acreditar em Webster, a suposta retirada de São Jerônimo do apócrifo 1 (3) Esdras do cânon e  a divisão de Esdras-Neemias em dois livros como “1 Esdras” e “2 Esdras” deve ter passado despercebido aos olhos da Igreja primitiva. Em nenhum lugar encontramos evidência de qualquer controvérsia sobre isso. Também é inconcebível que não haveria nada indicando que essa mudança tinha ocorrido no final do século quarto, seja na forma de um decreto, encíclica, carta pessoal, livro, observação a mão, ou objeção. Houveram muitas objeções à Vulgata de São Jerônimo neste período de tempo, mas sobre esta questão, temos o total silêncio. Por que isso? Acho que é notável que ninguém na Igreja Norte Africana – especialmente Santo Agostinho – não fez qualquer protesto as supostas ações de São Jerônimo ao retirar um livro canônico e dividir outro, não deixaram qualquer defesa de 1 (3) Esdras como se fosse parte de seu cânon. No entanto, as afirmações de Webster exigem que eles estranhamente ficaram em completo silêncio.

Em 406 d.C São Jerônimo escreveu uma resposta bastante polêmica para o herege Vigilâncio, pela qual foi amplamente saudado. Nesta carta, ele escreveu em resposta ao uso de Vigilâncio de 1 (3) Esdras como testemunha de suas heresias:

Você (Vigilâncio), que está dormindo acordado e dorme quando escreve, me aponta um livro apócrifo que, sob o nome de Esdras, é lido por você e por aqueles loucos que o escutam, e nesse livro está escrito que após a morte ninguém se atreve a orar pelos outros. Eu nunca li esse livro, mas qual a necessidade de lê-lo se a Igreja não o recebeu?”  (São Jerônimo – Contra Vigilâncio VI)

Qual é a resposta da Igreja Africano Norte a suposta audácia de Jerônimo em afirmar que 1 (3) Esdras não foi recebido pela Igreja? Nada. Esta é a Igreja norte-Africana combativa que os apologistas protestantes, como Webster, frequentemente exploram quando se discute o papado por causa da disputa do 3º século sobre o batismo entre São Cipriano de Cartago e Santa Sé? Talvez quando se trata dos livros de Esdras somos incitados a acreditar que a Igreja norte-Africana estava muito mais domada nos dias de Agostinho do que nos de Cipriano, razão pela qual não encontramos nada além de silêncio. Essa docilidade da sua parte parece pouco provável e realmente supera os limites da credulidade.

Webster afirma ainda que o Papa Inocêncio I na sua Carta a Exuperius, bem como os Papas Gelásio I (492-496 AD) e Hormisdas (514-523 AD), todos “contradisseram” Trento por “aceitarem” Esdras apócrifo supostamente aprovado em Hipona e Cartago. Não há base para Webster fazer tal afirmação. Novamente vemos Webster fazendo uma afirmação exclusivamente sobre o nome atribuído aos livros em questão: 1 e 2 Esdras. Vimos como não há qualquer razão meramente assumir que Hipona e Cartago adotou Esdras apócrifos. A isso deve-se acrescentar que a Vulgata de São Jerônimo era amplamente conhecida e estava em uso, durante os pontificados de todos estes três homens. Alguém deve se perguntar por que nenhum movimento foi feito para suprimir a Vulgata, e muito menos por que nenhuma menção é feita por qualquer um deles se opondo a são Jerônimo e a Vulgata, se tudo o que Webster alega é verdadeiro. Curiosamente, encontramos também o silêncio sobre isto no outro Sínodo de Cartago em 419 d.C, que aprovou um decreto muito semelhante ao seu antecessor em 397 d.C:

Também foi determinado que, além das Escrituras Canônicas nada seja lido na Igreja sob o título de divinas Escrituras. As Escrituras Canônicas são as seguintes: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué, filho de Nun, Juízes, Rute, quatro livros dos Reis, dois livros de Paralipômenos, Jó, o Saltério, cinco livros de Salomão, a livros dos doze profetas, Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel, Tobias, Judite, Ester, dois livros de Esdras, dois livros dos Macabeus […] Que este seja dado a conhecer também a nosso irmão e companheiro sacerdote Bonifácio, ou a outros bispos daquelas partes, com a finalidade de confirmar este cânone, porque nós recebemos de nossos pais que os livros devem ser lidos na Igreja.[17]

