Sábado, Novembro 16, 2024

Paulo VI sobre a verdade e inerrância da Sagrada Escritura

Por Pe. Brian W. Harrison

Na última edição do Tradição Viva[1], completamos nossa avaliação das intervenções do Papa Paulo VI sobre os aspectos mais filosóficos da interpretação bíblica. Vamos agora continuar nosso estudo sobre os ensinamentos bíblicos deste pontífice, considerando sua abordagem geral aos princípios interpretativos baseados na fé, em vez da razão: esses princípios, isto é, que fluem a partir de duas verdades da revelação divina. A primeira dessas verdades é o dogma Católico de que toda a Escritura é inspirada divinamente, e o segundo é o nexo inseparável entre Sagrada Escritura, a Sagrada Tradição e o Magistério da Igreja. O presente ensaio cobrirá o ensinamento do Papa Paulo na primeira dessas verdades: aquela verdade integral, ou a imunidade de erro, da Escritura que a nossa fé sempre reconheceu como consequência necessária da sua inspiração pelo Espírito Santo. De longe, a contribuição mais importante de Paulo VI nesta área, como veremos, teve lugar durante o Vaticano II, quando ele interveio pessoalmente na redação do artigo 11 da Constituição do Concílio sobre a Revelação Divina, Dei Verbum, pedindo a remoção de uma ambiguidade do texto que pode ser interpretada de modo a colocar restrições indevidas sobre a inerrância das Escrituras.

1. Uma Abordagem Comumente ‘Indireta’ a Inerrância Bíblica


Talvez surpreendentemente, Paulo VI disse muito pouco ex professo sobre a natureza de inspiração e inerrância bíblica nos anos pós-conciliares de seu pontificado. A seriedade com que (como veremos) ele tratou este tema durante a redação da Dei Verbum 11 sugere que essa reticência pós-conciliar não se deveu a qualquer desejo de minimizar a importância de uma questão tão grave; mas, ao que parece, ele tomou como certa a verdade integral da Escritura como o pressuposto essencial de tudo o que ele disse sobre isso, e da maneira em que ele citou e argumentou a partir da Bíblia para lidar com aspectos específicos da verdade Cristã. Isso deve tornar-se mais claro em artigos subsequentes, quando passaremos a considerar a aplicação concreta do Papa dos princípios gerais que estamos discutindo neste momento. Uma outra razão para a escassez de alusões a inspiração e inerrância bíblica como tal nos ensinamentos do Papa pode muito bem ser devido ao fato de que, apesar dos problemas difíceis e contenciosos resultantes de estudos bíblicos modernos, poucos estudiosos Católicos das Escrituras estavam pondo aberta e explicitamente em causa a verdade integral da Escritura.

As palavras acima “aberta e explicitamente” precisam ser enfatizadas, porque o Papa Paulo era muito consciente de que, substancialmente, com efeito, a fé Católica na autoria divina e veracidade das Escrituras foi de fato ameaçada por certas tendências influentes na exegese. Por exemplo, sua Exortação Apostólica Quinqueiam anni (08 de dezembro de 1970), marcando os primeiros cinco anos depois do Concílio, incluiu o lamento de que “Até mesmo a autoridade divina da própria Escritura é questionada por uma aplicação radical do que é comumente chamado de ‘desmitologização’[2]; e outras declarações semelhantes do Papa Paulo poderiam ser invocadas com o mesmo efeito. No entanto, como vimos, este ataque à verdade integral da Escritura normalmente tomou a forma de “reinterpretação”, e não uma negação aberta, às afirmações bíblicas em questão; e foi por essa razão que o Papa foi tão insistente, enfatizando a permanência do significado nas fontes de fé da Igreja[3].

Em resumo, a questão mais urgente enfrentada por Paulo VI não era a questão formal ou abstrata de verdade ou de erro nas Escrituras, mas sim, a da correta interpretação das Escrituras; e este é provavelmente o motivo, quando se tratava de reprovar erros sobre a Bíblia, que o Papa dedicou, de longe, a maior parte da sua atenção às “distorções hermenêuticas”, “desmitologização”, e assim por diante. No entanto, o Papa, em uma ocasião, se referiu diretamente à isenção da Bíblia de erros e, de fato, usou essa palavra que foi sancionada por séculos de uso no vocabulário teológico padrão. Foi dito várias vezes nas últimas décadas que, ao decidir não falar da “inerrância” da Sagrada Escritura, o Concílio Vaticano II, com efeito, tornou este termo obsoleto. Esta não foi, evidentemente, a compreensão de Paulo VI sobre o assunto, pois na Alocução Pública da quarta-feira, em  01 de julho de 1970, dedicado à Sagrada Escritura, e em particular, ao ensino do Concílio sobre este tema, afirmou: “Para a Igreja, a Sagrada Escritura é a Palavra de Deus, inspirada por Ele e, portanto, garantida pela inerrância divina em seu próprio significado autêntico[4].

Ao notar acima que Paulo VI disse muito pouco sobre a inspiração e verdade das Escrituras como tal, nós adicionamos “nos anos pós-conciliares de seu pontificado.” Isto porque, durante o próprio Concílio, o Papa Paulo fez uma intervenção pessoal importante sobre esta matéria, e em duas outras questões relativas à Sagrada Escritura. Mesmo não sendo o nosso estudo, em sua maior parte, um exame da própria Constituição Dei Verbum[5], que se enquadra no âmbito da nossa presente investigação considerar os textos particulares em questão, precisamente porque a sua redação final no tratamento de certos pontos de crucial importância foi devido a intervenções pessoais por parte do Papa. Sua história textual deixa claro que, para além de sua aprovação e promulgação de todos os documentos do Vaticano II, Paulo VI ocupou-se especialmente destes pontos em particular[6].

Vale a pena notar, antes de tudo, a relativa raridade dessas intervenções diretas do Papa na redação dos esquemas conciliares. Fiel à sua crença constante e firme na necessidade de diálogo, tanto no interior da própria Igreja quanto com as pessoas de outras religiões, o Papa Paulo estava muito consciente do valor do livre debate entre os Padres Conciliares, e foi muito prudente e cauteloso no exercício de sua prerrogativa suprema, a fim de intervir diretamente na redação dos textos conciliares. Às vezes, na verdade, ele foi criticado por não intervir quando alguns padres acharam que ele o deveria. Um grupo considerável de padres, por exemplo, ficaram desapontados com a decisão do Papa de não para anular a decisão da Presidência do Concílio de adiar a votação do plano sobre a liberdade religiosa por mais um ano, até a quarta sessão. Alguns também ficaram desapontados com sua recusa em introduzir algumas alterações de última hora ao esquema sobre o ecumenismo, que teria alterado significativamente seu conteúdo[7].

Esta abordagem cautelosa geralmente serve para sublinhar a importância que o Papa Paulo deu a essas questões sobre as quais ele sentiu a necessidade de intervir. Sua contribuição para o texto final do artigo 11 da Constituição sobre a Revelação Divina, Dei Verbum, estava relacionada precisamente àquela imunidade do erro que é consequência da inspiração divina das Escrituras. Neste ensaio, procuraremos entender esta intervenção no seu contexto, considerando a história textual da sentença que declara a doutrina da Igreja sobre este assunto, tanto antes como depois da intervenção do Papa. Então, no capítulo seguinte vamos lidar com questões decorrentes da sua tradução e interpretação concreta.

2. A História Textual da Dei Verbum 11 antes da Intervenção de Paulo VI

(a) Os primeiros rascunhos: Esquemas I ao III


Para contextualizar a intervenção de Paulo VI, será útil entender como o desdobramento das discussões conciliares sobre os efeitos da inspiração divina chegou ao ponto de exigir uma intervenção papal. A verdade é que, desde o início da discussão, divergências sérias de opinião entre os padres sobre a extensão da inerrância bíblica vieram à tona. O esquema original apresentado aos padres conciliares continha uma reafirmação enfática da doutrina da Providentissimus Deus, Spiritus Paraclitus e Divino Afflante Spiritu. Esta afirmava:

A partir desta extensão da inspiração divina para tudo [na Escritura], segue-se direta e necessariamente que toda a Bíblia é absolutamente imune de erro. Somos ensinados pela fé antiga e constante da Igreja que está absolutamente proibido admitir que um escritor sagrado tenha errado; pela mesma necessidade que torna impossível para Deus, a Verdade suprema, ser o autor de qualquer erro que seja, a inspiração divina, por sua própria natureza, necessariamente previne e exclui qualquer erro em qualquer assunto que seja, religioso ou profano[8].

Como observamos em um artigo anterior[9], de todo este esquema provou ser controverso. Agudas diferenças de opinião foram registradas sobre a passagem acima em relação a inspiração e os seus efeitos, assim como sobre outras partes específicas do esquema. Uma breve revisão dos pontos de vista representativos diferentes servirá para destacar a medida em que os padres conciliares se encontravam em desacordo sobre essa questão complexa.

Os que defendiam a passagem sublinharam a sua origem no ensino das encíclicas papais. O relator do esquema original, Mons. Salvatore Garofalo, apresentou-o aos padres com estas observações: “O conteúdo do Capítulo II sobre a inspiração divina, inerrância e composição literária da Sagrada Escritura é tirado das declarações mais recentes do Magistério Pontifício e adaptado para os estudos modernos. Constitui-se, assim, uma declaração de doutrina segura e fecunda.”[10]

Entre os Padres do norte da Europa, no entanto, uma atitude muito diferente prevaleceu. O Cardeal Frings de Colônia afirmou que a passagem acima em relação inspiração e inerrância “parece demasiado rígida, demasiado restritiva da liberdade científica, e aproximando-se da doutrina da inspiração verbal.”[11] O Cardeal Franz König de Viena achava que, à luz dos problemas enfrentados pelos exegetas modernos nesta matéria, o esquema “parece dizer mais do que aquilo que deve ser definido pela autoridade suprema do Concílio.” Ele também pensava que o esquema negligenciava o fato de que, mesmo dentro da categoria geral dos escritos verdadeiramente históricos, existia uma variedade de formas literárias; e que era uma tentativa de resolver prematuramente a questão ainda contestada da inerrância da “obiter dicta” na Escritura.[12]

O cardeal Augustinho Bea, S.J., que foi capaz de falar com mais autoridade do que provavelmente qualquer outro padre conciliar sobre os assuntos bíblicos, também foi crítico dessa passagem, embora por razões um pouco diferentes. Ele não questionou a validade intrínseca do que foi dito, tanto como a sua adequação para o atual Concílio, expressando sua opinião de que no esquema “muitas coisas que são tratadas são relevantes somente para as escolas teológicas e por isso não podem ser definidas pelo Concílio – especialmente a explicação dada aqui da doutrina da inspiração, que pode ser encontrada em qualquer bom tratado teológico sobre a inspiração.”[13] Em geral, o Cardeal Bea achou a linguagem do esquema demasiado defensiva e negativa:

Apenas uma vez se diz algo que pode ser tomado como uma palavra de louvor para as realizações dos exegetas modernos. Mas essas realizações, como Pio XII de santa memória disse na Encíclica Divino Afflante Spiritu, têm sido imensas durante os últimos cinquenta anos, como autores não-católicos também reconheceram. Este esquema, no entanto, leva um certo tom de suspeita, um certo medo de erros, etc., embora sem realmente se confrontar com os problemas envolvidos.[14]

Eventualmente, quando a questão de saber se continuar com este esquema inicial como uma base para a discussão foi levantada, esta foi rejeitada por não menos de 62% dos votos válidos emitidos pelos padres.[15] À luz dessas e de outras críticas similares, a linguagem enfática e apologética do projeto original foi muito moderada e abreviada na primeira revisão do texto. Essa versão revista (Esquema II) agora simplesmente declarava que, em consequência de toda a inspiração divina da Bíblia, esta é “completamente imune de todo erro.”[16]

Como pode ser visto na comparação deste com o projeto original, a omissão mais significativa é aquela da cláusula de garantia, que tinha afirmado explicitamente que a inerrância das Escrituras se estende a “qualquer objeto que seja, religioso ou profano.” Essa questão agora foi considerada apenas em nota de rodapé, que também foi encurtada no novo projeto. As referências a uma série de declarações magisteriais anteriores sobre a inspiração bíblica e inerrância foram excluídas da nota de rodapé,[17] deixando apenas a passagem do Divino afflante Spiritu (EB 539), na qual Pio XII tinha resumido e reafirmado o ensino da Providentissimus Deus sobre a imunidade de erro absoluta da Bíblia.[18]

Quando procuraram as reações dos Padres a esta nova versão, muitos deles sentiram que a redução tinha sido excessiva, e que algo mais explícito deveria ser restaurado para deixar claro que essa imunidade do erro não se restringe a afirmações “religiosas” (questões de “fé e moral”). Assim, no projeto subsequente (Esquema III), encontramos no rodapé que, assim como a referência ao Divino afflante Spiritu (EB 539), todo o parágrafo EB 124 de Providentissimus Deus está agora listado na íntegra e em pleno direito.[19] Isso restaurou substancialmente o ponto doutrinário acima sobre qual Esquema II tinha silenciado, pois no período central do EB 124, falando das dificuldades decorrentes de erros aparentes na Escritura, Leão XIII afirma:

Igualmente intolerável é a teoria daqueles que, a fim de aliviar-se a si mesmos destas dificuldades, não hesitam em afirmar que a inspiração divina refere-se a nada mais do que questões de fé e moral. Esse erro surge da falsa opinião que, quando se trata da verdade das afirmações bíblicas, deve-se não tanto investigar o que Deus disse, mas sim, a razão pela qual Ele disse isso.[20]

Uma vez que a dicotomia entre “questões de fé e moral” e outros assuntos seria praticamente a mesma que entre as questões “religiosas” e “profanas”, a referência a essa passagem inserida no rodapé efetivamente restaurou ao documento, de uma forma menos severa no tom e com uma ênfase menos apologética, o ensino do esquema original. O outro ensinamento principal sobre a inerrância bíblica no EB 124 é aquele citado por Pio XII no EB 539 – a referência que havia sido incluída na nota de rodapé em todos os três rascunhos até este ponto, e permaneceu no texto que foi finalmente aprovado. Como observamos acima, esse ensinamento constitui em si mesmo uma forte declaração da inspiração e inerrância plenas das Escrituras:

É absolutamente errado, seja limitar inspiração a somente certas partes da Sagrada Escritura, seja admitir que o próprio escritor sagrado errou… na verdade, longe de ser compatível com qualquer tipo de erro, a inspiração divina por sua própria natureza, não só exclui todos os erros, mas necessariamente os impede e os exclui pela mesma necessidade que torna impossível para Deus, a Verdade suprema, ser o autor de qualquer erro que seja.[21]

