Sábado, Dezembro 21, 2024

Os Pais da Igreja negaram a imortalidade da alma?

É comum no Brasil alguns blogs de “apologética” protestante defenderem a ideia da mortalidade da alma (ou aniquilacionismo). Visto isso, Rafael Rodrigues se propôs a responder tais suposições expondo alguns textos dos Santos Padres a respeito do tema (que podem ser lidos aqui).

Poucos dias depois, os textos dos Padres já se encontravam totalmente corrompidos pela “réplica” desesperada de um autor protestante (que inclusive, supunha que Rafael havia escrito seu texto especificamente direcionado a ele contra um artigo seu publicado em 2012) em seu blog intitulado “Heresias Católicas”. Com uma linguagem infantil, o blogueiro se propõe a “refutar” o artigo de Rafael, dando interpretações absurdas à textos de Inácio de Antioquia, Justino de Roma, Policarpo de Esmirna,  Mathetes, Teófilo de Antioquia, Taciano da Síria, Atenágoras de Atenas e Irineu de Lião. No fim, ele ainda põe uma plaquinha vermelha escrito “Refutado”, o que demonstra toda a sua imaturidade argumentativa. O seu post pode ser lido aqui.

De acordo com o blog (que aparentemente despreza a teoria de Constantino), a Igreja teria se “corrompido” com a introdução da filosofia platônica em seu seio (que trouxe consigo a doutrina da imortalidade da alma)  por volta da metade do século II. A partir da doutrina da imortalidade, todas as demais doutrinas foram influenciadas e a Igreja foi, finalmente, “paganizada” (vindo a ser liberta apenas 1500 anos mais tarde, com a vinda dos “iluminados”). A realidade, porém, é bem diferente do que o que ele propõe.

Neste trabalho acrescentarei também outras citações que não estão presentes no post de Rafael.

OS SANTOS PADRES

Antes de se iniciar a análise deve-se distinguir os três tipos de «imortalidade» que os Pais abordam em suas obras: a «imortalidade do corpo» (isto é, o dom de não morrer, que foi perdido por Adão e Eva no Paraíso), a «imortalidade da alma» (isto é, a crença de que nossa alma continua existindo após a morte de nosso corpo) e a «imortalidade da vida eterna» que é a vida na comunhão com Deus (que contrasta com a «eterna morte» que é o eterno afastamento de Deus dos homens).

O blogueiro faz uma confusão com todos esses termos, cita passagens que não abordam diretamente o tema da imortalidade da alma e é extremamente especulativo. Neste post, tentarei ao máximo organizar os pensamentos desta mente tão desorganizada e expor a verdade no que se refere à crença na imortalidade da alma no segundo século da Era Cristã.

A IMORTALIDADE DA ALMA NO CREDO APOSTÓLICO (55 d.C.)

O primeiro ponto que analiso é a suposta “refutação” feita pelo blogueiro à introdução do post de Rafael Rodrigues. Nesta introdução, Rafael afirmou que a doutrina da imortalidade da alma «é uma das doutrinas mais básicas para qualquer cristão». O blogueiro então afirma que a imortalidade da alma não pode ser uma doutrina básica para qualquer cristão pois ela supostamente não estaria presente no Credo Apostólico e nos “credos” protestantes.

Ora, não abordarei aqui os supostos “credos” protestantes pois, como dizia o próprio Lutero a respeito das consequências da Reforma: «há tantas seitas e credos quanto o número de cabeças. Nada é tão rude quanto aquele que tem sonhos e fantasias, e pensa por si mesmo que foi inspirado pelo Espírito Santo, devendo ser um profeta» [1].

No tocante ao Credo Apostólico, há sim uma afirmação implícita sobre a doutrina da imortalidade da alma quando este afirma que Cristo «foi crucificado, morto e sepultado; desceu a mansão dos mortos (descendit ad ínferos) e ressuscitou no terceiro dia» . Ora,um dos textos bíblicos mais deturpados pelos aniquilacionistas que prova clarissimamente a doutrina da imortalidade da alma são os contidos na 1ª Epístola de Pedro que dizem que Cristo foi «pregar a Boa Nova aos espíritos em prisão» (1 Pedro 3,19). Como eles creem que as almas dos justos foram aniquiladas, Pedro jamais poderia estar falando de uma pregação dirigida realmente aos mortos. O Credo Apostólico, entretanto, ressalta que Cristo, após ser morto e sepultado, “desceu para a Mansão dos mortos”, provando que ele foi realmente pregar a Boa Nova para as almas dos falecidos que repousavam na Mansão dos mortos.

Nisto, a ortodoxia cristã ensina que Jesus libertou as almas dos Patriarcas deste lugar chamado «Sheol», «Hades», «Mansão dos mortos», «infernos» ou «Seio de Abraão» (cf. Lc 16, 22) e levando-os para o Céu. Jesus, durante os três dias em que esteve morto, «desceu a mansão dos mortos», pregou-lhes a Boa-Nova da Salvação, e levou estas almas a esperarem o dia da ressurreição nos Céus (cf. Fl 3,20-21).

É sempre bom ressaltar que os “espíritos em prisão” que Cristo levou consigo não se trata das almas dos condenados, mas os espíritos dos justos (como os profetas e os Patriarcas) que aguardavam a vinda do Messias na “Mansão dos Mortos”:

 “A Escritura denomina a Morada dos Mortos, para a qual Cristo morto desceu, de os Infernos, o Sheol ou o Hades (cf. Fl 2,10; At 2,24; Ap 1,18; Ef 4,9), visto que os que lá se encontram estão privados da visão de Deus (cf. Sl 6,6; 88,11-13). Este é, com efeito, o estado de todos os mortos, maus ou justos (Cf. Sl 89,49; 1 Sm 28,19; Ez 32,17-32), à espera do Redentor que não significa que a sorte deles seja idêntica, como mostra Jesus na parábola do pobre Lázaro recebido no “seio de Abraão” (cf. Lc 16,22-26). “São precisamente essas almas santas, que esperavam seu Libertador no seio de Abraão, que Jesus libertou ao descer aos Infernos” (Santo Agostinho de Hipona, De Catechizandis rudibus, 1,6,3)Jesus não desceu aos Infernos para ali libertar os condenados (cf. Conc. De Roma de 745; DS 587) nem para destruir o Inferno da condenação, mas para libertar os justos que o haviam precedido (cf. IV Concílio de Toledo em 633, Capítulo 1: DS 485, Mt 27,52-53).” (Catecismo da Igreja Católica, §633)

Crer que Cristo pregou realmente aos espíritos dos justos já falecidos pressupõe que eles estejam conscientes, e, indiretamente, afirma a crença na imortalidade da alma como uma doutrina essencial para a fé cristã.

Todos os padres da Igreja concordam com essa doutrina. Vide os textos de Inácio de Antioquia [2], Melito de Sardes [3], Pastor de Hermas [4], Irineu de Lião [5], Justino Mártir [6], Hipólito de Roma [7], Clemente de Alexandria [8], Didascalia Apostolorum [9] Tertuliano de Cartago [10], Orígenes de Alexandria [11] e Santo Agostinho [12]. Comentaremos mais adiante cada citação.

Em síntese, percebemos que a Igreja Primitiva sempre entendeu que os «espíritos em prisão» a quem Pedro se referia eram os próprios profetas e patriarcas. E isso está plasmado não apenas nos escritos dos Padres, mas no próprio Credo Apostólico, sendo, portanto, como falou Rafael Rodrigues, «uma das doutrinas mais básicas para qualquer cristão». Vamos falar agora dos casos específicos, provando a crença dos cristãos do século II na imortalidade da alma.

 

SÃO CLEMENTE DE ROMA (95 d.C.)

«Fixemos nossos olhos sobre os valorosos apóstolos: Pedro, que por ciúme injusto não suportou apenas uma ou duas, mas numerosas provas e, depois de assim render testemunho, chegou ao merecido lugar da glória. Por ciúme e discórdia, Paulo ostentou o preço da paciência. Sete vezes acorrentado, exilado, apedrejado, missionário no Oriente e no Ocidente, recebeu a ilustre glória por sua fé. Ensinou a justiça no mundo todo e chegou até os confins do Ocidente, dando testemunho diante das autoridades. Assim, deixou o mundo e foi buscar o lugar santo, ele, que se tornou o mais ilustre exemplo da paciência.» (São Clemente de Roma, Primeira Epístola aos Coríntios, capítulo V, 4-7)

Esta carta foi escrita pelo Papa Clemente I à comunidade de Corinto, sendo redigida provavelmente pelos fins do reinado de Domiciano (81-96 d.C.) durante a segunda perseguição aos cristãos movida por este Imperador. Aí, Clemente ensina que o Apóstolo Pedro, após suportar numerosas aflições em vida, «chegou ao merecido lugar da glória» e que o Apóstolo Paulo, após ter sido sete vezes acorrentado, exilado e apedrejado, «recebeu a ilustre glória» e também que ele «deixou o mundo e foi buscar o lugar santo». A crença no estado intermediário é evidente (e consequentemente a crença na imortalidade da alma humana).

Há ainda outra passagem de Clemente no qual analisa escatologia:

«Desde Adão, passaram todas as gerações até o dia de hoje. Mas os que foram perfeitos no amor segundo a graça de Deus tomaram posse da terra dos santos e hão de manifestar-se quando o Reino de Cristo estiver à vista.» (São Clemente de Roma, Primeira Epístola aos Coríntios, capítulo 50, 3)

Perceba que nesse texto, Clemente afirma que os santos já «tomaram posse da terra dos santos» e que apenas esperam o Reino de Cristo que virá após o dia da Ressurreição (quando irão se manifestar ao mundo). O tempo passado indica uma ação já concluída, logo, novamente Clemente afirma o estado intermediário dos justos.

Mesmo assim, nosso autor, ignorando esse texto, inclui São Clemente em uma suposta lista de padres aniquilacionistas. Seria cômico, se não fosse trágico e conduzisse pessoas para um inferno de tormentos que é eterno.

 

O PASTOR DE HERMAS (100 d.C.)

«Eu pedi: “Senhor, explica-me mais ainda.” Ele respondeu: “O que procuras mais?” Eu continuei: “Senhor, por que as pedras tiveram que subir do fundo, para ser colocadas na construção da torre, embora tivessem esses espíritos?” Ele respondeu: “Era preciso que saíssem da água, para receber a vida. Elas não podiam entrar no Reino de Deus, senão deixando a mortalidade da vida anterior. Tais mortos receberam o selo do Filho de Deus e entraram no Reino de Deus. De fato, antes de levar o nome do Filho de Deus o homem está morto. Quando recebe o selo, deixa a morte e retoma a vida. O selo é a água: eles descem à água e daí saem vivos. Também a eles foi anunciado esse selo, e eles o usaram para entrar no Reino de Deus.” Eu perguntei: “Senhor, por que as quarenta pedras também sobem com eles do abismo, visto que estas pedras também sobem com eles do abismo, visto que estas já haviam recebido o selo?” Ele respondeu: “Porque esses apóstolos e doutores que anunciaram o nome do Filho de Deus, adormecidos no poder e na fé do Filho de Deus, o anunciaram também àqueles que tinham morrido antes deles, e lhes deram o selo do anúncio. Desceram com eles à água e novamente subiram. Contudo, desceram vivos e subiram vivos, enquanto os que estavam mortos antes desses desceram mortos e subiram vivos. É graças a eles que estes últimos receberam o nome do Filho de Deus.» (O Pastor de Hermas, Parábola IX, 16 (93 na versão da Paulus))

O testemunho de Hermas é um pouco diferente, mas de todas as formas, também é claro com relação ao estado de consciência dos mortos. Para Hermas, aos apóstolos foi dada a missão de batizar as almas dos que faleceram antes da vinda de Cristo para que elas pudessem entrar no Reino de Deus (já que o Batismo sempre foi tido pela Igreja como necessário para salvação), afinal era necessário que eles deixassem a “mortalidade da vida anterior”, já que o Batismo nos concede a nova vida.

Hermas reconhece que Cristo os tirou do Hades (que o autor compara à morte) e os levou para o Céu: «Tais mortos receberam o selo do Filho de Deus e entraram no Reino de Deus» em clara referência aos “espíritos em prisão” descritos por Pedro e aos “cativos” que Jesus levou consigo ao descer a mansão dos mortos descrito por Paulo. Novamente, a crença de que a alma humana é imortal e espera o último dia em um estado intermediário é afirmada.

Essa ideia de que Jesus e os apóstolos ministraram até o Batismo para as almas dos falecidos não é exclusiva de Hermas. São Clemente de Alexandria concordava com ele: “Cristo visitou, pregou e batizou os homens justos de antigamente, gentios e judeus, não apenas aqueles que viveram antes da vinda do Senhor, mas também aqueles que foram antes da vinda Da Lei,(…) tais como Abel, Noé, ou qualquer homem justo.” (São Clemente de Alexandria, Stromata, 2,9).

Um último ponto interessante de notar sobre os escritos de Hermas é que este padre utiliza constantemente os termos «perecer» e «morrer» no sentido espiritual de afastamento definitivo de Deus contra o que prega a heresia aniquilacionista.

 

SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA (107 d.C.)

«Meu espírito se sacrifica por vós, não somente agora, mas também quando eu chegar a Deus (Santo Inácio de Antioquia, Epístola aos Tralianos 13,3)

Por volta do ano 107 d.C., Inácio escreve esta epístola direcionada à comunidade de Trália. Nesta carta, Inácio promete que continuará ajudando a Igreja quando «chegar a Deus» (eufemismo para morte).  O termo «αγωνιζεται» indica esforço, doação, e luta em favor ao próximo. Outras traduções para o português, por exemplo, trazem o seguinte texto, que pode ser mais esclarecedor: «Meu espírito por vós se empenha, não apenas agora, também quando com Deus me encontrar» (http://www.cristianismo.org.br/inacio-4.htm).

Tudo isso evidencia a crença escatológica de Inácio em um estágio intermediário, algo que só é possível devido à imortalidade da alma. O «sacrifício» que Inácio fala, não seria necessário utilizar caso se referisse ao período pós-ressurreição da carne, simplesmente porque neste período não haverá mais angústia, «nem pranto, nem clamor, nem dor» (Ap 21:4), algo que a Igreja primitiva estava familiarizada. Inácio se referia, portanto, à Igreja militante, que ficaria peregrinando na Terra, tendo que enfrentar todo o tipo de angústia. Do texto, não se pode inferir outra coisa senão que Inácio crê que a alma humana se mantêm consciente e viva após a morte.