Este silêncio sobre Esdras é especialmente intrigante dado que no livro de Webster[18], encontramos sob o subtítulo “A influência de Agostinho” esses mesmos papas e outros líderes católicos listados como seguindo o mesmo cânon de Santo Agostinho. Quando se examina o que se segue no âmbito do próximo subtítulo “A Influência de Jerônimo”, é espantoso que nem “Jeromistas” ou “Agostinianos” procuraram defender seu cânon uns dos outros quando se tratava de quais livros eram, de fato, os “dois livros de Esdras”. Afigura-se que “a influência de Agostinho” só aconteceu até pelo menos Esdras estar em causa, e manifestou-se em sussurros moles demais para serem ouvidos só às vezes por seus seguidores.

Os “dois livros de Esdras” eram conhecidos por ser Esdras-Neemias deste tempo até o Concílio Ecumênico de Trento em meados do século 16. Este concílio foi chamado para reformar a Igreja e em resposta à Reforma Protestante[19].  Dos sobreviventes diários pessoais de alguns dos principais Padres tridentinos, bem como os atos do próprio concílio, sabemos que as dúvidas sobre o status dos deuterocanônicos levantadas pelos protestantes e figuras como São Jerônimo, juntamente com os assim chamados contemporâneos “Jeromistas” dentro da Igreja, como os cardeais Ximenes e Caetano[20], estavam em suas mentes. Embora o Concílio Ecumênico de Florença quase um século antes parecia infalivelmente decretar o cânon da Igreja, o status deste decreto estava em dúvida entre muitos estudiosos católicos durante a Reforma antes de Trento.

A história da formação do cânon na Igreja foi discutido em Trento, incluindo a história dos primeiros sínodos e alguns dos Padres da Igreja já mencionados. O decreto sobre o cânon passado por Trento foi deliberadamente demonstrado ser o mesmo que o de Cartado séculos antes. Em particular, Trento listou o material Esdras-Neemas como “o primeiro livro de Esdras, e o segundo que é chamado Neemias.” Em nenhum lugar vemos os Padres conciliares falarem de qualquer disputa sobre a identidade dos “dois livros de Esdras”, como os Sínodos da África do Norte os tinham chamado. O concílio a delineou sua lista da “Antiga Vulgata Latina”, mas com a evidência de que deu, Webster não demonstrou que Trento diferia de Cartago, em seu decreto. Dado o debate rigoroso entre protestantes e católicos na época, é surpreendente que ninguém levantou isso como um problema. Não é como se o argumento Católico usando Hipona e Cartago como testemunhas do cânon fosse desconhecido, na verdade apologistas protestantes desafiaram fortemente o cânon católico. No entanto, nenhum líder protestante ou apologista de que tenho conhecimento levantou isso como um problema. Isso teria sido um argumento muito embaraçoso contra as deliberações dos Padres em Trento, se supõe-se que Webster está correto. Em vez disso sobre os livros de Esdras , não encontramos nada além do silêncio – mais uma vez.

 

Santo Agostinho e Esdras


Como testemunha de sua afirmação de que os Cânones de Hipona e Cartago diferem do de Trento, Webster aponta para o uso de Santo Agostinho do apócrifo Esdras em A Cidade de Deus (18, 36):

Depois destes três profetas, Ageu, Zacarias e Malaquias, durante o mesmo período da libertação do povo da servidão babilônica, Esdras que escreveu, o que é mais histórico do que profético, como também é o livro chamado Ester, que cujos feitos em louvor de Deus, os eventos não estão muito longe daqueles tempos; a não ser, talvez, Esdras é interpretado como profetizando sobre Cristo, naquela passagem em que três jovens discutiam a respeito da mais valia na vida: um dizia que eram os reis, outro do vinho e o terceiro as mulheres, que muitas vezes mandam sobre os reis; mas o terceiro demonstrou que a Verdade estava acima de todos como vencedora. Ora, se consultarmos o Evangelho aprendemos que Cristo é a verdade”.  (A Cidade de Deus Livro XVIII, Capítulo 36)

