Segunda-feira, Dezembro 30, 2024

Papa Francisco: Ecumenismo x Proselitismo?

Recentemente, em um encontro com luteranos, o Papa Francisco disse que “o proselitismo é o veneno mais potente contra o caminho ecumênico”[1] e assegurou, diante da pergunta sobre o que fazer para convencer os que não têm fé, que “a última coisa que você deve fazer é: 'dizer'. Você deve viver como cristão eleito, perdoado e a caminho. Não é lícito convencer da sua fé”. Também aconselhou limitar-se a “preparar a terra para o Espírito Santo; é ele que trabalha nos corações. Ele é que deve dizer, não você”. 

Diante destas afirmações, muitas pessoas ficaram perplexas e eu quis escrever este artigo, para tentar compreender da melhor forma possível as palavras do Papa.

DEFINIÇÃO DE PROSELITISMO 

Costumo dizer, inspirado no bordão escolástico “De definitionibus non est disputandum” (“as definições não se discutem”), que as questões terminológicas são de segunda ordem em relação às questões de fundo ou de conteúdo, e que cada um tem o direito de escolher sua própria terminologia, dentro de certos limites. No entanto, é importante que quando alguém fizer uso de alguma terminologia, explique de maneira clara o que está querendo dizer com ela. É importante também compreender como o referido termo é entendido pela maior parte das pessoas na atualidade. Se fizermos isto, estaremos evitando equívocos e mal-entendidos. 

Como explicou[2] há vários anos Mons. Fernando Ocáriz[3], sacerdote e teólogo espanhol, Vigário Auxiliar do Opus Dei e consultor da Congregação para a Doutrina da Fé, a palavra "proselitismo" foi empregada tradicionalmente em dois sentidos: um positivo e outro negativo. 

De modo negativo para descrever um modo de agir não-conforme ao espírito evangélico, quando utiliza argumentos desonestos para atrair os homens à sua Comunidade, abusando, por exemplo, de sua ignorância, pobreza, etc. 

De modo positivo como conceito equivalente ao de atividade missionária. E explica que "na Bíblia, este termo não tem conotação negativa nenhuma. Um 'prosélito' era aquele que acreditava no Senhor e aceitava a sua lei, e deste modo se convertia em membro da comunidade judaica. A Cristandade tomou este significado para descrever aquele que se convertia do Paganismo. Até época recente, a atividade missionária e o proselitismo eram considerados conceitos equivalentes". 

Na atualidade, o uso que foi dado à palavra desde os últimos pontificados foi o de sentido pejorativo e este uso se tem imposto, a ponto que quando alguém fala em proselitismo costuma se referir somente aos métodos desonestos para atrair os outros à fé. Na prática, também foi um tentativa para tentar aliviar a situação dos cristãos em países onde o Cristianismo é minoria e aos que, sob a acusação de proselitismo, são perseguidos e condenados à morte. O caso de Asia Bibi é um entre muitos casos emblemáticos e, portanto, atualmente se prefere já não empregar o termo “proselitismo” para descrever a tentativa de atrair os outros à verdadeira fé, mas o de “evangelização”. 

Nesse sentido, não haveria motivo algum para ficar perplexo quando o Papa descreve o “proselitismo” como o veneno mais potente contra o caminho ecumênico, porque não é lícito de maneira nenhuma recorrer a métodos desonestos, nem sequer para levar a mensagem cristã, pois sabemos que o fim não justifica os meios. 

Porém, também explica Mons. Fernando Ocáriz, no artigo previamente citado, que “o problema de fundo é que com a tendência que tenta impor-se em alguns ambientes, de usar a palavra 'proselitismo' como algo negativo, se pretende afirmar uma atitude relativista e subjetivista, sobretudo no plano religioso, para o qual não teria sentido que uma pessoa pretendesse ter a verdade e procurasse convencer outras pessoas para que a acolham e se incorporem à Igreja. A desqualificação presente em alguns ambientes da palavra 'proselitismo', sobretudo quando se refere ao apostolado cristão, muito tem a ver, com efeito, com essa 'ditadura do relativismo que não reconhece nada como definitivo e que deixa como última medida somente o próprio eu e os seus desejos' (Joseph Ratzinger, Homilia na Missa de Abertura do Conclave, de 18.04.2005)”. 

É aí que as palavras do Papa Francisco causam perplexidade em muitos, porque literalmente ele disse que “a única coisa que você deve fazer é: 'dizer'. Você deve viver como cristão eleito, perdoado e a caminho. Não é lícito convencer da sua fé”. 

Entendo perfeitamente que o Papa não está exortando ao Indiferentismo, pois mais adiante ele fala em “preparar a terra para o Espírito Santo; é ele que trabalha nos corações. Ele é que deve dizer, não você”. Porém, mesmo assim, é incompreensível para mim enxergar como excludente a tentativa de convencer outros a aceitarem a fé cristã com o agir do Espírito Santo, pois sempre foi entendido que se trata de Deus, causa primeira, agindo através do homem, causa segunda. 

Cabe dizer ainda que quando tentamos convencer os outros, não estamos decidindo por eles, nem impondo-lhes a nossa fé; estamos ajudando como  instrumento que somos, dando por entendido que é Deus quem, ao final, faz a obra. Ou por acaso não é Deus quem age em nós o querer e o agir, como bem lhe parece? (cf. Filipenses 2,13).

UMA NOVA FORMA DE EVANGELIZAR? 

Obviamente, como católico entendo que o Papa, como ser humano, tem um estilo pastoral particular. Nem todos os Papas podem ser iguais e parece tratar-se aqui de um enfoque diferente ou uma forma indireta de atrair somente através do testemunho. Na história da Igreja, muitos Santos como, por exemplo São Francisco de Assis, conseguiram atrair ao mesmo tempo de forma passiva (com o puro exemplo e sem dizer uma única palavra) e de forma ativa (exortando, convidando e convencendo); porém, nunca ficaram só com a primeira forma e jamais ensinaram que a segunda fosse ilícita. 

O Novo Testamento nos narra que São Paulo “todo sábado, discutia na sinagoga e se esforçava por convencer judeus e gregos” (Atos 18,4). E no decorrer do Novo Testamento, vemos descrever uma e outra vez os esforços que ele ativamente dedicava para obter conversões. São Paulo estava neste ponto equivocado? 

São Pedro, o primeiro Papa, em sua primeira grande pregação, convidou à conversão todos os seus ouvintes: 

– “Pedro lhes respondeu: "Convertei-vos e que cada um de vós se faça batizar no nome de Jesus Cristo, para a remissão dos vossos pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo” (Atos 2,38). 

Não só os Apóstolos, pois a exortação à conversão provém do próprio Deus no Antigo Testamento, através de seus profetas: 

– “Convertei-vos através das minhas repreensões: derramarei meu espírito para vós; vos comunicarei minhas palavras” (Provérbios 1,23). 

– “Por isso, diz à casa de Israel: "Assim diz o Senhor Yahveh: 'Convertei-vos, afastai-vos das vossas sujeiras; de todas as vossas abominações afastai o vosso rosto'"” (Ezequiel 14,6). 

De São João Batista e do próprio Jesus: 

– “Desde então começou Jesus a pregar e a dizer: 'Convertei-vos, porque o Reino dos Céus chegou'” (Mateus 4,17). 

– “O tempo se cumpriu e o Reino de Deus está próximo; convertei-vos e crede na Boa Nova” (Marcos 1,15). 

E não só eles e os Apóstolos, mas durante todos os séculos da Igreja. Eu teria que escrever livros e mais livros para mencioná-los todos, porém recordo aqui São Francisco Xavier discutindo com os sacerdotes budistas, tentando convencê-los; Santo Antonio de Pádua convencendo os hereges patarinos e fazendo-os retornar à verdadeira fé; Santo Inácio de Loiola; e vai aqui um longo etc. O que devemos fazer? Lançar todos eles às patas dos cavalos? 

NOS SALVAMOS PELA FÉ, A FÉ VEM PELA PREGAÇÃO, "EX AUDITU", O JUSTO VIVE DA FÉ

É por isso que um enfoque tal como o que propomos aqui, na minha opinião, é muito fácil de ser mal-interpretado e pode ser prejudicial e nefasto, afundando os católicos ainda mais na apatia. Imaginemos por exemplo a seguinte conversa entre dois católicos em relação a uma possível interpretação das palavras do Papa: 

A: "Sede pescadores de homens". Estou esgotado!
B: Não é lícito convencer ninguém da sua fé!
A: Perdi o meu tempo! É melhor eu tirar férias… 

Obviamente, [o diálogo acima] não passa de uma brincadeira, porém estamos realmente certos de que não haverá os que entendam essas palavras assim? Gestos similares do Papa Francisco foram interpretados neste sentido, não só por católicos mas também por protestantes, como por exemplo este diário protestante que afirma que o Papa proibiu que tentássemos converter os judeus à fé cristã[4]. Inclusive altos prelados da nossa Igreja parecem raciocinar nesta linha como, por exemplo, o Cardeal Koch, presidente do Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos, que em uma de suas recentes declarações[5] disse que os católicos não devem evangelizar os judeus, os quais devem ser vistos como irmãos mais velhos; porém sim os muçulmanos… Mas posteriormente o padre Federico Lombardi, então porta-voz do Vaticano, esclareceu que isto havia sido mal-interpretado: os católicos tampouco devem tentar converter os muçulmanos, mas apenas evangelizá-los – conceitos que parecem ser excludentes na sua opinião. 

Não faz muito tempo, o Papa Emérito Bento XVI saiu do seu retiro para palestrar, abordando o que ele considera um problema fundamental nesta questão. Lucidamente afirmou: 

“FÉ CRISTÃ E SALVAÇÃO DOS INFIÉIS 

É indubitável que, no que diz respeito a este ponto, estamos diante de uma profunda evolução do dogma. (…) Se é verdade que os grandes missionários do século XVI estavam convencidos de que quem não era batizado estava perdido para sempre – e isto explica o seu compromisso missionário –, após o concílio Vaticano II referida convicção foi definitivamente abandonada na Igreja Católica. 

Disto deriva uma dupla e profunda crise: por um lado, isto parece eliminar qualquer tipo de motivação para um futuro compromisso missionário. Por que se deveria tentar convencer as pessoas de aceitarem a fé cristã quando elas podem se salvar também sem ela? 

Porém, [por outro lado], aos cristãos também se lhes foi levantada uma questão: a obrigatoriedade da fé e sua forma de vida passou a ser incerta e problemática. Ao fim e ao cabo, se há quem possa se salvar também por outros modos, já não está tão claro por que o cristão deve estar vinculado às exigências da fé cristã e à sua moral. Se a fé e a salvação já não são interdependentes, também a fé perde a sua motivação. 

Nos últimos tempos se levou a cabo diversas tentativas com o fim de conciliar a necessidade universal da fé cristã com a possibilidade de salvar-se sem ela. 

Recordo duas aqui: antes de mais nada, a conhecida tese dos cristãos anônimos de Karl Rahner (…) É certo que esta teoria é fascinante, porém reduz o Cristianismo a uma apresentação pura e consciente do que o ser humano é em si e, portanto, descuida do drama da mudança e da renovação, fundamental no Cristianismo. 

Ainda menos aceitável é a solução proposta pelas teorias pluralistas da religião, segundo as quais todas as religiões, cada uma a sua maneira, seriam vias de salvação e, neste sentido, equivalentes entre si. 

A crítica da religião tal como é exercida pelo Antigo Testamento, o Novo Testamento e a Igreja primitiva é essencialmente mais realista, mais concreta e mais verdadeira em sua análise das diferentes religiões. Uma aceitação tão simplista não é proporcional à grandeza da questão. 

Recordamos sobretudo Henri de Lubac e, com ele, outros teólogos que insistiram sobre o conceito de substituição vicária. (…) Cristo, ao ser único, era e é para todos: e os cristãos, que na grandiosa imagem de Paulo constituem o seu corpo neste mundo, participam do referido 'ser para'. Para dizê-lo de algum modo, os cristãos não são por si mesmos, mas com Cristo, para os outros. 

Isto não significa possuir uma espécie de ingresso especial para ingressar na bem-aventurança eterna, mas a vocação para construir o conjunto, o todo. O que a pessoa humana precisa em ordem à salvação é a íntima abertura para com Deus, a íntima expectativa e adesão a Ele e isto, vice-versa, significa que nós, junto do Senhor que temos conhecido, vamos para com os outros e tentamos fazer visível para eles o acontecimento de Deus em Cristo. (…) 

Penso que na situação atual é, para nós, cada vez mais evidente e compreensível o que o Senhor diz a Abraão, isto é, que dez justos teriam bastado para que a cidade sobrevivesse; porém, que esta se destrói a si mesma se não alcança este número tão pequeno. Está claro que devemos refletir ulteriormente sobre toda esta questão” (Bento XVI, "Bastam dez justos para salvar toda a cidade"; tradução de Sandro Magister)[6]. 

Posso entender que por questões de prudência “política”, o clero prefira evitar o uso de certa terminologia para evitar ofender os nossos irmãos de outras religiões, utilizando sinônimos que significam essencialmente a mesma coisa. Porém, o que eu não posso compreender é que essa terminologia pareça proibir o zelo que todo bom cristão deve ter para atrair outros à fé, exortando-os ativamente a abraçá-la e a unir-se a ela. 

Até porque se tentamos convertê-los é precisamente porque queremos o seu bem, porque de duas, uma: se realmente estamos convencidos de que “somente por meio da Igreja Católica de Cristo, que é 'auxílio geral de salvação', se pode alcançar a plenitude total dos meios de salvação” (Concílio Vaticano II, Unitatis Redintegratio 3), não há outra escolha, a menos que não nos importe o seu destino nem os amemos. Porém, se imaginamos que no fim das contas que tanto faz onde estejam, porque estão bem ali, é melhor apagar a luz e ir embora porque estamos perdendo tempo. 

Conta o grande cardeal Newman que durante a grande crise ariana no século IV, quase toda a hierarquia foi infiel à sua missão, enquanto que o conjunto do laicato foi fiel ao seu batismo; que às vezes o Papa, às vezes o patriarca, um bispo metropolitano ou de outra grande Sé, e outras vezes os Concílios, disseram o que não deveria dizer, ou obscureceram e comprometeram a verdade revelada; enquanto que, do outro lado, foi o povo cristão que, sob a Providência, constituiu a expressão do vigor eclesiástico de Atanásio, Hilário, Eusébio de Vercelli, e outros grandes confessores solitários que teriam fracassado sem eles. 

Não esqueçamos as lições da história, porque ainda que nós nos calemos, as pedras falarão.

—–
NOTAS
[1] https://es.zenit.org/articles/el-papa-asegura-que-el-proselitismo-es-el-veneno-mas-fuerte-contra-el-camino-ecumenico/ (em espanhol).
[2] http://www.apologeticacatolica.org/Ecumenis/Ecume27.html (em espanhol).
[3] http://www.opusdei.org/es/article/mons-fernando-ocariz/ (em espanhol).
[4] http://www.noticiacristiana.com/iglesia/ecumenismo/2015/12/los-catolicos-no-deben-intentar-convertir-a-judios-decide-vaticano.html (em espanhol).
[5] http://www.lanuovabq.it/it/articoli-ebrei-e-islamiciconversioni-non-gradite-16342.htm (em italiano).
[6] http://chiesa.espresso.repubblica.it/articolo/1351256?sp=y (em espanhol).

 

PARA CITAR


José Miguel Arráiz. Papa Francisco: Ecumenismo x Proselitismo?. Disponível em: <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/concilio-vaticano-ii/ecumenismo/918-papa-francisco-ecumenismo-x-proselitismo> Tradutor: Carlos Martins Nabeto. Do Original em Espanhol Disponível em: <http://infocatolica.com/blog/apologeticamundo.php/1610140601-iecumenismo-versus-proselitis>  Desde 17/10/2016.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Artigos mais populares