Em sua defesa, o blogueiro alega que os católicos tiram as obras de Inácio de seu devido contexto, apresentando um “versículo isolado” e desprezando a totalidade das obras do Padre. Para sustentar essa tese, o autor cita alguns textos onde Inácio mostra interesse em «ser encontrado na ressurreição como vosso discípulo [referindo-se à Policarpo]» (cf. Carta de Inácio a Policarpo, 7:1). É claro que Inácio irá se orgulhar no grande Dia da Ressurreição de ter sido discípulo de um mestre como Policarpo, mas isso não quer dizer que Inácio crê que será aniquilado ao morrer.

Um segundo argumento do blogueiro é sustentar sua tese em frases onde Inácio diz que «no dia da ressurreição» se encontrará com seus irmãos da fé. Ora, esse é o mesmo ensinamento da Igreja hoje, que espera ansiosamente pelo dia da ressurreição dos mortos, onde finalmente estará reunida com todos os eleitos de Deus. A ressurreição envolve o homem como um todo (isto é, corpo e alma) e, portanto, logicamente ainda não ocorreu. Em nenhum momento as passagens citadas falam de aniquilação de almas. O mesmo vale para Policarpo.

Ao falar de Policarpo, o autor recorre ao seguinte texto de Santo Inácio de Antioquia para “provar” sua teoria de que os primeiros cristãos criam no aniquilacionismo temporário: «Atendei ao bispo para que Deus vos atenda. Ofereço-me como resgate daqueles que se sujeitam ao bispo, aos presbíteros e diáconos. Com eles me seja concedido ter parte em Deus. Labutai uns ao lado dos outros, lutai juntos, correi, sofrei, dormi, acordai uni­dos, como administradores de Deus, como Seus assessores e servos.»(Santo Inácio de Antioquia, Epístola à Policarpo de Esmirna, capítulo 6).

De acordo com ele há uma sequência cronológica neste versículo, o que o levaria a concluir que os santos estavam literalmente dormindo e na ressurreição acordariam. Ainda que estivesse falando no sentido da ressurreição, Inácio estaria se referindo ao despertar de nossos corpos, afinal, em grego “dormir” é um eufemismo para morte corporal. Inácio estaria exortando-nos a “morrer (dormir) e ressuscitar (acordar) juntos”, “como administradores de Deus”. O texto também não é, portanto, uma prova da “morte” da alma.

Inácio também evidencia a doutrina da imortalidade da alma ao comentar acerca da descida de Cristo ao Hades e da pregação da Boa Nova feita às almas dos santos falecidos. De acordo com Inácio, os profetas «esperavam no Espírito» à Cristo, que os «instruiu» e «os levantou dentre os mortos»:

«Como seremos capazes de viver longe Dele [Cristo], cujos discípulos e os próprios profetas esperaram no Espírito para que Ele fosse o Instrutor deles? Era Ele que certamente esperavam, pois vindo, os levantou dentre os mortos (Santo Inácio de Antioquia, Epístola aos Magnésios 9,2).

Em outra passagem, Inácio ressalta a espera dos patriarcas no Hades pela vinda do Messias que os levariam para o Paraíso:

«Amemos igualmente os Profetas, por terem também eles anunciado o Evangelho, terem esperado n’Ele e O terem aguardadoForam salvos por Lhe terem dado fé, e, unidos a Jesus Cristo, se tornarem santos dignos do nosso amor e admiração, aprovados pelo testemunho de Jesus Cristo, sendo enumerados no Evangelho da comum esperança.»(Santo Inácio de Antioquia, Epístola aos Filafélfos, V).

Como dito anteriormente, crer que Cristo pregou realmente aos espíritos dos justos já falecidos pressupõe que eles estejam conscientes, e, indiretamente, afirmaa crença na imortalidade da alma.

As três passagens evidenciam que Inácio não cria em “aniquilamento de almas”, mas sim na imortalidade de nossas almas.

 

Inácio acreditava que o destino dos ímpios era a aniquilação?

Para negar a eternidade dos tormentos do Inferno, o autor então se prende a expressões de Inácio onde ele diz que Jesus «soprará a imortalidade», e que a Eucaristia é o «remédio da imortalidade (…) para viver para sempre». Ora esses textos não analisam a questão da imortalidade da alma em si, pois a «imortalidade» neste contexto está associada à ideia de «vida eterna» (isto é, a vida na comunhão com Deus), da qual apenas os santos participarão, que contrasta com a “eterna morte” que é a eterna separação de Deus. Não há um debate aqui no tocante à imortalidade da alma.

Seu segundo argumento está baseado em um texto presente na Carta aos Magnésios X, onde o Padre escreve que: «Assim, não sejamos insensíveis à Sua bondade. Se Ele nos recompensasse conforme as nossas obras, certamente deixaríamos de existir. Porém, por termos tornado Seus discípulos, devemos aprender a viver de acordo com os princípios do Cristianismo.». É claro que o nosso dom de existir depende unicamente da vontade de Deus, nosso Criador, e não de nossos próprios méritos. Essa não é uma posição de escatologia mas a constatação de um fato lógico. Não se pode a partir desse texto se forçar uma interpretação aniquilacionista.

Por fim, o blogueiro diz que no capítulo 11:1 da Carta aos Tralianos, Inácio defende o aniquilacionismo pois segundo ele nesse texto “Inácio dizia que o fim dos ímpios será uma ‘morte instantânea’”. Analisemos o texto citado na íntegra:

«Fugi pois destas plantas parasitas, que produzem fruto mortífero. Se alguém provar delas morre na hora. Não são pois eles plantação do Pai. Se o fôssem, apareceriam como rebentos da cruz, e seu fruto seria imperecível. Pela Cruz, Ele vos conclama em sua Paixão como Seus membros. Não pode uma cabeça nascer sem membros, uma vez que Deus nos promete a unidade que é Êle próprio.» (Santo Inácio de Antioquia, Carta aos Tralianos 11,1)

Ora, nesta passagem Inácio está apenas utilizando uma alegoria para descrever que quem come as «plantas parasitas que produzem fruto mortífero» (isto é, quem dá ouvidos a heresias) «morre» na hora (no sentido de morte espiritual, isto é, separação de Deus). Interpretar isso literalmente nos faria concluir que Inácio acredita que toda vez que alguém escuta uma heresia tem sua alma aniquilada por Deus. Mais uma vez, nosso autor não consegue sustentar suas teses ridículas.

 

SÃO POLICARPO DE ESMIRNA (150 d.C.)

«Exorto-vos pois todos a obedecer e exercitar toda a paciência, a que vistes com vossos olhos não somente nos bem-aventurados Inácio, Rufo e Zózimo, mas também em outros dos vossos, e no próprio Paulo e nos demais apóstolos, persuadidos que não correram em vão, mas na fé e na justiça, e que já estão no lugar que lhes é devido, junto ao Senhor, com a qual padeceram”.» (São Policarpo de Esmirna, Epístola aos Filipenses, IX)

Policarpo, ao comentar a respeito de Inácio, Zózimo e Rufo (que já haviam falecido), garante aos cristãos filipenses que eles «já estão no lugar que lhes corresponde na presença do Senhor, com quem eles também sofreram». O texto por si mesmo não precisa de explicações: o autor utiliza o presente para indicar que os santos citados já receberam sua recompensa.

A tentativa de contra-argumentação do blogueiro é ridícula. Ele afirma que o texto pode referir-se a doutrina psicopaniquista ou ser uma figura de linguagem para descrever o sono da alma.

O texto não pode se adequar ao psicopaniquismo porque essa heresia defende que as almas dos justos estão dormindo e que só receberão sua recompensa após a ressurreição, enquanto que Policarpo defende que os santos já receberam sua recompensa, estando «no lugar que lhes corresponde na presença do Senhor». As demais “interpretações” propostas pelo blogueiro para tentar forçar uma interpretação aniquilacionista do texto são totalmente especulativas, não havendo nada no texto de Policarpo que as sustente.

Vamos agora aos supostos textos em que Policarpo defende o aniquilacionismo.

Texto I: «Se o aguardarmos neste mundo, ele nos dará em troca o tempo futuro, pois ele nos prometeu ressuscitar-nos dentre os mortos, e, se a nossa conduta for digna dele, também reinaremos com ele, se tivermos fé.» (São Policarpo, Epístola aos Filipenses, V, II)– De acordo com o protestante, Deus só nos dará o “tempo futuro” após a ressurreição (e Policarpo, portanto, supostamente cria que as almas deixariam de existir com a morte).

Ora, é claro que o “tempo futuro” é o estado pós-ressurreição dos “Novos Céus e da Nova Terra” descritos em Apocalipse que contrastam com os tempos presentes. Até hoje nós católicos esperamos ansiosamente por este tempo vindouro, mas isso não significa que os santos já não estão, como diz o próprio Policarpo, esperando este dia «no lugar que lhes corresponde na presença do Senhor».

Texto II: «Quem não confessa que Jesus Cristo veio na carne, é anticristo; aquele que não confessa o testemunho da cruz, é do diabo; aquele que distorce as palavras do Senhor segundo seus próprios desejos, e diz que não há ressurreição, nem julgamento, esse é primogênito de satanás» (São Policarpo, Epístola aos Filipenses, VII, I)– O autor conclui que como a passagem diz que primeiro ocorrerá a ressurreição e depois o julgamento, o autor não poderia ser imortalista pois “se a alma fosse imortal este julgamento já teria acontecido, no momento em que ela se separa do corpo”. Ora, novamente nosso amigo demonstra um profundo desconhecimento acerca da escatologia católica. Nós cremos que ao morrer, nossas almas recebem um juízo particular e em seguida sua recompensa mas cremos que no dia em que ressuscitarmos (isto é, com nossos corpos) seremos julgados novamente no chamado “Juízo Final”. Essa é a doutrina apostólica a qual Policarpo também professa.

 

O MARTÍRIO DE POLICARPO DE ESMIRNA (SÉC. II)

A obra “O Martírio de Policarpo de Esmirna”, escrita logo após a morte de Policarpo (e que narra a história de seu martírio), defende claramente a imortalidade da alma. Em uma de suas passagens, prova sua crença no “estado intermediário”:

«Por sua perseverança, ele triunfou sobre o iníquo magistrado, e assim foi cingido com a coroa da imortalidade. Juntamente com os apóstolos e todos os justos, na alegria, ele glorifica a Deus, Pai todo-poderoso, e bendiz nosso Senhor Jesus Cristo, o salvador de nossas almas, guia de nossos corpos, e pastor da Igreja Católica no mundo inteiro.» (Martírio de Policarpo, XIX)

Perceba o tempo em que o autor emprega seus verbos. De acordo com ele, o mártir «foi cingido com a coroa da imortalidade» e que já está «juntamente com os apóstolos e todos os justos, na alegria» onde «ele glorifica a Deus, Pai Todo-Poderoso, e bendiz nosso Senhor Jesus Cristo». Ora, se ele crê que Policarpo está glorificando a Deus na alegria com os demais santos, não crê que sua alma foi aniquilada por Deus.

A respeito do inferno, o autor escreveu:

«O procônsul insistiu: “Já que desprezas as feras, eu te farei queimar no fogo, se não mudares de ideia. Policarpo respondeu-lhe: “Tu me ameaças com um fogo que queima por um momento, e pouco depois se apaga, porque ignoras o fogo do julgamento futuro e do castigo eterno, reservado para os ímpios. Mas por que tardar? Vai e faze o queres.”»(Martírio de Policarpo, XI)

Perceba o contraste que o autor faz entre «o fogo que queima por um momento» e o «fogo do castigo eterno». Um é passageiro, o outro é eterno. Ora, se ele estivesse falando de dois fogos passageiros, o texto não faria sentido. Por isso percebemos não só que o autor da obra reconhece o estado intermediário, como também reconhece a eternidade dos castigos do inferno.

Agora, iremos discutir as três análises feitas pelo autor com base em um texto supostamente aniquilacionista na obra “O Martírio de Policarpo de Esmirna”.

«Então não o pregaram [referindo-se à Policarpo], mas o amarraram. com suas mãos amarradas atrás das costas, ele parecia um cordeiro escolhido de grande rebanho para o sacrifício, holocausto agradável preparado para Deus. Erguendo os olhos ao céu, disse: “Senhor, Deus todo-poderoso, Pai de teu Filho amado e bendito, Jesus Cristo, pelo qual recebemos o conhecimento do teu nome, Deus dos anjos, dos poderes de toda criação, e de toda geração de justos que vivem na tua presença! Eu te bendigo por me teres julgado digno deste dia e desta hora, de tomar parte entre os mártires, e do cálice de teu Cristo, para a ressurreição da vida eterna da alma e do corpo, na incorruptibilidade do Espírito SantoCom eles, possa eu hoje ser admitido à tua presença como sacrifício gordo e agradável, como tu preparaste e manifestaste de antemão, e como realizaste, ó Deus sem mentira e veraz.”.» (O Martírio de Policarpo, 14:1-2)

Ora, parece que o blogueiro realmente não leu a passagem que ele mesmo citou. Policarpo, utilizando o tempo presente, agradece a Deus de o «ter julgado digno DESTE DIA E DESTA HORA, de tomar parte entre os mártires» e que «com eles, possa eu HOJE ser admitido à tua presença», e ressalta que é de lá que esperará «para a ressurreição da vida eterna». O estado intermediário está sendo claramente ressaltado pelo autor. Resumimos em síntese três colocações do autor perante esse texto. Vamos a elas:

Argumento I: “Policarpo cria na ressurreição da alma e do corpo, e não meramente na ressurreição do corpo” Em primeiro lugar, o texto fala em “vida eterna da alma e do corpo” e não em “ressurreição da alma e do corpo”. Mas de qualquer forma, mesmo se o autor utilizasse a expressão “ressurreição da alma e do corpo”, o termo não contradiria a escatologia católica pois acreditamos que quem irá ressuscitar no dia da Ressurreição é a Pessoa inteira (isto é, corpo e alma, já que a alma irá se reencontrar com o corpo).