O material Esdras – tanto os canônicos quanto os livros apócrifos – pertenciam a um pequeno número de livros bíblicos que Santo Agostinho raramente citava. Na verdade, entre os numerosos escritos de Santo Agostinho existe apenas uma citação e uma alusão ao Esdras canônico, nada de Neemias canônico, e apenas uma outra citação de 1 (3) Esdras[21]. Dado o contexto do uso do material apócrifo Esdras de Santo Agostinho, é claro que o seu objetivo era usar esta história, a fim de chamar a atenção do leitor para Cristo como a Verdade. Como deSilva observou, isso era comum entre os Padres em seu uso do apócrifo Esdras.

Será que Agostinho considerava 1 (3) Esdras para ser canônico? Ele provavelmente considerava que é uma outra versão do canônico Esdras-Neemias, como muitos dos Padres que o citaram antes dele fizeram. No entanto, é muito duvidoso que ele considerou ser canônico na maneira Webster nos querem fazer crer, ou seja, que, por causa dos principais códices da Septuaginta citarem este livro como “Esdras A” e Esdras-Neemias como “Esdras B”, que, portanto, era um livro separado contado no cânon. Dada a utilização escassa deste material nos escritos de Santo Agostinho isto não pode ser resolvido com toda a certeza, mas a minha parece ser a explicação mais razoável. Para Webster afirmar o contrário, ele terá de oferecer alguma prova substancial que até agora ele não foi capaz de fazer.

A partir dos escritos de Santo Agostinho, é óbvio que ele favorecia altamente as versões Septuaginta e defendeu seu uso. Em seus últimos anos, ele estava claramente familiarizados com os comentários de Jerônimo sobre a Escritura e ele concordou com muitas das opiniões de São Jerônimo. Por exemplo, em A Cidade de Deus, encontramos Agostinho aceitando as diferenças entre as versões da Septuaginta e do hebraico:

Na última seção de A Cidade de Deus, começando no Livro 18, Agostinho expande sua posição e estamos surpreso ao ler sobre a profecia de Jonas: “Mas será que alguém opõe-se à maneira pela qual eu aprendi o que o profeta Jonas disse a os cidadãos de Nínive? Isto é “em três dias Nínive será destruída” ou em “quarenta dias”? Quem não vê que o profeta não poderia dizer os dois ao mesmo tempo em que ele foi enviado para ameaçar a cidade com a iminente ruína? Se a destruição deveria acontecer dentro de três dias, não são 40 dias, e se eram quarenta dias, certamente não eram 3 dias. Se, portanto, alguém me pergunta o que eu penso sobre o que Jonas disse: Eu prefiro o que o que é lido em hebraico; “Em quarenta dias Nínive será destruída”. A Septuaginta, que vem muito mais tarde, poderia dizer outra coisa, ao repetir o assunto e concordando com ele, mas de uma outra perspectiva para o mesmo e único significado. O leitor foi desta maneira convidado, sem denegrir qualquer uma das duas autoridades a esquecer da história a fim de olhar para a realidade, que a história em si significa.” Agostinho mostra que é o próprio Cristo por ambos os quarenta e os três dias. Tudo isso ocorre, ele continua: Como se tanto Septuaginta, profetas, quando tradutores quisessem alertar o leitor, inteiramente preocupados com a sequência de acontecimentos, de seu estupor e convidando-o a investigar a profundidade da profecia, que lhe havia sido oferecida de alguma maneira com essa linguagem; ‘Olhe para os quarenta dias mesmo aqueles que você vai encontrar em três; Você vai encontrar o primeiro em sua Ascensão, o segundo de sua ressurreição’. Foi, portanto, com grande aptidão que Cristo poderia ser prefigurado nos dois números, um de Jonas, o profeta, e o outro a partir da profecia dos setenta intérpretes que o único e mesmo Espírito Santo fez conhecer.’ (Cidade de Deus 18, 44)” (Bright, pp. 46-47)

Benoit afirma que, para Santo Agostinho:

Tanto os textos hebraicos quanto os gregos são inspirados e verdadeiros. Eles são aceitos como dois estágios destinados por Deus em sua corrente revelação. Orígenes queria que apenas o texto grego canônico, deixando a palavra hebraica para os judeus. Jerônimo queria apenas o hebraico, reduzindo o grego a uma tradição menos precisa. Agostinho manteve as duas versões diferentes, complementares e desejadas pelo mesmo Espírito. É uma visão singular de profundidade  verdade.” (P. Benoit cited in Bright, p. 47.)