Enquanto a nota de rodapé do Esquema III assim restaurou a maior ênfase aos aspectos tradicionais da doutrina da inspiração bíblica e inerrância, o texto principal deste terceiro rascunho introduziu a terminologia que teria sido menos familiar para alguns padres conciliares: a noção de que a inerrância é garantida apenas para o que é “afirmado” (ou “declarado,” ou “ensinado”) pelos escritores sagrados, como distinto do que pode ser meramente “expresso”, “dito”, ou “escrito” por eles. O novo texto é lido da seguinte forma: “Portanto, uma vez que tudo que é afirmado pelos autores inspirados, ou escritores sagrados, deve ser considerado como afirmado pelo Espírito Santo, devemos, portanto, reconhecer que os livros da Escritura – inteiros e com todas as suas partes – ensinam a verdade sem qualquer erro”.[22] Esta alteração ao texto foi baseada em uma submissão do Cardeal Raúl Silva Henríquez, comentando sobre a expressão breve e simples do Esquema II “completamente imune de todo o erro” (ab omni prorsus errore immune), que tinha evitado qualquer verbo especificando a atividade dos autores bíblicos. Henríquez disse:

A minha proposta é substituir as palavras “portanto… segue-se” por “portanto, a Escritura divinamente inspirada deve ser dita não ensinar nenhum erro.” Razão: a doutrina da inerrância bíblica é melhor expressa por falar do critério formal de ensino, uma vez que está de acordo com esse critério que nenhum erro pode ser encontrado. Em outro sentido, isto é, o sentido material, é possível que expressões sejam usadas pelo escritor sagrado que são erradas em si, mas que, no entanto, ele não deseja ensinar.[23]

A Comissão Teológica, na apresentação do Esquema III para os Padres conciliares, afirmou que esta sugestão havia sido incorporada “substancialmente”,[24] o que implicava que a razão do Cardeal chileno para usar o verbo “ensinar” (docere) tinha sido aceita. A pergunta que poderia ser feita, no entanto, era o que exatamente se entende pelo verbo “ser usadas” (adhiberi) em sua apresentação. Quando Henríquez se referiu à distinção “formal/material”, parece que o que ele tinha em mente era a necessidade de evitar uma leitura excessivamente literalista ou ‘fundamentalista’ da Escritura. “Materialmente”, por exemplo, o livro de Eclesiastes começa (1: 1) com uma identificação do autor como “o pregador, filho de Davi, rei em Jerusalém” (i.e., Salomão) e o Livro de Judite começa retratando Nabucodonosor como rei da Assíria, que vive em Nínive (1: 1), quando ele era de fato o rei de Babilônia – e num momento em que Nínive já havia sido destruída (em 612 aC) por seu pai Nabopolassar. No entanto, tendo em conta as antigas convenções literárias do Oriente Próximo, os estudiosos modernos concordam que os autores não estavam formalmente ensinando o que as suas palavras “materialmente” expressam: eles estavam “usando” esses nomes como símbolos ou arquétipos. Da mesma forma, as proposições individuais dentro de parábolas ou outras passagens em que o autor sagrado usa um gênero literário imaginativa não são afirmados como verdadeira isoladamente pelo próprio autor; essas proposições só são usadas “materialmente” a fim de ensinar alguma verdade que emerge apenas da história como um todo. Parece ser nesse sentido que devemos tomar a utilização pelo Concílio dos verbos docere e asserere, que a partir deste ponto em diante da redação foram deixados intactos e são parte do texto final.

(b) Esquema IV: A Expressão “veritatem salutarem


Quando a versão seguinte do documento (Esquema IV) foi distribuída no Concílio, incluiu-se várias alterações posteriores à passagem que estamos discutindo. Uma delas, por sua aparente ambiguidade, ainda deixou um número significativo de padres preocupados que o documento pudesse ser tomado como a tentativa de limitar a inerrância das Escrituras de formas que já haviam sido condenadas, com efeito, pelos ensinamentos acima mencionados dos papas anteriores. A principal mudança desta vez foi a introdução de uma linguagem apontando para os fins de inspiração bíblica. Uma apresentação do Cardeal Albert Meyer de Chicago tinha dado um importante impulso a essa abordagem. Ele sugeriu que o Concílio não deveria limitar a discussão da inspiração divina ao seu efeito ‘negativo” de inerrância, mas que também deveria apresentar o seu propósito salvífico positivo. Isso poderia ser feito, disse ele, adicionando-se ao texto as palavras de São Paulo a Timóteo sobre o valor e utilidade da Escritura (II Tim. 3: 16-17). Além disso, disse o Cardeal Meyer, “As verdades específicas das Escrituras serão entendidas corretamente em consistir não tanto nas verdades desconectados das diferentes proposições, e sim em sua relação com a revelação central do Coração de Deus.”[25]

Como resultado, a passagem de II Timóteo foi incluída no Esquema IV. Esta adição despertou objeções, mas a adição da palavra “salvífica” (salutarem) para qualificar “verdade” (veritatem), provou ser controverso, como veremos em breve. Além disso, a palavra “qualquer” (ullo) foi omitida da frase “sem qualquer erro” (sine ullo errore) no rascunho anterior.[26] Essas alterações, o relator explicou aos padres, tinham ambas sido introduzidas “a fim de expressar o efeito da inspiração de uma forma positiva”, e também “para que o objeto da inerrância pudesse ser claramente circunscrito.”[27] Como parte dessa expressão mais “positiva”, a palavra “inerrância” (inerrantia) foi substituída por “verdade” (veritate) no título do artigo 11.[28]  As referências do rodapé, no entanto, eram idênticas aos do Esquema III. Alguns padres tinham pedido que veritatem fosse substituída por revelationem, uma vez que eram conscientes de que o Vaticano I tinha falado das Escrituras como contendo “revelação sem erro.”[29]

Tais padres, continuou o relato, afirmam que existe um paralelo “entre o objeto da infalibilidade do Magistério e que da inerrância da Bíblia.”[30] Agora, uma vez que o objeto da infalibilidade magisterial é precisamente a área de “fé e moral” e nada mais, essa tese de um “paralelo” pareceria restringir a inerrância das Escrituras a essa mesma área, em oposição ao ensino insistente de todas as encíclicas papais sobre a Escritura, incluindo o parágrafo EB 124 da Providentissimus Deus que foi agora citada na nota de rodapé para esta parte do esquema. Entretanto, o relator não comentou mais sobre esta questão, e passou a informar aos padres que a Comissão considerou oportuno qualificar “verdade” (veritatem) inserindo a palavra “salvífica” (salutarem), acrescentando que “por esta palavra se compreende também [i.e., bem como questões de “fé e moral” no sentido mais restrito] os fatos que estão ligadas à história da salvação na Escritura.”[31]

Muitos padres, no entanto, acharam faltava claridade nesta explicação. Alguns, evidentemente, se perguntaram se a Comissão Teológica queria inferir que alguns elementos de factuais relatados na Escritura não estão “ligados à história da salvação” de qualquer forma, e assim poderiam conter erros. A doutrina integral das encíclicas papais, como vimos, é bastante direta: elas ensinam que a inerrância se estende a tudo nos textos originais da Escritura simplesmente em virtude de sua autoria divina – e, portanto, independentemente dos seus temas ou assuntos muito diversificados. As preocupações desses padres que estavam insatisfeitos com a nova redação no Esquema IV foram talvez melhor expressas pelo Arcebispo Paul Philippe, um consultor do Santo Ofício:

Se é dito que os livros sagrados ensinam a “verdade salvífica… sem erro”, isso aparece restringir a inerrância a questões de fé e moral; tanto mais que, de acordo com o relator mesmo, esta fórmula foi escolhida de modo a satisfazer os pedidos daqueles padres que estavam pedindo que os efeitos da inspiração fossem expressos de forma positiva, e que o objeto de inerrância fosse claramente circunscrito. O relator explica a mente da Comissão dizendo que pela palavra salutarem também nós devemos incluir os fatos que na Escritura estão ligadas à história da salvação. Mas com essa explicação, tal circunscrição do objeto da inerrância é inadmissível, pois parece-me que tais expressões não podem ser conciliadas com a doutrina firme do Magistério da Igreja. Portanto, não deve ser dito que os livros sagrados “ensinam” verdade salvífica sem erro, porque isso insinua uma distinção entre as afirmações bíblicas em si, como se algumas delas ensinassem sem erro verdades relativas à salvação, enquanto outras não teriam tal conteúdo e assim, não seriam necessariamente imunes de erro… Eu solicito que restauremos a expressão “sem qualquer erro”, como no rascunho anterior, uma vez que os documentos do Magistério… sempre expressam-se de tal forma a excluir completamente das sagradas Escrituras erros todos os tipos (cf. EB 124, 452, 538, 539, 560, 564).[32]

A Comissão Teológica respondeu a esta e outras objeções semelhantes com o seguinte forte negação de que a inserção de salutarem implicou o tipo de restrição pouco ortodoxa sobre a inerrância que Philippe e os outros estavam preocupados:

Pelo termo “salvífica” (salutarem) não se está de modo algum sugerido-se que a Sagrada Escritura não é integralmente inspirado e a Palavra de Deus: cf. o que é dito no texto em linhas 16-21, seguindo a Encíclica Providentissimus na EB 127: “O próprio Deus, quando ele falou por meio dos autores sagrados, não poderia ter proferido qualquer coisa que se afastasse da verdade”. Não pode acontecer que “a Palavra da Verdade, o evangelho da vossa salvação” (Ef. 1: 13, cf. 2 Cor. 4: 2, etc.) não ensine a “verdade salvadora”. A expressão salutaris não traz qualquer limitação material à verdade das Escrituras, em vez disso, ela indica especificação formal da Escritura, cuja natureza deve ser mantida em mente ao decidir em que sentido todas essas coisas que são afirmadas nas Escrituras são verdadeiras – não apenas questões de fé e moral e fatos ligada à história da salvação (como foi dito na Relatio, p. 25, letra F). Por esta razão, a Comissão decidiu que a expressão deve ser mantida, enquanto se completa nota 5 da seguinte maneira:…[33]

Essa segunda explicação oficial do Esquema IV e palavra adicional salutarem certamente mostrou sua continuidade com a doutrina das encíclicas papais de forma mais clara do que a relatio anterior – e até mesmo corrigiu essa última, como podemos ver na cláusula parentética acima. E as notas de rodapé adicionais mencionadas aqui (todas as quais permaneceram no texto finalmente promulgado) fazem os mesmos pontos sublinhados pelo relator nesta nova explicação e defesa da proposta de alteração: 1) A Sagrada Escritura é dada por Deus para nos ensinar o caminho da salvação, não para nos instruir em detalhes científicos técnicos que são irrelevantes para o aquele propósito (referência a Santo Agostinho); 2), no entanto, alguns tratamentos de assuntos científicos podem, efetivamente, ser relevantes para a salvação e por isso pode ser o objeto de inspiração divina (referência a São Tomás de Aquino), e 3) todas as coisas afirmadas pelos escritores sagrados são verdadeiras, não apenas aqueles dentro de uma gama restrita de temas (referências ao EB 127 e outras passagens recém-citadas da Providentissimus).[34]

Apesar dessas novas garantias por parte da Comissão, no entanto, alguns padres ainda sentiam que a adição de salutarem estava aberta a interpretações abusivas, e assim abordagens foram feitas ao Papa Paulo durante a semana que se seguiu o 08 de outubro de 1965, pedindo que ele interviesse para que a controversa palavra salutarem fosse retirada do texto. Outros grupos e indivíduos também deram a conhecer seus pontos de vista contrastantes para o Pontífice, que assim foi capaz de ouvir todos os lados da questão.[35]

3. As Intervenções Papais e seus Resultados

(a) A Carta de 18 de Outubro de 1965


A resposta ponderada do Papa foi dada em uma carta de 18 de Outubro da Secretária de Estado, Cardeal Amleto Cicognani, ao Cardeal Alfredo Ottaviani, Presidente da Comissão Teológica. Esta carta continha intervenções papais em dois outros pontos acerca da doutrina do esquema sobre a Sagrada Escritura, e vamos voltar a essas nos capítulos seguintes.

O ponto atualmente em discussão – a palavra salutarem no artigo 11 – foi o segundo desses três pontos a ser mencionado na carta; e a primeira observação a ser feita é que Paulo VI considerou essa uma questão particularmente grave. Todos os três pontos, de fato, eram da “maior importância”, uma vez que envolvia a responsabilidade do Papa “diante de toda a Igreja e diante do julgamento de sua própria consciência”, mesmo assim, ele não considerava que suas próprias modificações sugeridas envolvessem qualquer “mudança profunda” do texto existente.[36] Assim, quando o Papa, através de Cicognani, faz saber que esta noção de veritas salutaris, usada para definir o objeto da inerrância bíblica, o deixa “mais profundamente hesitante” (ou “perplexo”) do que o primeiro ponto que ele comentou,[37] podemos justamente concluir que ele estava definitivamente insatisfeito com o texto tal como se apresentava nessa fase.

A carta continua a dar três razões pelas quais o Papa deseja ver salutarem omitida do texto. Em primeiro lugar, esta ideia do alcance da inerrância “ainda não é considerada ensinamento comum” no Magistério bíblico e teológico da Igreja. Agora, a expressão “ensinamento comum”, é claro, tem um significado técnico teológico. Não significa simplesmente uma opinião generalizada, mas uma que é geralmente aceita (isto é, com apenas algumas exceções) por teólogos, mesmo que não seja sustentada pelo Magistério. Em segundo lugar, o Papa está preocupado que esta modificação no texto não tivesse sido suficientemente discutida pelos padres conciliares.

Em terceiro lugar – e, ao que parece, mais importante – parece ao Papa, que diz ter sido aconselhado sobre este assunto por “autoridade muito competente”, que esta expressão é provável que seja uma fonte de controvérsia na sua interpretação. Portanto, continua a carta, parece “prematuro” para o Concílio declarar-se, nesta fase, sobre “uma questão tão duvidosa”. De fato, as ramificações desta palavra salutaris parecem tão incertas que o Papa sente que a sua utilização seria perigosa: “no momento”, diz a carta, “os padres podem talvez não serem capazes de formar um juízo adequado quanto a gravidade deste assunto, nem quanto às interpretações abusivas que possam surgir a partir dele.”[38]

Que conclusões podemos tirar dessa intervenção por parte de Paulo VI em uma das declarações doutrinais-chave do Concílio? Primeiro, que não há razões para supor que ele considerava a noção de veritas salutaris, como o objeto da inerrância bíblica, por ser pouco ortodoxa ou errada em si. Entendida de acordo com a explicação da Comissão daquela locução – ou seja, envolvendo uma especificação formal da verdade bíblica, não uma limitação de material – a expressão não recebe nenhuma censura do Papa. Na verdade, dizendo que “não é ainda o ensinamento comum”, ele parece sugerir que, no futuro, ela talvez possa chegar a esse estado; e, de fato, esta parte da carta conclui com a observação de que a omissão da palavra salutarem nesta fase não descarta um estudo mais aprofundado e a clarificação da questão no futuro. Segundo, devemos notar que a sugestão do Papa foi simplesmente omitir a palavra controversa, não substituí-la por alguma outra expressão. Isso nos mostra qual era própria convicção do Papa: a sua preferência, em relação a inerrância bíblica, foi para uma declaração que seria substancialmente a do Esquema III, em que a Bíblia foi dita simplesmente como “ensinar a verdade, sem… erro.”[39]

A pedido do Sumo Pontífice, portanto, a Comissão Teológica reuniu-se novamente para discutir essa e outras alterações sugeridas pelo Cardeal Secretário de Estado na carta de 18 de Outubro. Depois de ouvir as observações do Papa sobre o problema de salutarem, 17 dos 28 membros da Comissão votaram no terceiro certame para seguir o seu conselho e simplesmente omitir a palavra sem substituí-la por qualquer outra.[40]

(b) A Redação final: o Texto principal


Esta aceitação incondicional do pedido do Papa Paulo (não era uma ordem), apesar de receber o apoio de uma maioria substancial da Comissão Teológica, no entanto, falhou por apenas dois votos em atingir a maioria de dois terços exigida pelas regras. Por isso, foi sugerido um acordo. Uma fórmula equivalente foi apresentada, que já havia sido proposta por 73 padres conciliares, e que não estava tão aberta a interpretações falsas:veritatem salutarem, dizia-se, deveria ser substituída por veritatem, quam Deus nostræ salutis causa Litteris Sacris consignari voluit. (Discutiremos a tradução exata desta substituição em breve.) Essa conseguiu ganhar dois terços dos votos necessários (19 de 28), e assim foi aceita e posteriormente aprovada pelos Padres Conciliares e pelo Supremo Pontifíce.[41] Em relação aos dois outros pontos debatidos no artigo 11, a Comissão decidiu manter a redação do Esquema IV. Como observamos acima,[42] nenhum desses pontos recebeu qualquer comentário do Papa na carta de 18 de Outubro.

O primeiro foi a palavra docere, que a Comissão decidiu manter, em vez de substituí-la por exhibere (“presente” ou “previsto”), que havia sido proposta anteriormente como uma alternativa. No entanto, a razão dada para reter esta palavra é importante. Como vimos,[43] sua adoção inicial, por sugestão do cardeal Silva Henríquez, levou a críticas de alguns padres, como Dom Philippe, sob o fundamento de que “insinua uma distinção entre as afirmações bíblicas em si”[44], de tal forma a implicar restrições indevidas à imunidade de erro da Bíblia. O relatio final, no entanto, entregue após esta reunião da Comissão Teológica que estamos discutindo, deixou claro que tal distinção estava sendo implícita, e que, de fato, uma equação estava sendo feita entre o que a Escritura “ensina” e que ela “declara” (ou “afirma”). Aos padres foi dito: “A palavra ensinar, que se refere a essas coisas que são verdadeiramente afirmadas, deve ser mantida.”[45]

A segunda decisão contestada que ficou inalterada no texto final foi a omissão de ullo da expressão sine ullo errore. Essa omissão não foi explicada no relatio do Esquema IV, mas esta foi sugerida por Abbot Butler, razão de que a palavra ullo era “muito ambígua.”[46] Outros, notadamente os Bispos das Conferências Episcopais de língua alemã, queriam ver todas as três palavras omitidas, não apenas ullo. O Cardeal König, seu porta-voz, afirmou francamente que os estudos orientais modernos, assim como nos ajuda a compreender os gêneros literários da Bíblia, “também demonstram que as referências da Bíblia para questões de história e ciências naturais, por vezes, ficam aquém da verdade.”[47] O Cardeal deu três exemplos do que ele tinha em mente, acrescentando que outros exemplos de geografia e cronologia defeituosos poderiam ser apresentados.[48] Ele argumentou que tais alegadas deficiências eram evidência da “condescendência” divina (já mencionada pelo Esquema[49]) pela qual Deus se dignou a falar dentro dos limites da fraqueza humana e linguagem humana. Os Bispos de língua alemã, disse König, portanto, recomendavam que se desse ainda mais ênfase no texto, adicionando ao primeiro parágrafo do artigo 11 (que diz que Deus, na composição dos livros sagrados, usou homens com “seus próprios poderes e habilidades”), as palavras “não obstante suas limitações.”[50] Esses Padres queriam eliminar qualquer referência a inerrância da Bíblia, (i.e., ao seu ser “sem erro”), deixando o texto falar apenas “positivamente” da verdade ensinada pela Escritura.[51] De acordo com seu porta-voz, eles acreditavam que “as dificuldades são mais bem resolvidos e a autoridade da Sagrada Escritura é melhor defendida”[52] admitindo-se por essa forma as deficiências humanas no texto bíblico.

Por outro lado, 151 padres, de acordo com o relatio final, tinham solicitado uma alteração em um sentido bem oposto: eles queriam que ullo fosse restaurada, de modo a enfatizar a imunidade absoluta de erro da Bíblia. À Comissão Teológica tinham sido, portanto, apresentados pedidos abertamente contrastantes por parte dos diferentes grupos de padres. Sua resposta foi manter a expressão “sem erro” (sine errore), mas sem restaurar ullo. Uma vez que nenhum meio termo é logicamente possível entre a presença e a ausência de erro, isso foi suficiente para sustentar a doutrina tradicional. O relator salientou brevemente que a expressão sine errore, “que é incondicional, é suficiente.”[53]

(c) A Redação Final: Referências de Rodapé Adicionais


Finalmente, para mostrar mais claramente a continuidade deste ensinamento com a tradição, não menos do que seis referências a mais foram adicionadas a nota 5, que vem no final da frase afirmando a imunidade de erro da Bíblia. Estas novas referências foram acordadas pela Comissão mesmo antes da intervenção papal final, com o propósito de fornecer uma interpretação oficial da expressão veritatem salutarem, de modo a esclarecer as dúvidas levantadas pelos padres que se opuseram a mesma. Elas são, naturalmente, igualmente relevantes para o texto final, que foi alterado com o objetivo de expressar a mesma ideia de veritatem salutarem (i.e., o propósito salvífico de toda a Escritura), mas na forma de palavras menos abertas a interpretações abusivas.

A primeira nova referência é uma citação da obra de Santo Agostinho sobre O Sentido Literal do Gênesis (De Genesi ad litteram) que critica aqueles que tentam extrair informação científica mais detalhada das Escrituras do que os seus autores pretendiam nos dar: por exemplo, ao tentar deduzir do relato da criação em Gênesis se os céus envolvem completamente a terra como uma esfera, ou simplesmente a cobrem de um lado como uma tigela hemisférica invertida.[54] O ponto levantado aqui pelo Doutor do século IV é o propósito salvífico da toda a Escritura: ele quer nos lembrar que no que diz respeito a disputas sobre as hipóteses puramente técnicas elaborados por aqueles que investigam os segredos da natureza, “o Espírito de Deus que falou através [dos escritores inspirados] não deseja ensinar aos homens tais assuntos – isto é, a estrutura íntima das coisas visíveis – uma vez que eles não são rentáveis para a salvação”[55] Outra citação de Agostinho (Epistola 82,3) é adicionada à nota aqui, reforçando o ponto de que a Escritura é livre de erro no que quer que os sagrados escritores afirmem. Neste ponto clássico para a doutrina da inerrância, o Bispo de Hipona afirma em uma carta ao São Jeronimo:

Confesso para vossa caridade que eu aprendi a encarar tais livros da Escritura agora chamados de canônicos – e só a eles – com tal reverência e honra que eu acredito firmemente que nenhum dos seus autores errou ao escrever qualquer coisa. E se eu encontrar alguma coisa nesses Escritos que me incomode, porque parece contrária à verdade, colocarei sem hesitar a culpa em outro lugar: talvez a cópia seja inexata com a original; ou o tradutor não pôde traduzir a passagem fielmente; ou talvez eu só não a entendo.[56]

A questão que pode agora surgir, no entanto, sobre se (e se assim for, por que) há qualquer lugar que seja em todas as Escrituras para afirmações ‘profanas’ sobre história ou ciência, dado que o objetivo desses livros é conduzir-nos para a salvação, não para nos instruir no conhecimento mundano. A fim de esclarecer este ponto, uma citação de Santo Tomás de Aquino é adicionada à nota de rodapé. Nesta passagem de De Veritate, a questão considerada é “se as conclusões científicas podem ser o objeto de inspiração profética.”[57] Santo Tomás responde que, na verdade, elas podem. Seguindo Agostinho, ele reconhece que o carisma da profecia (sob o qual ele inclui a inspiração bíblica) é dado apenas para o bem da Igreja, isto é, para a salvação das almas. No entanto, o fato é que “muitas coisas comprovadas pela ciência podem ser úteis” para a salvação – ou seja, “para a construção de nossa fé ou para a nossa formação moral.” Ele especifica, a título de exemplo, “esses recursos na natureza que induzem-nos a contemplar com admiração a sabedoria divina e poder. Assim, encontramos essas coisas mencionadas na Sagrada Escritura.”[58]

Em seguida na lista de novas referências adicionadas a nota 5 vem uma citação do Decreto do Concílio de Trento De canonicis Scripturis que também destaca o propósito salvífico das Escrituras.[59] Finalmente, a nota expandida inclui outras referências a Providentissimus Deus. Assim como a passagem EB 124 daquela encíclica, que já havia sido introduzida em uma versão anterior do esquema, agora temos a EB 121 e a EB 126-127.

O primeiro desses parágrafos adicionais da encíclica de Leão XIII é dedicado ao tema da Escritura em relação às ciências naturais. Além de citar a admoestação de Santo Agostinho (no De Genesi ad litteram) para aqueles que procuram arrancar da Escritura informações mais detalhadas sobre o cosmo físico do que os seus autores humanos e divino pretendiam nos dar,[60] a EB 121 também cita outra parte do mesmo trabalho em que Agostinho define lucidamente os princípios hermenêuticos gerais para o reconhecimento da harmonia essencial entre ciência Escritura.[61] Essas passagens referidas na nota tornam mais clara do que nunca a intenção do Concílio de defender os princípios cuidadosamente equilibrados sobre a ciência e a Escritura que datam desde a sabedoria de Santo Agostinho: por um lado, os Escritos Sagrados não podem ser considerados como abertos ao erro quando eles fazem afirmações sobre a criação física; por outro lado, não devemos esperar encontrar neles informações detalhadas ou técnicas sobre o assunto, uma vez que a Bíblia não foi concebido como um livro científico.

O final da passagem recém-citada da Providentissimus (EB 126-127) reforça a afirmação feita pela Comissão Teológica quando ela tinha defendido anteriormente a adição da palavra salutarem, ou seja, que essa qualificação não implicava em qualquer “limitação material da verdade da Escritura”. Na EB 126, o Papa Leão XIII salientou, citando Sto. Agostinho e São Gregório o Grande, que desde que os escritores sagrados escreveram apenas o que o Espírito Santo queria que eles escrevessem, tudo o que eles afirmam O tem como seu autor e é, portanto, necessariamente verdade.[62] Finalmente, na EB 127, Leão XIII reforça a rejeição de qualquer “limitação material” da verdade bíblica pelo elogio do procedimento exegético dos grandes Padres e Doutores, que “trabalharam com não menos sutileza do que devoção para harmonizar e conciliar essas muitas passagens que podem parecer envolver alguma contradição ou discrepância.”[63]

4. Leitura da DV 11 à Luz da Intervenção Papal


Tendo examinado a redação do texto original dos ensinamentos da Dei Verbum sobre a inerrância bíblica, à luz da intervenção pessoal de Paulo VI e os seus resultados, concluiremos este capítulo com algumas observações sobre a luz derramada pela intervenção sobre a interpretação desse ponto do Constituição Dogmática. É claramente fora do escopo do nosso estudo tentar um comentário completo sobre a doutrina conciliar a respeito da imunidade de erro da Bíblia, tal como estabelecido na sentença no artigo 11, que estamos estudando neste capítulo. A despeito de qualquer outra coisa, esse ponto não pode ser tratado adequadamente de forma isolada, uma vez que está evidentemente ligado de forma indissociável com o artigo 12 (lidando com princípios hermenêuticos, acima de tudo, a determinação de gêneros literários), e do artigo 13 (sobre a divina “condescendência” em se dignar a falar através de instrumentos humanos limitados). Aqui vamos nos contentar em apontar como, na nossa opinião, o papel de Paulo VI na sua formulação deve ser levado em consideração em qualquer exposição adequada desta frase no artigo 11. Uma vez que a luz derramada sobre esse ponto pela intervenção papal pode ser diminuída se a tradução do texto é inadequada, algumas observações também serão oferecidas sobre como isso pode ser processado de forma mais precisa em inglês.

A Importância Hermenêutica da Intervenção


Parece haver três principais fatores que devem ser considerados na avaliação da importância hermenêutica da intervenção do Papa Paulo na história textual da Dei Verbum 11. Em primeiro lugar, temos a sua própria iniciativa: a sua insatisfação com a expressão veritatem salutarem no Esquema IV, a grave importância que ele dava para o ponto em questão, as razões que deram origem à sua preocupação, e a solução que ele propôs à Comissão Teológica. Em segundo lugar, há o fato de que ele posteriormente deu sua aprovação para a resposta da Comissão a esta iniciativa, a saber, a inserção desta cláusula parentética que foi substituída pela palavra salutarem. Finalmente, a nossa moldura hermenêutica deve, é claro, incluir não só o que o Papa fez, mas também quem o Papa é no contexto de um concílio ecumênico: o Sucessor de Pedro é o primeiro e mais essencial signatário de seus decretos, e o seu promulgador primário.

Em relação ao primeiro ponto, já vimos que[64] entre as várias expressões problemáticas no esquema sobre a Revelação, que foram discutidas na carta de 18 de outubro de 1965, aquela usada no artigo 11 deixaram o Papa Paulo “mais profundamente hesitante” ou “perplexo” do que as outras – por mais importante que, sem dúvida,  todas elas fossem. Seu pedido, como vimos, foi que a Comissão Teológica apagasse a palavra salutaremsem fazer qualquer substituição, deixando assim o texto indicar simplesmente que, como consequência da inspiração divina, “devemos, portanto, reconhecer que os livros da Escritura – inteira e com todas as suas partes – ensinam a verdade sem erro.”[65] Tal afirmação, especialmente à luz das fontes doutrinárias referidas no rodapé recém-expandido, teria sido uma breve e simples reafirmação do ensino tradicional de que a Escritura é livre de erro em tudo o que os autores sagrados afirmam.

É possível deduzir desse fato (ou seja, o desejo de Paulo VI de omitir, mas não substituir, salutarem), e das outras observações contidas na carta de 18 de outubro que já comentamos, qual o perigo preciso ele desejava evitar quando fez referência à possibilidade de “interpretações abusivas” desta nova palavra. O problema previsto pelo Papa foi claramente que, embora a expressão “verdade salvífica” fosse sem dúvida passível de uma interpretação doutrinariamente sólida e útil, alguns comentaristas futuros poderiam, no entanto, tirar dessa expressão a ideia errônea que seus críticos na base do Concílio tinham alertado contra: a ideia, isto é, de que algumas afirmações bíblicas têm conteúdo “salvífico” e, portanto, são garantidos de serem “sem erro”, enquanto outras têm conteúdo não  “não-salvífico” e, portanto, não são cobertos por tal garantia.

Tendo em mente que este era o perigo que Paulo VI quis evitar por sua intervenção, podemos começar a considerar o segundo elemento mencionado acima. Depois que a Comissão Teológica respondeu à carta de 18 de Outubro, não omitindo dessa sentença (de acordo com a solicitação papal) qualquer menção ao propósito salvífico da Escritura, mas substituindo pela única palavra salutarem uma cláusula adjetiva mais precisa para se qualificar veritatem, o Papa (juntamente com os outros padres conciliares) posteriormente aceitou como satisfatória esta alternativa à sua própria proposta de alteração. Que significado, se houver, esta aceitação tem para a nossa interpretação do texto definitivo?

Em primeiro lugar, é preciso ser salientado que esta versão finalmente alterada e promulgada da frase continua a exigir uma interpretação particularmente cuidadosa e atenta, porque seu significado ainda não é auto-evidente. Certamente, a redação da nova e maior expressão –veritatem, quam Deus nostræ salutis causa Litteris Sacris consignari voluit – é menos aberta a uma interpretação errada do que o lacônico termoveritatem salutarem, pois agora a ideia “salvífica” não está apresentada sob a forma de uma simples qualificação do adjetivo “verdade” (veritatem), mas sim, no contexto de uma frase adverbial – “para o bem da nossa salvação” (nostræ salutis causa) – qualificando o verbo “quis que fosse registrada” (consignari voluit) . Isso indica mais claramente que o conceito “salvífico” é para ser tomado aqui como referindo-se ao propósito ou finalidade que Deus tinha em mente dando-nos a Bíblia como um todo. No entanto, se esta passagem do texto aprovado é tomada apenas como está, e a partir de um ponto de vista puramente gramatical, pode-se ver que a ambiguidade da versão anterior não foi totalmente removida, dado que a frase adverbial em si é parte de uma cláusula que ainda é adjetiva, qualificando veritatem. Separado, portanto, de seu contexto histórico e literário, a última parte desta sentença (Scripturæ libri… profitendi sunt) pode ainda ser tomadas para deduzir uma distinção entre dois tipos de verdade bíblica: um tipo (imune de erro) que é dado “para o bem da nossa salvação”, e outro tipo que não é.[66]

É verdade que a frase na sua totalidade implica claramente a inerrância irrestrita das Escrituras, uma vez que a primeira oração relativa, apresentada precisamente como a premissa na qual a oração principal é baseada, atribui tudo o que foi afirmado pelos escritores sagrados ao Espírito Santo. Não é preciso dizer que o Espírito Santo não pode errar. No entanto, os elementos restantes de ambiguidade na última parte dafrase[67]apenas torna mais necessário do que nunca completa atenção do intérprete para todas as circunstâncias relevantes que cercam a redação dessa frase. E do nosso ponto de vista atual o principal fator relevante é que o Papa Paulo VI claramente aceitou a oração adotada pela Comissão Teológica no entendimento de que a ideia “salvadora” que ele contém deve ser tomada no sentido adverbial explicado no parágrafo acima. É certo que ele não entendeu aquela ideia como uma distinguindo adjetivamente entre dois supostos tipos de “verdades” bíblicas (“salvífica” e “não-salvífica”), porque o principal objetivo da sua intervenção foi eliminar a grave possibilidade de confusão doutrinária que poderia facilmente surgir a partir dessa distinção.

Finalmente, por causa de sua posição como o Sucessor de Pedro e chefe do Colégio episcopal, cuja aprovação e assinatura foram necessárias a fim de tornar o esquema um documento do magistério supremo da Igreja, a compreensão de Paulo VI do texto que estamos estudando deve ser considerada normativa para intérpretes posteriores. Na situação mais comum em que uma leitura oficial de um texto conciliar é pedida nos voltamos para ver o que foi dito em uma relatio oficial sobre o texto que foi aprovado definitivamente. Mas em um caso como o presente, em que o próprio Sumo Pontífice interveio diretamente na redação, temos uma autoridade ainda maior do que a de um relator. A importação precisa da intervenção do Papa nesta passagem da Dei Verbum, portanto, pode ser vista como a de corroborar ou reforçar com o carisma pessoal de Pedro aquela interpretação da referência ao valor “salvífico” da Escritura que foi explicado aos Padres no segundo relatio oficial sobre esse ponto.[68]Ou seja, a contribuição pessoal de Paulo VI sobre este ponto torna duplamente claro que devemos entender o ensinamento do Concílio da seguinte forma: todas as afirmações dos autores humanos da Escritura[69] são simultaneamente afirmações do Espírito Santo, e são, portanto, isentos de erros e registrados “para o bem da nossa salvação.”

Este reconhecimento da pertinência salvífica ou relevância em tudo que é afirmado nas Escrituras pelos escritores inspirados também tornam obsoletas, com efeito, a formulação bastante inadequada encontrada no esquema preparatório original, que colocou a questão da inerrância em termos de uma suposta dicotomia entre os elementos “religiosos” e “profanos” da Bíblia. Esta classificação, juntamente com aquela que usou o conceito de “fé e moral” como um ponto de referência, era comum no tratamento pré-conciliar deste problema; mas ambas estas formulações podem agora ser vistas como enganosas em certa medida. De acordo com a Dei Verbum 11, entendida à luz da intervenção do Papa Paulo, todas as afirmações dos autores divino e humanos têm sido dadas a nós na Escritura “para o bem da nossa salvação”, e assim nenhuma delas pode ser descrita como “profana”, no sentido de “não-religiosa”. Como as notas de rodapé também deixam claro, mesmo aquelas numerosas afirmações bíblicas sobre realidades “mundanas” de natureza física e histórica também devem ser vistas à luz do plano salvífico de Deus.[70] Este plano encontra a sua realização suprema no sagrado e ainda profundamente mundano evento da Encarnação – aquele mistério grande e central que, depois de jazer latente e escondido no relacionamento de Deus com o seu povo sob a Antiga Aliança, é finalmente revelado e pregado pelos “profetas e apóstolos” da Nova Aliança.[71] A história cósmica e humana constituem, assim, o próprio teatro no qual o drama da ação de Deus em Cristo “para o bem da nossa salvação”é encenado e levado à realização.

(a) Traduzindo o Termo ‘Salvífico’ na Dei Verbum 11


Se a contribuição pessoal do Papa Paulo VI em esclarecer o verdadeiro significado da passagem que estudamos deve ser devidamente comunicada aos leitores – a grande maioria, na verdade –que têm acesso a ela apenas em seu próprio vernáculo, então a questão de como o original em latim é traduzido se torna um ponto de grande importância prática. Aqui esperamos mostrar que uma tradução exata em inglês, efetivamente, torna mais fácil para os falantes desta língua apreciar o que o Papa estava preocupado em deixar claro: que toda a Escritura, e não apenas certas partes, temas ou aspectos dela, foi dada a nós “para o bem da nossa salvação.”

Será conveniente para o leitor, se primeiro reproduzirmos aqui o último parágrafo da Dei Verbum 11, que consiste em duas frases, colocado em negrito a passagem resultante da intervenção de Paulo VI:

Cum ergo omne id, quod auctores inspirati seu hagiographi asserunt, retineri debeat assertum a Spiritu Sancto, inde Scripturæ libriveritatem, quam Deus nostræ salutis causa Litteris Sacris consignari voluit, firmiter, fideliter et sine errore docere profitendi sunt. Itaque, “omnis Scriptura divinitus inspirata et utilis ad docendum, ad arguendum, ad corripiendum, ad erudiendum in iustitia: ut perfectus sit homo Dei, ad omne opus bonum instructus” (2 Tim. 3, 16- 17, gr.).[72]

Em primeiro lugar atenção deve ser dada à expressão Litteris Sacris consignari. As duas versões em inglês de maior circulação tomam essa expressão como se o substantivo fosse um objeto indireto no caso dativo: “colocada nas Sagradas Escrituras” e “confiada aos Escritos Sagrados” respectivamente.[73] A razão parece ser que consignare pensa-se significar mais ou menos o mesmo que “entregar”– ou consegnareconsigner,consignar, etc. –nos vernáculos modernos derivados do latim. Nessas línguas a palavra significa o mesmo que “dar”, “entregar”, “confiar” ou “entregar” (tradere ou concedere em latim), e requer tanto um objeto direto quanto um indireto: falamos em “consignar” algo para outra pessoa que existe independentemente do que é consignado.

Mas, na verdade, o significado básico em latim de consignare é bem diferente. O Oxford Latin Dictionary dá o segundosignificado[74] deconsignare como o que se aplica neste caso: “Gravar em um documento selado,… colocar no registro de qualquer forma, atestar.”[75] É a partir desse sentido da palavra, que vem da prosa de Cícero e leva apenas um objeto direto, que a expressão “Aliquid litteris consignare[76] tornou-se uma expressão padrão em toda a literatura latina subsequente. Claramente, a palavra litteris aqui é um instrumental ablativo, não um dativo, uma vez que as “letras” não pré-existem fisicamente como um receptor potencial de ideias do escritor, mas passam a existir como o meio pelo qual ele expressa essas ideias. O significado estritamente literal da frase é, portanto, “gravar alguma coisa por meio das letras”, isto é, “colocar (ou deixar) algo por escrito.”[77]

Em latim medieval descobrimos que, juntamente com os seus vários sentidos clássicos, consignare às vezes também tem o significado de suas derivadas vernaculares modernas, ou seja, “conceder”, “confiar”, “ceder”, ou “entregar” algo para um destinatário, com um objeto indireto correspondente no caso dativo. No entanto, parece não haver nenhum exemplo conhecido de um tal receptor que seja uma coisa (como um livro), apenas uma pessoa ou instituição.[78]De qualquer modo, não há nenhuma evidência de que a expressão ciceroniana litteris consignare tenha alguma vez sido submetida a qualquer alteração ou evolução no uso Latina mais recente; e naquela frase, como vimos, o substantivo está certamente no caso ablativo.[79]

Nem o uso eclesiástico contemporâneo permite qualquer razão para supor que litteris em conjunto com consignare poderia estar no caso dativo.[80] Uma vez que, portanto, parece que nenhum precedente pode ser encontrado nem no latim clássico ou eclesiástica para tal uso, pode-se concluir que litteris Sacris na  Dei Verbum 11 está no caso ablativo, a ideia é que Deus usou as Escrituras Sagradas como um meio, instrumento, ou a forma pela qual ele queria sua verdade salvadora fosse expressa e registrada. Como a intervenção de Paulo VI nos ajudou a ver mais claramente, aqueles escritos devem ser entendidos como co-extensivos com esta verdade salvadora, não como um vaso maior que conteria material ‘não-salvífico’ também.

Outro ponto para o tradutor ter em mente é que a imunidade de erro da Bíblia, resultante da sua inspiração divina, continua a ser o principal ponto nesta sentença, como tinha sido ao longo da evolução textual desta passagem. As palavras de abertura “Já que, portanto,” (Cum ergo), seguidas oportunamente por inde (“de acordo” ou “em consequência”), exibe fortemente a ideia de que o que está aqui sendo atribuído a verdade bíblica – acima de tudo, a sua imunidade de qualquer mistura de erro – segue necessariamente da sua autoria divina. O facto de esta autoria divina também implicar o valor salvífico da Escritura foi adicionado, como vimos, a fim de dar uma acentuação mais positiva para o documento e para nos lembrar que esta é uma “especificação formal” que precisa se ter em mente no entendimento da imunidade de erro da Bíblia. No entanto, essa ideia do propósito salvífico da Escritura – a julgar pela sua localização em uma oração relativa entre parênteses e também pela explicação oficial do relator – continua a ser um ponto secundário na versão final desta frase.[81] Na maioria das versões vernaculares publicadas, no entanto, a ênfase tende a ser revertida: a oração relativa (… quam Deus consignare voluit) é excessivamente enfatizada por ter sido apresentado literalmente como a “linha de fundo” da sentença. Uma vez que esta cláusula é muito mais comprida na tradução do que em latim, tal localização, naturalmente, se sugere por razões estilísticas; mas o resultado lamentável é que a ideia-chave da inerrância tende a se tornar um pouco submersa no meio da oração.[82]

Como alternativas a tais traduções, vamos agora sugerir duas novas, nas quais tentamos manter todos os pontos relevantes em mente: o fato de queLitteris Sacris está no caso ablativo, e por isso não deve ser traduzido como se fosse um objeto indireto de consignari; a necessidade de destacar a imunidade de erro da Bíblia, em vez de seu propósito salvífico, como o principal ponto nesta sentença; e acima de tudo, o fato de que o Papa e a Comissão Teológica pretenderam que a passagem significasse que todas as afirmações dos escritores bíblicos são “sem erro”. (Isto está, em qualquer caso, claramente implícito na primeira parte da frase, a qual atribui tudo o que os escritores humanos afirmam ao Espírito Santo, que não pode errar.) Em nossa primeira nova tradução ao destas linhas acompanhamos de perto a sintaxe original[83], exibindo a ênfase na imunidade de erro da Escritura, colocando esta ideia no final do frase:

Já que, portanto, tudo o que foi afirmado pelos autores inspirados, ou escritores sagrados, deve ser considerado como afirmado pelo Espírito Santo, devemos, em consequência, reconhecer que os livros da Escritura ensinam a verdade, a qual Deus quis registrada por meio dos Escritos sagrados para o bem da nossa salvação, firmemente, com fidelidade e sem erro.[84]

Enquanto no texto latino a oração parentética sobre o propósito salvífico tem apenas nove palavras, o texto em inglês precisa de muitas mais.[85]Este comprimento extra constitui um resultado que, enquanto transmite com precisão o sentido do original, não é um inglês muito elegante. Deste modo, nós também sugerimos uma outra tradução ligeiramente menos literal, mas igualmente precisa, em que a oração de “propósito salvífico” é realocada em uma parte posterior da sentença. Além de ser uma melhoria estilística, esta tem outra vantagem do ponto de vista da clareza: ao adiar a menção de propósito salvífico, a conexão lógica entre essa ideia e a seguinte frase (ou seja, a citação de II Timóteo) pode agora ser apresentada mais claramente.[86] Pois é o valor salvífico de toda a Bíblia, não a sua inerrância, que é sublinhado por São Paulo nesses versículos. O último parágrafo do artigo 11, seria, assim, apresentado como se segue:

Uma vez que, portanto, tudo que foi afirmado pelos autores inspirados, ou escritores sagrados, deve ser considerado como afirmado pelo Espírito Santo, devemos, em consequência, reconhecer que os livros da Escritura ensinam a verdade com firmeza, com fidelidade e sem erro, tendo em mente que foi para o bem da nossa salvação que Deus quis esta verdade registrada na forma de Escritos Sagrados. Assim, “toda a Escritura é inspirada Por Deus, e útil para ensinar, para repreender, para corrigir e para a instrução na justiça, de modo que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (II Tim. 3: 16- 17).[87]

Estas duas traduções alternativas que sugerimos trazem com mais clareza aquele sentido autêntico do texto latino que o Papa Paulo VI certamente entendeu e pretendeu ensinar. Apresentar “veritatem, quam…” como “a verdade que…” (isto é, usando o adjetivo demonstrativo “que”[88] e de omitindo a vírgula depois de veritatem na tradução[89]) não reflete com precisão o original mais do que faz a tradução de Litteris Sacris como se fosse um objeto indireto de consignari.

Vimos neste ensaio como a intervenção de Paulo VI na redação da Dei Verbum 11 ajudou a assegurar que o ensino do Concílio Vaticano II sobre a verdade da Sagrada Escritura permanecesse em continuidade com a doutrina de seus antecessores. Corretamente entendida e traduzida, a passagem conciliar que estudamos reafirma a doutrina de que todas as afirmações dos escritores sagrados, independentemente do seu tema ou assunto, são garantidas de serem verdade em virtude de sua simultânea autoria divina. Ao mesmo tempo, o Vaticano II desenvolveu essa doutrina, dando mais peso hermenêutico para o fato de que o propósito das Escrituras é ensinar conhecimentos salvíficos, e não dar a informação científica ou histórica do ponto de vista moderno secular ou “acadêmico”. O próximo artigo desta série transmitirá o ensinamento do Papa Paulo sobre aquele princípio pelo qual a Igreja insiste em que a exegese bíblica Católica – diferentemente da exegese protestante – nunca pode ser realizada de forma independente da verdade que tem sido transmitida através da Tradição e de seu próprio Magistério.



[1] “Paulo VI na Hermeneutica Biblica Moderna”, Tradição Viva no. 164, Maio, 2013.

[2]Quin immo ipsa divina auctoritas Sacræ Scripturæ in controversiam vocatur nimia illa rei mythicæ amotione, quam ‘demythizationem’ vulgo appellant” (AAS 63 [1971] 99).


[3] O comentário perceptivo de Michael Dummett, professor de Lógica em Oxford, sobre esta faceta da atual indisposição na erudição bíblica é digno de citação neste contexto: “O apelo aos gêneros literários na interpretação das Escrituras foi, em sua origem, bem fundamentada, porém, na minha opinião, ele se degenerou por meio de etapas imperceptíveis em um mecanismo inconsciente para permitir que o exegeta adotasse as opiniões que ele escolhesse enquanto formalmente professando reconhecer a veracidade e inspiração dos escritos do Novo Testamento” (“Premissas Arriscadas: uma resposta a Nicholas Lash”, New Blackfriars 68 [1987] 560.

[4]“La Sacra Scrittura per la Chiesa è Parola di Dio, da Lui ispirata e perciò, nel significato autentico suo proprio, garantita da divina inerranza” (Ins. 1970, 691). Para chegar à conclusão, partindo da não ocorrência da palavra “inerrância” no texto da Dei Verbum, de que o Concílio a considera “obsoleta” parece, a este autor, um non sequitur tendencioso. O Concílio, depois de tudo, insistiu em reafirmar que a Bíblia ensina a verdade “sem erro”, que é uma locução adverbial com o mesmo significado do substantivo “inerrância”. O mesmo significado não é adequadamente expresso ao falar da “verdade” de Escritura ao invés de sua inerrância, porque no discurso comum, dizemos que muitas expressões humanas, escritas ou faladas, são “verdadeiras” em termos globais ou gerais, não significando por isso que estejam isentas de todo o erro.

[5]Já existe uma bibliografia considerável comentando sobre a Dei Verbum. Leituras uteis, especialmente com relação ao Capítulo III, sobre a verdade da Escritura, poderiam incluir os seguintes títulos: L. Alonso Schökel (ed.), Concilio Vaticano II. Comentarios a la Constitución Dei Verbum sobre la divina Revelación (Madrid: B.A.C., 1969) – um volume de 797 páginas contendo 31 ensaios por Alonso Schökel e outros; U. Betti et al, Commento alla Costituzione Dogmatica sulla Divina Rivelazione (Milan: Massimo, 1966); P. Grelot, “La Constitution sur la Révélation, I: la préparation d’un schema conciliaire” (Études, 324 [Janeiro 1966] 99-113; ); Id., “La Constitution sur la Révelation, II: Contenu et portée du texte conciliaire” (Études, 324 [February 1966] 233-246); A. Ibañez Irana, Inspiraciòn, Inerrancia e Interpretaciòn de la S. Escritura en el Concilio Vaticano II (Vitoria: Edit. Eset, 1987); I. de la Potterie, “Il Concilio Vaticano II e la Bibbia” (in I. de la Potterie, (ed.), L’esegesi cristiana oggi [Casale Monferrato: Edizioni Piemme, 1991] 19-42); G. O’Collins, “Dei Verbum and Biblical Scholarship” (Scripture Bulletin 21 [1991] 2-7); M. Zerwick, “De S. Scriptura in Constitutione dogmatica ‘Dei Verbum’” (Verbum Domini 44 [1966] 17-42).

[6]Os outros pontos nos quais Paulo VI interveio pessoalmente nas deliberações do  Concílio sobre a Sagrada Escritura foram as relações entre a Escritura e a Tradição e a historicidade dos Evangelhos.

[7]Cf. R.M. Wiltgen, S.V.D., The Rhine Flows Into the Tiber (New York: Hawthorn Books, 1967, 235-239). Wiltgen registra como muitos bispos reagiram ao anúncio da decisão de Paulo VI em 19 de novembro de 1964 de adiar votação sobre um esquema completamente revista da Liberdade Religiosa até a sessão final em 1965. Um grupo de padres americanos liderados pelo Cardeal Albert Meyer de Chicago “decidiu pela formulação de uma petição especial a ser distribuída imediatamente. Foi a famosa petição ao Santo Padre ‘Instanter, instantius, instantissime’ consisitindo em apenas uma frase: ‘Reverentemente, mas insistentemente, com mais insistência, com toda insistência, pedimos que a votação sobre a declaração da liberdade religiosa seja autorizada a acontecer antes do fim desta sessão do Concílio, para que a confiança do mundo cristão e do não-cristão não seja perdida.’ …Cópias da petição passaram rapidamente de mão em mão. Nunca tinha havido uma assinatura tão furiosa de nomes, tanta confusão, tanta agitação “(ibid., 237). Mais tarde, à luz da calma reflexão, alguns desses americanos, incluindo John Courtney Murray, S.J., o perito líder sobre o esquema da liberdade religiosa, reconheceu que a decisão do Papa tinha, de fato, sido “sensata” e “correta” (cf. ibid., 242-243).

[8]Ex hac divinæ Inspirationis extensione ad omnia, directe et necessario sequitur immunitas absoluta ab errore totius Sacræ Scripturæ. Antiqua enim et constanti Ecclesiæ fide edocemur nefas omnino esse concedere sacrum ipsum errasse scriptorem, cum divina Inspiratio per se ipsam tam necessario excludat, et respuat errorem omnem in qualibet re religiosa vel profana, quam necessarium est Deum, summam Veritatem, nullius omnino erroris auctorem esse” (AS I, III, 18).

[9]Cf. Living Tradition. no. 156, Janeiro 2012, seção 1b, pp. 4-5.


[10](AS I, III, 30). Esta é reproduzida em F. Gil Hellín, Concilii Vaticani II SynopsisConstitutio dogmatica de Divina Revelatione Dei Verbum. (Cidade do Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1993, 194). (Essa e as outras intervenções conciliares sobre Dei Verbum estão convenientemente reproduzidas neste único volume, que é abreviado daqui em diante por GH.) O Cardeal Fernando Quiroga de Compostella deu seu voto de consentimento ao esquema, mas observou que em se tratando da inerrância o texto deve-se indicar com mais clareza a importância de se buscar a intenção do autor humano em seu uso de palavras (cf. AS I, III, 40; GH 202).Um grupo de quarenta e nove padres hispânicos cujo porta-voz era arcebispo Casimir Morcillo também deu o seu voto de assentimento mas sentiu que essa passagem foi unilateral: ela selecionava aquelas declarações papais que favoreciam a escola mais rigorosa da exegese e isso deveria ser equilibrado, eles achavam, citando outras intervenções pontifícias que abriam “caminhos mais amplos” (“Schema, ex pontificibus locutionibus, eapotissimum adducit quæ strictioribus favent; omissa mentione de his quæ, cum sint quoque pontificia, ampliorem viam protendunt Si hæc vera sunt, corrigenda veniente;. et documenta utriusque generis proponentur”[AS I, III, 61; GH 220].) O defensor mais entusiasmado do tratamento do esquema de estudos bíblicos foi o bispo Geraldo de Proença Sigaud de Diamantina, Brasil, que achou sua gravidade relevante e oportuna, uma vez que “os gravíssimos erros denunciados e condenados por Pio XII na Encíclica Humani Generis não estão mortos. Eles continuam a se infiltrar secretamente através da Igreja, que agora se encontra doente com toda a força do seu veneno.” (“…errores gravissimi, quos Pio XII na Encíclica Humani Generis denuntiavit et condemnavit, non sunt mortui. Adhuc serpunt, cum maximo vigore venenum suum propagant et Ecclesiam iam inficierunt “[AS I, III, 224; GH 323].) “No campo da Sagrada Escritura,”ele afirmou,“estamos diante de uma situação em que muitos católicos estão negando, na prática, o valor histórico de quase toda a Bíblia.” (“Re vera, in biblico campo, agitur, apud multos catholicos, e practica negatione valoris historicæ fere totius Sacræ Scripturæ” [ibid.].) Sigaud passou a ilustrar a sua tese com copiosos exemplos de livros e passagens tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, cuja historicidade, segundo ele, foi amplamente rejeitada pelos exegetas católicos modernos (cf. AS I, III, 225-226; GH 323-324).

[11]“… mihi videtur nimis rigida, nimis coarctans libertatem scientiæ, et appropinquans ad doctrinam inspirationis verbalis” (AS I, III, 35; GH 198).

[12]AS I, III, 42-43. Cf. Living Tradition. no. 156, Janeiro 2012, seção 1a, nn. 3-6 (pp. 2-3) para as observações de König e os comentários críticos sobre as mesmas. Ao contrário do bispo brasileiro de Proença Sigaud, (já citado no n 10 acima.), que viu a Igreja como infestada de erros modernistas, o cabeça dos beneditinos ingleses, Abbot Christopher Butler, achava que “quase nenhum modernista pode ser encontrado entre os católicos hoje”, e por esta razão criticou o esquema de “retorno a uma mentalidade anti-modernista”. (“Iamvero, schema, in aliquibus partibus, videtur mihi reddere mentem antimodernisticam. Sed modernistæ inter catholicos vix hodie inveniuntur” [AS I, III, 109; GH 254].) No que diz respeito à passagem em particular que estamos considerando, Abbott Butler comentou: “Da mesma forma, o esquema trata a inspiração e a inerrância da Sagrada Escritura com palavras que vão além do que já foi definido; na verdade, tais palavras quase poderiam ser tomadas significando uma espécie de “Docetismo” escritural. O que o mundo precisa ouvir de nós, no entanto, é que a Escritura é a Palavra de Deus escrita por homens em linguagem humana – uma Palavra verdadeira e inspirada. Se dizemos qualquer coisa a mais do que isso sobre este assunto, não serviria para o ‘construir’ das pessoas, mas para a ‘demolição’ dos estudiosos católicos. E isso seria um escândalo para os leigos mais inteligente em todos os tempos futuros do mundo, que está surgindo agora”. (AS loc. cit.; GH 253-254).

[13]AS I, III, 50.


[14]Ibid., 50-51, tradução do presente autor.


[15]De 2209 votos expressos sobre a possibilidade de interromper a discussão sobre o esquema inicial, De fontibus revelationis, 1368 (62%) foram de assentimento, 822 (37%) foram de não-assentimento, enquanto 19 votos (1%) foram inválidos. (Cf. GH 345).


[16]“… ab omni prorsus errore immune” (ibid., 785).


[17]Na nota de rodapé do esquema original lê-se o seguinte: “EB 539, cum verbis relatis Leonis XIII, Litt. Encycl. Providentissimus Deus, Denz. 1950, EB 124. Cf. quoque EB 44, 46, 125, 420, 463, etc” (AS I, III, 19; GH 184). Dessas passagens, EB 125 (também da Providentissimus Deus) foi finalmente incluída como o comentário 4 da Dei Verbum 11.


[18]“O primeiro e maior cuidado de Leão XIII foi expor os ensinamentos sobre a verdade dos Livros Sagrados e defendê-la do ataque. Assim, com palavras graves, ele proclamou que não há nenhum erro de qualquer natureza se o escritor sagrado, falando de coisas de ordem física, ‘foi pelo que sensatamente apareceu’ como o Doutor Angélico diz, falando tanto ‘em linguagem figurada, ou em termos que eram comumente usados no momento, e que em muitos casos estão em uso diário nos dias de hoje, mesmo entre os homens mais eminentes das ciências’. Para ‘os escritores sagrados, ou para falar com mais precisão – as palavras são de Santo Agostinho – o Espírito Santo, que falou por eles, não tinha a intenção de ensinar aos homens essas coisas – isto é, a constituição íntima das coisas visíveis – que não são de forma alguma úteis para a salvação’; que o princípio ‘será aplicada às ciências cognatas, e, especialmente, para a história’, isto é, refutando, ‘de uma forma um tanto semelhante as falácias dos adversários e defendendo a verdade histórica da Sagrada Escritura de seus ataques.’ Nem é para o escritor sagrado ser taxado com o erro, se ‘copistas cometeram enganos no texto da Bíblia’, ou, ‘se o verdadeiro significado de uma passagem permanece ambígua.’ Finalmente, é absolutamente errado e proibido, ‘tanto estreitar a inspiração para certas passagens da Sagrada Escritura, quanto admitir que o escritor sagrado errou’, uma vez que a inspiração divina ‘não só é essencialmente incompatível com erro, mas o exclui e o rejeita como absoluta e necessariamente assim como é impossível que o próprio Deus, a Verdade suprema, possa dizer aquilo que não é verdade. Esta é a fé antiga e constante da Igreja’”(EB 539, ênfase adicionada). Este é o no. 3 da tradução em inglês usada aqui, que se encontra no Roma e o estudo das Escrituras (Grail Publications, 1953, pp. 79-107), que está reproduzido em Claudia Carlen (ed.), As encíclicas papais 1939-1958 (McGrath Publishing Co., 1981) 65-79. Eu alterei essa tradução em uma expressão, tornando intimam ad spectabilium rerum constitutionem mais literalmente como ‘a constituição íntima das coisas visíveis.’ Como pode ser visto a partir das palavras que enfatizamos, a passagem acima implica claramente que a imunidade da Bíblia de erros formais estende-se a suas afirmações sobre assuntos físicos e históricos, que, em termos gerais, seriam as mesmas áreas que o esquema original aludiu como “profana” ao em vez de “religiosa”. (Considerando que o primeiro esquema apresentado aos padres conciliares tinha também observado explicitamente que Pio XII estava aqui citando uma passagem do EB 124, esta nuance foi omitida no Esquema II.)

[19]Cf. acima, nn. 17 e 18. No EB 539 Pio XII citou apenas as três últimas linhas das vinte que constituem o EB 124.


[20]DS 3291 [EB 124], tradução do presente autor.


[21]“… nefas omnino fuerit aut inspirationem ad aliquas tantum sacras Scripturæ partes coangustare aut concedere sacrum ipsum errasse auctorem… tantum vero abest, ut divinæ inspirationi error ullus subesse possit, ut ea per se ipsa non modo errorem excludat omnem, sed tam necessario excludat et respuat, quam necessarium est, Deum, summam Veritatem, nullius omnino erroris auctorem esse” (DS 3292 [EB 124]). É verdade que Leão XIII aqui condena explicitamente apenas a ideia de que inspiração se restringe a questões de fé e moral, não a ideia de que a inerrância é restrita a essas matérias. No entanto, é claro a partir de toda esta seção da encíclica que o Papa Leão ensina que a inspiração é absolutamente inseparável da inerrância como consequência necessária.

[22]“Cum ergo omne id, quod auctor inspiratus seu hagiographus asserit, retineri debeat assertum a Spiritu Sancto, inde Scripturæ libri integri cum omnibus suis partibus veritatem sine ullo errore docere profitendi sunt” (AS, III, III, 89).

[23]“Loco verborum ‘inde… consequitur’ proponitur: ‘inde tota Scriptura divinitus inspirata nullum prorsus docere errorem dicenda est’. Ratio: doctrina de inerrantia Scripturarum melius exprimitur si de formali ratione docendi, secundum quam nullus error inveniri potest, loquitur, quia alio sensu, i.e. materiali, possunt locutiones de se erroneæ ab hagiographo adhiberi, quas tamen docere non vult” (ibid., 799, enfase no original).


[24]“…quoad substantiam” (ibid. 92).

[25]“Recte intelligemus veritatem specificam Sacræ Scripturæ consistere non tantum in disiunctis veritatibus variarum propositionum, quantum in earum relatione ad centralem revelationem Cordis Dei” (AS III, III, 283).


[26]Cf. citação do rascunho anterior sobre o n. 22 acima.

[27]ut effectus inspirationis positive exprimatur… [ut] obiectum inerrantiæ clare circumscribatur” (AS IV, I, 358).

[28]Alguns comentaristas, talvez, tenham atribuído uma importância indevida a esta mudança no título do artigo que, ao contrário dos títulos dos capítulos, não era uma parte oficial do texto. De fato, Paulo VI fez questão de usar essa mesma palavra após o Concílio em um discurso dedicado à Sagrada Escritura. Cf. acima, seção 1 deste ensaio, n. 4.

[29]“…revelationem errore sine “(DS 3006). Alguns padres, por exemplo, Abbot Christopher Butler, aparentemente favoreceram esta frase do Vaticano I, alegando que esta deixou espaço (supostamente) para erros na Escritura, nos casos em que os escritores sagrados não nos apresentamo material revelado (cf. AS III, III, 431). Essa interpretação, que iria colocar o Vaticano I contra o ensinamento unânime dos antigos Padres e das encíclicas papais subsequentes, certamente não foi intencionada pelos Padres do referido Concílio. Na verdade, o contexto mostra que eles não queriam dar a entender que a noção de “contendo revelação sem erro” era uma descrição adequada da inerrância bíblica; pois no texto conciliar essa noção é tratada com quase a mesma reserva de uma outra, que não é apenas inadequada, mas falsa, ou seja, a noção de que os livros da Escritura são produções meramente humanas os quais em seu devido tempo receberam o selo de aprovação da Igreja. O Vaticano I diz: “Não é pelos motivos de terem sido aprovados pela autoridade eclesiástica (depois de ser composto por esforço meramente humano) que a Igreja detém [os livros da Bíblia] como sagrado e canônico; na verdade, nem mesmo o seu conteúdo de revelação sem erro explica suficientemente esse status que lhes são atribuídos. Em vez disso, a razão é que, sendo escritos sob a inspiração do Espírito Santo, eles têm Deus por autor, e como tal foram entregues à Igreja. (Eos vero Ecclesia pro sacris et canonicis habet, non ideo, quod sola humana industria concinnati, sua deinde auctoritate sint approbati; nec ideo dumtaxat, quod revelationem sine errore contineant; sed propterea, quod Spiritu Sancto inspirante conscripti Deum habent auctorem, atque ut talem ipsi Ecclesiaæ traditi sunt) “(DS 3006, ênfase acrescentada na tradução). Observe o contraste entre os verbos subjuntivos utilizados ao mencionar as duas razões falsas ou inadequadas (sint e contineant) e o indicativo usado para a verdadeira razão (habent). Esta nuance não é fácil para transmitir de forma concisa na tradução, mas isso significa não apenas que o Concílio contesta a adequação ou suficiência das duas primeiras noções como fundamento para a veneração da Igreja a estes livros como “sagrado e canônico”, mas também que se prescinde se essas noções são ou não expressões adequadas de verdade em si mesmas. Assim, embora seja claro que é verdade afirmar que a Escritura “contém revelação sem erro”, o Vaticano I não vai tão longe a ponto de sugerir (como alguns teólogos e exegetas têm feito desde o Vaticano II) que tal afirmação possa ser aprovada como uma expressão plena e inequívoca do objeto da inerrância bíblica. Se essa aprovação foi concedida, alguns católicos rapidamente chegariam a conclusão de que não só a Escritura contém material “não-revelado” e não revelado; como também que este componente “não-revelado” pode muito bem conter erros.

[30]“Parallelismum esse inter obiectum infallibilitatis Magisterii et inerrantiæ S. Scripturæ efferunt” (AS IV, I, 359).

[31]“…quo verbo co-intellegitur facta quæ in Scriptura cum historia salutis iunguntur” (ibid.).

[32]“Si dicatur libros sacros ‘veritatem salutarem . . . sine errore docere’, videtur inerrantia restringi ad res fidei et morum, eo vel magis quod, fatente Relatore, hæc formula electa est ut postulatis satisfieret Patrum qui petebant ut effectus inspirationis positive exprimeretur atque obiectum inerrantiæ clare circumscriberetur. Relator Commissionis mentem explicat dicendo quod verbo ‘salutarem’ cointelliguntur facta quæ in Scriptura cum historia salutis iunguntur. At, enim, cum illa explicatione, talis circumscriptio obiecti inerrantiæ admitti non potest. Censeo enim hæc dicta cum firma doctrina Magisterii Ecclesiæ componi non posse.” Igitur, non est dicendum libros sacros veritatem salutarem sine errore ‘docere’, quia tuncdiscrimen insinuatur inter ipsas Scripturæ assertiones, quasi aliæ veritates ad salutem pertinentes sine errore docerent, dum aliæ tale contentum non haberent ac proinde inerrantiæ non subessent. . . . peto ut reassumatur verbum ‘sine ullo errore’ prioris textus, cum documenta Magisterii . . . semper ita se exprimant, ut omnimodum errorem a Scripturis sacris penitus excludant (cf. EB 124, 452, 538, 539, 560, 564)” (AS IV, II, 979-980, ênfase no original). O fato de que os temores de Dom Philippe sobre a palavra salutarem foram bem fundamentados foi involuntariamente corroborado pelo arcebispo de Saigon, Paul Nguyen Van Binh. Este padre admitiu abertamente sua opinião de que a Escritura não era imune de erro em questões de “ciência profana”, e solicitou que o texto conciliar refletisse essa admissão ao afirmar que a Bíblia é “imune de todo o erro em relação a essas coisas que pertencem à salvação.” Dom Nguyen perguntou:” Ne serait-il pas bon de préciser ‘ab omni errore esse immunem’ par ‘ea quoad quae pertinent ad salutem’?” Ele explicou esta sugestão pelo raciocínio de que era claramente incompatível com o ensino de todas as encíclicas papais sobre a Escritura: “Il faut distinguer les affirmations proprement religieuses en lesquelles l’Ecriture est totalement exempte d’erreur, sinon elle ne serait plus la règle de la foi, et les autres qui sont dépendantes des habitudes littéraires de l’auteur en son temps ou de l’état de sa science profane” (AS III, III, 858-859; GH 424-425).

[33]“Voce ‘salutaris’ nullo modo suggeritur S. Scripturam non esse integraliter inspiratam et verbum Dei: cf ea quae dicuntur in textu, linn. 16-21, ad mentem Enc. Prov: EB 127: «Deum ipsum per sacros auctores elocutum nihil admodum a veritate alienum ponere potuisse.» Non potest fieri ut « Verbum Veritatis, evangelium salutis vestrae » (Eph. 1, 13 ; cf. 2 Cor. 4, 2 etc.) non doceat « veritatem salutarem ». Expressio ‘salutaris’ nullam inducit materialem limitationem veritatis Scripturæ, sed indicat eius specificationem formalem, cuius ratio habeatur in diiudicando quo sensu non tantum res fidei et morum atque facta cum historia salutis coniuncta (ut dicebatur in relatione, p. 25, sub litt. F), sed omnia quæ in Scriptura asseruntur sunt vera. Unde statuit Commissio expressionem esse servandam, Notam 5 sequenti modo complendo: …” (AS V, III, 467-468, enfase no original). Este relatio também é reproduzido e discutido em G. Caprile, S.J., “Tre emendamenti allo schema sulla rivelazione” (La Civiltà Cattolica [1966/I] 224).

[34]Consideraremos esses rodapés e sua importância em maiores detalhes abaixo: cf. Part B, secção 3 (c), “A Redação Final: Referências de Rodapé Adicionais”

[35]Cf. Caprile, op. cit., 225.

[36] Palavras colocadas entre aspas representam a tradução deste escritor a partir do original. Caprile (op. cit., 222, 226 e 229) dá uma tradução italiana dos mesmos pontos chave neste mesmo importantíssimo documento.

[37]i.e., a relação entre Escritura e Tradição.

[38]A falta de oportunidades suficientes para os padres conciliares discutirem a adição de salutarem antes de votar nela também foi criticada fortemente pelo exegeta Francesco Spadafora: “Em Roma foi dito sobre esta matéria que a adição de ‘salutarem’ foi principalmente o trabalho de sua Excelência Jan van Dodewaard, Bispo de Harlem (Holanda: morreu aos 52 anos de idade em 09 de março de 1966; estudante do Instituto Pontifício Bíblico de 1939 a 1941), colocada de surpresa, sem discussão prévia, de modo a lançar esta ‘nova’ doutrina – oposta a inerrância absoluta – por furto, e sem o conhecimento dos próprios padres votantes.” (A Roma si diceva al riguardo che l’aggiunto ‘salutarem’ fosse opera principalmente di S.E. Jan van Dodewaard, vescovo di Harlem {Olanda: morto a 52 anni, il 9 marzo 1966; ex-alunno del Pont Ist Biblico, negli anni 1939-1941}, messa lí senza previa discussione, e di sorpresa, per varare di soppiatto, all’insaputa degli stessi votanti, ‘nuova’ dottrina la, contro l’inerranza assoluta) “(F. Spadafora, Leone XIII. . e gli Studi Biblici [Rovigo: Istituto Padano Arti Grafiche de 1976], p. 90).

[39]O Papa Paulo não levantou objeções ao uso de “ensinar” (docere), nem à omissão de “qualquer” (ullo) da expressão “sem qualquer erro” (sine ullo errore) – uma omissão que diminui a enfase sem realmente mudar o significado.

[40]Cf. Caprile, op. cit., 226.

[41]Cf. ibid., 227.

[42]Cf. above, n. 4.

[43]Cf. acima, Parte A, seção 2(b) deste ensaio.

[44]“…discrimen insinuatur inter ipsas Scripturæ assertiones” (AS IV, II, 979).

[45]Servetur vox docere, quæ agit de illis quæ proprie asseruntur” (AS IV, V, 709).

[46]AS III, III, 431.

[47]Attamen ista scientia rerum orientalium insuper demonstrat in Bibliis Sacris notitias historicas et notitias scientiæ naturalis a veritate quandoque deficere” (AS III, III 275). Os problemas envolvidos neste campo nem sempre são novos. Para um estudo interessante das tentativas do século 17 de limitar a verdade bíblica a assuntos ‘não-científicos’ na sequencia do caso de Galileu, cf. M. Pesce, “Il Consensus veritatis di Christoph Wittich e la distinzione tra verità scientifica e verità biblica” (Annali di storia dell’esegesi, 9/1 [1992] 53-76). Cf. also I. de la Potterie, “Verité I: Écriture sainte” (in E. Rayez et al., Dictionnaire de Spiritualité Vol. 16 [Paris: Ubald-Vide, 1992] 413-427).

[48]Cf. ibid., 275-276. De fato, os exemplos escolhidos pelo Cardeal König (e, presumivelmente, eles estavam entre os mais claros nos quais ele poderia pensar) de modo algum “demonstram” qualquer estar “aquém da verdade” por parte dos autores sagrados. O primeiro é Marcos 2: 26, onde Jesus fala do ato de Davi comer os pães da proposição “no tempo de Abiatar, o sumo sacerdote”, sendo o erro alegado de que seu pai Abimeleque era de fato o Sumo Sacerdote naquele momento (cf. I Sam 21: 1 e segs.). O segundo é Mateus 27: 9, onde o evangelista supostamente erra ao atribuir a Jeremias, uma profecia de Zacarias (11: 12-13). O último exemplo é o erro alegado em Daniel 1: 1, onde se diz que Nabucodonosor sitiava Jerusalém no terceiro ano do reinado de Joaquim. O Cardeal König, baseado-se em um trabalho recentemente publicado sobre a história antiga, afirmou que esse evento não poderia ter ocorrido até três anos após essa data. No que diz respeito as duas primeiras dificuldades, não é verdade que elas tenham surgido por causa dos estudos orientais recentes: elas tinham sido bem conhecido desde a idade patrística, e várias soluções plausíveis tinham sido sugeridas, as quais podem ser encontradas nos comentários clássicos (por exemplo, Cornélio A Lápide, S.J., Commentaria in Scripturam Sacram [Paris:.. L. Vivès, v. XIV, 1874, 495; v. XV, 1877, 675]). Em relação à terceira dificuldade, nem todos os especialistas modernos concordam com a cronologia na qual König se baseia. Outros (por exemplo, G.L. Archer, Enciclopédia de Dificuldades da Bíblia [Grand Rapids: Zondervan, 1982], 284-285) sustentam que, tendo em conta os diferentes métodos de judeus e babilônios de contar os anos do reinado de um rei (usado em Jer 46: 2 e Dn 1: 1, respectivamente), a cronologia bíblica é precisa.

[49]Cf. Dei Verbum 13. O texto aprovado, ao falar desta “condescendência”, prefacia o que diz com as palavras “sem prejuízo da verdade e da santidade de Deus” (salva sempre Dei veritate et sanctitate). Ou seja, a adaptação de Deus de sua Palavra para limitações humanas não implica qualquer erro. O Papa João Paulo II enfatizou recentemente isso em sua alocução por ocasião do centenário da Providentissimus Deus: “A estreita relação que une os textos bíblicos inspirados com o mistério da Encarnação foi expressa pela Encíclica Divino afflante Spiritu nos seguintes termos: ‘Assim como substancialmente a Palavra de Deus tornou-se como os homens em todos os aspectos, exceto no pecado, assim também as palavras de Deus, expressas em línguas humanas, tornou-se como a linguagem humana em todos os aspectos, exceto no erro’ (EB, 559). Repetido quase que literalmente pela Constituição conciliar Dei Verbum (13), esta afirmação lança luz sobre um paralelismo rico de significado “(AAS 86 [1994] 236; EB 1245, ênfase acrescentada).

[50]“… limitibus suis non obstantibus” (AS III, III, 276).

[51] O Cardeal König disse que os Padres que ele representava queriam ver uma descrição puramente “positiva” da verdade bíblica ( “res more positivo exprimatur “), pela qual seria declarado simplesmente que os livros da Escritura, “com todas as suas partes, são para serem professados como ensinamentos fiéis da verdade, integralmente, e inabalavelmente (cum omnibus suis partibus veritatem fideliter, integre, inconcusse docere profitendi suntibid”. O Arcebispo Joseph Cornelis de Elisabethville (Congo) pediu que a expressão inteira sine ullo errore fosse omitida, dando a razão extraordinária que esta expressão era “não só meramente negativa, mas também ambígua (non… tantum mere negative sed etiam ambigua)” (ibid., 438). Certamente o texto teria sido de fato “ambíguo” se a própria proposta Cornelis tivesse sido aceita, uma vez que, então, teria se deixado de declarar se a Escritura contém ou não erros. Simplesmente evitar uma questão como essa teria levado a intermináveis dúvida e confusão quanto ao que o Conselho realmente queria ensinar (se alguma coisa) sobre essa questão vital. E assumindo que, de fato, a Escritura nãocontém erros, como poderia esta verdade ser expressa de forma inequívoca de um modo que fosse mais “positivo” do que a afirmação que o arcebispo estava criticando como “meramente negativa”, ou seja, que a Escritura “ensina a verdade sem qualquer erro?”

[52]Ita difficultates melius solvuntur et auctoritas Sacræ Scripturæ melius defenditur” (ibid., 276).

[53]“…quæ est absoluta, sufficit“ (AS IV, V, 709). Nesta versão final houve também algumas mudanças nos advérbios qualificadores de docere; porém essas alterações não tem nenhuma relação com o nosso estudo.

[54]Esta passagem é às vezes citada como suposta evidência de que, de acordo com Santo Agostinho, a Escritura pode às vezes estar equivocada nas suas afirmações relativas à natureza e do cosmos. Mas que isso não era de forma alguma o que Agostinho queria dizer fica evidente pelo que ele diz em outro lugar no De Genesi ad litteram, em outro trecho citado por Leão XIII na EB 121. Este parágrafo da Providentissimus Deustambém foi adicionado a nota 5 da Dei Verbum 11 na redação final. Na sentença relevante lê-se: “Nenhuma dissensão verdadeira jamais surgirá entre o cientista e o teólogo, desde que cada um se mantenha dentro dos limites adequados de sua disciplina, observando atentamente a admoestação de Santo Agostinho de ‘não reivindicar precipitadamente como conhecido o que de fato é desconhecido”. Mas se alguma disputa surgir, o mesmo Doutor resume a regra a ser seguida pelo teólogo: ‘Se eles forem capazes de demonstrar alguma verdade das ciências naturais com provas sólidas, vamos mostrar que está não é contrária às nossas Escrituras; mas se eles mantêm qualquer coisa em qualquer um dos seus tratados que é contrária às Escrituras (isto é, para a fé Católica), vamos acreditar sem hesitação que é completamente falso e, se possível encontrar uma maneira de refutá-lo.’ (Nulla quidem theologum inter et physicum vera dissensio intercesserit, dum suis uterque finibus se contineant, id caventes, secundum S. Augustini monitum, ‘ne aliquid temere et incognitum pro cognito asserant’. Sin tamen dissenserint, quemadmodum se gerat theologus, summatim est regula ab eodem oblata: ‘Quidquid, inquit, ipsi de natura rerum veracibus documentis demonstrare potuerint, ostendamus nostris Litteris non esse contrarium; quidquid autem de quibuslibet suis voluminibus his nostris Litteris, idest catholicæ fidei, contrarium protulerint, aut aliqua etiam facultate ostendamus, aut nulla dubitatione credamus esse falsissimum.’).”

[55]“… Spiritum Dei, qui per ipsos loquebatur, noluisse ista (videlicet intimam adspectabilium rerum constitutionem) docere homines, nulli saluti profutura” (Agostinho, De Genesi ad Litteram, 2,9,20, citado também na Providentissimus Deus [EB 121]).

[56]Ego enim fateor caritati tuæ, solis eis Scripturarum libris, qui iam canonici appellantur, didici hunc timorem honoremque deferre, ut nullum eorum auctorem scribendo aliquid errasse firmissime credam. Ac si aliquid in eis offendero Litteris, quod videatur contrarium veritati, nihil aliud quam vel mendosum esse codicem, vel interpretem non assecutum esse quod dictum est, vel me minime intellexisse non ambigam” (PL 33, 377).

[57]Utrum prophetia sit de conclusionibus scibilibus” (Q.12, art. 2, c).

[58]Respondeo. Dicendum quod in omnibus quæ sunt propter finem, materia determinatur secundum exigentiam finis, ut patet in II Phys. Donum autem prophetiæ datur ad utilitatem Ecclesiæ, ut patet I ad Cor., XII, 10. Unde omnia illa quorum cognitio potest utilis ad salutem sunt materia prophetiæ, sive sint præterita, sive futura, sive æterna, sive necessaria, sive contingentia. Illa vero quæ ad salutem pertinere non possunt, sunt extranea a materia prophetiæ; unde Augustinus dicit, II super Genesim ad litteram [cap. IX], quod quamvis auctores nostri sciverint cuius figuræ sit cælum; tamen per eos dicere noluit Spiritus veritatem, nisi quæ prodest saluti; et Ioannis cap. XVI, vers. 13 dicitur Cum venerit ille Spiritus veritatis, docebit vos omnem veritatem; Glossa [interlin.] saluti necessariam. Dico autem necessaria ad salutem, sive sint necessaria ad instructionem fidei, sive ad informationem morum. Multa autem quæ sunt in scientiis demonstrata, ad hoc possunt esse utilia; utpote intellectum esse incorruptibilem, et ea quæ in creaturis considerata in admirationem divinæ sapientiæ et potestatis inducunt. Unde et de his invenimus in sacra Scriptura fieri mentionem” (ibid.). A enfase aqui é dada na edição de ‘Marietti’ dos trabalhos de São Tomás: Quæstiones disputatæ, vol. 1 (Turin & Rome: Marietti, 10th edn., 1964) 238.

[59]O decreto Tridentino, referindo-se tanto a Escritura quanto a Tradição, diz que sua mensagem foi pregada pelos Apóstolos “como fonte de toda verdade salvífica (tamquam fontem omnis et salutaris veritatis) (DS 1501).

[60]Essa passagem está agora incluída em seu próprio direito no rodapé, como podemos ver: cf. acima, seção 3(c) deste.

[61]Cf. acima, n. 19.

[62]A passagem citada de Santo Agostinho salienta esta ligação íntima entre os autores divino e humanos, que descreve os últimos agindo obedientemente como instrumentos de Deus, assim como os membros de um corpo humano obedecer à cabeça: “Assim, uma vez que eles escreveram o que Ele lhes mostrou e disse, não pode ser dito que ele mesmo não escreveu nada; pois o que seus membros fizeram foi o que lhes foi dito para ser feito, ditado pela Cabeça. (Itaque, cum illi scripserunt, quæ ille ostendit et dixit, nequaquam dicendum est, quod ipse non scripserit; quandoquidem membra eius id operata sunt, quod dictante capite cognoverunt.) “(De Consensu Evangeliorum, I, 1, C.35 [PL 34, 1070]). O trecho de São Gregório dá ainda mais ênfase a autoria divina da Escritura: “É bastante supérfluo investigar quem escreveu essas coisas quando se acredita fielmente que o Espírito Santo seja o autor do livro. Assim, a pessoa que os escreveu foi Aquele que lhes ordenou serem escritos; quem os escreveu foi Aquele presente em sua composição como seu Inspirador. (Quis hæc scripserit, valde supervacante quæritur, cum tamen auctor libri Spiritus Sanctus fideliter credatur. Ipse igitur hæc scripsit, qui scribenda dictavit: ipse scripsit qui et in illius opere inspirator exstitit)” (Moral no Trabalho, Præf 1, 2 [PL 75, 517AB]).

[63]“…ut propterea non pauca illa, quæ contrarii aliquid vel dissimile viderentur afferre… non subtiliter minus quam religiose componere inter se et conciliare studuerint.” Muitas – talvez a maioria – dessas passagens problemáticas envolvem questões ‘profanas’ ou históricas. A passagem termina com uma citação daquele mesmo trecho de uma carta de Agostinho para Jerônimo, que, como já vimos (cf. acima, n. 20) foi incluído separadamente nessa versão final do rodapé 5. Desde que aquela carta foi agora já citada em seu próprio direito, segue-se que a EB 127 não foi mencionada apenas porque contém o esse ensinamento de Santo Agostinho, mas acima de tudo para chamar a atenção para o que era novo naquele parágrafo, a saber, a declaração de Leão XIII sobre a importância de buscar a verdadeira reconciliação das aparentes contradições nas Escrituras.

[64]Cf. acima, seção 3(a).

[65]Cf. acima, seção 3(a).

[66]Infelizmente, esta é precisamente a interpretação que muitos comentaristas pós-conciliares têm dado ao texto. Raymond E. Brown, por exemplo, escreve: “Nos últimos cem anos, passamos de uma compreensão em que a inspiração garantida de que a Bíblia era totalmente inerrante a um entendimento em que a inerrância é limitada aos ensinamentos da Bíblia ‘daquela verdade que Deus quiz colocar nos escritos sagrados para o bem da nossa salvação.’ Nesta longa jornada de pensamento o conceito da inerrância não foi rejeitado, mas foi seriamente modificado para atender a evidência da crítica bíblica, que mostrou que a Bíblia não era infalível em questões de ciência, de história, e até mesmo de crenças religiosas condicionadas pelo tempo.”(A Concepção Virginal e a Ressurreição Corporal de Jesus. Nova Iorque: Paulist Press, 1973, pp 8-9, ênfase adicionada). De modo semelhante, P. Grech afirma que de acordo com o Vaticano II, “a verdade das Escrituras não inclui afirmações ‘profanas’ da Bíblia, mas é relativo à história da salvação” ( “Ermeneutica”, em P. Rossano, G. Ravasi, & A. Girlanda [eds.], Nuovo Dizionario di Teologia Biblica [Milão: Edizioni Paoline, 1988], p 486). (Essa exclusão de afirmações ‘profanas’ ou ‘não-religiosas’ da garantia de inerrância das Escrituras é condenada por não menos que cinco encíclicas papais: cf. EB 124, 264, 454, 538 e 612.)

[67]É ambígua, isto é, se prescindimos do contexto histórico e literário dessa passagem e a tomamos isoladamente. O principal objetivo de se estudar a história textual dessa passagem, as notas de rodapé explicativas, os relationes oficiais, a intervenção do Sumo Pontífice, e a relação da oração principal com a primeira oração relativa (“Desde… Espírito Santo”) é para resolver esta ambiguidade. Quando esses fatores são levados em conta, como devem ser, afirmaríamos que o ensinamento da Dei Verbum 11 não é de modo algum ambíguo.

[68]Cf. acima, Parte A, n. 33.

[69]É evidente que é preciso entender essas afirmações no sentido verdadeiramente pretendido por seus autores, tendo em conta o seu gênero literário e as outras normas hermenêuticas resumidas no artigo seguinte (n. 12) da Dei Verbum.

[70]Talvez possa se advertir que muitas das afirmações individuais físicas e históricas encontradas em alguns livros bíblicos não podem razoavelmente serem tidas como tendo quaisquer relevância salvífica. Mesmo prescindindo do sentido espiritual das Escrituras – pois tais detalhes bíblicos, aparentemente sem importância, podem um dia vir a conter riquezas ainda desconhecidas desse ponto de vista – e supondo por causa do argumento, que muitas ou a maioria das passagens em discussão não têm significado verdadeiro além seu sentido literal, devemos lembrar que o ensinamento da Igreja sobre a relevância salvífica de toda a Escritura não significa que cada afirmação bíblica isoladamente confere necessariamente alguma mensagem religiosa ou moral. Tal mensagem pode muito bem estar contida apenas no conjunto de muitas dessas proposições detalhadas. A comunicação da mensagem salvífica de Deus na e através da história talvez pudesse ser comparada com o poder de corte de um machado. Apenas a lâmina afiada – uma parte relativamente pequena de toda a ferramenta – realmente faz o trabalho de corte. No entanto, a lâmina não cortará nada a menos que esteja unida a um cabo de madeira maior, de modo que a ferramenta inteira possa ser manejada de forma eficaz pelo lenhador. E deste ponto de vista, cada uma das miríades de pequenos fragmentos que juntos constituem este cabo de madeira pode se dizer que desempenham um papel de verdade – embora não de forma isolada – no propósito global de corte e ação do machado. Do mesmo modo os vários aparentemente ‘profanos’ pontos de informação afirmados na Escritura são relevantes para o plano global de Deus que agiu em na e através da história humana para chamar, redimir e salvar seu povo.

[71]Cf. Efe. 3: 3-9.


[72]Um ponto importante ignorado pelos comentadores que afirmam que o Concílio limitou a inerrância bíblica ao conteúdo “salvífico” em oposição ao “não-salvífico” é a relação lógica entre essas duas frases, esclarecida pela conjunção Itaque(“assim” ou “em conformidade”), que é usada para introduzir o segundo. O uso de tal palavra mostra que a passagem de II Timóteo está incluída no texto com a intenção de explicar ou corroborar a declaração que imediatamente a precedeu. Mas como poderia a insistência de São Paulo sobre o valor salvífico de toda a Escritura de alguma forma explicar ou corroborar aquela frase precedente se este último tinha a intenção de indicar (entre outras coisas) que nem toda a Escritura tem valor salvífico? O uso de Itaque seria então sem sentido. Neste contexto, a palavra serve para tornar mais claro o sentido da frase anterior que é corroborado por uma análise da intervenção de Paulo VI em sua redação.

[73]Em W.M. Abbott, SJ, (ed.), Os Documentos do Vaticano II (Londres: Geoffrey Chapman, 1967), a expressão colocada em negrito no texto latino acima é traduzida como “a verdade que Deus queria colocar nos escritos sagrados para o bem da nossa salvação”(p. 119). Em A. Flannery, OP, (ed.), O Concílio Vaticano II: Os Documentos Conciliares e Pós Conciliares (Dublin: Dominican Publications, 1975) é traduzida: “a verdade que Deus, por causa da nossa salvação, quis ver confiadas às sagradas Escrituras” (p. 757). (A versão em inglês do Catecismo da Igreja Católica aprovada pelo Vaticano,  que cita esta frase da Dei Verbum no §107 usa a última tradução.)

[74]De acordo com P.G.W. Brilhante (ed.), Oxford Latin Dictionary (Oxford: Clarendon Press, 1982), o primeiro (original) significado da palavra é “afixarum selo a, selar (um documento)” (p 415). No outro padrão léxico latino-inglês, C.T. Lewis & C. Short, A Latin Dictionary (Oxford: Clarendon Press, 1975), o significado básico é dado como “Prover com um selo, afixar, colocaro selo de alguém em, selar, assinar, endossar” (p. 431). Esse leva apenas um objeto direto. Um exemplo dado no dicionário latino mais completo que já existiu, o Thesaurus Linguæ Latinæ, Editus Auctoritate et Consilio Academiarum quinque germanicarum (Leipzig:. B. G. Teubner, vol IV, 1906-1909), esta passagem de Tito Lívio é citada na col. 436: “… litteris Philippi atque Hannibalis perlectis consignata omnia ad senatummisit“(“… depois de ler as cartas de Philip e Hannibal, ele selou tudo e despachou para o Senado”).

[75]Glare (ed.), loc. cit. Lewis & Short dá este significado derivado “Anotar, escrever, registrar, gravar” (op. cit., 432). Cf. também F. Calonghi,Dizionario latino italiano (Turin: Rosenberg & Seller, 13th edn., 1950), que apresenta o segundo significado de como “fissare mediante un contrassegno, deporre, in via documentaria o autentica” (p.619).

[76]Essa expressão parece ter sido originadada do próprio Cícero: a passagem “Ac. 2,1,2” é citada nos referidos dicionários no n. 39 acima.

[77]Calonghi traduz essa expressão como “deporre per iscritto” (loc. cit.). No L. Castelloni & S. Mariotti, Vocabolario della lingua latina (Turin: Loescher, 1966), é dada como “affidare alla scrittura” (p. 261). No French aliquid litteris consignare is apresentado como “Mettre par écrit” (F. Noël, Dictionarium Latino-Gallicum [Brussels, 1857] 182) ou simplesmente “Écrire quelque chose” (L. Quicherat & A. Daveluy, Dictionnaire Latin-Français [Paris: Librairie Hachette, 1872] 263). O Thesaurus Linguæ Latinæ (citadono n. 39 acima) dá como exemplo a seguinte passagem do escritor cristão Lactantius (fim do 3.oe início do 4.oséculos): “...quam commendationem his litteris consignare volui” (“… Eu queria registrar aquela recomendação por meio deste documento” ou, “Eu queria depositar aquela recomendação por escrito na forma do presente documento”) (loc. cit.).

[78]Cf. C. Du Cange, Glossarium Mediæ et Infimæ Latinitatis, vol. II (Graz: Akademische Druk, 1954) 516. Um exemplo solitário do tempo patrístico do que concebivelmente é um caso dativo depois que  consignare é citado em A. Blaise, Dictionnaire Latin-Français des Auteurs Chrétiens (Turnhout [Belgium]: Éditions Brepols, 1954). Santo Hilário, comentando o Salmo 13, é citado aqui falando sobre o aprendizado ou ensinamento da Sagrada Escritura: “…consignanda sunt omnia animis” (p. 206). Entretanto, a tradução mais apropriada desta aparentemente seria algo como “tudo está gravado (ou impresso) nas almas.” Blaise apresenta esse uso da palavra significando “ imprimer dans, inculquer, faire comprendre” (ibid.) e a sua ressonância com a expressão metafórica do próprio Cícero na qual consignare é seguida por em e o ablativo é evidente: “…insitæ et quasi consignatæ in animis notiones” (citadoem Calonghi, loc. cit.). Isso pode ser apropriadamente apresentado como “ideias enxertadas e quase gravadas nas mentes.”

[79] A ampla amostra de Du Cange dos muitos usos em recentes e medievais da palavra litterae (op. cit., vol. V, 123-126) não contém nenhuma expressão semelhante ao litteris consignare, nem qualquer variante. Nem no tratamento de Blaise para a mesma palavra (op. Cit., 499), que em tempos medievais foi usada como parte do título de uma grande variedade de documentos civis e eclesiásticos. Esta ausência de quaisquer novos desenvolvimentos sugere fortemente que o significado de consignare litteris permaneceu inalterado de seu significado original ciceroniano ao longo desses séculos.

[80]Uma pesquisa de computador revela que consignare (em várias formas do verbo) ocorre apenas quatro vezes em todos os dezesseis documentos do Concílio Vaticano II em relação a algo que está sendo escrito, e todos estes quatro casos estão naDei Verbum– o contexto mais pertinente possível para fazer uma comparação com oexemplo em discussão. Além de sua ocorrência na cláusula inserida após veritatem, o verbo ocorre no início do mesmo artigo (11), bem como nos artigos 9 e 21. Em nenhum dos três casos há qualquer traço de um “destinatário” ser mencionado como um objeto indireto no caso dativo. No artigo 9, é dito que “a Sagrada Escritura é a palavra de Deus…registrada de forma escrita (Sacra Scriptura est locutio Dei… scripto consignatur).”A palavra scripto aqui deve ser ablativa: não poderia significativamente ser interpretada como uma espécie de ‘escrita’já existente funcionando como um ‘destinatário’ potencial para a Palavra de Deus, pois o texto identificaexpressamente a Palavra a própria Escritura. Em seguida, no início do artigo 11, lemos que “na Sagrada Escritura” (in Sacra Scriptura) “verdades reveladas por Deus… foram registradas (Divinitus revelata… consignatasunt)”; aqui não há claramente nenhum objeto indireto. Finalmente, no artigo 21, é feita menção de “As divinas Escrituras,… tendo sido registradas por escritode uma vez por todas,… (Divina[e] Scriptura[e]… semel pro semper litteris consignatæ,…).”Esta é a frase ciceroniana simples usando o ablativo instrumental. A palavra litteris aqui não poderia significar a Bíblia como um “destinatário” no caso dativo, uma vez que seria claramente sem sentido falar das Escrituras sendo ‘entregues à'(ou ‘colocadas em’ ou ‘confidenciadas’) a si próprias. Na primeira frase do artigo 11, ademais, encontramos um exemplo inequívoco da litterissendo utilizada no caso ablativo, desta vez sem consignare. O texto aí não se refere às verdades reveladas “que estão contidas e apresentadas por escrito na Sagrada Escritura (quæ in Sacra Scriptura litteris continentur et prostant).” Seria absurdo falar de verdades sendo “contidas” ou para certos escritos, ao em vez de neles.

[81]Cf. acima, Parte A, sobre o n. 22, para a frase original do Esquema III antes da ideia “salvífica” ser introduzida, e a Parte A, n. 33 para a explicação do relator do papel subsidiário daquela ideia no contexto: é algo a se “ter em mente” na consideração da inerrância, o que permanece como o principal ponto da frase.

[82]Na edição de Flannery dos documentos do Concílio, por exemplo (citada no n. 38, acima), lemos na p. 757: “Uma vez que, portanto,…afirmado pelo Espírito Santo, devemos reconhecer que os livros da Escritura, com firmeza, fielmente e sem erro, ensinam a verdade que Deus, para o bem da nossa salvação, quis consignar nas Sagradas Escrituras.” A edição Abbott (também citada no n. 38, acima) traduz esta frase da seguinte forma: “Portanto, desde que… afirmado pelo Espírito Santo, segue-se que os livros da Escritura devem ser reconhecidos por ensinar firmemente, com fidelidade e sem erro a verdade que Deus queria colocar nos escritos sagrados para o bem da nossa salvação”(p. 119). Da mesma forma, uma versão italiana de destaque, Documenti: il Concilio Vaticano II (Bologna: Edizioni Dehoniane, 1966), apresenta a frase na p. 507 como: “Poiché dunque . . . asserito dallo Spirito Santo, è da ritenersi anche, per conseguenza, che i libri della Scrittura insegnano con certezza, fedelmente e senza errore la verità che Dio, per la nostra salvezza, volle fosse consegnata nelle Sacre Lettere“(“…quis colocar nas Sagradas Escrituras”).

[83]Cf. a primeira frase do texto original citada no início desta seção (4[b]).

[84]Deve notar-se que temos mantido na tradução as virgulas utilizados no texto em latim antes e depoisda cláusula relativa (quam Deus… voluit). Omiti-las tende a obscurecer a intenção do Concíliode ser entendido como ensinamento que todas as afirmações dos escritores inspirados, independentemente do seu tema específico ou objeto, são “sem erro” (cf. abaixo, n. 54).

[85]A versão acima tem dezesseis palavras, a versão de Abbott tem quatorze, e a tradução de  Flannery tem dezesseis (cf. above, n. 47).

[86]Cf. acima, n. 38.

[87]As palavras “tendo em mente”, embora não literalmente no texto, refletem o propósito de uma oração adjetiva que apenas descreve, em vez de identificar, seu antecedente (cf. abaixo, n. 54). Neste caso, elas também refletem o comentário oficial do relator, que disse que o propósito salvífico das Escrituras era algo “para ser mantido em mente” (cuius ratio habeatur) no entendimento da  inerrância (cf. acima, parte A, n. 33) .

[88]Esta seria uma reprodução precisa apenas se o Latin tivesse dito “eam veritatem, quam…”. O uso do “que” ao invez de “a” neste contexto deixa a tradução mais aberta àquela interpretação que o Papa quis excluir quando ele interveio na redação, ou seja, uma distinção entre dois supostos tipos de verdade bíblica, “salvífica” e “não-salvífica.” Porque, se alguém usa o demonstrativo “que” e omite a vírgula depois de “verdade” (cf. n. 54 abaixo), isso sugere uma distinção entre dois tipos de verdade supostamente encontradas na Bíblia, ou seja, entre “aquela verdade que [é dada] para o bem da nossa salvação”, e outro tipo de verdade que não é dada por esse motivo.

[89]A omissão desta vírgula na tradução torna o significado menos claro. Uma oração adjetiva pode ser usada tanto para identificar o seu substantivo antecedente, distinguindo-o de outros membros da mesma classe, ou simplesmente para descrever um antecedente cuja identidade está suficientemente demonstrada. Por exemplo, se eu me refiro à “menina que estava usando óculos escuros” (sem vírgula), é porque eu gostaria de explicar de que menina estou falando. Mas se eu já expliquei que menina está sob discussão e desejo dar mais informações sobre ela, na passagem, eu diria, “a menina, que estava usando óculos escuros, fez tal e tal” (com vírgulas). Agora, o latim eclesiástico usa uma vírgula em ambos os casos, línguas vernáculas modernas somente no último caso (descritivo). Assim, na expressão diante de nós – veritatemquam Deusnostræ salutis causa Litteris Sacris consignari voluit – só o contexto histórico e literário pode nos dizer com certeza se a vírgula depois deveritatem deve ser omitida ou retida na tradução. Omiti-la tende a favorecer a interpretação segundo a qual o Concílio pretendeu aqui identificar uma determinada classe ou sub-divisão da verdade bíblica que é de significado salvífico, distinguindo-a de outra classe ‘não-salvífica’ – que pode conter uma mistura de erro. Mas nosso comentário mostrou, ao contrário, que todo o ponto de substituir esta oração para salutarem, depois que o Papa Paulo havia solicitado que este adjetivo fosse simplesmente omitido sem substituição, foi para tornar mais claro que o esquema não estava sugerindo quaisquer restrições à verdade das Escrituras. Na verdade, o fato de que o latim não diga eam veritatem (cf. n. 87, acima) já é uma indicação sintática muito forte de que a oração relativa não se destina a distinguir um suposto tipo de verdade bíblica de outro. A cláusula relativa após veritatem, portanto, destina-se apenas a descrever, não distinguir. Isso nos dá mais informações relevantes sobre a verdade bíblica como tal, ou seja, o fato de que tudo isso foi gravado “para o bem da nossa salvação.” Assim, se a expressão “propósito salvífico” é para ser mantida sob a forma de uma oração adjetiva relativa, as vírgulas depois veritatem e voluit definitivamente não devem ser omitidas na tradução. No entanto, a omissão da vírgula depois de “verdade” só faz a tradução mais doutrinariamente obscura, não claramente pouco ortodoxa. Tais versões vernaculares ainda serão lidas afirmando a autêntica doutrina Católica da inerrância bíblica se assumirmos que a distinção implícita ao omitir a vírgula é aquela entre a verdade bíblica e verdade extra-bíblica (com ambas sendo apresentada tanto como salvífica quanto como não contaminado por erro), e não que entre “a verdade bíblica salvífica” e uma suposta “verdade bíblica não-salvífica” (com apenas o primeiro a ser apresentado como não contaminada pelo erro).

FONTE


HARRISON, Fr. Brian W. Paul VI on the Truth and Inerrancy of Sacred Scripture <http://www.rtforum.org/lt/lt165.pdf and http://www.rtforum.org/lt/lt166.pdf>
PARA CITAR


HARRISON, Pe. Brian W. Paulo VI sobre a verdade e inerrância da Sagrade Escritura. <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/concilio-vaticano-ii/revelacao/889-paulo-vi-sobre-a-verdade-e-inerrancia-da-sagrade-escritura>. Desde 27/06/2016. Tradução: Michela Costa.
 

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