Argumento II: “Policarpo diz que a incorruptibilidade só vem depois da ressurreição” Ora, é claro que a incorruptibilidade de nossos corpos só nos será dada após a ressurreição de nossa carne. Isso não pressupõe aniquilação de almas.

Argumento III: “Policarpo não nos traz qualquer expectativa de que sua alma saísse do corpo, mas faz menção apenas à ressurreição– A esse argumento indico apenas que leia o texto na íntegra calmamente. Policarpo agradece a Deus por tê-lo«julgado digno DESTE DIA E DESTA HORA, de tomar parte entre os mártires» e que «com eles, possa eu HOJE ser admitido à tua presença». Tudo isso indica sim que sua alma foi para junto dos mártires estando na presença de Deus.

 

SÃO MELITO DE SARDES (170-180 D.C.)

«Mas [Cristo] ressuscitou dentre os mortos e subiu até as alturas do céu. Quando o Senhor se revestiu de humanidade e sofreu o sofrimento, e foi preso por causa dos prisioneiros, e foi julgado por causa dos condenados, e foi sepultado pela causa pela qual foi sepultado, Ele ressuscitou dentre os mortos, e clamou em voz alta com esta voz: Quem é aquele que compete comigo? Que ele fique em oposição a mim. Libertei o condenado; Dei vida ao morto; Eu levantei aquele que tinha sido sepultado. Quem é o meu adversário? Eu, diz ele, sou o Cristo. Eu sou aquele que destruiu a morte, triunfou sobre o inimigo, pisotiou Hades debaixo de seus pés, amarrei o forte e levei o homem para as alturas do Céu. Eu, diz Ele, sou o Cristo.» (São Melito de Sardes, Peri Pascha, 100-102)

O autor aí faz clara associação à descida de Cristo ao Hades quando diz que Cristo «pisoteou o Hades debaixo de seus pés, amarrou o forte e levou o homem para as alturas do Céu.». Perceba que o tempo verbal no qual o autor escreve. É por isso que Melito diz que Jesus «libertou o condenado» e «levantou aquele que tinha sido sepultado» em clara referência aos «espíritos em prisão» a quem Cristo foi libertar no Sheol. Ora, se os espíritos dos mortos foram levados por Cristo do Hades ao Céu, eles não estavam aniquilados.

Melito também diz que Jesus «deu vida ao morto», obviamente se referindo à morte no sentido espiritual de «separação de Deus» e não a aniquilação de suas almas.

 

MATHETES (SÃO QUADRATO DE ATENAS) (120 d.C.)

Antes de comentar a respeito da doutrina contida neste texto apologético cristão do século II, devemos conhecer seu autor. A «Epístola de Mathetes a Diogneto» é um texto apologético cristão que defende o cristianismo de seus acusadores pagãos. «Mathetes» não é um nome próprio; significa simplesmente «um discípulo». O blogueiro chama Mathetes simplesmente de “um escritor desconhecido, que era tão pouco considerado na Igreja que sequer sabemos seu nome, o qual também não exercia aparentemente nenhum cargo eclesiástico, pois também não aparece na lista de bispos de igreja nenhuma.”.  Mas será que ela foi escrita por um desconhecido heterodoxo? Vejamos.

Autoria

Em 1946, o estudioso Paul Andriessen publicou sua tese de que«a Carta ou Discurso a Diogneto não é outra coisa que a apologia que Quadrato apresentou no imperador Adriano e dada por perdida»[13]. A “Introdução” da Epístola à Diogneto da Paulus traz um pouco desse estudo:

«De acordo com Adriessen, embora a Apologia de Quadrato tenha-se perdido, Eusébio de Cesaréia conservou um fragmento no qual se percebe que seu autor é dos primeiros tempos do cristianismo. Segundo a tradição dos pesquisadores, Quadrato foi de fato, um dos primeiros apologistas. Eusébio, na História Eclesiástica IV, 1-2, nos relata que: “Trajano tendo exercido o poder durante vinte anos inteiros menos seis meses, Hélio Adriano recebeu a sucessão do poder. E a este último que Quadrato remeteu um discurso que lhe havia endereçado: ele tinha composto esta apologia em favor de nossa religião porque alguns homens maus se empenhavam em perturbar os nossos Encontra-se ainda agora este livro entre muitos de nossos irmãos e também conosco. E possível ver nele provas brilhantes da inteligência do autor e de sua exatidão apostólica de doutrina. O autor revela sua antiguidade por aquilo que narra com estas palavras: “”Mas as obras de nosso Salvador estavam sempre presentes, porque eram verdadeiras: os que haviam sido curados, os ressuscitados dentre os mortos, os quais não foram vistos apenas no instante de serem curados e ressuscitados, mas também estiveram sempre presentes, e não apenas enquanto vivia o Salvador, mas também depois de Ele morrer, todos viveram tempo suficiente, de forma que alguns deles chegaram mesmo aos nossos tempos.”.” Em Diogneto, há uma lacuna entre os §§ 6-7 do capítulo 7, na qual se encaixaria perfeitamente o fragmento da Apologia, porquanto a matéria do fragmento contém o assunto que deveria ser tratado na parte perdida de Diogneto 7,7.»[14].

E o comentarista da Paulus continua: 

«Por uma análise detalhada, Andriessen mostrou como o estilo do fragmento da Apologia de Quadrato é consoante ao do Discurso a Diogneto. “Por outra parte, o que sabemos de Quadrato por Eusébio, Jerônimo, Fócio, pelo martirológio de Beda e pela carta apócrifa de S. Tiago, dirigidos a ele, concorda com o conteúdo da carta a Diogneto. A impressão que se tira acerca do autor da leitura da carta coincide com o que sabemos do apologista Quadrato pela tradição, ou seja: que foi discípulo dos apóstolos. que escreveu em estilo clássico e que não somente lutou contra o paganismo, mas também contra o judaísmo”(J. Quasten, Patrologia I, BAC, 1968, p. 246).» [15].

Destinatário

Sendo o autor desta Apologia, São Quadrato, então, o problema do destinatário está praticamente resolvido. «Sabemos, ainda por Eusébio, que Quadrato dirigiu sua Apologia a Adriano, e os dados que nos porporciona a obra sobre seu destinatário, Diogneto, conviriam perfeitamente a este imperador» (J. Quasten, Patrologia 1, BAC, 1968, p. 246). Mas, como Adriano é Diogneto?

«Além de nome próprio, “Diogneto” é, também, título honorífico dos príncipes e ficava muito bem aplicado a Adriano por seu caráter, seu estilo de vida, viajor, iniciado nos mistérios de Elêusis, elevado, portanto, à raça dos deuses (cf. Diogneto 10,5-6). O nome ocorria com freqüência em Atenas entre os arcontes: Adriano era ali arconte desde 112 d.C. Não só Quadrato, também Marco Aurélio titula Adriano de Diogneto a quem deveu sua formação (educatus est ia Adriani gremio), diz o biógrafo de M. Aurélio M.A. Capitolino em Vita M. Antonini, IV, 1. “A Diogneto (i. é, Adriano devo a aversão pela vanglória, o não dar fé aos contos dos obreiros de prodígios e os charlatães sobre os encantos, sobre a evocação dos espíritos e outras superstições (…)”, diz M. Aurélio no livro I de seus Pensamentos. A carta/apologia faz freqüentes referências à iniciação mistérica de seu destinatário. Esta começava pela purificação. Na carta/apologia 2,1 se diz: “Comecemos. Purificado de todos os preconceitos que se amontoaram em tua mente; despojado do teu hábito enganador, e tornado, pela raiz, homem novo…”. As referências a um destinatário iniciado nos mistérios de Elêusis se encontram também, nos caps. 4, 6; 5,3; 7,1,2′. 8,9-10; 10,7. O ataque ao judaísmo, à circuncisão como mutilação da carne (4,4) pode ser compreendido recordando que Adriano proibiu a circuncisão precisamente por ser uma mutilação do corpo (Iudaei vetabuntur mutilare genitalia, Spartianus, Vita Hadriani XIV). Portanto, podemos concluir que o destinatário da Carta /Apologia a Diogneto seja mesmo o imperador Adriano.» (cf. PAULUS, Padres Apologistas, página 15).

Datação

De acordo com Paul Andriessen a carta/apologia teria sido redigida por volta de 120 d.C., em Atenas (cf. Padres Apologistas, PAULUS, página 16). Tratamos, portanto, de um legítimo santo sucessor dos Apóstolos.

Doutrina

Para o azar dos protestantes, São Quadrato é totalmente imortalista e admite o inferno como um tormento eterno:

«A alma está contida no corpo, mas é ela que sustenta o corpo; também os cristãos estão no mundo como numa prisão, mas são eles que sustentam o mundo. A alma imortal habita em um tabernáculo mortal.» (Mathetes, Carta a Diogneto, 6)

«Então, ainda estando na terra, contemplarás porque Deus reina nos céus. Aí começarás a falar dos mistérios de Deus, amarás e admirarás aqueles que são castigados por não querer negar a Deus. Condenarás o engano e o erro do mundo, quando realmente conheceres a vida no céu, quando desprezares esta vida que aqui parece morte e temeres a morte verdadeira, reservada àqueles que estão condenados ao fogo eterno, que atormentará até o fim aqueles que lhe forem entregues. Se conheceres esse fogo, ficarás admirado, e chamarás de felizes aqueles que, pela justiça, suportaram o fogo passageiro(Mathetes, Carta a Diogneto, 10, 7-8)

No primeiro texto, devemos deixar bem claro que Quadrato não está defendendo a doutrina platônica de que “o corpo é a prisão da alma”mas sim que ele apenas  diz que “os cristãos estão no mundo como numa prisão”, referindo-se ao ensinamento de Cristo de que os cristãos “não são desse mundo”, conceito bastante lembrado pelos Santos Padres. Em outras palavras: A carta de São Quadrato apenas fala que estamos nesse mundo como se estivessemos presos, ou seja, de passagem, esperando sermos libertos.

Além disso, o próprio contexto da passagem deixa claro que o termo “até o fim” é uma figura de linguagem para descrever algo eterno (afinal contrasta o fogo eterno que os ímpios haverão de suportar com o “fogo passageiro”).

Analisando agora o conteúdo, podemos ver claramente que Quadrato defende que temos uma alma imortal e um corpo mortal, da mesma forma que defendia Atenágoras e Irineu. Seu conceito de inferno enquanto tormento eterno é evidente, não sendo necessário comentário algum.

Dessa forma cai o “argumento do desconhecido” proposto pelo blogueiro. Vemos, portanto, que São Quadrato, discípulo dos apóstolos e bispo ateniense, também era imortalista.

 

SÃO JUSTINO DE ROMA (130-155 d.C.)

São Justino Mártir, Primeiro Padre Apologista, parece ser o preferido do blogueiro em citações. Para seu azar, a realidade é distinta: Justino afirma em todas as suas obras a imortalidade da alma. Vamos analisar as seguintes obras deste Padre: “Diálogo Contra Trifão” (onde veremos a introdução em separado), “Primeira Apologia”, “Segunda Apologia”, “Exortório aos Gregos”, e um dos fragmentos de sua obra “Sobre a Ressurreição”.

A. Introdução do Diálogo com Trifão (A conversão de Justino)

O “Diálogo contra Trifão” é a principal obra de Justino. Nela, Justino debate com Trifão (ou Trafão), que Eusébio chama de «o mais ilustre dos hebreus de então» e explica os valores mais básicos do Cristianismo.

Antes de começar seu famoso diálogo, a obra narra a história da conversão de Justino. Esta conversão se deu através de diálogos do Padre (ainda pagão) com um homem desconhecido que chamamos de «Velho cristão» (que não é Trifão). O velho parece tentar convencer Justino de que a alma não é naturalmente imortal e que poderia morrer. Justino parece convencido, mas mostra sua imaturidade e responde tudo ao velho de maneira incerta.

A posição do velho é sem dúvidas, confusa.  Ele admite que uma alma pode morrer, mas nega que todas as almas morram. Depois, o Velho admite que as almas dos justos não morrerão pois, quando seus corpos morrem, suas almas, «permanecem num lugar melhor» e que os injustos «ficam em outro lugar, esperando o tempo do julgamento»:

«Eu não afirmo que todas as almas morram. Isso seria uma verdadeira sorte para os maus. Digo, então, que as almas dos justos permanecem num lugar melhor e as injustas e más ficam em outro lugar, esperando o tempo do julgamentoDesse modo, as que se manifestaram dignas de Deus não morrem; as outras são castigadas enquanto Deus quiser que existam e sejam castigadas(Velho cristão, citado por Justino, Diálogo Com Trifão 5, 1-2)

Perceba que este é o relato da conversão de Justino do paganismo ao cristianismo. Portanto, esse relato é anterior a qualquer um dos seus escritos da época em que já era cristão (incluindo suas duas “Apologias”). É por isso que Justino dá respostas incertas ao velho, não tendo ainda se aprofundado no estudo do cristianismo.

De qualquer forma, a influência do argumento do velho cristão de que a aniquilação das almas dos ímpios “seria uma verdadeira sorte para os maus” está presente na obra “Primeira Apologia”, só que com um diferencial: Justino (já cristão) afirma a consciência “para todos os nascidos” e não só para alguns como dizia a opinião confusa do velho:

«Vede o fim que tiveram os imperadores que vos precederam: todos morreram de morte comum. Se a morte terminasse na inconsciência, seria uma boa sorte para todos os malvados. Admitindo, porém, que a consciência permanece em todos os nascidos, não sejais negligentes em convencer-vos e crer que essas coisas são verdade.»(São Justino Mártir, I Apologia 18, 1).

Cai assim o argumento da “mudança de opinião” de Justino, sem nem precisar debater sobre a datação de suas obras.

B. O Diálogo Contra Trifão (Analisando o Diálogo)

A obra mais importante de Justino é o relato de sua disputa com um sábio judeu chamado Trifão (ou Trafão) que se prolonga por dois dias. Devemos ressaltar que este diálogo não é inventado por Justino. O Padre realmente debateu com o mais erudito dos judeus da época como lembra o historiador do século IV Eusébio de Cesaréia: «[Justino] Compôs também um Diálogo contra os judeus, diálogo que sustentou na cidade de Éfeso com Trífon, o mais ilustre dos hebreus de então. Nele explica de que modo a graça divina o levou à doutrina da fé, com que empenho inicialmente se inclinava para as ciências filosóficas e que entusiasmo havia depositado na busca da verdade.»(História Eclesiástica, Livro VI, XVIII, 6).