Contrariando Webster, não há qualquer razão para acreditar que o uso de Santo Agostinho de 1 (3) Esdras na sua obra A Cidade de Deus foi diferente do que era na prática comum de alguns dos outros Padres como deSilva observou. Claramente Agostinho sabia da obra de São Jerônimo. Na verdade, eles trocaram uma série de cartas sobre o assunto. Em uma das cartas de Santo Agostinho para Jerônimo, vamos encontrá-lo muito perturbado com relatos que ouviu da tradução de Jerônimo do Livro de Jó do hebraico. Santo Agostinho acreditava que a antiga tradução de Jerônimo do livro de Jó a partir da LXX era melhor do que esta versão mais recente. Ele criticou Jerônimo por “muito menos cuidado” nesta nova tradução e acreditava que não tinha “a mesma fidelidade escrupulosa quanto às palavras”, como a versão mais antiga. Finalmente, Agostinho relatou uma história onde um bispo local foi forçado por sua irritada congregação a abandonar uma escolha de palavras na tradução de São Jerônimo de Jonas, que diferia do antigo latim que eles estavam acostumados. Na resposta de Jerônimo, descobrimos que esse furor foi sobre o uso da palavra “hera” em Jonas 4, 6 (a escolha do St. Jerônimo como a tradução correta para a palavra hebraica “ciceia”) no lugar da palavra “cabaça” usada na LXX e as versões latinas antigas. O acerto ou erro de ambos não é importante aqui, mas o que se deve notar é que Agostinho não tinha nenhum problema em questionar Jerônimo quando achava que estava errado. Neste caso, envolvia como traduzir as Escrituras e se Jerônimo foi justificado em sua mudança de uma única palavra de Jonas 4, 6. Mas se a alegação de Webster é certa, parece ter escapado a atenção de Agostinho que São Jerônimo, supostamente tirou um livro inteiro do cânon e dividindo-o em dois outros em sua tradução da Vulgata. Santo Agostinho se indignou por uma única palavra a ser alterada, mas, aparentemente, não na mudança de um livro inteiro do cânon. Muito curioso.

 

CONCLUSÃO


Como vimos a afirmação a alegação de Webster não tem base em grandes estudiosos cuja área de atuação é a erudição bíblica, particularmente envolvendo questões sobre a formação do cânon. Deve-se notar que há duas fontes da última metade do século 20 Webster cita em apoio da sua alegação sobre Esdras. A primeira é encontrada na p. 49 do seu livro e vem de um artigo da New Catholic Encyclopedia. O que se segue é a parte relevante desta citação:

Até o século 5º, cristãos frequentemente classificavam [1 (3) Esdras] com os livros canônicos; ele é encontrado em muitos LXX MSS (manuscritos Septuaginta) e na Vulgata Latina (Vulg) de São Jerônimo… O Concílio de Trento definitivamente removeu-o do cânon.

É difícil saber como responder a isso, pois os autores são vagos sobre quais “cristãos” supostamente aceitaram isso, mas não fazem nenhuma menção de qualquer dos primeiros concílios aceitando Esdras I como canônico. No máximo, os autores parecem fazer tal afirmação com base na designação de nome de 1 (3) Esdras nos códices da LXX e Vulgata de São Jerônimo. No entanto, tal suposição é injustificada e não fundamenta a alegação de Webster como se viu neste artigo. Por acaso Webster descobriu tal argumento na Enciclopédia católica? Não há qualquer fundamento, pois a mesma enciclopédia no Volume III, fala que posição de Agostinho prevaleceu e foi canonizado por Trento, portanto a alegação de Webster com base na Enciclopédia católica não se sustenta.

