Sábado, Dezembro 21, 2024

Quem esmaga a cabeça da serpente em Gênesis 3,15?

“Porei inimizade entre ti e a mulher entre a tua semente e a dela. Ela te esmagará a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar”
(Gênesis 3,15)

Introdução

Da mais simples das capelas à mais magnífica das Basílicas, é comum encontrarmos nos templos católicos imagens da Santíssima Virgem esmagando a cabeça da serpente infernal. Em muitos desses templos preserva-se ainda a inscrição em latim “Ipsa conteret caput tuum” (“Ela te esmagará a cabeça”), uma alusão à tradução feita por São Jerônimo do texto de Gênesis 3,15 em sua célebre Vulgata Latina, encomendada pelo Papa S. Dâmaso e utilizada pela Igreja desde o século IV (ou seja, há mais de 1500 anos). De fato, a ação de “esmagar a cabeça da serpente” é tradicionalmente creditada pelos católicos à própria Mãe de Deus, sendo este ensino encontrado explicitamente no Magistério de vários Pontífices Romanos, entre os quais podemos citar o Beato Pio IX (cf. Ineffabilis Deus, 23.29.43; Ubi Primum, 2) e São Pio X (cf. Ad diem illum, 4.13.19-20). Em 1830, a própria Virgem Santíssima, aparecendo a Santa Catarina Labouré sob o título de “Nossa Senhora das Graças” reforçou essa mesma verdade ao ordenar-lhe distribuir a chamada “Medalha Milagrosa”, onde Satanás é retratado em forma de serpente sendo “esmagado” pelos pés imaculados de nossa amada Co-Redentora. O mesmo aconteceu séculos antes na famosa aparição de Guadalupe, onde a Virgem Santíssima apresentou-se a San Juan Diego em sua língua nativa Nahuatl como a “Tlecuatlecupe”, isto é, “aquela que esmaga a cabeça da serpente”.

Infelizmente, no entanto, a maioria dos críticos modernos tende a afirmar que tal tradução não possui qualquer fundamento no texto original em hebraico, o que a levou a entrar cada vez mais em desuso mesmo no seio da Igreja. Maria continua sendo a “mulher” detentora da perpétua “inimizade” com Satanás, mas é a sua “semente”, seja Jesus (no caso de uma leitura individual – Ipse), seja a Igreja (no caso de uma leitura coletiva – Ipsum), que será responsável por esmagar sua cabeça. Mostraremos neste breve artigo que não é necessário abandonar a tradução de São Jerónimo pois, diferente do que dizem os críticos, o hebraico original suporta a tradução tradicional de que é “ela” (Ipsa), Maria, a responsável por esmagar a cabeça do demônio, ainda que as três traduções – Ipsa, Ipse e Ipsum – tenham também algum fundamento na Tradição da Igreja sobre o texto em questão.

A questão filológica

Toda a nossa discussão começa pelo fato do Texto Massorético (século VIII) – principal versão em hebraico que chegou até nós contendo a passagem em questão – utilizar-se de um pronome masculino (ה֚וּא – – “ele”) para designar o sujeito do verbo “esmagar”, seguido da forma masculina do próprio verbo “esmagar” (יְשׁוּפְךָ֣ – yashuph, e não sua forma feminina תְּשׁוּפְךְ) e, por fim, de um sufixo pronominal igualmente masculino para designar “o calcanhar dele” (תְּשׁוּפֶנוּ – təšūp̄ennū – “calcanhar dele”, e não “dela”, cujo sufixo teria que ser -ennah). Ora, tal tradução claramente favorece a interpretação de que é a semente da mulher – seja ela singular ou plural – a responsável pelo ato de esmagar a cabeça da serpente mencionada no texto e não a mulher em si, detentora da inimizade com a personagem, como propõe a Vulgata.

Acontece que, no entanto, o hebraico antigo possui uma diferença fundamental com o hebraico massorético pois no hebraico antigo (isto é, o hebraico em que Gênesis foi escrito) não haviam vogais, mas apenas consoantes. Sabia-se que um pronome era masculino ou feminino de acordo com a tradição oral em torno do pronome em questão. Só no século VIII é que os judeus massoretas inventaram um sistema de pontuação para atender a acentuação vocálica, distinguindo pronomes masculinos de pronomes femininos [1]. Isso significa que o termo hebraico provavelmente utilizado na passagem em questão não foi o masculino “ה֚וּא” (), uma vez que não existia vogais na época para diferenciá-lo do feminino “הִיא” (‘), mas sim o termo genérico  הוא (hw‘), que podia designar, a depender da tradição oral, tanto um pronome feminino quanto um pronome masculino [2].

As tradições judaicas e a Tradição Católica, como veremos a seguir, permitem (e, no caso da Católica, favorecem) a leitura feminina do pronome em questão. Mas se o pronome הוא (hw’) deve realmente ser lido em sua forma feminina, porque no restante da frase ele é tratado como sendo masculino tanto pelo verbo quanto pelo sufixo pronominal que o segue? Em seu “A Grammar of Biblical Hebrew. Vol. I.“, o Pe. Joüon explica que “as regras que regem o acordo do verbo hebraico com a terceira pessoa estão sujeitas a um grande número de exceções. Em teoria, o verbo deve concordar com o gênero e o número do substantivo ou pronome a que se refere. Mas, na prática, há uma tendência definida a ignorar o singular feminino e ainda mais o plural feminino, sobretudo quando o verbo precede. Nesses casos, o verbo é encontrado no masculino.” [3]. Victor Hamilton, Professor Emérito de Antigo Testamento e Teologia na Universidade de Asbury, também chama a atenção em um de seus livros sobre o hebraico do Gênesis para “substantivos que são morfologicamente femininos [e] às vezes são tratados como masculinos” [4], observando que tais exceções, embora ocasionais, são reconhecidas pelo famoso Gesenius’ Hebrew Grammar (GKC §122r). Essa “troca de gênero” constitui uma figura de linguagem utilizada no hebraico antigo que é chamada pelo Pe. Settimio M. Manelli – inspirado provavelmente nos escritos do famoso exegeta católico do século XVI, Cornelius A. Lapide – de “enallage” [5]. O GKC também cita o enallage em seu c. I, §33, e é seguido por outras Gramáticas famosas de Hebraico antigo, tais como o Ewald’s Hebrew Grammar (Livro II, §184) e o Roorda’s Hebrew Grammar (Livro III, §88). Há ainda um estudo do cardeal Patrizi sobre o tema (“De Feminini Generis Enallage in Linguis Semiticis Usitata”). É portanto, conhecida a figura de linguagem do hebraico em questão.

Tal figura de linguagem é utilizada várias vezes no livro do Gênesis, especialmente quando o verbo ou a frase em questão se referem a uma ação putativamente masculina. Um exemplo clássico – que o próprio São Jerónimo observou ao comentar o texto hebraico de Gênesis – está em Gênesis 4,7:

  • “Se praticares o bem, sem dúvida alguma poderás reabilitar-te. Mas se procederes mal, o pecado estará à tua porta, esprei­tando-te; tu és seu objeto de desejo, mas tu deves dominá-lo (Genesis 4,7)

Em hebraico o substantivo “pecado” (חַטָּ֣את – ḥaṭ·ṭāṯ) é feminino, mas tanto o verbo que o segue “espreitando-te” (רֹבֵ֑ץ – rō·ḇêṣ), quanto o sufixo pronominal para “seu objeto de desejo” (תְּשׁ֣וּקָת֔וֹ – tə·šū·qā·ṯōw) e para “dominá-lo” (תִּמְשָׁל־ – tim·šāl-) são masculinos. Tanto o termo “ter domínio sobre” quanto o termo “esmagar a cabeça” são termos que descrevem ações atribuídas ao sexo masculino (vide por exemplo o uso de תִּמְשָׁל em Gênesis 3,16), o que pode explicar o possível uso do enallage e o problema das irregularidades do sujeito-predicado tanto em Gênesis 4,7 quanto em Gênesis 3,15.

Outro caso clássico do uso do enallage se dá em Gênesis 2,23, onde Adão diz:

  • “Eis agora aqui – disse o homem – o osso de meus ossos e a carne de minha carne; ela se chamará mulher, porque foi tomada do homem.” (Gênesis 2,23)

Perceba que aqui, em referência à Eva, a quem é aplicado um pronome feminino, é utilizado o verbo masculino na 3ª pessoa do singular יִקָּרֵ֣א אִשָּׁ֔ה (“ela será chamado“) ao invés do verbo feminino correspondente para “ela será chamada“.

Entre os exemplos de concordância irregular fora do Gênesis com o feminino singular, podemos ainda citar Êxodo 12:49: תֹּורָ֣ה אַחַ֔ת יִהְיֶ֖ה לָֽאֶזְרָ֑ח וְלַגֵּ֖ר הַגָּ֥ר בְּתֹוכְכֶֽם׃ (“Haverá uma mesma lei para o natural e o estrangeiro que pere­grina entre vós”), no qual o substantivo singular feminino “Lei”, enquanto o verbo para “haverá” se encontra na terceira pessoa do masculino singular. O mesmo se dá na passagem de Provérbios 2:10, onde se lê: כִּֽי־תָבֹ֣וא חָכְמָ֣ה בְלִבֶּ֑ךָ וְ֝דַ֗עַת לְֽנַפְשְׁךָ֥ יִנְעָֽם׃ (“Quando a sabedoria penetrar em teu coração e o conhecimento deleitar a tua alma…”), o substantivo “conhecimento” é singular feminino enquanto que o verbo para “deleitar” é singular masculino. Há ainda muitos outros exemplos do uso do enallage nas Sagradas Escrituras, mas aqui nos limitaremos apenas a estes [6].

Vale ressaltar, por fim, que a ideia de subjulgar os inimigos, esmagando-os ou colocando-os “debaixo dos seus pés”, é comumente atribuída ao sexo masculino nos outros textos das Escrituras (por exemplo, Salmo 89,23; 2 Samuel 22,33-43; Num. 25,17; Salmo 110,1-6; Salmo 8,6; etc) e que o autor sagrado atribui à “mulher” de Genesis 3,15 vários elementos masculinos, como por exemplo, uma “semente” própria (em hebraico “zerah” e em grego “sperma“, termos associados aos homens).

Ora, considerando então a possibilidade do autor sagrado ter se utilizado do enallage em Genesis 3,15 para atribuir à mulher uma ação a que julgava masculina (isto é, o ato de esmagar a cabeça do adversário e ter domínio sob ele) e a neutralidade do pronome הוא (hw’) utilizado na passagem em questão, a tradução do texto fica completamente dependente de como a tradição oral dos antigos judeus e dos primeiros católicos lia e traduzia o pronome em questão.

A tradição oral sobre o sujeito do verbo “esmagar” em Gênesis 3,15

Como dissemos na introdução, as três traduções de Gênesis 3,15 encontram algum fundamento, seja na tradição judaica, seja na tradição cristã. Entre os judeus, a leitura coletiva “eles” (em latim traduzida por “Ipsum“) é encontrada em três antigos Targuns (Tg. Onqelos, Tg. Pseudo-Jonathan e Tg. Neofiti) e na versão grega do Livro I das Antiguidades de Flávio Josefo. A leitura masculina “ele” (em latim traduzida por “Ipse“), por sua vez, é encontrada na LXX (“autós“, embora com uma possível – e disputada – conotação coletiva), três vezes nos escritos de Fílon de Alexandria, na Bíblia Siríaca Peshitta, e, é claro, no Texto Massorético do século VIII. A leitura feminina “ela” (em latim traduzida por “Ipsa“) é, enfim, defendida nos escritos de Fílon de Alexandria, que, ao comentar a tradução masculina da LXX, reconhece haver aí um “barbarismo literário” que sequer obedece as regras da poesia hebraica [7]. Fílon afirma ainda que o “ele” (autós) da LXX deve ser entendido e, portanto, de alguma forma conciliado, com a mulher em si e não com a sua descendência, inspirado possivelmente em uma antiga tradição – também encontrada entre os cristãos – que atribui à própria mulher o ato final de destruir o seu inimigo [8].

Além de Fílon, outros autores judeus que defenderam a leitura feminina de Genesis 3,15 foram Flávio Josefo (*se a tradução latina atribuída a Rufino do Livro I das Antiguidades – “ut mulier eius capiti plagas inferret” – estiver correta) e, no século XII, Maimônides [9]. O fato deste último autor utilizar-se da versão feminina do texto em questão é particularmente interessante pois demonstra que mesmo depois da adoção do masculino pelos judeus através do Texto Massorético, permaneceu entre alguns deles a antiga tradição encontrada em Fílon na qual se interpreta o verso no feminino, motivo pelo qual ainda segundo A. Lápide, até os seus dias ainda existiam dois manuscritos hebreus na Biblioteca Bernard de Rossi com a leitura “ela” (estando um deles em um Onkelsi Codex, isto é em uma tradução do hebraico para o aramaico) [10]. Há ainda 8 versões do próprio Texto Massorético contendo a tradução feminina (sendo 3 certas e 5 disputadas), além de 2 versões arábicas e 1 caldeia (Ipse, ipsa, ipse, ipsa, ipsum, which? [microform], p. 335).

Entre os cristãos, há uma variedade de posições sobre o assunto. Muitos Padres utilizaram-se sem escrúpulos de duas traduções diferentes de Gênesis 3,15 ao mesmo templo, como veremos a seguir.

Utilizaram-se do plural “eles” (em latim, Ipsum), São Teófilo de Antioquia [11], Santo Irineu de Lião [12], São Cipriano de Cartago [13], Orígenes de Alexandria [14], Santo Epifânio [15], São Cirilo de Jerusalém [16], Santo Efrém da Síria [17], São Basílio Magno [18], São Gregório Nazianzeno [19], São João Crisóstomo [20], etc. A maioria deles entendia por “eles” a Igreja, inimiga de Satanás, enquanto que outros (como S. João Crisóstomo e Santo Efrém)  viam também aí uma interpretação natural dos homens contra as serpentes. É possível que alguns, no entanto, tenham apenas atribuído alegoricamente ou acomodado tal passagem ao resto do povo de Deus.

Utilizaram-se do singular “ele” (em latim, Ipse), Santo Irineu de Lião [21], São Cipriano de Cartago [22], Santo Epifânio de Salamia [23], Santo Efrém da Síria [24], Santo Ambrósio [25], São Jerônimo [26], São Leão Magno [27], São Gregório Magno [28], etc (e segundo alguns, embora disputado, também São Justino Mártir [29]). A maioria deles, entendia a “semente” como uma designação do próprio Cristo, e, vale ressaltar, ainda que não atribuíssem à Maria o ato de esmagar a cabeça de Satanás, identificavam-na como “a mulher” detentora da perpétua “inimizade” com Satanás.

Por fim, utilizaram-se diretamente do feminino “ela” (em latim, Ipsa), Tertuliano de Cartago [30], Santo Optato de Mileve [31], Santo Ambrósio de Milão [32], Santo Agostinho de Hipona [33], São Gregório de Nissa [34], Santo Efrém da Síria [35], Prudêncio [36], São Jerônimo de Estridão [37], o Pseudo-Jerônimo do século IV [38], Hesíquio de Jerusalém [39], São Gregório Magno [40], São Beda, o Venerável [41], etc (e, talvez, também o autor do século III da obra “O martírio de Santa Perpétua e Santa Felicidade” [42], cuja autoria é disputada, e, também possivelmente, uma das versões gregas traduzidas na famosa Hexapla de Orígenes, a qual se conservam apenas fragmentos [43]). Alguns atribuíam o Ipsa à Igreja, à Maria, à ambas ou o acomodavam – como no caso de Prudêncio – à uma mulher virtuosa como Santa Agnes.

Com o passar dos anos, a versão feminina da Vulgata, foi sendo adotada cada vez mais pela Igreja, até tornar-se a versão oficial do Vaticano e aparecer em documentos de peso magisterial cada vez mais elevados.

Dos judeus aos cristãos, sempre houve uma forte tradição oral que sustentasse as três versões, incluindo a feminina. É razoável, portanto, a tradução de São Jerônimo: “Porei inimizade entre ti e a mulher entre a tua semente e a dela. Ela te esmagará a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar” (Gn 3:15). O seu uso pela Igreja por mais de 1500 anos, assim como a sua presença no Magistério de diversos Papas e inclusive em Constituições Dogmáticas como a Ineffabilis Deus não pode ser simplesmente ignorada pelos estudiosos católicos modernos como um mero “erro de tradução”, mas, antes, tais dados favorecem-na sob as demais, ainda que as  traduções Ipse (cf. Papa João Paulo II, Redemptoris Mater, 11) ou Ipsum (cf. Nova Vulgata) – que vem sendo favorecidas pela Santa Sé desde o Concílio – encontrem também algum fundamento na Tradição.

É interessante, por fim, observar a completa dependência que a passagem em questão apresenta da tradição oral, especialmente da Tradição Católica, protegida pelo Espírito Santo e conservada em nossas igrejas desde a era apostólica através da sucessão dos bispos.

A destruição final de Satanás pelos pés de um ser-humano (seja a mulher ou a sua semente), profetizada pela segunda parte da profecia de Gênesis 3,15, não é mencionada diretamente tendo se realizado em nenhum lugar das Sagradas Escrituras. É verdade que no Antigo Testamento muitas passagens falavam de Deus esmagando a cabeça de seus inimigos, incluindo as cabeças do Leviatã (Sl 68:21-22; 74: 13-14; 89:10-15; 110:5-6; Hab 3: 13-15), mas tais passagens não indicam necessariamente uma citação do Protoevangelho pois expressões como “esmagar a cabeça” são termos comuns para expressar vitória e domínio sob os inimigos. O mesmo pode ser dito de passagens do Novo Testamento como Lucas 10:19 e Romanos 16:20. Ainda que se suponha que os autores sagrados tenham de alguma maneira se referido a Gênesis 3,15 nessas passagens, continuará sendo verdadeiramente difícil saber se a aplicam em seu sentido literal e primário ou em um sentido meramente secundário, motivo pelo qual pouco – quando não nada – pode ser inferido das passagens supracitadas.

Mais significativo, no entanto, é o claríssimo paralelo que as Sagradas Escrituras fazem entre Nossa Senhora, Judite e Jael. Maria Santíssima é saudada por Santa Isabel nos seguintes termos, segundo São Lucas: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre!” (Lc 1,42). Ora, tal saudação evoca o famoso cântico de Ozias a Judite: “Tu és Bendita, ó filha, pelo Deus Altíssimo, mais que todas as mulheres da terra. Bendito seja o Senhor, criador do céu e da terra, que te guiou para cortar a cabeça de nosso maior inimigo! Ele deu neste dia tanta glória ao teu nome, que nunca o teu louvor cessará de ser celebrado pelos homens, que se lembrarão eternamente do poder do Senhor.” (Judite 13:23-25). Evoca também o famoso cântico de Débora sobre Jael: “Seja bendita entre as mulheres, Jael, a mulher de Héber, o quenita. Bendita sobre as mulheres das tendas! (…) A marteladas esmagou a cabeça de Sísera, partiu e atravessou-lhe as têmporas.” (Jz 5,24-31). Além de Nossa Senhora, Judite e Jael são as únicas chamadas pelas Escrituras de “bendita entre as mulheres”.

As passagens acima demonstram que a dupla bênção (“Bendita, bendito” e/ou “Bendita, bendita”) está comumente associada a personagens que obtém vitórias em batalhas contra os seus inimigos (vide também por exemplo Gn 14,19-20). Ao atribuí-lo à Virgem Santíssima, o próprio São Lucas reconhece que ela pode ser incluída nessa lista de mulheres que triunfaram na batalha contra os seus inimigos. No caso de Maria, no entanto, considerando a Tradição Cristã, há uma tipologia forte que une as três personagens pois todas as três bem-aventuradas “esmagaram a cabeça” dos seus inimigos: Jael, a de Sísera; Judite, a de Holofernes e Maria Santíssima, a de Satanás. Vale ressaltar também que é irrazoável se supor que São Lucas desconhecesse o Livro de Judite já que, além de utilizar-se da LXX (que o incluía entre as Sagradas Escrituras), era discípulo de São Paulo assim como São Clemente Romano, que, por sua vez, demonstra claramente em sua I Epístola aos Coríntios ter louvor por Judite e conhecer o livro em questão (cf. I Carta de S. Clemente aos Coríntios, 55,4). É possível, portanto, que o próprio São Lucas tenha pensado na supracitada passagem de Judite 13,23 quando utilizou-se de termos tão parecidos para designar Maria em Lucas 1,42.

Conclusão

Maria Santíssima é a verdadeira Acies Ordinata, a mulher que é “terrível como um exército em ordem de batalha” (Ct 6,10), e, com a sua obediência virginal, esmaga a cabeça do dragão infernal, sendo, portanto, verdadeira Co-Redentora do gênero humano, como ensina o magistério do Papa Leão XIII:

  • “Nos momentos de apreensão e de incerteza, foi sempre o primeiro e sagrado pensamento dos católicos o de recorrerem a Maria, e de se refugiarem na sua maternal bondade. E isto demonstra a firmíssima esperança, antes a plena confiança, que a Igreja Católica com toda razão sempre depositou na Mãe de Deus. De fato, a Virgem Imaculada, escolhida para ser Mãe de Deus, e por isto mesmo feita Co-Redentora do gênero humano, goza junto a seu Filho de um poder e de uma graça tão grande, que nenhuma criatura, nem humana nem angélica, jamais pôde nem jamais poderá atingir uma maior. E, visto como a alegria mais grata para ela é a de ajudar e consolar todo fiel em particular que invoque o seu socorro, não pode haver dúvida de que ela muito mais prazeirosamente deseje acolher, antes, que exulte em acolher, os votos da Igreja toda.” (Papa Leão XIII, Supremi Apostolatus Officio, 3)

Acies Ordinata, ora pro nobis!

(Texto publicado originalmente no site SalveRoma, em 18 de Janeiro de 2020)

Notas
[1] cf. Pe. Joüon, A Grammar of Biblical Hebrew. Vol. I. (Subsidia Biblica 14/1), Roma, 1993.

[2] Cf. Padre Settimio M. Manelli, F.I., “Genesis 3:15 and the Immaculate Corredemptrix”, in Academy of the Immaculate, “Mary at the Foot of the Cross – V”, p. 306; Padre Joüon, A Grammar of Biblical Hebrew. Vol. I. (Subsidia Biblica 14/1), Roma, 1993, §§ 16f2, 39c; BDB, s.v., 216; etc.

[3] Cf. Padre Settimio M. Manelli, F.I., op. cit., p. 314; citando Padre Joüon, A Grammar of Biblical Hebrew, §150k.

[4] Hamilton, Genesis, 227.

[5] Cf. Padre Settimio M. Manelli, F.I., op. cit., p. 314.

[6] Leia outros exemplos aqui.

[7] Fílon de Alexandria, Legum allegoriae, III, p. LXVII (n. 188). Cf. The works of Philo complete and Unabridged, traduzido por C.D. Yonge, Hendrickson Publishers, U.S.A. 1995, p. 71.

[8] ibid.

[9] Maimonides, More nebochim, P. II, chapter 30.

[10] Ir. Thomas Mary Sennott, M.I.C.M., “Mary Coredemptrix”, in Academy of the Immaculate, “Mary at the Foot of the Cross – II”, p. 55.

[11] São Teófilo de Antioquia, Ad Autolycus 2.21; ANF 2.103; PG, 6.1084A-1085D. “Autós” (masculino), é encontrado, entretanto, em algumas variantes; PG 6:1085, nota. Na versão da Paulinas, traduz-se “ela” (o que pode indicar ainda outra tradição manuscrita do texto).

[12] Santo Irineu de Lião, Adv. haer. 3,23,7 (ANF, 1. 457).

[13] “Que nossos pés sejam calçados com os ensinamentos do Evangelho e armados para que, quando a serpente começar a ser pisoteada e esmagada por nós, ela possa não ser capaz de nos morder e nos derrubar.” (São Cipriano de Cartago, Cartas (1-81), traduzido por Rose Bernard Donna (vol. 51, The Fathers of the Church, A New Translation; Washington: The Catholic University of America, 1964), 170 (“ao povo de Thibaris,” Carta 58, 9).

[14] “Vamos então rezar para que nossos pés sejam tão belos, tão fortes, que possam pisar na cabeça da serpente, para que ela não consiga morder nosso calcanhar “(Orígenes de Alexandria, In Jer. hom. 19,7; PG 13, 516D-517A; GCS 3 [1907], 188).

[15] Santo Epifânio de Salamia, Panarion, lib. 3, haer. 78, n. 18-19; PG 42, 728C-729.

[16] São Cirilo de Jerusalém, Procatechesis 16; Catechesis 6.35.

[17] Santo Efrém da Síria, Ep. 581.9.1. E também em seu Comentário sobre o Gênesis, onde dá uma interpretação natural ao texto, in T. Kronholm, Motifs from Genesis 1-11 in the Fenuine Hymns of Ephrem the Syrian (Lund: Gleerup, 1978), 115.

[18] São Basílio Magno, Quod Deus non est auctor malorum, n. 81-89; PG 31, 348, 329C- 352C.

[19] São Gregório Nazianzeno, Segunda Oração sobre a Páscoa, 19; NPNF², 7, 430.

[20] São João Crisóstomo, Homilae in Genesim, 17.7; PG, 53.143.

[21] Santo Irineu de Lião, Adv. haer. 4,40,3; ANF 1,524.

[22] São Cipriano de Cartago, Ad Quirinium 2.9; PL 4, 704.

[23] Santo Epifânio de Salamia, Panarion, lib. 3, haer. 78, n. 18-19; PG 42, 728C-729.

[24] Santo Efrém da Síria, Carmina Nisibena, n. 22 e 38.

[25] Santo Ambrósio de Milão, De interpellatione Job et David 2.4; PL 14, 812D-813A.

[26] São Jerônimo de Estridão, Quaestiones hebraicae in libro Genesin; PL 23, 991.

[27] São Leão Magno, Sermo 22, De nativitate Domini, 2, 1: PL 54, 194A.

[28] São Gregório Magno, Moralia in Job., 1.36-53, lib. 2; PL 75, 552a.

[29] São Justino Mártir, Diálogo com Trifão, 100, PG 6, 709CD, 712A.

[30] “Será assim que ela (ipsa) colocará o calcanhar na cabeça do diabo, enquanto ela amontoa ornamentos [tomados] da cabeça dele em seu próprio pescoço ou em sua própria cabeça?” (Tertuliano de Cartago, De cultu feminarum 2.10; ANF 4,17).

[31] Santo Optato de Mileve, In Natale Infanttum qui pro Domino oum sunt; in Unger, First Gospel, 173-174.

[32] Santo Ambrósio de Milão, De fuga saeculi, 41, 43; PL 14. 558-589. Nessa passagem se lê Ipsa tibi seruabit caput et tu illius calcaneum, embora o protestante Jack P. Lewis afirme que há variantes em alguns manuscritos onde se lê Ipse. Seja como for, é comum a todas as versões o seguinte complemento: “Finalmente, a serpente pôde ferir o calcanhar da mulher e de sua semente” (Denique seruatum est serpenti, ut calcaneum mulieris et seminis eius obseruaret), o que pode sugerir uma tentativa de conciliação de ambas as fórmulas Ipsa e Ipse, ambas presentes e utilizadas por Santo Ambrósio. Em outra passagem, ele novamente afirmará que é o “pé da mulher”, não de sua semente, que é ferido pela serpente: “Não me deixe ir, senão a serpente pode espalhar seus venenos novamente e pode tentar novamente morder o pé da mulher para que ela possa tropeçar em Adão.” (Santo Ambrósio de Milão, De Isaac et anima, 5, 43; PL 14, 516). Em outra passagem: “Maria derrotou você [Satanás], na medida em que deu à luz o Conquistador, mas ela, sem perder a virgindade, trouxe Aquele que, quando crucificado, derrotou você, e quando morto, o sujeitou a Si mesmo. Você será derrotado hoje para que a mulher possa deter os seus ataques [insidias].” (Santo Ambrósio de Milão, De obitu Theodori, 44, 41, PL 16, 1400-1401). Aqui, explica o Pe. Dominic J. Unger, “a mulher detêm as emboscadas do diabo; portanto, ela deve ter sido o sujeito de Gênesis 3, 15c: é o calcanhar dela que é atacado” (cf. Patristic Interpretation of the Protoevangelium, p. 135), uma vez que o latim insidias claramente faz referência às versões latinas de Gênesis 3,15 que trazem “ipsa conteret caput tuum et tu insidiaberis calcaneo eius”. Há em Santo Ambrósio, portanto, mais um testemunho em favor da versão feminina Ipsa.

[33] Santo Agostinho de Hipona, De Gen. ad lit. XI, c. 36; De Gen. adversus Manich.1, II, cp. 8.

[34] São Gregório de Nissa, Sermo de Annuntiatione; PG 62, 765-766. Migne publicou o Sermo de Annuntiatione entre as obras espúrias de São João Crisóstomo (PG 62, 764-768). Hoje em dia no entanto, a homilia é atribuída ao Nisseno (cf. R . LAURENTIN (Court Traité de Theologie Mariale, Paris (1953), 163), ALDAMA (Repertorium pseudochrys ostmi, Paris (1965), 77-78 e MONTAGNA (Mar 24(1963), 120). Segundo o Pe. Luigi Gambero, ela foi escrita na Capadócia entre os anos de 370-380 (cf. Pe. Gambero, Mary and the Fathers of the Church, p. 273).

[35] “Pela serpente atingir Eva no calcanhar, o pé de Maria a esmagou.” (Santo Efrem da Síria, Comentário no Diatessaron 10,13; SC 121,191).

[36] Prudêncio, Liber Cathemerinon 3, vss 146-150; PL 59, SOSf; Bergmann, CSEL 61 (1926), 17.

[37] São Jerônimo de Estridão, Vulgata Latina. “Alguns críticos (Vercellone, Hoberg, Lagrange, etc.) opinaram que S. Jerónimo colocou na Vulgata não “ipsa“, mas “ipse“. Essa opinião, no entanto, não parece sustentável hoje, porque na edição crítica da Vulgata de 1926, o pronome “ipsa” é considerado “genuíno” (Veja H. QUENTIN, O.S.B., Biblia Sacra iuxta latinam Vulgatam editionem, Genesis, 1926, p. 151).” (Pe. Gabrielle Roschini, La madre de Dios según la Fe y la Teologia, Tomo I, p. 220, nota 1). Sobre as objeções que algumas vezes são levantadas por conta do uso de Ipse no Quaestiones hebraicae, o Padre Settimio M. Manelli, F.I., em seu artigo “Genesis 3:15 and the Immaculate Corredemptrix”, escreve: “Ele adotou o título Quaestiones hebraicae, para indicar seu ponto de partida nas versões Hexapla, nas tradições rabínicas, nos estudos de Orígenes e de Eusébio… As Questões eram planejadas para abordar com a Bíblia inteira.  Mas depois de concluir o estudo de Gênesis, Jerônimo percebeu que sua pesquisa exigia uma nova tradução do hebraico como fundamento” (J. GRIBOMOT (a cura di), “Le traduzioni, Girolami e Rufino”, in A. DI BERNARDINO (ed.), Patrologia, Vol. III, Torino 1978, 222). São Jerônimo, portanto, depois de suspender o trabalho sobre as Quaestiones hebraicae, iniciou sua grande obra de tradução bíblica, a Vulgata (cf. ibid, 204). Além disso, no que diz respeito à passagem em questão aqui, o santo não levantou questões sobre a tradução do pronome, mas reservou toda a sua atenção para a tradução do verbo, que em grego é “observavit” e não “conteret“.” (Padre Settimio M. Manelli, F.I., “Genesis 3:15 and the Immaculate Corredemptrix”, publicado pela Academy of the Immaculate, “Mary at the Foot of the Cross – V”, p. 313).

[38] Pseudo-Jerônimo, Epistola sexta. Ad amicum aegrotum, de viro perfecto, n. 6, PL 30, 82C·84A. Segundo o Pe. Dominic J. Unger, em seu Patristic Interpretation of the Protoevangelium, p. 25, tal homilia foi escrita entre os anos de 390-400.

[39] Hesíquio de Jerusalém, Oratio IV, De Sancta Maria Deipara; PG 93, 1462C. Para o texto de Hesíquio e sua interpretação, ler Pe. Dominic J. Unger, em seu Patristic Interpretation of the Protoevangelium, p. 42.

[40] São Gregório Magno, In Job. lib I, cap. XXXVI, §53.

[41] São Beda, o Venerável, Expos. in Gen. p. 25.

[42] Em sonho, Perpétua pisa na cabeça do Egípcio, um símbolo de Satanás, o que pode – embora não seja certo – conter algum tipo de alusão à uma versão feminina de Gênesis 3,15 (cf.  Paixão de S. Perpetua e S. Felicitas 3,2; ANF 3, 702).

[43] “Eu já falei da esplêndida Bíblia Hexapla (“seis colunas”) do grande Orígenes. Tinha seis colunas e continha o texto hebraico em caracteres hebraicos, e o mesmo texto em letras gregas, com as versões de Áquila, Theodoto, Symmachus e a versão da Septuaginta na Igreja. O objetivo disto era exibir as discrepâncias entre eles e corrigir o último quando necessário. Agora nada resta desta obra monumental, mas fragmentos. Felizmente, Montfaucon reuniu-os em dois volumes. No vol. I, p.18, acho o grego ante sou teiresei Kephalen, que é Ipsa conteret caput. Ele dá o masculino ”Autos Ipse” também; mas de “Aute Ipsa”, ele diz: “Ita MSS. Quidam, et haec vide tur fuisse, lectio veteris cujusdam interpretis, cujus nomen tace tur, e quem sequitur Vulgatus interpres”. E isso parece ter sido a leitura de algum tradutor antigo, cujo nome não sabemos e a quem segue o tradutor da Vulgata. E, portanto, temos a autoridade de Orígenes (A.D. 186) para Ipsa, suportado por Montfaneon do MSS grego.” (Ipse, ipsa, ipse, ipsa, ipsum, which? [microform], p. 337-338)

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