Como Rafael lembra em seu post, essa obra é provavelmente anterior às duas apologias de Justino, mas este não será o foco do debate. Mostraremos aqui que a obra evidencia claramente em duas passagens a doutrina da imortalidade da alma e explicaremos uma passagem confusa que os mal avisados forçam uma interpretação aniquilacionista do texto.

Vamos à obra:

«E citei o restante de suas palavras: “Nações, alegrai-vos com seu povo, e que todos os anjos de Deus sejam fortes com ele, porque o sangue de seus filhos foi vingado, e o vingará e fará justiça contra seus inimigos, pagará aos que o odeiam, e o Senhor limpará a terra do seu povo.” (Dt 32,43). Dizendo isso, Moisés quer significar que nós, as nações, nos alegremos com o seu povo, isto é, com Abraão, Isaac e Jacó e os profetas e, em geral, com todos os que nesse povo agradaram a Deus conforme com o que anteriormente conviemos. Todavia não entendamos isso de toda a vossa descendência, pois sabemos, por meio de Isaías, que os membros dos que foram transgressores serão devorados por um verme e um fogo que não tem descanso, PERMANECENDO IMORTAIS, de forma a se tornarem espetáculo para toda carne (Is 66,24)(São Justino Mártir, Diálogo com Trifão, 130)

Enfatizo as palavras de Justino de que «sabemos, por meio de Isaías, que os membros dos que foram transgressores serão devorados por um verme e um fogo que não tem descanso, permanecendo imortais, de forma a se tornarem espetáculo para toda carne». Esse texto acaba com toda a argumentação absurda proporcionada pelo aniquilacionismo. Não é necessário mais comentários. Basta ler o texto.

Vamos ao segundo texto:

«Já vos demonstrei que as almas sobrevivem através do fato de que a alma de Samuel foi evocada pela pitonisa, como Saul lhe havia predito. Daí se vê que todas as almas de homens tão justos e profetas como Samuel podem cair sob o poder de potências semelhantes àquela que operava na pitonisa e pelos próprios fatos temos que confessar issoPor isso, Deus nos ensinou por seu próprio Filho a lutar com todas as nossas forças para sermos justos e pedir, ao sair deste mundo, que nossa alma não caia em poder de nenhuma potência semelhante. Assim, no momento de entregar seu espírito sobre a cruz, ele disse: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”, como se sabe pelas Memórias. Ele também exortava seus discípulos a superar a conduta dos fariseus, pois do contrário não se salvariam. Nas Memórias está escrito que ele disse: “Se a vossa justiça não superar a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos céus”.» (São Justino Mártir, Diálogo com Trifão, cap. 105) 

Justino acredita que na passagem bíblica em que Saul evoca Samuel, o espírito do profeta realmente apareceu para ele (como ensina o Eclesiástico). Novamente, Justino defende a imortalidade da alma em sua obra “Diálogo com Trifão”.

Deve-se reforçar também o repúdio à uma forçada interpretação aniquilacionista da passagem presente no capítulo 80 do “Diálogo contra Trifão”, onde Justino fala que, caso Trifão encontre pessoas que “neguem a ressurreição dos mortos, sustentando antes, que no ato de morrer, as suas almas são elevadas ao céu, não os considereis Cristãos”. No tocante a esse texto há duas possibilidades de interpretação:

 I. Alguns Padres do século II e III (como Irineu e Tertuliano) diferenciavam os termos “Céu” e “Paraíso”. Irineu entende por “Céu” o estado definitivo do homem herdado após a santa ressurreição. Já o “Paraíso” seria o lugar onde as almas dos justos repousariam até o dia do Juízo Final, isto é, o “estado intermediário”. Essa passagem de Irineu explicita bem tal distinção patrística: «Esta será a diferença das moradas entre os que frutificaram o cem por um, o sessenta por um e o trinta por um: os primeiros serão elevados aos céus, os segundos permanecerão no Paraíso e os outros morarão na cidade. Foi este o motivo pelo qual o Senhor disse que há muitas moradas na casa de seu Pai.» (Irineu de Lião, Contra as Heresias, Livro V, 36,2). Ora, Justino é contemporâneo a estes padres e provavelmente possuía a mesma interpretação. Dessa forma nessa passagem Justino não estaria criticando a crença no estado intermediário, mas sim a crença gnóstica de que eles, ao morrer, já herdariam o que seria o lugar destinado ao homem apenas após a Santa Ressurreição (que eles chamavam de “Céu”). Essa opinião se sustenta no próprio conceito de “ressurreição” proposto por essa heresia grega que, baseado nos discípulos apóstatas de Paulo, Himineu e Fileto, acreditavam que a ressurreição se tratava meramente de algo espiritual que envolveria apenas a alma (e que, portanto, já estariam ocorrendo).

II. A posição de Rafael é também consistente e não pode ser desprezada:

O que Justino escreve é que os pagãos negavam a ressurreição dizendo que as almas iam para o céu imediatamente (sem julgamento), coisa que é uma heresia obviamente, e o fato de irem para o céu não implica que não haverá ressurreição, mas o que é que são Justino rebate? Só que haverá ressurreição:

as eu e os outros, que somos cristãos de bem em todos os pontos, estamos convictos de que haverá uma ressurreição dos mortos, e mil anos em Jerusalém, que será construída, adornada e alargada, como os profetas Ezequiel e Isaías e outros declaram“.

Justino não rebate absolutamente nada que as almas não vão para os céus, só rebate a afirmação dos gregos de que não haverá ressurreição! Somente. Essa é a comum tática de hereges, comparar uma doutrina cristã ortodoxa com alguma doutrina pagã, para poder desmerecer a doutrina ortodoxa, então pegam o diálogo em que Justino está criticando a forma em que os gregos criam que a alma era imortal para imputar isso na doutrina cristã ortodoxa da imortalidade da alma.” (RODRIGUES, Rafael. Pais da Igreja e a Imortalidade da alma. Disponível em: <http://apologistascatolicos.com.br/index.php/patristica/estudos-patristicos/794-pais-da-igreja-e-a-imortalidade-da-alma> Desde: 11/05/15.)

Não se pode, portanto, concluir que este texto defenda o aniquilacionismo.

Antes de começar a analisar as demais obras de Justino, devo lembrar que tanto Justino (Dial. 72.) quanto Irineu (adv. Haer. 3.22.1; 4.3.61; 4.50.1; 4.55.3; 5.31.1H.) citam uma passagem que eles alegam fazer parte das Escrituras (mas que teria sido excluída pelos próprios judeus). Justino a atribui a Jeremias, Irineu a atribui a Isaías, mas ambos a tem como inspirada. Esta passagem diz que: «O Senhor, o Deus Santo de Israel, lembrou-se de seus mortos, dos que dormiram na terra amontoadae desceu até eles para anunciar-lhes a sua salvação. Embora essa passagem não estivesse contida nas Escrituras (já que provavelmente se trata de uma midraxe),  percebe-se que para os primeiros cristãos ela tinha uma grande força (já que era equiparada a uma Escritura inspirada) e que ela implica necessariamente dizer que Jesus foi realmente anunciar aos espíritos dos que haviam falecido antes de Cristo a nossa salvação no Hades.

C. As duas Apologias

A primeira Apologia, escrita provavelmente no ano 156, cerca de 24 anos após o Diálogo com Trifão, não narra a história da conversão de Justino e seus diálogos com o velho cristão, mas, como dito anteriormente, já apresenta o retrato de Justino já cristão escrevendo ao Imperador em favor dos cristãos. Os textos, como já apresentados acima mostram Justino mais maduro na fé cristã, defendendo a imortalidade e a consciência para todos os mortos:

«Vede o fim que tiveram os imperadores que vos precederam: todos morreram de morte comum. Se a morte terminasse na inconsciência, seria uma boa sorte para todos os malvados. Admitindo, porém, que a consciência permanece em TODOS os nascidos, não sejais negligentes em convencer-vos e crer que essas coisas são verdade.»(São Justino Mártir, Primeira Apologia, 18)

Embora Justino não se considerasse mais um platônico (pois considerava que os filósofos haviam plagiado as ideias de Moisés e dos profetas), ele lembra que a igreja de sua época “dizia coisas semelhantes aos poetas e filósofos”. Entre elas, a imortalidade da alma:

«Por fim, se há coisas que dizemos de maneira semelhante aos poetas e filósofos que estimais, e outras de modo superior e divinamente, e somos os únicos que apresentamos demonstração, por que se nos odeiam injustamente mais do que a todos os outros? Assim, quando dizemos que tudo foi ordenado e feito por Deus, parecerá apenas que enunciamos um dogma de Platão; ao falar sobre conflagração, outro dogma dos estóicos; ao dizer que são castigadas as almas dos iníquos que, ainda depois da morte, conservarão a consciência, e que as dos bons, livres de todo castigo, serão felizes, parecerá que falamos como vossos poetas e filósofos; que não se devem adorar obras de mãos humanas, não é senão repetir o que disseram Menandro, o poeta cômico, e outros com ele, que afirmaram que o artífice é maior do que aquele que o fabrica.» (São Justino de Roma, I Apologia 21, 1)

E também:

«Em geral, tudo o que os filósofos e poetas disseram sobre a imortalidade da alma e da contemplação das coisas celestes, aproveitaram-se dos profetas, não só para poder entender, mas também para expressar isso. Daí que parece haver em todos algo como germes de verdade. Todavia, demonstra-se que não o entenderam exatamente, pelo fato de que se contradizem uns aos outros.» (São Justino de Roma, Primeira Apologia, 44)

Ora, isso tudo mostra que a Igreja reconhecia os acertos dos filósofos, como a questão do reconhecimento da imortalidade da alma, mas ao mesmo tempo, denunciava seus erros (como as ideias absurdas de Platão de que a alma fosse “divina” e “incriada”, da transmigração das almas, etc).

Acerca do inferno, Justino utiliza várias vezes a expressão “fogo eterno”, e também analisa a passagem de Mateus 10,28:

«E disse mais: “Não temais aqueles que vos matam e depois disso nada mais podem fazer; temei antes aquele que, depois da morte, podem lançar alma e corpo no inferno” (Mt 10,28). Deve-se saber que o inferno é o lugar onde serão castigados os que tiverem vivido iniquamente e não acreditaram que acontecerão essas coisas ensinadas por Deus, através de Cristo.»(São Justino de Roma, I Apologia 19, 7)

E também:

«Entre nós, o príncipe dos maus demônios se chama serpente, satanás, diabo ou caluniador, como podeis ver, caso desejardes averiguar isto, através de nossas Escrituras. Ele e todo o seu exército, juntamente com os homens que o seguem, será enviado ao fogo para ser castigado pela eternidade sem fim, coisa que foi de antemão anunciada por Cristo.» (Justino de Roma, I Apologia, 28)

«Escutai o que foi dito sobre a percepção e o tormento em que se encontrarão os injustos. É o seguinte: “Seu verme não descansará e seu fogo não se extinguirá” (Is 66,24). Então eles se arrependerão, quando nada mais lhes valerá.» (Justino de Roma, I Apologia, 52)

Sua Segunda Apologia não aborda diretamente o tema da imortalidade da alma, mas mesmo assim, Justino continua utilizando uma linguagem de sofrimento para as almas dos condenados, e não de aniquilação: «os ímpios devem sofrer no fogo eterno»(São Justino de Roma, II Apologia 9).

D. Exortório dirigido aos gregos

Ao criticar a desarmonia dos filósofos gregos, Justino lembra que os apóstolos e profetas ensinaram “eles [que] tem a sucessão, e em harmonia uns com os outros” nos ensinaram acerca da imortalidade da alma do ser-humano:

«E Platão sustenta fortemente que toda a alma é imortal. Mas Aristóteles, nomeando-a “a realidade”, diz que ela teria de ser mortal, não imortal. E o primeiro diz que ela está sempre em movimento; mas Aristóteles diz que é imóvel, uma vez que deve preceder todo o movimento. (…) Já que, portanto, é impossível aprender qualquer coisa verdadeira a respeito da religião de seus professores [os filósofos], que por sua discordância mútua puderam fornecer-lhe suficiente prova de sua própria ignorância, considero razoável recorrer a nossos progenitores [os profetas e apóstolos] (…) Portanto, como se com uma boca e uma língua, eles têm a sucessão, e em harmonia uns com os outros, nos ensinaram tanto a respeito de Deus, a criação do mundo, a formação do homem, acerca da imortalidade da alma do ser humano, o julgamento que é para ser depois desta vida, e acerca de todas as coisas que são necessárias para nós sabermos, e, assim, em várias épocas e lugares nos proporcionaram a instrução divina (São Justino Mártir, Exortatório dirigido aos gregos, 8)

O ensino da doutrina da imortalidade da alma é, de acordo com Justino, de origem apostólica, ensinado unanimemente pela sucessão de bispos da Igreja.

E. De Ressurrectione

O capítulo 8 da obra de Justino “De Resurrectione” (preservada em fragmentos) a antropologia de Justino é muito bem evidenciada. Nesta passagem, o Padre responde a pergunta: “O corpo faz a alma pecar?” refutando uma das heresias de sua época. Entre as suas respostas, Justino faz questão de lembrar que:

«A alma é incorruptível, sendo uma parte de Deus e inspirada por Ele, e portanto Ele deseja salvar o que é peculiarmente Seu e afim de Si mesmo; a carne é, entretanto corruptível (…)»(São Justino Mártir, De Ressurrectione, capítulo 8)

Mais uma vez, em mais uma de suas obras, Justino mostra sua crença na imortalidade da alma.

Contra todas as passagens apresentadas, o autor só tem duas alternativas: a) Ater-se ao princípio do Sola Scriptura e negar a validade do testemunho de Justino b) Especular adulterações em suas obras sob a justificativa de que naquela época isso era “muito comum”.

 

Últimas refutações sobre Justino

Vamos agora aos textos em que o autor coloca em negrito, itálico, sublinhado e colorido para tentar forçar uma interpretação aniquilacionista.

a. Textos em que Justino supostamente defenderia a aniquilação dos ímpios

I. «Mas Deus poderosamente as tirará de nós, quando ressuscitar a todos, tornando uns incorruptíveis, imortais, isentos de dor e colocando-os em seu reino eterno e indestrutível, e enviando outros para o suplício do fogo eterno» (São Justino Mártir, Diálogo Com Trifão, 117)

A imortalidade que Justino está se referindo é a imortalidade de nossos corpos, não de nossas almas. Logo essa passagem não é uma prova de aniquilacionismo.

II. «Todavia, logo que conheceu os ensinamentos de Cristo, não só se tornou casta, como procurava também persuadir seu marido à castidade, referindo-lhe os mesmos ensinamentos e anunciando-lhe o castigo do fogo eterno, preparado para os que não vivem castamente e conforme a reta razão.» (São Justino Mártir, 2ª Apologia, 2,2) 

O autor está tratando aí da finalidade pela qual existe o inferno inferno: ele foi preparado para abrigar os que não vivem castamente e conforme a reta razão. Em nenhum momento ele está refletindo se já há (ou se não há) gente no inferno.

III. «E não se oponham a que costumam dizer os que se têm por filósofos, que não são mais que apenas ruído e espantalhos o que afirmamos sobre a punição que os ímpios devem sofrer no fogo eterno» (São Justino Mártir, 2ª Apologia, 9,1) 

Sim, o fogo eterno é o lugar onde os ímpios devem sofrer. Mas onde há uma defesa do aniquilacionismo nesse texto? Forçar a partir dessa linguagem uma defesa do aniquilacionismo é totalmente absurdo.

IV. «Eles [os demônios] receberam merecido tormento e castigo, aprisionados no fogo eterno. Se eles agora são vencidos pelos homens em nome de Jesus Cristo, isso é aviso do futuro castigo no fogo eterno que os espera, juntamente com aqueles que os servem. Todos os profetas anunciaram isso de antemão e isso também nos ensinou o nosso mestre Jesus» (São Justino Mártir, 2ª Apologia, 7,4-5) 

Essa passagem faz apenas referência a seguinte passagem de São Pedro: “Porque se Deus não poupou a anjos quando pecaram, mas lançou-os no inferno, e os entregou aos abismos da escuridão, reservando-os para o juízo” (2 Pedro 2:4). Isso se deve porque a Tradição ensina que alguns demônios já estão guardados “sob trevas, em algemas eternas” (Judas 1:6) pelo seu pecado. Outros estão livres para vaguear e são referidos como “os dominadores deste mundo tenebroso(…) as forças espirituais do mal, nas regiões celestes” em Efésios 6:12 (cf. Colossenses 2:15), que Justino provavelmente também compartilhava. Em nenhum momento o texto fala de aniquilacionismo.

V. «Sim, com efeito, como já dissemos, o Verbo se fez homem por desígnio de Deus Pai e nasceu para a salvação dos que crêem e destruição dos demônios.»(São Justino Mártir, 2ª Apologia, 5,4) 

A expressão “destruição” nesse contexto é apenas uma figura de linguagem utilizada pelo autor para sugerir simplesmente a vitória de Cristo sobre os demônios. Novamente, não se fala em aniquilacionismo. Essa figura de linguagem de linguagem pode ser lido na própria Bíblia: “Ora, o último inimigo que há de ser destruído é a morte.” (1 Coríntios 15:26)- “Destruído” no contexto, é sinônimo de “derrotado”.

VI. «Por meio de quem [Cristo] Deus destrói tanto a serpente quanto os anjos e homens que estão com ela, mas liberta da morte aqueles que se arrependem de suas iniquidades e creem nEle» (São Justino Mártir, Diálogo com Trifão, capítulo 100) 

Novamente, o autor utiliza a figura de linguagem “destruir” para designar o triunfo de Cristo sobre o diabo e seus aliados. Justino também lembra que Cristo nos liberta da morte (que no contexto é obviamente a morte espiritual proporcionada pelo pecado e não a “morte da alma”).

VII. «Assim, Deus também adia pôr um fim à confusão e destruição do universo, por causa da semente dos cristãos, recém-espalhada pelo mundo, que ele sabe ser a causa da conservação da natureza. De fato, se assim não fosse, vós não teríeis poder para fazer nada daquilo que faz eis conosco, nem seríeis manejados pelos demônios, como instrumentos de sua ação; mas descendo o fogo de julgamento, já teria separado tudo sem exceção, do mesmo modo como não deixou vivo ninguém antes do dilúvio, a não ser aquele que nós chamamos Noé, juntamente com os seus, e que vós chamais Deucalião, do qual nasceu de novo numerosa multidão de homens, uns maus, outros bons» (São Justino Mártir, 2ª Apologia, 6,1-2) 

Novamente, o texto não está abordando a questão do aniquilacionismo. Deus irá sim por um fim à confusão quando ele voltar. O resto é especulação do blogueiro.

VIII. A sua última argumentação (e a única que realmente parece abordar o tema) é um fragmento supostamente atribuído a Justino: “Deus atrasou a confusão e destruição de todo o mundo, pelo qual os anjos maus e os demônios e os homens devem deixar de existir

A fonte que ele cita é “Other Fragments From Lost Writings of Justin, No. 11, in ANF, vol. 1, p. 301”. Infelizmente, não é isso que está escrito no fragmento XI de Justino preservado na ANF. Este fragmento é extraído de Leôncio, Contra os Eutiquianos, Livro II, e apenas há uma análise da perda do dom da imortalidade corporal de Adão e Eva.

Entretanto, a tradução da ANF para o capítulo 7 da II Apologia realmente traz essa o texto que o blogueiro cita, mas, em nota, reconhece que é motivo de disputa interpretativa. A Tradução da Paulus, por exemplo, traz o seguinte texto:

«Assim, Deus também adia pôr um fim à confusão e destruição do universo, por causa da semente dos cristãos, recém-espalhada pelo mundo, que ele sabe ser a causa da conservação da natureza.» (II Apologia, 6(7)- PAULUS, página 98).

Mesmo se a tradução da ANF fosse autêntica, na passagem, Justino não estaria se referindo ao aniquilacionismo. No livro da coleção “The Fathers of the Church” que traz as obras de São Justino Mártir em inglês (traduzido por Thomas B. Falls), há um comentário a essa passagem (em nota) com a seguinte explicação: “Justino indicaria aqui a aniquilação do poder e não a existêncial. (página 126). Justino estaria falando, portanto, do poder dos ímpios que após a consumação do mundo deixaria de existir e não que suas almas imateriais seriam destruídas.

Além do mais, como mostra o própria comentário à “Introdução à II Apologia” feito pela Paulus:«Não há nenhum indício convincente de que se trata, de facto, de uma segunda Apologia. Ao contrário, tudo indica que há uma única Apologia em duas partes. Repare-se que a II Ap. começa diretamente sem cabeçalho, sem destinatário, aludindo ao fato relativamente recente que deve ter impressionado seu autor. Não é, portanto, escrito independente da I Ap. Prescindindo da menção de Eusébio de Cesaréia sobre duas Apologias, os críticos consideram com unanimidade que a chamada “II Apologia” é mero apêndice ou complemento da primeira. Por seu conteúdo, mais se evidencia que não representa senão ampliação de temas tratados já na I Ap.» (cf. PAULUS, Patrística: Justino de Roma, página 87).

Ora, não há motivos para supor que o autor “mudou de opinião” na mesma Carta, já que na chamada “I Apologia” considera que a aniquilação seria uma “sorte para os maus”. Se ele quiser argumentar com base na II Carta, tem que explicar sobre a I pois ambas são uma só obra.

O único texto claro de Justino com relação ao destino dos ímpios é o seguinte:

«E citei o restante de suas palavras: “Nações, alegrai-vos com seu povo, e que todos os anjos de Deus sejam fortes com ele, porque o sangue de seus filhos foi vingado, e o vingará e fará justiça contra seus inimigos, pagará aos que o odeiam, e o Senhor limpará a terra do seu povo.” (Dt 32,43). Dizendo isso, Moisés quer significar que nós, as nações, nos alegremos com o seu povo, isto é, com Abraão, Isaac e Jacó e os profetas e, em geral, com todos os que nesse povo agradaram a Deus conforme com o que anteriormente conviemos. Todavia não entendamos isso de toda a vossa descendência, pois sabemos, por meio de Isaías, que os membros dos que foram transgressores serão devorados por um verme e um fogo que não tem descanso, PERMANECENDO IMORTAIS, de forma a se tornarem espetáculo para toda carne (Is 66,24).» (São Justino Mártir, Diálogo com Trifão, 130)

Desse texto não se pode dizer outra coisa senão que Justino crê no tormento eterno.

b. Textos em que Justino supostamente contradiria o estado intermediário

I. «Ele [Josué] não apenas teve o seu nome alterado, como também foi sucessor de Moisés, sendo o único de seus contemporâneos que saiu do Egito, ele levou os sobreviventes para a Terra Santa e foi ele, e não Moisés, que conduziu as pessoas para a Terra Santa, e assim como ela foi distribuída por sorteio para os que entraram junto com ele, assim também Jesus Cristo virá novamente e distribuirá a boa terra para cada um, embora não da mesma maneira. Pois o primeiro [Josué] deu-lhes uma herança temporária, visto que ele não era nem Cristo, que é Deus, nem o Filho de Deus; mas este último [Jesus], após a santa ressurreição, nos dará a posse eterna.» (São Justino Mártir, Diálogo com Trifão, 113)

A posse dos Novos Céus e da Nova Terra realmente só nos serão dados após a ressurreição. Essa é a “posse eterna” que Justino se refere. O estado intermediário não é eterno, mas dura até o dia da ressurreição onde seremos levados para nossos estados definitivos. Esse é mesmo ensinamento católico de hoje. Mas o que isso tem haver?

II. «E, portanto, todos os homens em todos os lugares, quer escravos ou livres, que creem em Cristo, e reconheceram a verdade em suas próprias palavras e dos Seus profetas, sabemos que eles estarão com ele naquela terra, e herdarão o eterno e incorruptível bem» (São Justino Mártir, Diálogo com Trifão, 139)

Novamente, o texto não implica dizer necessariamente que não há vida logo após a morte, mas simplesmente o que ocorrerá após a ressurreição. O resto é especulação.

III. «E a Palavra, sendo o Seu Filho, veio até nós, tendo sido manifestado em carne, revelando tanto si mesmo como também o Pai, dando-nos a ressurreição dos mortos e, depois, a vida eterna» (São Justino Mártir, Tratado sobre a Ressurreição, 1)

Ora, é claro que após a ressurreição iremos para a vida eterna com Deus. Esse texto não está analisando o destino do homem após a morte, mas apenas o que acontece com o homem após a ressurreição da carne.

 

SANTO ABÉRCIO DE HIERÁPOLIS E A ORAÇÃO AOS FALECIDOS

Outra prova clara da imortalidade da alma é que desde os períodos mais remotos, a Igreja sempre orou pelas almas dos falecidos, o que mostra não só a doutrina do purgatório como a antropologia dualista do Cristianismo Primitivo.

Toda a série de invocações e aclamações preservadas para nós nestas antigas inscrições cristãs, sem dúvida, trazem o caráter de verdadeiras orações pelas quais os vivos pretendiam ajudar seus irmãos que partiram para outra vida. Os próprios pedidos de paz e refrigério, para a admissão entre os santos, etc., contidos nas inscrições dos séculos II e III , pressupõe a convicção de que o bem desejado para as almas que partiram será concedido a eles por Deus em resposta à Oração dos fiéis. As petições dos defuntos dirigidas diretamente a Deus, tal como se encontram nas inscrições dos séculos II e III, só podem ser entendidas nesta suposição.

Talvez o mais famoso dos epitáfios tenha sido o Epitáfio de São Abércio, bispo de Hierápolis, que por volta de 180 d.C. escreveu:

«Eu, Abércio, ditei este texto
E o fiz gravar na minha presença
Aos setenta e dois anos.
O irmão que o ler por acaso
Ore por Abércio
(Inscrição de Abércio)

Da mesma forma traz a obra de Santa Perpétua intitulada “O Martírio de Perpétua e Felicidade”, escrita em 202 d.C. que defende ferrenhamente a imortalidade da alma e a oração pelos defuntos. Enquanto ela estava na prisão, teve uma dupla visão em que viu seu irmão, falecido 7 anos antes, sair de um lugar tenebroso onde estava sofrendo. Santa Perpétua passou então a rezar pelo descanso eterno de sua alma e, logo após ser ouvida pelo Senhor, teve uma segunda visão em que viu seu irmão seguro e em paz porque sua pena havia sido satisfeita:

«Imediatamente, nessa mesma noite, isto me foi mostrado em uma visão: eu vi Dinocrate saindo de um lugar sombrio, onde se encontravam também outras pessoas; e ele estava magro e com muita sede, com uma aparência suja e pálida, com o ferimento de seu rosto quando havia morrido. Dinocrate foi meu irmão de carne, tendo falecido há 7 anos de uma terrível enfermidade… Porém, eu confiei que a minha oração haveria de ajudá-lo em seu sofrimento e orei por ele todo dia, até irmos para o campo de prisioneiros… Fiz minha oração por meu irmão dia e noite, gemendo e lamentando para que [tal graça] me fosse concedida. Então, certo dia, estando ainda prisioneira, isto me foi mostrado: vi que o lugar sombrio que eu tinha observado antes estava agora iluminado e Dinocrate, com um corpo limpo e bem vestido, procurava algo para se refrescar; e onde havia a ferida, vi agora uma cicatriz; e essa piscina que havia visto antes, vi que seus níveis haviam descido até o umbigo do rapaz. E alguém incessantemente extraía água da tina e próximo da orla havia uma taça cheia de água; e Dinocrate se aproximou e começou a beber dela e a taça não reduziu [o seu nível]; e quando ele ficou saciado, saiu pulando da água, feliz, como fazem as crianças; e então acordei. Assim, entendi que ele havia sido levado do lugar do castigo» (Paixão de Perpétua e Felicidade 2,3-4)

Perceba que Dinócrate não havia sido aniquilado nem estava dormindo, mas conciente e vivo e recebia orações justamente para sair deste “lugar de castigo” (no caso, o Purgatório).

 

SÃO TEÓFILO DE ANTIOQUIA (179- 181 d.C.)

No início de minha publicação fiz questão de diferenciar os sentidos que os Padres atribuem ao termo «imortalidade»: a «imortalidade do corpo» (isto é, o dom de não morrer, que foi perdido por Adão e Eva no Paraíso), a «imortalidade da alma» (isto é, a crença de que nossa alma continua existindo após a morte de nosso corpo) e a «imortalidade da vida eterna» que é a vida na comunhão com Deus (que contrasta com a «eterna morte» que é o eterno afastamento de Deus dos homens). Essa introdução muito valerá agora quando analisarmos os textos de Teófilo.

Como lembrou o post de Rafael, São Teófilo foi o sexto bispo de Antioquia, segundo Eusébio de Cesaréia e São Jerônimo. Conservaram-se apenas 3 livros escritos aproximadamente pelo ano de 180 d.C. dirigidos à Autólico.

No tocante à imortalidade da alma, o bispo só aborda essa questão uma vez em sua obra. E a resposta é claramente positiva:

«Para mostrar-nos a formação do homem e para que não parecesse um problema insolúvel aos homens Deus ter dito: “Façamos o homem” e não nos ter mostrado sua criação, a Escritura nos ensina, dizendo: “E uma fonte subia da terra e regava toda a face da terra, e Deus formou o homem do pó da terra, e lhe insuflou alento de vida em seu rosto, e o homem foi feito alma vivente.”- É por isso que a alma é chamada imortal. Depois de ter formado o homem,Deus escolheu um lugar pelas bandas do Oriente, excelente por sua luz, iluminado por um ar mais brilhante, adornado com as mais belas plantas, e aí Deus colocou o homem.»(Carta a Autólico Livro II, 19)

Teófilo justifica que «a alma é chamada imortal» com a passagem bíblica de Gênesis onde Deus forma o homem (Gn 2,7). Repito: essa é a única abordagem direta de Teófilo no tocante ao assunto da natureza da alma.

Óbvio que o autor, no entanto, nos citará outros textos que, como o próprio Rafael lembra em seu post, são utilizados por alguns pouco instruídos para a defesa do aniquilacionismo. Vamos aos textos.

 

Supostos textos aniquilacionistas de Teófilo

I. «E Deus o transportou da terra da qual fora criado para o jardim, dando-lhe ocasião de progresso, para que crescendo e chegando a ser perfeito e até declarado deus, subisse então até o céu, possuindo a imortalidade,pois o homem foi criado como ser intermédio, nem completamente mortal nem absolutamente imortal, mas capaz de uma e outra coisa, assim como seu lugar, o jardim, se considerarmos a sua beleza, é lugar intermédio entre o mundo e o céu. (…)

Assim, foi a desobediência que acarretou ao primeiro homem ser expulso do jardim do Éden; não porque a árvore da ciência tivesse alguma coisa de mau, mas foi por causa de sua desobediência que o homem atraiu trabalho, dor, tristeza e caiu finalmente sob o poder da morte. (…)

Poder-se-á dizer: “O homem não foi criado mortal por natureza?” De jeito nenhum. “Então foi criado imortal?” Também não dizemos isso. “Então não foi nada?” Também não dizemos isso.O que afirmamos é que por natureza não foi feito nem mortal, nem imortal. Porque se, desde o princípio, o tivesse criado imortal, o teria feito deus; por outro lado, se o tivesse criado mortal, pareceria que Deus é a causa da morte.Portanto, não o fez mortal, nem imortal, mas, como dissemos antes, capaz de uma coisa e de outra.Assim, se o homem se inclinasse para a imortalidade, guardando o mandamento de Deus, receberia de Deus o galardão da imortalidade e chegaria a ser deus; mas se se voltasse para as coisas da morte, desobedecendo a Deus, seria a causa da morte para si mesmo, porque Deus fez o homem livre e senhor de seus atos. O que o homem atraiu sobre si mesmo por sua negligência e desobediência, agora Deus o presenteou com isso, através de sua benevolência e misericórdia, contanto que o homem lhe obedeça. Do mesmo modo como o homem, desobedecendo, atraiu sobre si a morte, assim também, obedecendo a vontade de Deus que quer, pode adquirir a vida eterna.»(Carta a Autólico, Livro II, 24-27)

Perceba que o termo «alma» não é empregado em nenhum momento no texto. O motivo é simples: Ambos os textos estão discutindo a respeito do estado de Adão antes do pecado, isto é, se ele estava sujeito à morte ou não (o que chamamos de «imortalidade corporal»).

De acordo com Teófilo, quando Deus criou o homem deu a ele duas opções: a desobediência e a obediência. Caso escolhessem a primeira ficariam sujeitos à morte. Caso escolhessem a segunda poderiam subir ao Céu com seus corpos, sem precisar passar pela morte (como aconteceu com Elias e Henoc). Por isso, Teófilo os considerava «seres intermediários».

Perceba que, segundo Teófilo, a consequência do pecado de Adão foi que ele «atraiu sobre si a morte» e que «caiu finalmente sob o poder da morte». Ora, é claro que essas passagens não estão fazendo referência à um “aniquilacionismo de Adão”, mas simplesmente afirmam que Adão, após o pecado, ficou sujeito à morte.

Essa interpretação se sustenta ainda mais já que no contexto, Teófilo está comentando justamente as passagens do Gênesis que tratam de quando Adão perde o dom da imortalidade corporal: «Comerás de toda árvore do jardim, mas não comerás da árvore da ciência do bem e do mal, pois no dia em que dela comerdes, morrereis de morte» (Gênesis 2,16-17); «Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: Vós não comereis dele, nem o tocareis, para que não morrais» (Gênesis 3,3). A “morte” tratada nos dois textos bíblicos não é a da alma, mas a do corpo (que até então o homem não era sujeito).

Teófilo lembra no fim que Deus, sendo sendo misericordioso, está disposto a restituir esta imortalidade perdida através da ressurreição da carne.

Em nenhum momento se fala em aniquilacionismo nestes textos. Por isso que fiz questão de dizer mais acima que Teófilo só aborda a questão da imortalidade da alma uma única vez.

II.«Quando depuseres a mortalidade e te revestires da incorruptibilidade, verás a Deus de maneira digna.Com efeito, Deus ressuscitará a tua carne, imortal, juntamente com tua alma. Então, tornado imortal, verás o imortal, contanto que agora tenhas fé nele.Então reconhecerás que falaste injustamente contra ele.» (Carta a Autólico – Livro I, 7)

A partir destas belas palavras de Teófilo, o blogueiro questiona o fato de Teófilo falar de “ressurreição do carne juntamente com a alma” e conclui que Teófilo esteja defendendo o aniquilacionismo temporário. – Nossa resposta é simples: Ora, a ressurreição dos mortos envolve o indivíduo por inteiro, isto é, corpo e alma (já que nossas duas partes voltam a se encontrar). Até hoje os católicos chamam a ressurreição desta forma.

A segunda objeção é o fato de Teófilo dizer que o homem será “tornado imortal” e que, logo, ele não seria imortal agora. – Mais uma vez, Teófilo se refere à «imortalidade do corpo». Perceba que pouco antes ele diz: «Deus ressuscitará a tua carne, imortal», evidenciando que a «imortalidade» que o texto faz referência é a imortalidade de nossos corpos (isto é, o dom de não mais morrer), concedida por Deus após a ressurreição.

 

Teófilo acredita na aniquilação após a morte?

«Não importa se [os filósofos gregos] foram anteriores ou posteriores. O importante é que falaram de acordo com os profetas. Sobre a conflagração, por exemplo, o profeta Malaquias predisse: “Eis que chega o dia do Senhor como fornalha ardente e abrasará todos os ímpios.” E Isaías: “A ira do Senhor virá como granizo que cai com violência e como água no vale que arrasta tudo.”

Portanto, a Sibila, os outros profetas, e até os filósofos e poetas falaram claramente sobre a justiça, sobre o julgamento e o castigo. Falaram também sobre a providência, que Deus cuida de nós não apenas enquanto vivemos, mas também depois de mortos, embora o dissessem contra a vontade, convencidos que foram pela própria verdade. Entre os profetas, Salomão disse sobre os mortos: “A carne será curada e os ossos serão cuidados.” E o próprio Davi: “Meus ossos humilhados se regozijarão.” De acordo com eles, disse Tímocles: “Para os mortos, a misericórdia é o Deus benigno.”

Os escritores que falaram sobre a multidão dos deuses acabaram por admitir a unicidade ou monarquia de Deus; aqueles que afirmaram a não-providência, depois falaram sobre a providência; aqueles que negaram o julgamento, mais tarde o afirmaramaqueles que negaram a sensação após à morte, depois a confessaram. Homero, por exemplo, diz em uma passagem: “A alma, como um sonho, alçou vôo e partiu.” Em outra passagem: “A alma, saindo dos membros, voou para o Hades.” Ainda: “Enterra-me quanto antes, pois quero atravessar as portas do Hades.»(Teófilo de Antioquia, Carta à Autólico, Livro II, XXXVIII )

Perceba que nesta passagem Teófilo admite algumas ideias comuns aos cristãos e aos filósofos pagãos. Ele então começa a enumerar algumas das ideias que os pagãos abandonaram e começaram a concordar com os cristãos: essas ideias são a monarquia de Deus, a providência divina, o Juízo Final e a “sensação após a morte” (isto é, a imortalidade da alma)! Ora, essa linguagem novamente não é compatível com o aniquilacionismo temporário ou “sono da alma” proposto pelo blogueiro.

 

Teófilo acredita no tormento eterno?

«Por isso, virá sobre vós uma chama de fogo abrasador e sereis queimados em seu ardor para sempre, o dia todo, envergonhados de vossos ídolos enganosos e inúteis; mas os que honram ao Deus verdadeiro e perene, herdarão a vida para sempre, habitando junto ao jardim florido do paraíso e comendo o doce pão do céu estrelado.» (Carta a Autólico, Livro II, 36)

Esse texto já responde por si só toda a discussão. Teófilo não acredita que as penas do inferno são só por um momento e que depois serão aniquilados, mas sim que os ímpios «serão queimados em seu ardor para sempre», «o dia todo», e que enquanto sofrem, ficarão «envergonhados» de terem adorado seus ídolos inúteis.

 

A objeção da conflagração

Como sempre, o autor tem suas famosas “objeções lixo” em que tenta forçar uma interpretação aniquilacionista em um texto que nem aborda diretamente o tema, grifando, sublinhando e pintando colorido uma única palavra. Felizmente, as objeções já foram respondidas mais acima, só faltando esclarecer um último ponto: a conflagração.

Teófilo diz que os filósofos estoicos disseram “coisas concordes com os profetas sobre a conflagração do mundo”. Ora, como na doutrina estoica, o fogo queimaria a pessoa até que ela fosse consumida (e portanto aniquilada), Teófilo estaria defendendo o aniquilacionismo.

Teófilo realmente acredita que os estoicos disseram coisas concordem com a Bíblia em sua doutrina da ectopirose (ou conflagração). O problema é supor que Teófilo defende que toda a doutrina da ectopirose concorda com o cristianismo.

É claro que Teófilo concorda em parte com toda a teoria da ectopirose, mas só com a parte que pode ser conciliada com a fé cristã. Afinal, A ecpirose ou conflagração (grego antigo ἐκπύρωσις ekpurōsis) é uma crença que segundo Heráclito e os estóicos, consistia na destruição periódica do cosmos por uma grande conflagração a cada ano platônico. O cosmos seria então recriado (palingénese) para ser novamente destruído no fim de outro ciclo. Ora, se considerarmos que Teófilo concorda com toda a doutrina da conflagração não teremos mais um Padre da Igreja aqui, mas um herege pagão.

Então o que Teófilo realmente concorda com a doutrina estoica da conflagração? Ele mesmo explica:

«Não importa se foram anteriores ou posteriores. O importante é que falaram de acordo com os profetas. Sobre a conflagração, por exemplo, o profeta Malaquias predisse: ‘Eis que chega o dia do Senhor como fornalha ardente e abrasará todos os ímpios’. E Isaías: ‘A ira do Senhor virá como granizo que cai com violência e como água no vale que arrasta tudo’» (São Teófilo de Antioquia, Carta à Autólico, Livro II, c. 38)

Percebe-se, portanto, que Teófilo concorda com a conflagração apenas no sentido que os ímpios serão abrasados e queimados em uma fornalha ardente. O resto é especulação do blogueiro para forçar uma “prova aniquilacionista” em Teófilo.

 

TACIANO DA SÍRIA (170-172 d.C.)

Um dos padres que o blogueiro põe como favoráveis ao aniquilacionismo é Taciano, o fundador da seita encratista. Este, como o próprio Rafael lembra, realmente é favorável a ideia de que a alma “se dissipa” com a morte do corpo. Taciano, entretanto, como os demais apóstatas, não possui em suas obras a obrigatoriedade de reproduzir o pensamento dos demais cristãos de sua época, mas tende, pelo contrário, a evidenciar suas profundas marcas de pensamento individual (assim como Tertuliano faz em alguns pontos de sua doutrina).

O próprio Comentário de Introdução à obra “Discurso contra os Gregos” feito pela editora Paulus, indiretamente supõe que Taciano já era um herege ao compor esta obra: «Após a morte de seu mestre, Justino, por volta de 165, Taciano começou a se afastar da Igreja, inclinando-se para heresia encratista (ou continente). (…) A data da composição [da obra “O Discurso contra os Gregos”] vacila, para os especialistas, entre 170 e 172 (cf. PAULUS, Padres Apologistas, página 58 e 62). O Comentário da Paulus também aborda a personalidade de Taciano: «O texto [do Discurso contra os Gregos] revela um autor inquieto, violeto e passional. Seu estilo é, frequentemente, obscuro, acumulando argumentos nem sempre coerentes.»(cf. PAULUS, Padres Apologistas, página 62). Logo, analisamos uma obra composta não por um bispo católico, mas por um herege cismático.

Sobre a biografia de Taciano, o blogueiro sustenta que “a seita ascética criada por Taciano só foi declarada “herética” muito depois da morte do próprio Taciano”. Entretanto isso carece de base histórica pois o bispo de Lião, contemporâneo de Taciano, Irineu, já condenava sua heresia: «Provindo de Saturnino e Marcião, os que se chamam encratistas pregavam a abstinência do matrimônio, rejeitando a antiga criação de Deus e acusando tranquilamente aquele que fez o homem e a mulher para procriar os homens; eles introduziram a abstinência daquilo que, fora animado, na sua ingratidão para Deus que fez o universo, e negaram a salvação do primeiro homem. Eis pois o que foi inventado por ele, quando certo Taciano foi o primeiro a introduzir esta blasfêmia. Este último, que tinha sido ouvinte de Justino, durante o tempo que esteve com ele, não manifestou nada de semelhante. Mas após seu martírio, ele se desviou da Igreja, se elevou no pensamento que era mestre e se orgulhou como se fosse diferente de todos os outros; deu caráter particular à sua escola, imaginou eões invisíveis, como os discípulos de Valentim; pregou que o casamento era uma corrupção e fornicação, semelhantemente a Marcião e a Saturnino.» (Santo Irineu de Lião, Contra as Heresias, 1, 28, 1).

 

Taciano cria no tormento eterno? 

Embora Taciano realmente negue a doutrina da imortalidade natural da alma e o estado intermediário, Taciano não pensa o mesmo a respeito do destino final dos ímpios. Ele crê que a “morte” dos ímpios após a ressurreição será “na imortalidade” (o que indica sua crença em um tormento eterno e sem fim):

«É fato que eles não morrem facilmente, pois não têm carne; mas, vivendo, praticam ações de morte, e também eles morrem tantas vezes quantas ensinam a pecar aqueles que os seguem. Portanto, a vantagem que agora têm sobre os homens, isto é, não morrer de modo semelhante a eles, esse mesmofato lhes será mais amargo quando chegar a hora do castigo, pois não terão parte na vida eterna participando dela, em lugar da morte na imortalidade.E como nós, para quem morrer é agora um acidente tão fácil, receberemos depois a imortalidade junto com o gozo,ou a pena junto com a imortalidade,também os demônios que abusam da vida presente para pecar a todo momento,e que durante a vida estão morrendo, terão depois a mesma imortalidade que os homens que deliberadamente realizaram tudo o que eles lhes impuseram como lei durante o tempo em que viveram. Não digamos nada sobre o fato de que, entre os homens que os seguem, aconteceu menos espécies de pecados por não viverem longo tempo, enquanto nos citados demônios o pecado se prolonga muito mais, em razão do tempo indefinido da sua vida.» (Taciano, “Discurso contra os Gregos”, XIV)

«Gregos, a nossa alma não é imortal por si mesma, mas mortal; ela, porém, é também capaz de não morrer. Com efeito, ela morre e se dissolve com o corpo se não conhece a verdade; ressuscita, porém, novamente com o corpo na consumação do tempo, para receber, como castigo,a morte na imortalidade.Por outro lado, não morre, por mais que se dissolva com o corpo, se adquiriu conhecimento de Deus.»(Taciano, “Discurso contra os Gregos”, XIII, começo)

O blogueiro, então, propõe traduções alternativas para o termo “morte na imortalidade”, como se ela quisesse significar “morte eterna”. Entretanto, nada no texto nos faz supor que Taciano esteja realmente aplicando um conceito diferente para a palavra “imortalidade” do que o empregado pelo próprio padre no restante de sua obra, como supõe o blogueiro.

Depois disso, o blogueiro se prende a uma passagem em que Taciano diz que «os demônios não morrem facilmente». Para responder essa pergunta, é necessário que o protestante leia todo o capítulo XIV. Ora, no contexto desta passagem Taciano simplesmente quer dizer que enquanto para os homens «morrer é agora um acidente tão fácil», para os demônios não o é «pois não tem corpo».  Posteriormente ele diz que essa “virtude” demoníaca de não morrer será motivo de choro: «esse mesmo fato lhes será mais amargo quando chegar a hora do castigo, pois não terão parte na vida eterna participando dela, em lugar da morte na imortalidade».

Há ainda uma passagem em que Taciano diz crer na conflagração estóica, ainda que a admita de uma só vez. O que Taciano diz crer, entretanto, também se refere apenas ao conceito de que os ímpios serão abrasados em uma fornalha de fogo e não ao restante herético da doutrina da ectopirose (já que o próprio Taciano mostra mais acima crer que os ímpios permanecerão imortais).

 

ATENÁGORAS DE ATENAS (170-180 d.C.) 

Deste apologista cristão sabe-se que era contemporâneo de Santo Irineu de Lião (e portanto, membro da terceira geração após os apóstolos), oriundo de Atenas e filósofo. Dele se encontra uma menção no tratado Sobre a ressurreição 1,37,1, de Metódio de Olimpo (sécs. III-IV), detalhes biográficos não confiáveis nos fragmentos da “História Cristã” de Filipe de Lado (c 425), e, além deles, o fato de o bispo Aretas de Cesaréia ter mandado copiar suas obras em 914 para o seu Corpus apologetarum. Os historiadores  J. Lebreton e J. Zeiller escrevem dele: «É uma alegria para quem acaba de ler as invenctivas de Taciano encontrar-se aqui em contato com uma alma verdadeiramente cristã, pacífica e pura» (Fliche-Martin, de Histoire de l’Eglise, 1941, p. 455).

De acordo com a antropologia de Atenágoras, o homem é composto de corpo mortal e alma imortal, embora criada. Na ressurreição, o corpo se conjuga novamente com a alma, que no período que vai entre a morte e a ressurreição, estivera num estado de torpor. A ressurreição reconstrói, portanto, aquela unidade que constitui o verdadeiro homem. Vale ressaltar que Atenágoras contraria Platão nesse sentido pois para Platão, a alma era imortal e incriada e não dependia de Deus para nada, algo que Atenágoras abomina.

Vamos aos escritos:

«Sei que com o que eu disse estou defendido diante de vós. De fato, superando a todos por vossa inteligência, sabeis que aqueles que tomam a Deus como regra de vida, para que cada um de nós esteja sem culpa e sem mancha em sua presença, não podem ter, em pensamento, o mais leve pecado, e acreditássemos que nada existe além desta vida presente, poder-se-ia suspeitar que pecássemos, submetendo-nos à servidão da carne e do sangue ou sendo dominados pelo lucro e pelo desejo. Sabendo, porém, como sabemos, que Deus vigia nossos pensamentos e nossas palavras, tanto de dia como de noite, e que ele é todo luz e vê até dentro do nosso coração; acreditando, como cremos, que, ao sair desta vida, viveremos outra melhor, contando que permaneçamos com Deus e por Deus inquebrantáveis e superiores às paixões, com alma não carnal, mas com espírito celeste, embora na carne; ou acreditando que, se cairmos como os demais, espera-nos uma vida pior no fogo (porque Deus não nos criou como rebanhos ou bestas de carga, de passagem, só para morrer e desaparecer); crendo nisso, dizíamos, não é lógico que nos entreguemos voluntariamente ao mal e nos joguemos a nós mesmos nas mãos do grande juiz para sermos castigados.» (Atenágoras de Atenas, Petição a Favor dos Cristãos, 31)

«Esses movimentos irracionais e fantásticos da alma geram imagens de frenética idolatria; e quando a alma, delicada e fácil de conduzir, que não ouviu nem tem experiência de sólidas doutrinas, que não contemplou a verdade nem compreendeu o Pai e Criador do universo, se imprime em si essas falsas opiniões sobre si mesma, os demônios que rondam a matéria, gulosos como são de gordura e sangue das vítimas e enganadores dos homens, apoderando-se desses movimentos de falsa opinião das almas do vulgo, fazem que fantasias se infiltrem neles, como se viessem das imagens cujos nomes usurpam, e são eles que colhem a glória do que a alma por si mesma, imortal como é, e se move racionalmente, ora para predizer o futuro, ora para curar o presente.» (Atenágoras de Atenas, Petição a Favor dos Cristãos, XXVII)

«E esta não a tomamos de modo vão, da fantasia dos homens, iludindo-nos com esperanças mentirosas, mas cremos em quem nô-la garante de modo absolutamente infalível no desígnio de nosso Criador, segundo o qual fez o homem de alma imortal e de corpo, dotou-o de inteligência e lei ingênita para a sua salvação e para a guarda dos preceitos que ele lhe dera, convenientes com uma vida moderada e razoável.» (Atenágoras de Atenas, A ressurreição dos mortos,  Capítulo XIII)

«Antes de tudo, a natureza dos homens, que nos leva à mesma conclusão e tem a mesma força para esta estabelecer a fé na ressurreição.Agora, como universalmente toda a natureza consta de alma imortal e de corpo que foi adaptado a essa alma no momento da criação;como Deus não destinou tal criação, tal vida e toda a existência à alma por si só ou ao corpo separadamente, mas aos homens, compostos de alma e corpo, a fim de que pelos mesmos elementos dos quais se geram e vivem, cheguem, terminada a sua vida, a um só e comum termo» (Atenágoras de Atenas, A ressurreição dos mortos,  Capítulo XV)

«Portanto, nem aquela famosa insensibilidade à dor pode ser fim próprio do homem, pois participariam dela até os que não sentem absolutamente nada, tampouco o gozo daquilo que alimenta ou deleita o corpo com toda a multidão dos prazeres, a não ser que demos a primazia à vida dos animais e sintamos que a virtude não tem nenhum fim. Com efeito, penso que este é o fim próprio dos animais e rebanhos, não, porém, de homens dotados de alma imortal e juízo racional.» (Atenágoras de Atenas, A ressurreição dos mortos, Capítulo XX)

Após comentar sobre este Padre, afirma que “para Atenágoras perecer era o mesmo que aniquilar” e cita uma passagem em que Atenágoras utiliza o termo “perecer” no seu sentido comum. Ora, ninguém nega que o conceito estrito de perecer é morrer ou ter fim. O que afirmamos é que este termo é também utilizado pelas Escrituras (e pelos próprios Padres) como uma figura de linguagem para descrever a morte espiritual.

Atenágoras é mais um padre do século II que evidencia a crença apostólica na imortalidade da alma humana.

 

SANTO IRINEU DE LIÃO (180 d.C.)

O autor inclui Irineu entre os “padres imortalistas” devido à clara linguagem deste padre a favor do dualismo e da imortalidade da alma. Só para que não se tenha dúvidas, vamos às passagens de Irineu:

«Morrer é perder a capacidade vital, ficar em seguida sem o sopro, sem a vida, sem os movimentos e decompor-se nos elementos dos quais teve início a existência. Ora isso não pode acontecer com a alma, porque é sopro de vida, nem com o espírito por ser simples e não composto e por ser ele a vida dos que o recebem. Resta que a morte se manifeste na carne a qual, com a saída da alma, fica sem respiração e sem vida e lentamente se decompõe na terra de onde foi tirada. É esta, pois, que é mortal. E é dela que o Apóstolo diz: “Ele vivificará os vossos corpos mortais”.» (Irineu de Lião, Contra as Heresias, Livro V, 7,1)

«Se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dos mortos habita em vós, aquele que ressuscitou o Cristo dos mortos vivificará os vossos corpos mortais”. O que são os corpos mortais? Serão as almas? Mas as almas são incorporais em comparação aos corpos mortais. Com efeito, Deus soprou no rosto do homem “o sopro da vida e o homem se tornou uma alma vivente”: o sopro de vida é incorporalAssim como não podem dizer que a alma é mortal porque o sopro de vida permanece – com efeito, Davi diz: “E a minha alma viverá para ele”, visto ser a sua substância imortal –, assim não podem dizer que o Espírito é corpo mortal. O que fica então para ser denominado corpo mortal a não ser a obra modelada por Deus, isto é, a carne, aquilo que o Apóstolo declara que Deus vivificará? É esta que morre e se decompõe e não a alma ou o Espírito (Santo Irineu de Lião, Contra as Heresias, V,7:1)

«Tendo o Senhor ido entre as sombras da morte, onde estavam as almas dos mortos, e ressuscitando depois corporalmente, e depois de ressuscitado, sendo levado ao céu, indicou que o mesmo aconteceria com seus discípulos, pois era para eles que o Senhor fez tudo isso: as almas deles irão a um lugar invisível estabelecido por Deus e aí ficarão até a ressurreição, à espera dela; depois, reassumirão seus corpos numa ressurreição perfeita, isto é, nos seus corpos, da mesma forma que o Senhor ressuscitou, e irão à presença de Deus.» (Irineu de Lião, Contra as Heresias, Livro V, 31,1-2)

«O Senhor ensinou clarissimamente que as almas não só perduram sem passar de corpo em corpo, mas conservam imutadas as características dos corpos em que foram colocadas e se lembram das ações que fizeram aqui na terra e das que deixaram de fazerÉ o que está escrito na história do rico e de Lázaro que repousava no seio de Abraão. Nela se diz que o rico, depois da morte, conhecia tanto Lázaro como Abraão e que cada um estava no lugar a ele destinado. O rico pedia a Lázaro, ao qual tinha recusado até as migalhas que caíam de sua mesa, que o socorresse; com a sua resposta, Abraão mostrava conhecer não somente Lázaro, mas também o rico e ordenava que os que não quisessem ir para aquele lugar de tormentos escutassem Moisés e os profetas antes de esperar o anúncio de alguém ressuscitado dos mortos. Tudo isso supõe clarissimamente que as almas permanecem, sem passar de corpo em corpo, que possuem as características do ser humano, de sorte que podem ser reconhecidas e que se recordam das coisas daqui de baixo; que também Abraão possuía o dom da profecia e que cada alma recebe o lugar merecido mesmo antes do dia do juízo.» (Contra as Heresias Livro II, 34,1)

 

Santo Irineu acreditava que os ímpios iam ser aniquilados?

Fora as especulações (já que ele tenta forçar a ideia de “adulteração” das obras de Irineu), vamos ao que interessa: Santo Irineu negou a eternidade das penas do inferno? O blogueiro cita um texto presente em Contra as Heresias, Livro II, 34,4 que onde Irineu diz que os ímpios «não irão receber o comprimento de dias para sempre e sempre».

O que Irineu quer dizer com essa linguagem? De acordo com o patrologista beneditino do século XVII, René Massuet, responsável pela edição dos trabalhos de Irineu, o autor não está se referindo à privação da existência dos condenados, mas a privação da «vida eterna» (conceito que envolve a comunhão com Deus). Tal interpretação parece se adequar com outros textos de Irineu que dizem:

«E a todos os que guardam o seu amor oferece a sua comunhão;a comunhão de Deus é vida,é luz, é gozo dos bens que vem dele.Para aqueles, porém, que por sua própria vontade se afastam dele, confirma a separação que escolheram; a separação de Deus é a morte, a separação da luz são as trevas, é a perda de todos os bens que vêm dele. Os que, portanto, pela sua apostasia, perderam tudo o que acabamos de dizer, sendo privados de todos os bens, estão imersos em todos os castigos, não porque Deus não tivesse no princípio a intenção de puni-los, mas o castigo veio como consequência da privação de todos os bens. Os dons de Deus são eternos e sem fim e a privação deles é também eterna e sem fim, como os que se auto-cegaram por uma luz violenta ou foram por outros, estão privados permanentemente do gozo da luz, não porque a própria luz cegue, mas porque sua cegueira aumenta a sua desgraça» (Irineu de Lião, Contra as Heresias, Livro V, 27,2)

 Para Irineu, a «vida», a «luz», a «longevidade» são sinônimos para a  felicidade eterna na comunhão de Deus. Essa é a “vida” que será privada aos ímpios. É dessa segunda maneira que, em sua obra “The Eschatology of Irenaeus”, o autor protestante Arthur Skevington Wood descreve a escatologia de Irineu:

«O destino dos ímpios não é a aniquilação, mas a separação eterna de Deus. (V.27.2.) Irineu estava empenhado em deixar claro que eles são auto-condenados.Embora, por meio de Cristo, o Pai execute justamente um julgamento sobre eles, eles não têm desculpa ou reclamação legítima, já que, sem dúvida, merecem o castigo que os espera. Este castigo recai sobre eles “porque estão destituídos de tudo o que é bom”, explicou Irineu. “Ora, as coisas boas são eternas e sem fim para com Deus, e, portanto, a perda destas é também eterna e sem fim: é exatamente como acontece no caso de um dilúvio de luz: aqueles que se cegaram, Ou foram cegados por outros, estão para sempre privados do gozo da luz, mas não é (porém) que a luz lhes infligiu a pena da cegueira, mas é que a própria cegueira lhes trouxe calamidade “. Ireneu citou João 3: 18 (“Aquele que não crê já está condenado, porque não crê no nome do único Filho de Deus”) e comentou: “isto é, ele se separou de Deus por si mesmo Acordo “(ibid).»(Arthur Skevington Wood, The Eschatology of Irenaeus, 39-40)

 

ORÍGENES E TERTULIANO (SÉC. III)

O autor supõe que a grande influência de Clemente, Orígenes e Tertuliano na Igreja do século III permitiu a eles criar novas doutrinas e corromper a fé cristã (Orígenes no Oriente e Tertuliano no Ocidente). De acordo com ele, Tertuliano era imortalista simplesmente porque era um «cristão rigoroso», «ultraconservador» e desejaria ver os ímpios em tormentos eternos e os dois outros padres alexandrinos também o seriam devido ao claro «platonismo» presente na Escola de Alexandria. Tal tese, entretanto, carece totalmente de qualquer fundamentação histórica e não passa de especulação juvenil. Peguemos em especial o caso de Tertuliano e Orígenes, os dois padres mais influentes entre os citados.

Ainda que estes dois autores tivessem grande prestígio no meio cristão de sua época, toda a vez que tentavam introduzir uma doutrina heterodoxa no seio da Igreja eram severamente criticados por outros padres do seu século ou posteriores. Vide o exemplo da heterodoxa doutrina de Orígenes sobre a «preexistência das almas». Ainda que tivesse sido escrita por um escritor de alto prestígio (e tenha tido alguns adeptos), nunca conseguiu se instalar universalmente no seio da Igreja, mas, pelo contrário, recebeu o anátema do II Concílio de Constantinopla. São Jerônimo, por exemplo, era um grande crítico dos erros de Orígenes: “O que ele chama “sua” fé? Aquela pela qual a Igreja romana exerce seu poder ou aquela que está contida nos volumes de Orígenes? Se ele responde: a fé romana, então nós somos católicos, nós que nada traduzimos do erro de Orígenes. (São Jerônimo de Estridão, Contra Rufino I, 4). E mesmo assim Jerônimo (assim como nenhum outro padre subsequente) jamais criticou Orígenes devido à sua crença na imortalidade da alma.

O mesmo pode ser dito em relação a Tertuliano que, possuindo doutrinas heréticas (entre elas a própria negação da virgindade de Maria) e abraçado livremente o montantismo, teve seus erros expostos e duramente criticados pelo restante da Igreja. É célebre a frase de Jerônimo com relação à Tertuliano quando este é citado por Helvídio: “De Tertuliano não direi [nada] senão que não pertenceu à Igreja.” (A Virgindade Perpétua virgindade de Maria IV, 19). Entre todas as heresias que os padres criticaram de Tertuliano, a imortalidade da alma nunca esteve presente.

Tudo isso faz realmente ser muito improvável que a crença na imortalidade da alma surgiu baseada na grande autoridade desses padres, em especial, de Orígenes e Tertuliano.

 

SANTO HIPÓLITO DE ROMA (SÉC. III)

Contemporâneo a Orígenes e Tertuliano, há também Hipólito, presbítero de Roma. Santo Hipólito foi um presbítero da Igreja de Roma, discípulo de Santo Irineu e portanto membro da terceira geração após os apóstolos. Ele era um grande crítico das ideias de Platão, considerava os filósofos gregos como hereges [16] e escreveu obras como “Contra Platão, sobre a causa do universo”. Nesta mesma obra, Hipólito defende o inferno eterno:

“Aos amantes da iniqüidade será dado o castigo eterno. E o fogo que é insaciável e sem fim aguarda estes últimos, e um certo verme de fogo, que não morre, e o que não acaba o corpo,  mas continua explodindo o corpo com a dor sem fim. Nenhum sono lhes dará descanso; nenhuma noite vai acalmá-los; nenhuma morte irá livrá-los da punição; nenhuma voz de amigos intercedendo vai beneficiá-los.”(Hipólito de Roma, Contra Platão, sobre a causa do Universo, Sessão 3)

Também nos fala como o corpo dos bons será tornado imortal igual a alma já é imortal por natureza:

“E tu deve possuir um corpo imortal, até mesmo um colocado além da possibilidade de corrupção, assim como a alma. (Hipólito de Roma, Refutação de todas as heresias, Livro 10, Cap. 30)

A respeito do Hades, Hipólito chegou a escrever uma obra que por muito tempo foi atribuída ao historiador judeu Josefo, mas que hoje acredita-se ter sido escrita por ele [17] intitulada “Discurso para os gregos a respeito do Hades”, onde não só critica várias doutrinas platônicas a respeito da alma, como prega sua imortalidade, o estado intermediário e o inferno eterno.

 

OUTROS PADRES “ANIQUILACIONISTAS”

No tocante à Arnóbio, Rafael já referiu-se em seu post à ignorância deste autor a respeito da Bíblia e da Patrística ao escrever sua obra “Contra os pagãos”.  Quanto às passagens de São Basílio e Santo Agostinho que dizem que “muitíssimos” e “grande parte” em suas épocas afirmavam que “haveria um fim às punições infernais”, os padres não se referiam ao aniquilacionismo, mas à doutrina da apocatástase (universalismo) (que realmente era defendida por muitos padres na época).

 

A MARIOLOGIA NO SÉCULO II

Depois de todos os absurdos escritos seu texto, o blogueiro especula que foi só após a suposta “introdução da doutrina da imortalidade da alma” no seio da Igreja que os cristãos começaram a venerar a Virgem Maria (ou seja, por volta do século III). Fora o fato de que nem toda a doutrina mariana da Igreja está relacionada com a doutrina da imortalidade da alma (como por exemplo, a virgindade de Maria), qualquer um que estude o mínimo de Mariologia sabe que ela não surgiu apenas no século III. Segue os fatos:

 I. Por volta de 120 d.C. uma comunidade ortodoxa oriental, recorrendo a pseudonímia (e intitulando-se de São Tiago Menor) para que sua obra tivesse maior difusão, escreveu o “Protoevangelho de Tiago”, com um único intuito: louvar a vida de Maria, defendendo sua plena santidade e sua perpétua virgindade. O relato foi utilizado por muitos padres da Igreja justamente por não conter extratos heréticos que defendessem o gnosticismo (como os famosos apócrifos do Código Da Vinci).

 Embora enquanto apócrifo realmente não seja infalível nem muito menos Palavra de Deus, este relato têm grande valor histórico, pois demonstra a corrente ideológica (religiosa e moral) do período em que foi escrito. E ele sem dúvidas mostra o apreço que qualquer católico de nossos dias atuais atribui à Maria. «No Protoevangelho de Tiago, no entanto, há uma passagem que deve ser observada. Os sacerdotes do Templo decidiram fazer um véu girado para o templo de vários tipos de fio. Para fazer este véu, foram escolhidas raparigas virgens e da tribo de Davi. Lotes foram lançados para determinar quem iria tecer o ouro, linho, etc. Caiu ao lote de Maria para tecer o verdadeiro roxo e escarlate (Protoevangelium Jacobi, 10 (Amann, Le Protoévangile, pp. 218-220). A cor da realeza foi atribuído à Maria, a quem era a prole de uma linha real e que foi destinado para uma realeza mais elevada do que todas as dignidades da terra (Cf. E. Amann, op. Cit., P.220, nota).» (PE, ALFRED C. RUSH, C.SS.R., Mariology (Juniper), Volume I, pp. 175-176)

II. Em seu «Diálogo com Trifão», São Justino de Roma considera Maria a «Nova Eva» (o que possui diversas implicações), embora não se prolongue nesta discussão (cf. São Justino Mártir, Diálogo com Trifão, capítulo 100). Ele também reconhece Maria como a Mulher de Gênesis 3,15:  «São Justino (morto em 165 d.C.) em várias passagens de seu Diálogo com Trifão (Justino, Diálogos 54, 1-2; 63,2; 76,2; 1 Ap 32, 9-11-14) dá uma interpretação messiânica-mariana explícita para Gênesis 3:15. Segundo ele, o episódio da fuga para o Egito (Mt 2: 15-18) é o primeiro cumprimento da profecia do Gênesis. A evidente proximidade de Maria com a Criança “recorda muito bem que entre a mulher e sua descendência em Gn 3:15, que entram em conflito com a serpente tentadora e seus descendentes, vê em Herodes e em seus desenhos perversos a primeira armadilha estabelecida pela serpente para destruir a mulher e seu filho” (Cf. A. Gila, La Vergine Madre, 99). » (PE. SETTIMIO M. MANELLI, F.I., Mary at the Foot of the Cross V: Immaculate Conception and Coredemption, (Academy of the Immaculate), pp. 276)

 III. Só Santo Irineu de Lyon reconhece:

 a. A maternidade divina de Maria: «A Virgem Maria, sendo obediente à sua palavra, recebeu do anjo a boa nova de que portaria (portaret) Deus»(Santo Irineu de Lião, Contra as Heresias, V, 19, 1);«O Filho de Deus nasceu da Virgem.»(Santo Irineu de Lião, Adv. Haer. III, 16,2, in SC 34, 280).

b. A co-redenção de Maria: «O gênero humano, submetido à morte por uma virgem, foi dela libertado por uma Virgem»(Santo Irineu de Lyon, Contra as Heresias 5,19) e afirmou que Maria «tornou-se causa de salvação para si e para todo o gênero humano»(Irineu de Lião, Contra as Heresias 3, 22, 4;. PG 7, 959).

c. Maria como “Nova-Eva”:«Assim é que a desobediência de Eva foi resgatada pela obediência de Maria”. Com efeito, o nó que a virgem Eva atou com a incredulidade, Maria o desatou com a fé»(Santo Irineu de Lyon, Contra as Heresias 3,22,4); «Da mesma forma que aquela (Eva) foi seduzida para desobedecer a Deus, esta (Maria) foi persuadida a obedecer a Deus, por ser ela, a Virgem Maria, a advogada de Eva. Assim, o gênero humano, submetido à morte por uma virgem, foi dela libertado por uma Virgem, tornando-se contrabalanceada a desobediência de uma virgem pela obediência de outra»(Santo Irineu de Lyon, Contra as Heresias 5,19).

d. A maternidade espiritual de Maria: Santo Irineu, ao referir-se à vulva puríssima da Mãe de Deus reconhece que ela “nos regenera em Deus”, o que é uma referência implícita à sua maternidade espiritual: «Aquela vulva pura que regenera os homens em Deus e que Ele mesmo fez puro(Irineu, Contra as Heresias, IV, 33, 11).

e. A virgindade de Maria no parto: Irineu isenta Maria das dores o que supõe sua virgindade no parto (cf. Santo Irineu de Lião, Demonstração da pregação apostólica, 54).

f. A reconhece como a Mulher de Gênesis 3,15: «Santo Irineu de Lyon (morto em 200 d.C.), baseando-se na teoria da “recapitulação”, vê as palavras de Gn 3:15 como sendo cumpridas em Cristo e em Maria. A “semente” da mulher é a “semente… nascida de Maria”, Cristo, que esmaga a cabeça da serpente (cf. Irineu, Adversus Haereses III, 23, 7 (SC 211, 462)).» (PE. SETTIMIO M. MANELLI, F.I., Mary at the Foot of the Cross V: Immaculate Conception and Coredemption, (Academy of the Immaculate), pp. 276)

IV. Como mostrado no artigo do Nelson Sarmento, Hegésipo considerava Tiago, “irmão” de Jesus, como seu primo (cf. Hegésipo citado em Eusébio, História Eclesiástica II, 23, 4-  IV, 22, 4), o que supõe a virgindade perpétua de Maria. Há também dois fragmentos disputados de São Papias de Hierápolis (cf. São Papias de Hierápolis, Fragmentos X, PG 5, 1261-1262) e de São Justino de Roma (cf. São Justino Mártir, Fragmentos, CApol 5, 374s; cf. