Quinta-feira, Novembro 21, 2024

Questão disputada sobre o culto aos santos

Questão disputada sobre o culto aos santos

 

I. ARGUMENTOS DOS ADVERSÁRIOS:

 

1) O prof. Paulo Cristiano da Silva em seu artigo “Dulia, Hiperdulia e Latria” argumenta que a distinção de latria e dulia é apenas teórica, mas não existe na prática. A prática de culto dos católicos aos santos e a Deus é rigorosamente a mesma. E o que importa nessa questão é a prática quando se trata de adoração.

2) Lucas Banzoli em seu artigo “Não adoram, só veneram” argumenta que os exemplos de se ajoelhar perante um homem ou anjo no Antigo Testamento se referem a cumprimento cultural e não uma forma de culto.

3) Argumenta-se que São Pedro recusou o culto manifestado por Cornélio (Atos 10,25) e um anjo recusou o culto prestado por São João (Apocalipse 19).

4) Argumenta-se que Santo Agostinho ensina que não se deve prestar culto religioso aos santos e anjos (cf. De vera religione, cap. 55).

5) Argumenta-se, ainda, que Santo Agostinho diz que a construção de templos faz parte do culto de latria (cf. De Civitate Dei, lib. VIII, cap. 27), enquanto que os católicos constroem altares e templos em homenagem aos santos. É famosa a Basílica de São Pedro no Vaticano e a Basílica de Nossa Senhora Aparecida em Aparecida do Norte – SP.

 

II. A DOUTRINA CATÓLICA É EXPOSTA
 

A Igreja ensina que os santos devem ser adorados com culto de dulia, enquanto Deus e somente Ele deve ser adorado com culto de latria. Modernamente, os teólogos e o Magistério preferem utilizar a palavra “adorar” exclusivamente ao culto de latria, enquanto “venerar” foi restringido ao culto de dulia. Nessa exposição a palavra “adorar” será utilizada em sentido lato, como um gênero que inclui as duas espécies dos referidos cultos, e não em sentido estrito.

Para o estudo da matéria precisamos, inicialmente, definir os termos que utilizados, pois muito do desentendimento católico e protestante se deve a uma variedade de expressões e usos contraditórios nos sentidos dados por cada interlocutor, que acaba por minar qualquer diálogo.

 

Definição de adoração/culto

O que é adorar? Adorar ou culto é uma espécie de honra.

Por sua vez, o que é honra? Segundo o conceito clássico honra é testemunho manifestado (reconhecimento) pela excelência de alguém (cf. Aristóteles, Ethica Nicomachea, 1.12; Santo Tomás, Commentarium. Ethica Nicomachea 1.12, lect.18 n. 20, ST II-II.103.1c).

Excelência encerra a ideia de perfeição. Assim, no caso dos seres humanos, estará, principalmente, ligada à virtude, isto é, na linguagem aristotélica “hábito de escolher conforme a reta razão” e “disposição de um ser perfeito” (cf. ST III, q.85, a.1).

Quando a honra é manifestada perante outrem igual ou inferior diz-se simplesmente honra. Porém, quando a honra é manifestada perante um superior se diz culto ou adoração.

Assim, eis a definição de adoração ou culto: “sinal de submissão em reconhecimento à superioridade e excelência de alguém”. “Unanimemente os teólogos, na trilha de São João Damasceno (Orat. III, De imaginibus, no. 26, P.G. tomo 94, col. 1346,….), com Franzelin (De Verbo incarnato, Roma, 1874, th. XLV, p. 456), definem o culto como um sinal de submissão em reconhecimento à superioridade e excelência de alguém — nota submissionis ad agnitam excellentiam alterius" (A. Chollet. Dictionnaire de Théologie Catholique, (verbete Culte en général, Letouzey et Ané, Paris, 1923, tomo III, col. 2404)

Importantes autores protestantes demonstraram não possuir óbice em se falar de culto ou adoração em relação a outras pessoas ou seres. A Bíblia de Genebra em sua nota a Atos 10,25 diz que “o culto civil é dado aos Ministros da palavra”. Calvino em “Institutio christianae religionis (lib I, cap. 12)”, diz: “É verdade que lemos não raras vezes que criaturas humanas foram adoradas (adoratos). Mas essa foi, por assim dizer, uma honra civil”. O calvinista Walerjan Skorobohaty Krasinski em sua Dissertação on the Miraculous Images, as Well as Other Superstitions of the Roman Catholic and Russo-Greek Churches (1855)” diz: “O culto heroico é inato à natureza humana e fundamentado em alguns dos sentimentos mais nobres como a gratidão, o amor e a admiração…”.

 

Espécies de adoração/culto

 

Há duas espécies de cultos: o civil e o religioso

O culto civil considera nos homens a excelência natural, pela qual eles nos são superiores. Subdivide-se em:

– culto individual: "Um ser, com efeito, pode manifestar sua excelência e superioridade de diversas maneiras e em diferentes esferas. Ele pode ser superior, eminente, por seu valor pessoal. É um gênio cuja ciência é imensa, cujas instituições são maravilhosas, e que abre ao conhecimento humano horizontes até então insuspeitados; é um herói, cujo caráter e energia se impõem à admiração de todos e que pela perspicácia e poder de sua vontade triunfou de dificuldades inauditas; ou é mais simplesmente um colosso, cuja constituição física e cujos músculos de aço, lembram os gigantes antigos: valor intelectual, valor moral, força física se impõem aos demais e dão origem a um sentimento de admiração mesclado de deferência e de respeito, que é um culto. Estes heróis arrastam facilmente atrás de si aos demais, e o vínculo que submete aos seus ascendentes as multidões é um culto (culto individual)" (A. CHOLLET, loc. cit., col. 2404).

– culto familiar: "Um homem pode ser superior pela função que ele desempenha na família; é um pai; fundou um lar, governa-o com a autoridade que lhe advém do contrato solene feito com sua esposa perante Deus, ou do fato da procriação de seus filhos. A mulher e os filhos reconhecem a autoridade dele, respeitam-no, e lhe testemunham sua submissão ou sua piedade filial. É ainda um culto (culto familiar)". (A. CHOLLET, loc. cit., cols. 2404-2405).

– culto social: "Se um homem tem uma missão social e ocupa na nação um cargo que o torna chefe de seus concidadãos, estes reconhecem nele a autoridade e o prestígio que o cerca, e manifestam publicamente deferência por sua pessoa: eles praticam desse modo atos de um culto real (culto social)" (A. CHOLLET, loc. cit., col. 2405).

A Bíblia apresenta alguns exemplos sobre o culto social: "Joab, prostrando-se por terra sobre o seu rosto, adorou e felicitou o rei." (II Reis, 14,22); "Inclinando-se Betsabé profundamente, adorou o rei." (III Reis, 1,16); "O profeta Natã… veio perante o rei, inclinando-se o adorou." (III Reis 1, 23)

O culto religioso, por sua vez, "é um reconhecimento da perfeição divina, da eminente superioridade e excelência de Deus sobre todas criaturas. Estende-se também ao reconhecimento das superioridades emanadas de Deus na sociedade religiosa, seja natural (a sociedade humana), seja sobrenatural (a Igreja), seja preternatural (a sociedade angélica)" (A. CHOLLET, loc. cit., col. 2405). Assim, “conhecer e proclamar a excelência de Deus e dos ministros que Ele constituiu para nos conduzir a Ele, testemunhar respeito e submissão às pessoas sagradas ou às pessoas divinas é praticar o culto religioso". (A. CHOLLET, loc. cit., col. 2405).

Em outras palavras, o culto religioso é devido para Deus, em reconhecimento a sua divina e infinita excelência (latria), e para todo aquele que possui alguma excelência espiritual ou excelência sobrenatural criada (dulia em sentido mais estrito).

O culto religioso subdivide-se em: culto de latria e o culto de dulia. Santo Agostinho foi o primeiro teólogo a delinear detidamente essa distinção. Entre outras passagens, diz: “Veneramos, então, aos mártires com o culto do amor e companhia, que nesta vida os homens santos de Deus também são tributados, cujo coração percebemos que está disposto a sofrer o martírio para a verdade do evangelho… O que é propriamente o culto divino, que os gregos chamam de latria, e para o qual não existe uma palavra em latim, tanto na doutrina, quanto na prática, damos somente a Deus”. (Contra Faustum Manichaeum, lib XX, cap. 21) E ainda: “Mas que o Espírito Santo não é uma criatura, é muito simples por aquela passagem acima de todos os outros, onde somos ordenados para não servir a criatura, mas ao Criador, não no sentido em que somos ordenados a “servir” um ao outro pelo amor, que é douleuein [dúlia] em grego, mas naquele em que só Deus é servido, que está latreuein [latria] em grego”. (De Trinitate, lib I, cap. 6).

O protestante Leibniz reconhece o "discrimen infinitum atque immensum entre a honra que é devida a Deus e a que é mostrada aos santos, sendo essa chamada pelos teólogos, segundo o exemplo de Agostinho, latria, e a outra dulia"; e ele declara ainda que essa distinção "não deve ser apenas inculcada nas mentes dos ouvintes e aprendizes, mas também deve ser manifestada, tanto quanto possível, por sinais externos" (Syst. theol., p. 184).

 

O culto de latria

 

Latria quer dizer serviço. Teologicamente, refere-se ao serviço sagrado dedicado ao divino. Santo Agostinho diz que a latria é um culto devido a Deus somente, como verificamos nas duas passagens acima.

Santo Agostinho nota que esse culto pertence à oferta de sacrifícios (cf. Contra Faustum Manichaeum, lib. XX, cap. 21). Em outra obra, acrescenta outras práticas restritas ao culto de latria, como construir templos, ordenar sacerdotes e ritos sagrados. (cf. De Civitate Dei, lib. VIII, cap. 27). Definamos esses pontos.

Por óbvio, o sacrifício se relaciona, em primeira vista, à imolação de um animal como oferta a Deus. Na Nova Aliança, Santo Agostinho explica que a celebração eucarística é o sacrifício atual oferecido a Deus (cf. Contra Faustum Manichaeum, lib. XX, 21 e De Civitate Dei, lib. X, cap. 6). Também explica que sacrifício é nos consagrarmos inteiramente a Deus (cf. De Civitate Dei, lib. X, cap. 6). Santo Tomás explica que se consagrar a Deus é a mente humana se oferecer a si mesma a Ele, “e se oferece a Ele como a quem é princípio de sua criação, autor de seus atos e fim de sua bem-aventurança” (Summa contra Gentiles, lib III, 120). Portanto, chama-se o primeiro de sacrifício exterior e o segundo de sacrifício interior.

O templo é a edificação para promover sacrifício (cf. São Roberto Bellarmino, De Controversiis Christianae Fidei, lib. III, cap. IV). Santo Agostinho menciona que os cristãos levantavam altares para Deus (cf. Sermones 318, 228, In Evangelium Ioannis tractatus centum viginti quatuor, tractatus 2, etc). Os Padres da Igreja utilizaram comumente a palavra “templo” para se referir as edificações cristãs (Eusébio, A vida de Constantino, livro 3, cap. 40 e 43; Santo Ambrósio, De officiis ministrorum, 16; São João Crisóstomo, Homilia in Matthaeum, 50, entre outros). Santo Agostinho relembra, também, que nós mesmos somos templos do Espírito Santo (cf. Epistolae 170, 173A).

O sacerdócio é ordenado principalmente para o sacrifício. Sacerdote em latim é sacerdos, derivado de “sacra dans”, isto é, aquele que dá as coisas sagradas. Nesse sentido, lemos em Hebreus 5,1 que “todo sumo sacerdote é escolhido entre os homens e constituído em favor dos homens como mediador nas coisas que dizem respeito a Deus, para oferecer dons e sacrifícios pelos pecados”. Com efeito, o Pontifical Romano diz que “ao sacerdote lhe corresponde OFERECER, benzer, presidir, pregar e batizar”.

Os ritos sagrados (sacra) referem-se, primariamente, aos ritos que contemplam o serviço eucarístico, como podemos notar em Eusébio, De laudibus Constantini, prologum, De vita Constantini, cap. 71, e Tertuliano, De anima, cap. IX.

Santo Tomás traz definições importantes sobre o conceito de latria. Diz “a latria, que é a adoração a Deus como o começo de todas as coisas, é o dever do homem nesta vida” (cf. Contra Impugnantes, part 1). Explica que há dois modos de considerar a servidão da latria, isto é, “consiste em servi-lo em preferência a tudo; a outra servidão consiste em tender para ele como para o nosso fim último”. (Super Evangelium Matthaei, cap. 4, lectio 1 – Mt 4, 10) Diz ainda que latria “consiste principalmente em sacrifícios e oblação, pelos quais o homem reconhece que Deus é o autor de todos os bens”. (Super Epistulam ad Romanos, 1, 20-25) Ademais, diz: “E como Deus é não somente causa e princípio de nosso ser, mas também dono absoluto do mesmo, e tudo o que temos lhe devemos, e por isso é verdadeiramente Senhor nosso, tudo o que fazemos em sua honra se chama serviço. Ademais, Deus é senhor não acidentalmente, como um homem o é de outro, mas por natureza. (Summa contra Gentiles, lib III, 119) Ademais, comenta: “o sacrifício externo é uma representação do sacrifício interior, segundo o qual a mente humana se oferece a si mesma a Deus. E se oferece a Ele como a quem é princípio de sua criação, autor de seus atos e fim de sua bem-aventurança”. (Summa contra Gentiles, lib III, 120).

Após todos esses elementos apresentados, vamos definir o culto de latria com São Roberto Bellarmino no seguinte sentido: “a suprema submissão, e inclinação da vontade com a apreensão de Deus, como primeiro princípio e fim último, e, portanto o supremo bem” (De controversiis Christianae Fidei, tomus 2, cap. XV).

É possível estudar sobre o culto de latria sob a ótica da virtude, de modo que compreendamos de onde deriva o culto que devemos a Deus.

A Justiça “consiste em dar a outrem o que lhe é devido, conforme a igualdade”. (Santo Tomás, ST II-II, 80, 1, resp.). Anexa à virtude da Justiça há a virtude da religião.

O homem não pode retribuir a Deus, em plano de igualdade, tudo o que dEle recebeu, como diz o salmista: Que retribuirei ao Senhor por tudo que ele me concedeu?" (Salmo 115,3). Por isso, oferece-lhe, em retribuição, respeito, homenagem e culto, o que pertence à virtude da religião. É a primeira virtude anexa à justiça (cf. ST II-II, 80, 1, resp).

Sobre o que é religião, deixemos que o Doutor comum responda extensamente sobre o tema: “Para entender o significado da religião, precisamos conhecer a etimologia da palavra. Santo Agostinho, em seu livro De vera religione considera que é derivado de re-ligare (para re-ligar). Uma coisa está ligada a outra, quando está tão unida a ela, que não pode se separar e se unir a qualquer outra coisa. A palavra re-ligação, no entanto, implica que uma coisa, embora unida a outra, começou, em certo grau, a se desconectar dessa outra. Agora toda criatura existia, originalmente, mais em Deus do que em si. Pela criação, no entanto, ela saiu de Deus e, em certa medida, começou, em sua essência, a ter uma existência separada dEle. Portanto, toda criatura racional deveria se reunir a Deus, a quem estava unida antes de existir à parte dEle, assim como “no lugar de onde vêm os rios, eles voltam a fluir novamente” (Eclesiast. I.). Portanto, Santo Agostinho diz (De vera religione): "A religião nos reúne ao Deus Todo-Poderoso". Encontramos a mesma ideia expressa no comentário da Glosa, nas palavras "por Ele e por Ele" (Rom. Xi. 36). O primeiro vínculo pelo qual o homem se une a Deus é o da fé. Pois “quem vem a Deus deve crer” (Heb. Xi. 6). Latria, que é a adoração a Deus como o começo de todas as coisas, é o dever do homem nesta vida. Portanto, a religião, primariamente e principalmente, significa latria, que torna a adoração a Deus pela expressão da verdadeira fé. Santo Agostinho faz a mesma observação em seu De civitate Dei (livro 10), onde diz: “Religião significa não adoração de nenhum tipo, mas adoração a Deus”. Cícero, em sua antiga retórica, dá quase a mesma definição de religião. Ele diz que "a religião é aquela que apresenta certas homenagens e cerimônias a uma natureza superior, que os homens chamam de natureza divina". Portanto, tudo o que pertence à verdadeira fé e a homenagem da latria que devemos a Deus são os primários e principais elementos da religião. Mas, a religião é afetada, de maneira secundária, por tudo pelo qual manifestamos nosso serviço a Deus. Pois, como Santo Agostinho diz em seu Enchiridion, “Deus é adorado não apenas pela fé, mas também pela esperança e caridade. Portanto, todos os ofícios de caridade podem ser chamados de obras religiosas. Nesse sentido, São Tiago diz (i. 27): “A religião limpa e imaculada diante de Deus e do Pai é esta: visitar os órfãos e a viúva em sua tribulação” etc”. (Contra Impugnantes, part 1).

Assim, em sentido estrito e direto, como virtude especial, não devemos culto de religião aos santos e outras pessoas, mas tão somente a Deus. Mas tal definição difere da outra que foi dada anteriormente, onde se pretendia antes distinguir o culto religioso do culto civil, portanto, tenha-se presente que a mesma expressão é tomada em distintos sentidos aqui e ali. Para mais sobre o tema, leia a resposta ao argumento 4 dos adversários.

 

O culto de dulia

 

Dulia quer dizer escravidão/servidão. Santo Agostinho a define como “servir um ao outro pelo amor”. (De Trinitate, lib. I, cap. 6). Também “culto do amor e companhia” (Contra Faustum Manichaeum, lib. XX, cap. 21).

Santo Tomás ensina com mais clareza: "A dulia pode ser tomada em duplo sentido. — Primeiro, em sentido geral, quando tributa reverência a qualquer pessoa, em razão de uma certa excelência. E então inclui a piedade filial, o respeito e qualquer outra virtude, que tenha por fim prestar reverência a outrem". (ST II-II, 103, 4, resp).

A dulia é uma forma de manifestação da virtude da observância ou respeito, sendo esta anexa à virtude da Justiça, que antes definimos.  O homem não pode dar à virtude uma recompensa que lhe seja inteiramente côngrua. Por isso, como diz Cícero, citado por Santo Tomás, "os homens eminentes por alguma dignidade são dignificados por um certo culto e honra". (De invent. Rhet. l. II, cap. 53) É o que compete à virtude da observância, ou do respeito. (cf. II-II, 80, 1, resp).

Sobre a tríplice divisão da observância: “Costumam-se distinguir uma tríplice observância, conforme a tríplice dignidade pela qual se presta a observância: a) observância civil, se a dignidade é civil, como nos reis, mestres, patrões, etc; b) observância religiosa, se a dignidade é eclesiástica, como no Papa, no Bispo, no Sacerdote, etc; c) observância sobrenatural, se a dignidade se baseia na virtude heróica dos santos. Neste último sentido, a observância costuma chamar-se dulia, numa acepção estrita. As vezes, porém, toma-se dulia numa acepção mais lata, para designar a honra prestada mesmo a homens vivos" (Prummer-Munchp. Manuale Theologiae Moralis secundum principia S. Thomae Aquinatis, Herder, Freiburg-Breisgau, 1940, 9a ed, tomo II, p. 454)

No que se refere aos santos e anjos, a reverência é tributada em razão da excelência espiritual ou sobrenatural criada, como antes já havíamos assinalado.

 

Culto interno e culto externo
 

"Se das razões objetivas do culto passamos a suas manifestações subjetivas, vê-lo-emos ainda tomar várias formas e se diversificar. Distinguiremos, por exemplo, o culto interno e o culto externo. O primeiro é o que se passa inteiramente ao fundo da alma. É uma linguagem na qual, dirigida pela vontade e o coração, a razão exprime a Deus  a submissão, e a veneração da alma. Mas estes sentimentos íntimos podem se traduzir externamente por palavras, atos ou sinais sensíveis, como a genuflexão, a inclinação da cabeça, as mãos juntas, levantadas ou estendidas (à maneira dos orantes antigos), os ósculos, as prosternações do corpo. Estes sinais se tornam então um culto externo, se estão organizados em um cerimonial completo e sagrado, fixado pela autoridade religiosa, constituem a liturgia. Relações estreitas, análogas às relações da alma e do corpo, vinculam entre si o culto interior e exterior. Este procede daquele, manifesta-o, é o seu desabrochamento e complemento. A devoção interior da alma tem uma tendência espontânea a se manifestar externamente por sinais religiosos; tem com eles uma relação de causa e efeito” (A CHOLLET, loc. cit., cols. 2410-2411).

A conveniência dos atos corporais para o culto divino é explicada por Santo Tomás no seguinte sentido: “Pois vemos pela experiência que nossa alma se vale de atos corporais para se excitar ao conhecimento e ao afeto. Isto manifesta, pois, a conveniência de que nos sirvamos de certas coisas corporais para elevar nossa mente a Deus”

Ademais, explica que o culto interior é principal: “Porque dizemos que rendemos culto a uma coisa quando mediante nossas obras pomos nela nosso interesse. Assim, ao prestar a Deus nosso interesse mediante nossos atos, não o fazemos em proveito seu, como quando rendemos culto às outras coisas como com nossas obras, mas o fazemos em promeito próprio, acercando-nos por esses atos a Ele. E como pelos atos interiores tendemos diretamente a Deus, resulta que com isso propriamente lhe rendemos culto; não obstante, os atos exteriores também pertencem ao culto divino, posto que por eles se eleva nossa mente a Deus, segundo temos dito” (Summa contra Gentiles, lib. III, cap. 119).

Os atos externos, em si mesmos, não comprovam o culto de latria, eis que todos os atos externos são comuns a outras espécies de adoração, com exceção do sacrifício, e tudo aquilo a ele relacionado, isto é, templos, altares, sacerdócio e ritos sagrados, como vimos em Santo Agostinho. Assim, o ato externo não é especialmente próprio e essencial, pois inclusive pode ser manifestado em zombaria, como os soldados romanos perante Jesus Cristo (cf. Mateus 27, 29). O que é essencial é o ato da vontade pelo qual somos inclinados interiormente à profissão da excelência infinita e divina e nossa sujeição, seja por um ato externo ou não.
 

Provas tiradas da Sagrada Escritura do culto religioso em razão excelência espiritual ou sobrenatural criada

 

A doutrina católica é comprovada pela adoração de anjos e homens piedosos na Escritura.

Utilizamos para as citações “A Biblia Sagrada contendo o Velho e o Novo Testamento traduzida em Portuguez segundo a Vulgata Latina” do padre Antonio Pereira de Figueiredo, ano 1867.
 

a) o culto religioso a anjos

A razão da adoração de anjos não pode ser relacionada ao culto civil, eis que não se deve à excelência natural, mas, por evidente, à excelência espiritual.

–    "E tendo Abrahão levantando os olhos, appareceram tres homens que estavam em pé junto a ele. Tanto que elle os viu, correu da porta da tenda a recebel-os; e prostrado em terra os adorou" (Gênesis, 18, 2)

 –  "Sobre a tarde chegaram os dois anjos a Sodoma, e a tempo que Lot estava assentado as portas da Cidade. Tanto que elle os viu, levantou-se, e saiu a recebel-os, e prostrado por terra os adorou" (Gênesis, 19, 1)

– "No mesmo ponto abriu o Senhor os olhos de Balaão, e elle vi o Anjo parado no caminho com a espada desembainhada, e prostrado por terra o adorou" (Números, 22, 31)

– “E estando Josué no campo da Cidade de Jericó, levantou os olhos, e viu um homem posto em pé diante d'elle, que tinha uma espada nua e foi ter com elle, e disse-lhe: Tu és dos nossos, ou dos inimigos? O qual lhe respondeu: Não: mas sou o Príncipe do exército do Senhor, agora venho. Josué se lançou com o rosto em terra. E adorando-o disse: Que diz meu Senhor ao seu servo?” (Josué, 5, 13-15)
–    "Tira, lhe disse elle, o calçado de teus pés: porque o logar em que estás, é sancto. E Josué fez como se lhe havia mandado." (Josué, 5, 16)

O lugar foi dito santo em razão da presença do anjo, pois Josué não estava em local sagrado, mas nas planícies de Jericó. Josué tirou o calçado em sinal de culto.

 

b) o culto religioso a homens piedosos

–  “E disse-lhe Saul: Como é a sua figura? Respondeu a mulher: Subiu um homem ancião, e esse coberto com uma capa. E entendeu Saul que era Samuel, e fez-lhe uma profunda reverência, e prostrou-se por terra”. (I Reis, 28, 14)

Samuel já era morto nesse episódio, mas o culto civil não é adequado para almas de mortos, trata-se aqui de outro exemplo de culto religioso.

– "E quando Abdias estava em caminho, Elias se encontrou com elle: e Abdias tendo-o conhecido, se prostrou com o rosto em terra, e disse: És tu, Elias meu senhor?”. (III Reis, 18, 7)

Tal ato não se poderia considerar como culto civil, pois no que diz respeito à excelência humana, Abdias era maior que Elias, pois este último era um homem privado, enquanto Abdias era um dos príncipes do rei. Portanto, Abdias adorou Elias como um profeta, e homem de Deus, em razão de sua excelência espiritual.

– "Vendo pois os filhos dos Prophetas, que estavam em Jericó defronte, disseram: O espirito de Elias repousou sobre Eliseu. E vindo sair-lhe ao encontro, se prostraram por terra a seus pés com profundo respeito" (IV Reis, 2, 15)

Mais um caso em que só pela noção de culto religioso pode ser definido.

–   "Então o Rei Nabucodonoor se prostrou com o rosto em terra, e adorou a Daniel, e mandou, que lhe fizessem sacrificios de victimas, e de incenso" (Daniel, 2, 46) (Originalmente מנחה “mincha”, isto é, “presentes” e não necessariamente “sacrifícios de victimas”)

Daniel, um prisioneiro, foi adorado por um rei supremo. Portanto, o rei adorou Daniel através de culto religioso como um homem cheio de Deus.

 

Provas tiradas através dos Padres da Igreja do culto religioso em razão excelência espiritual ou sobrenatural criada

 

A doutrina católica é comprovada pelo testemunho dos Padres da Igreja.

Nesse sentido, o teólogo protestante Herman Bavinck reconhece: “Desde o início do 2º século, todos esses elementos penetraram também no culto cristão. Assim como os monges, no Budismo, e os místicos, no Islamismo, os mártires da igreja logo se tomaram objeto de veneração religiosa. Altares, capelas e igrejas foram construídos nos lugares onde eles morreram ou onde suas relíquias foram enterradas. Especialmente na data da morte dos mártires, os crentes se reuniam nesses lugares para honrá-los com vigílias e o cântico de salmos, a leitura das atas de martírio, para ouvir sermões em sua honra e, especialmente, para celebrar a santa eucaristia”. (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, Espírito Santo, a Igreja e nova criação, volume 4. ano 2012., originalmente 1895, p. 627, grifei)

– Na Epístola do Martyrium Polycarpi, escrita por volta do ano 250, pode-se ler: “Contudo, o invejoso, o perverso e o mau, o adversário da geração dos justos, vendo a grandeza do seu testemunho e de sua vida irrepreensível desde o início, vendo-o ornado com a coroa da incorruptibilidade e conquistando uma recompensa incontestável, procurou impedir-nos de levar o corpo, embora muitos de nós o desejassem fazer e possuir sua carne santa. Ele sugeriu a Nicetas, pai de Herodes e irmão de Alce, que procurasse o magistrado, a fim que ele não nos entregasse o corpo. Ele disse: "Não aconteça que eles, abandonando o crucificado, passem a cultuar esse aí." Dizia essas coisas por sugestão insistente dos judeus, que nos tinham vigiado quando queríamos retirar o corpo do fogo. Ignoravam eles que não poderíamos jamais abandonar Cristo, que sofreu pela salvação de todos aqueles que são salvos no mundo, como inocente em favor dos pecadores, nem prestarmos culto a outro. Nós o adoramos, porque é o Filho de Deus. Quanto aos mártires, nós os amamos justamente como discípulos e imitadores do Senhor, por causa da incomparável devoção que tinham para com o rei e mestre. Pudéssemos nós também ser seus companheiros e condiscípulos!… Desse modo, pudemos mais tarde recolher seus ossos, mais preciosos do que pedras preciosas e mais valiosos do que o ouro, para colocá-los em lugar conveniente. Quando possível, é aí que o Senhor nos permitirá reunir-nos, na alegria e contentamento, para celebrar o aniversário de seu martírio, em memória daqueles que combateram antes de nós, e para exercitar e preparar aqueles que deverão combater no futuro. (cap.  XVII)

– São Justino diz: “A ele e ao Filho, que dele veio e nos ensinou tudo isso, ao exército dos outros anjos bons, que o seguem e lhe são semelhantes, e ao Espírito profético, nós cultuamos e adoramos, honrando-os com razão e verdade”. (Apologia I, 6)

– Eusébio diz: “Nós praticamos diariamente, pois honramos os soldados da verdadeira piedade, como grandes amigos de Deus” (praeparat. Evangel. 13,7).

– São Basílio diz: “A Igreja urge aqueles nesta vida pelo fato de que ela honra aqueles que foram antes deles” (Orat. in S. Mamantem) E ainda: “a honra, que mostramos aos nossos bons servos de si mesmo, oferece o sinal de boa vontade ao nosso Senhor comum” (Orat. in quadraginta martyres)

– São Gregório Nazianzeno comentando uma época em que Juliano, o Apóstata, homenageou certo mártir, que recusou tal culto, com um sinal maravilhoso, diz: “Ó milagre inesperado! Ó amor fraternal dos Mártires! Eles não aceitaram a honra dele que foi daqui em diante para fazer desonra a tantos mártires!” (Oratio 4) E na mesma obra diz: “Nos monumentos mais suntuosos aos mártires, pela emulação em suas ofertas, por todas as outras marcas pelas quais o temor de Deus é caracterizado, eles deram a conhecer seu amor à sabedoria e seu amor a Cristo”. Em sua Oratio aos Macabeus, diz: “Os Macabeus: o festival hoje é de fato em sua homenagem… eles merecem reconhecimento universal por sua inabalável devoção aos caminhos de seus pais”.

– São Gregório de Nissa em sua oração sobre Teodoro, o mártir, disse que a honra que é dada aos mártires supera às honras que se prestam aos reis: “Para qual rei foi mostrata tal honra? Quem deles, que só parecem se sobressair dos homens de uma maneira, é celebrado com tal memorial? Qual imperador foi cantado e celebrado com tal relato, como este pobre soldado, um recruta, Tyro, a quem Paulo armou, a quem os anjos ungiram, a quem Cristo coroou?”.

– Santo Epifânio diz: “Onde Maria é mantida em honra, o Senhor é adorado”. (Paranarion haeres. 79).

– São João Crisóstomo diz: “Você não venera por um lado os santos mais antigos, e por outro os mais recentes, mas todos eles com o mesmo ardor… E os mártires que veneramos, eles adoram…. É por isso que os visitamos frequentemente, adoramos seus túmulos”. (hom. De sanctis Juventino et Maximo).

– São Cirilo de Alexandria diz: “Não dizemos que os santos mártires se tornaram deuses, mas habitualmente consideramos eles dignos de toda honra” (In Julianum, lib 6).

– Teodoreto diz: “Pois nosso Senhor trouxe seus mortos para o lugar de seus deuses, os quais ele aboliu totalmente e deu sua honra aos mártires”. Ainda: “Mas nós, ó homens gregos, não corremos com sacrifícios nem oferendas de bebidas, ao invés nós honramos eles como homens santos e amigos de Deus” (ad Graecos, lib. 8).

– São João Damasceno diz: “É apropriado honrar os santos como amigos de Cristo, como filhos e herdeiros de Deus”. (de fide Orthodoxa, 4, 16).

– Santo Ambrósio diz: “Quem quer honrar os mártires honra a Cristo também, e aquele que despreza os santos, despreza o Senhor” (Serm. 6)

– São Máximo diz: “Todos os mártires devem ser devotamente venerados, mas especialmente aqueles cujas relíquias possuímos”. (serm. de natali sanctorum Octavii, Aventoris et Solutoris, Martyrum).

– Prudêncio sobre Santo Hipólito diz: “Sempre que eu me curvava em oração aqui, um homem doente de alma e corpo, eu ganhava”. (Peristephanon Hymn, 11)

– Paulino sobre a natividade de São Felix diz: “Roma, possuindo os altares de são Pedro e São Paulo, alegrou-se em se abrir em honra deste Deus”.  (Carmen I). E ainda: “Em cuja honra Deus se alegra, porque o mártir tinha desprezo por sua própria honra”. (Carmen VIII)

– São Jerônimo diz: “Honramos os servos para que sua honra recaia sobre o Senhor” (in epist. ad Riparium). E sobre a vida de Paula diz: “Adeus, Ó Paula, e ajude o seu adorador (cultorem) com suas orações”. E no mesmo livro ele diz que Paula, quando visitou os eremitas, habitualmente estava prostrada aos pés de cada para que ela pudesse venerá-los, como se ela venerasse Cristo em cada um deles.

– Santo Agostinho diz: “A multidão das nações adoram (adorat) o mais abençoado Pedro, o pescador, de joelhos”. (serm. 1 de Sanctis Petro et Paulo). E ainda: “Mostre-me em Roma um templo de Rômulo realizado em tão grande honra como eu mostro o memorial de Pedro. Quem é honrado em Pedro, exceto aquele que morreu por nós?” (Enarrationes Psalmos 44 [45])  E mais: “Veneramos (colimus), então, aos mártires com o culto do amor e companhia” (Contra Faustum Manichaeum, lib. XX, cap. 21) E mais: “Quando Jacó se apresentou a ele (Esaú), adorou-lhe (adoravit) de longe. Como, então, o maior servirá ao menor, se está vendo que o menor adora (adorare) o maior?” (Sermo 5). Ainda: "Portanto, amados, venerem (veneramini) os mártires, louve-os, ame-os, proclame-os, honre-os; adore o Deus dos mártires". (Sermo 273) Ainda: “(…) A glória dos Macabeus se fez solene para nós, neste dia. Quando foram lidas suas admiráveis paixões, não só ouvimos, mas participamos como espectadores delas. Aconteceram há muito tempo, antes da encarnação e da paixão de Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador. (…) Assim os Macabeus foram mártires de Cristo. Portanto, não está fora de lógica,  nem é inoportuno, pelo contrário, é muito comovedor, que sejam os cristãos que celebram solenemente o dia de sua festa. Os judeus celebram algo parecido? Sabe-se que a basílica dedicada aos santos Macabeus está em Antioquia (…)” (Sermo 300)

– Papa são Gregório diz que São Pedro apareceu para um certo Teodoro enquanto este estava pendurando vejas em uma igreja dedicada ao próprio Pedro, interpretando Gregório que São Pedro mostrava aprovar a veneração que lhe era manifestada (cf. Diálog. 3, 24).

 

III. RESPOSTAS AOS ARGUMENTOS DOS ADVERSÁRIOS

 

1) Não é verdade que a prática de cultos dos católicos a Deus e aos santos seja a mesma. Primeiramente, é preciso observar que os católicos não oferecem sacrifícios, ordenam sacerdotes e constroem templos aos santos. Portanto, a prática ainda que materialmente é diversa. Ademais, como explicamos na nossa exposição, praticamente todos os atos externos, em si mesmos, não comprovam o culto especial que se deve dedicar a Deus. Assim, de nada serve demonstrar que quase todos os atos externos que os católicos prestam a Deus, também prestam aos santos, pois o culto é distinto, essencial e naturalmente, pelo ato interno, que é a alma do externo, e o único que podem praticar os anjos. O culto é, antes de tudo, uma apreensão intelectual, combinada com a inclinação da vontade em sujeição. O ato externo é, portanto, elemento secundário, ordenado para o interno, para que a inteligência do homem seja provocada aos atos espirituais.

2) Não é verdade que a prática de se ajoelhar perante homens e anjos lida na História Sagrada representa meramente um cumprimento cultural. Como explica o exegeta protestante Edwin Yamauchi: “A prostração era um ato comum de auto-humilhação realizado diante de parentes, estranhos, superiores e especialmente perante a realeza… Seguindo o protocolo egípcio, os irmãos de José fizeram reverência diante dele (Gênesis 42: 6; 43:26, 28), cumprindo assim seu sonho (Gênesis 37: 7, 9, 10)”. (Theological Wordbook of the Old Testament, Vol. I, ed. R. Laird Harris, et al. (Chicago: Moody Press, 1980), pp. 267-269). O Dictionnaire de Théologie Catholique também explica: “A adoração, προσκυνήσις, nos povos orientais, era uma marca de respeito que consistia em se ajoelhar a dois joelhos e a se prostrar ante a terra diante uma pessoa que se pretendia venerar. Beijamos os pés dessa pessoa ou tocamos o chão com a cabeça na frente dela. A prática de adorar não apenas os deuses, mas os reis e grandes personagens existia entre os egípcios. F. Vigouroux, La Bible et les découvertes modernes, 6ª edit., Paris, 1896, t. II, p. 145-146” (A. Chollet. Dictionnaire de Théologie Catholique, (verbete adoration), Letouzey et Ané, Paris, 1923, tomo I)

A famosa Bíblia Protestante King James Version em 1 Crônicas 29,7 utiliza a seguinte tradução: “and worshipped the Lord, and the king”. A Bíblia protestante João Ferreira de Almeida traduz Josué 5, 14 do seguinte modo: “Então, Josué se prostrou sobre o seu rosto na terra, e o adorou…” (um anjo). São Jerônimo em sua Vulgata traduz para adorat/adoravit passagens mencionadas nas provas. Ele estava bem familiarizado com a cultura dos hebreus. O próprio Calvino chama de adoração os exemplos bíblicos, como referimos.

3) Em relação a Cornélio, duas respostas são possíveis. Segundo São Jerônimo (Contra Vigilantium), Cornélio pensou que alguma divindade residia em Pedro, e portanto, foi justamente corrigido. Ou, segundo São João Crisóstomo (Homilia 23 sobre Atos), Cornélio piedosamente venerou Pedro, mas Pedro recusou esta honra por modéstia. 

Em relação a São João, apresentamos duas respostas, novamente. Segundo Santo Agostinho (q. 61 de Genesi), São João poderia ter se confundido crendo que o anjo era o próprio Cristo, pois o anjo havia dito “Eu sou o primeiro e o último, e estava morto, e eis que agora eu vivo”. Assim, São João foi corrigido não por um erro de adoração, mas por um erro de pessoa. Outra posição é que o anjo recusou a adoração de São João em reverência à humanidade de Cristo, pois queria deixar patente a dignidade a que, pelos méritos de Cristo, o homem subiu, equiparando–se aos anjos. Neste sentido, note-se que após a recusa da adoração pelo anjo (Apocalipse 19), São João novamente o adora (Apocalipse 22). Estaria São João tão esquecido ou indócil às palavras do anjo?  Assim, parece que ninguém errou na ocasião.

4) Como foi dito na nossa exposição, “religião” pode ser entendida em sentido estrito, como virtude especial, confundindo-se com a latria, e assim está certo Santo Agostinho quando diz que o culto de religião não se deve a anjos e santos. Mas a mesma expressão pode ser tomada em sentido lato, significando qualquer culto relacionado à excelência espiritual ou sobrenatural criada, ou ainda mais largo… Explica o próprio Santo Agostinho: "Segundo o latim vulgar, não apenas entre os ignorantes como também entre os cultos, se diz que a religião deve ser manifestada aos parentes e afins e em qualquer necessidade. Este termo não evita ambiguidades quando se atribui ao culto de Deus, pois não se pode com certeza afirmar que o termo religião se atribua só a este culto (cultu)”. (De Civitate Dei, X) O próprio Santo Agostinho diz que os cristãos “celebram o memorial dos mártires com solenidade religiosa (religiosa solemnitate)” (Contra Faustum Manichaeum  XX, cap. 21).

Além disso, o culto prestado aos santos, indiretamente, está relacionado à virtude da religião, uma vez que a “devoção que se tem aos santos, vivos ou mortos, não termina neles, mas chega até Deus, pois os veneramos como representantes de Deus” (ST II-II, 82, 2 ad 3) A questão 82 era “Se a devoção é um ato de religião”, onde Santo Tomás demonstrava que sim.

5) Sobre esse argumento propomos duas soluções. Primeira: Basílicas são templos dedicados a Deus em memória e em nome de um santo, como dizemos que o sacrifício da Missa é oferecido a Deus em ação de graças pela glória de um santo específico. Segunda: templos e basílicas não são sinônimos. A edificação se diz templo se construída em razão do sacrifício a Deus, ou basílica se erigida para ornar o sepulcro e em atenção à comodidade dos visitantes das relíquias. Lápide dizemos altar sob a razão de sacrifício ou túmulo (ou sepulcro) enquanto cobre os ossos de algum mártir.

Santo Agostinho sobre o tema explica: “E nós nem construímos templos a nossos mártires como se fossem deuses, mas memoriais (monumentos) como a homens mortos, cujo espírito vive com Deus; nem lhe erigimos ali altares em que sacrifiquemos aos mártires, mas ao único Deus dos mártires e nosso. E nesse sacrifício se lhes nomeia segundo a ordem e lugar que lhes corresponde, como homens de Deus que venceram ao mundo confessando sua fé”. (De Civitate Dei, XXII, 10). Num sermão, junto ao sepulcro de Cipriano, Santo Agostinho diz: “Com efeito, não temos levantado um altar a Cipriano como a um deus, mas que temos feito de Cipriano um altar para o verdadeiro Deus”. (Sermone 313A). Sobre o mártir Santo Estevão: “Nós não temos levantado neste lugar um altar para Estevão, mas, com as relíquias de Estevão, um altar a Deus”. (Sermone 318).

Santo Agostinho faz menção expressa das basílicas: “Testemunhos são disso os santuários dos mártires e as basílicas dos Apóstolos” (De Civitate Dei, I, 1). E ainda: “o jovem cristão Cinérgio, fora sepultado na basílica do bem-aventurado confessor da fé, Félix”. (De cura pro mortuius, 1)

Por Nelson Sarmento.
 

Referências:

St. Robert Bellarmine. On the canonization and veneration of the saints, Mediatrix Press, 2019. Translated from: De controversiis Christianae Fidei, tomus 2, 1721, Prague.

Refutação da TFP a uma investida frustra, Volume I, São Paulo, junho de 1984, por uma Comissão de sócios da TFP com a colaboração, revisão e posfácio de Antonio Augusto Borelli Machado. https://www.pliniocorreadeoliveira.info/Torreao_1_PDF_pesquisavel.htm#.Xp4jW5l7nIU

Pace, E. (1909). Dulia. In The Catholic Encyclopedia. New York: Robert Appleton Company. Retrieved April 26, 2020 from New Advent: http://www.newadvent.org/cathen/05188b.htm

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