A segunda fonte é citada na p. 105 (nota 88) do livro de Webster e vem de The Oxford Dictionary of the Christian Church. A parte relevante da citação é como se segue:

Em 1546 o Concílio de Trento (Sess. 4) finalmente rejeitou [1 (3) Esdras] e [3 (4) Esdras] a partir do cânon católico Romano e nas próximas edições da Vulgata eles aparecem (com a Oração de Manassés) como um apêndice seguindo o NT”.

Não há qualquer menção a qualquer um destes livros apócrifos de Esdras nos cânones, atos, ou nos diários pessoais sobreviventes dos grandes Padres tridentinos. Mais uma vez, nenhuma menção de qualquer dos primeiros concílios é fornecida aqui e como será visto neste artigo não há nenhuma evidência, não há qualquer base para substanciar tal alegação. Já que essa citação serve para provar que Esdras um estava em Cartago e foi tirada por Trento, servirá também para provar que 4 Esdras, e a Oração de Manassés também estavam em Cartago, pois estes livros são igualmente mencionados. Isso se torna ainda mais intrigante dada uma citação do Sínodo de Roma, em uma edição anterior deste mesmo dicionário:

Um concílio, provavelmente, realizado em Roma em 382 sob S. Dâmaso deu uma lista completa dos livros Canônicos tanto do Antigo Testamento quanto do Novo Testamento (também conhecido como o “Decreto Gelasiano” porque foi reproduzido por Gelásio em 495), que é idêntico à lista dada em Trento. (2 ª ed, editado por FL Cross & Livingstone EA, Oxford University Press, 1983, p.232).

Eu evitei mencionar o Sínodo de Roma neste artigo porque não existe consenso entre os estudiosos sobre os cânones deste concílio. Eles foram confundidos com os decretos do Papa São Gelásio I, então eu comecei com o Sínodo de Hipona, que a maioria dos estudiosos confirma. Não há nenhum estudioso ou qualquer um que eu esteja ciente que afirma que os sínodos de Roma (assumindo que os cânones são corretamente conhecido) e Hipona diferem em seu cânon.

Vimos que a reivindicação de Webster relativa a Esdras é sem mérito e não é suportado pela evidência. Sabemos que o “1 Esdras” e “2 Esdras” encontradas nos principais códices da LXX como o apócrifo Esdras e Esdras-Neemias, também foram conhecidos por serem Esdras e Neemias sob os mesmos nomes em outras fontes. Isso não nos dá nenhuma razão para suspeitar que os Sínodos de Hipona e Cartago quando falaram dos “dois livros de Esdras”, estavam se referindo a quaisquer outros livros além de Esdras-Neemias. Vimos como era comum para os Padres citar 1 (3) Esdras, principalmente por sua história dos três guarda-costas, e que foi considerado como uma versão alternativa ao canônico Esdras-Neemias. Finalmente, vimos como a “testemunha” de Webster, Agostinho, estava bastante familiarizado com a obra de São Jerônimo e, embora em alguns casos, ele concordasse com ele, em outros, ele não hesitou em castigar Jerônimo quando discordava.  Do Sínodo de Hipona ao Concílio de Trento havia um acordo contínuo sobre quais livros eram os “dois livros de Esdras”. Ao longo de tudo isso, nós não vimos uma única voz levantada em protesto contra supostas inovações de São Jerônimo sobre o material de Esdras nem qualquer voz elevada na defesa da canonicidade do apócrifo 1 (3) Esdras. Tudo o que temos ouvido é o som inconfundível de silêncio.

Quando eu levantei essa última objeção diante de vários protestantes leigos, eu foi acusado de cometer uma falácia lógica, de usar o argumento de silêncio. Essa acusação é falsa. Como a citação do grande detetive fictício Sherlock Holmes mostra, há momentos em que o silêncio pode apresentar provas válidas. Neste caso, o silêncio da Igreja primitiva sobre a alegada retirada de um livro canônico e da divisão de outro em dois é simplesmente ensurdecedor. Para a reivindicação de Webster ser digna qualquer crédito, esta é uma oposição com a qual ele terá que lidar. É perfeitamente razoável e lógico esperar mais do que o silêncio aqui, enquanto muito irracional ignorá-lo.

 

 NOTAS


 [1] Embora uma discussão mais aprofundada disto está além do escopo deste artigo, tenho a opinião de R. Timothy McLay que não havia um cânon hebraico “durante o período da Igreja Primitiva” e que “Escrituras Judáicas Hebraicas” é mais preciso . McLay também argumenta que não havia um cânon da septuaginta e sim “Escrituras judaicas gregas” é mais preciso, mas, para evitar confusão, usarei o mais familiar “cânon hebraico” e “Septuaginta” neste artigo. Veja o excelente estudo de McLay: The Use of the Septuagint in New Testament Research (Eerdmans Publishing, 2003), pp. 7-9.

[2] Há muitos bons comentários sobre Esdras-Neemias para saber mais  Eu recomendo o Comentário Bíblico Internacional de Giuseppe Bettenzoli (Litúrgica Press, 1998, William fazendeiro editor), pp 674-686.; Robert Norte no Novo Comentário Bíblico de São Jerônimo (Prentice Hall, 1990 reimpressão), pp. 384-398.

[3] Um bom comentário detalhado sobre 1 (3) Esdras é o de Zipora Talshir: 1 Esdras From Origin to Translation (Society of Biblical Literature, 1999).

[4] Ver deSilva, p.284.

[5]Ver Bruce Metzger’s An Introduction to the Apocrypha (Oxford University Press, 1957), pp. 11-13; deSilva, pp. 284-287; Talshir, pp. 6-31.

 [6] Ver deSilva, p. 284. Jacob M. Myers tem uma lista mais extensa de Padres que citaram o apócrifo Esdras, quase exclusivamente a partir do discurso sobre a verdade, como deSilva observa. Isto pode ser encontrado no livro de Myers I and II Esdras: Introduction, Translation and Commentary (Doubleday & Co., 1986), pp. 17-18.  Isto é parte da The Anchor Bible series of biblical commentaries:

Justin Mártir (século II) acusa os judeus de remover uma passagem relativa a Páscoa de Esdras (Diálogo com Trifão 72), embora o que ele cita não é encontrada em 1 Esdras ou em qualquer outro lugar na literatura de Esdras. Clemente de Alexandria (século II) refere-se a Zorobabel “tendo por sua sabedoria ultrapassado os seus adversários, e obtido licença de Darius para a reconstrução de Jerusalém, voltou com Esdras à sua terra natal” (Stromata 1, 21). Orígenes (AD 182-251) refere-se a 1 Esdras 4,35, 39 (Homilia sobre Josué 9 e Comentário sobre João 6, 1) embora isso não significa necessariamente que ele considerava os livros como canônicos. Eusébio (AD 260-340) Cita 1 Esdras 4,34 (Commentário sobre Sl. 76). Atanásio (293-373 d.C) refere-se a 1 Esdras 4, 36 (Orat. II Contra Arianos, n. 20, e ad Imp. Constantium Apol., N. 11) e a 1 Esdras 4, 41 (ad Imp. Constantium Apol ., n. 18). (.. J. P. Migne, Patrologiae Graecae [PG], vol 28, col 285) O autor da Sinopse Scripturae sacrae cita 1 Esdras 1, 1 e refere-se a Esdras protos kai deuteros (primeiro e segundo Esdras). Efrém Sírio (século IV) cita 1 Esdras 4, 34ss no de Vertutibus et Vitiis (Sermão 13) e Basilius (mesmo século) cita 1 Esdras 4, 35 (de Spiritu Sanctu 7). Crisóstomo (354-407 dC) na Sinopse Scripturae sacrae 5 refere-se a 1 Esdras 4, 36. Olimpiodoro de Alexandria (sexto século dC) em Comment. In Ecclesiasten, cap. 1, comenta 1 Esdras 4, 34 e João de Damasco (700-754 d.C) em paralelo, I, cap. 19, tem em mente 1 Esdras 4, 39. Elias de Creta (século VIII d.C) em Comment. in S. Gregorii Nazianzus duas vezes cita 1 Esdras 4, 34 (Oration 1, nn. 109 e 167). A cronologia de Syncellus (Século IX d.C) e Nicéforo (século VIII d.C), e do século XII scholiast Zonaras (Annal. 1) falam sobre 1 Esdras. O útlimo diz que a história de Esdras começa no décimo oitavo ano de Josias, notando especialmente a Páscoa (Dindorf ed., Vol. 1, p. 475).

Os primeiros pais  latinos  usaram Esdras 3 (isto é, 1 Esdras) livremente e sem hesitação. Cipriano (200-258 d.C) cita 1 Esdras 4, 38-40 na Epístola 74, 9 a Pompeium e 1 Esdras 4, 3s. no de singularitate clericorum, c. 21. Ambrósio (século IV) refere-se a 1 Esdras 4, 29ss. na Epístola 7, Bachiarus (um contemporâneo de Santo Agostinho) fala do espírito de sabedoria de Zorobabel em Epist. Ad Januas de recipiendis lapsis, e Santo Agostinho (354-430 dC) cita 1 Esd 3, 12 no De Civitate Dei 18, 36. Prosper Aquitanus (século V) concorda plenamente com 1 Esdras (de promissionibus et praedictionibus dei II, c 36-38.) e Sulpício Severo cita 1 Esdras 3, 4 em Hist. Sacra II.

[7] Isso pode surpreender alguns cristãos ao saber que havia muitas versões das Escrituras do Antigo Testamento, juntamente com a utilização destas diferentes versões, e aparentes versões contraditórias da Escritura. Os escritores do Novo Testamento, enquanto frequentemente contando com a LXX ao citar o AT, também empregaram uma versão “proto-Massorético”, entre outras (alguns desconhecidos). Para mais, veja a contribuição McLay e o trabalho de Frank Cruz Moore em seu The Ancient Biblioteca of Qumran (Sheffield Academic Press, 1995) e contribuição de Cross no Understanding the Dead Sea Scrolls (Biblical Archaeology Society, 1992, editor Hershel Shanks). Além desses textos, a Carta de São Jerônimo para Pamáquio 57 (também conhecida como “os princípios da boa tradução”) tem muito sobre o uso das Escrituras do AT pelos escritores do NT.

[8] [13] Webster, pp. 25-28. Ao contrário de sua opinião deve se notar que a teoria do “canon alexandrino” surgiu entre autores protestantes do século XVIII, para tentar furgir dos argumentos Católicos, mais pode ser visto aqui: <http://apologistascatolicos.com/index.php/apologetica/deuterocanonicos/556-existiu-um-canon-alexandrino-a-teoria-do-canon-palestino-e-alexandrino>

O que é interessante notar é que no livro de Webster, p. 48, encontramos a seguinte citaçãode um famoso historiador do século 19:

Philip Schaff confirma o fato de que a Igreja norte-Africana, seguida a Septuaginta: ‘Agostinho … firmemente seguiu o cânon Alexandrino da Septuaginta, e da tradição preponderante em referência às Epístolas Católicas disputadas e Apocalipse …

Este é um bom exemplo do que já referi, isto é, que Webster confia demasiadamente em fontes desaualizadas em seu livro. Schaff foi, sem dúvida, um homem brilhante para o seu tempo, mas estudos bíblicos progrediram bastante desde o seu dia. Schaff não tinha conhecimento dos Manuscritos do Mar Morto ou de qualquer um dos outros achados do século 20, muito menos dos trabalhos pioneiros de estudiosos como Sundberg e Lewis. Webster castiga severamente os “apologistas romanos” por usarem a desacreditada do cânon Alexandrino, mas em seu próprio livro, encontramo-lo contando com as opiniões canônicos ultrapassadas de um estudioso protestante famoso que também usava essa teoria. Claro que, se devemos apoiar essas fontes desatualizadas, talvez Webster deveria explicar o que  Schaff diz a respeito do cânon adotado por Cartago:

Esta decisão da Igreja de além mar no entanto, foi sujeita a ratificação, e recebeu a concordância da Sé Romana quando Inocêncio I e Gelásio I (414 d.C) repetiram o mesmo índice de livros bíblicos. Este cânone permaneceu intacto até o século XVI, e foi aprovada pelo concílio de Trento na sua quarta sessão.” (História da Igreja Cristã, vol. III, Cap. 9).

[9] Enquanto eu, obviamente, não concordo com Webster na Igreja primitiva e os deuterocanônicos, parece-me claro que não se pode provar sua canonicidade nos principais códices da LXX somente. Uma visão mais equilibrada do testemunho da Septuaginta para o cânon, juntamente com mais informações sobre esta versão (s) da Escritura pode ser encontrados no Invitation to the Septuagint by Karen H. Jobes & Moises Silva (Baker Academic, 2000) juntamente com Sundberg e McLay.

[10] O erudito do início do século XX Herbert Edward Ryle é citado em Webster, p. 49 como afirmando que São Jerônimo “concorda com a divisão do Esdras cânonico em dois livros, pois ele fala dos livros apócrifos como terceira e quarta Esdras.” No entanto, nos escritos patrísticos não há nenhuma menção de São Jerônimo concordando para tal divisão, mas, como se verá, em vez das próprias palavras do santo, Esdras-Neemias já estava “dividido entre gregos e latinos em dois livros”. (Ver nota 19)

[11] [Esdras e Neemias:] Um único volume na Bíblia hebraica e na LXX original, até que as duas partes foram separadas em um manuscrito hebraico datado de 1448 e nas edições mais impressos, seguindo a Vulgata; mas Orígenes (falecido em 254 ) e Jerônimo (morto 420) conheciam este material como dois livros em grego.” (The Interpreter’s Bible Dictionary (Abingdon Press, 1990), Vol. 2, p. 215.)

[12] Sobre o cânon de Orígenes ler aqui: <http://apologistascatolicos.com.br/index.php/apologetica/deuterocanonicos/605-origenes-de-alexandria-rejeitou-os-livros-deuterocanonicos>

[13] Sobre São Jerônimo ver aqui: http://apologistascatolicos.com/index.php/apologetica/deuterocanonicos/503-sao-jeronimo-rejeitou-os-deuterocanonicos e aqui: http://apologistascatolicos.com/index.php/apologetica/deuterocanonicos/530-treplica-a-tentativa-de-argumentacao-protestante-sobre-sao-jeronimo-e-os-deuterocanonicos.

[14] Sobre o Cânon de Laodicea (Canon 60) ver aqui: < http://apologistascatolicos.com.br/index.php/apologetica/deuterocanonicos/634-o-concilio-de-laodiceia-rejeitou-os-deuterocanonicos >

[15] Sobre o cânon de Rufino ler aqui: < http://apologistascatolicos.com.br/index.php/apologetica/deuterocanonicos/627-rufino-de-aquileia-rejeitou-os-livros-deuterocanonicos>.

[16] Sobre Rufino e São Jerônimo ler aqui: <http://apologistascatolicos.com/index.php/apologetica/deuterocanonicos/627-rufino-de-aquileia-rejeitou-os-livros-deuterocanonicos>

[17] Tradução de A.E. Breen’s A General Introduction to Holy Scripture (original publication 1908; Roman Catholic Books reprint, year not listed), p. 362.

[18] Webster, pp. 56-58.

[19] Para saber mais sobre este Concílio e seus trabalhos sobre o cânon, consulte Peter G. Duncker’s “The Canon of the Old Testament at the Council of Trent” in the Catholic Biblical Quarterly, Volume 15, 1953, pp. 277-299.

[20] Breen, pp. 514-515.

[21] Bright, p. 42 & 50; deSilva, p. 284.

 

PARA CITAR


BETS, John. Reposta a William Webster: o protestante inventor da lenda sobre I Esdras da LXX em Hipona e Cartago. Disponível em: <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/apologetica/deuterocanonicos/879-reposta-a-william-webster-o-protestante-inventor-da-lenda-sobre-i-esdras-da-lxx-em-hipona-e-cartago>. Desde: 31/05/2016.

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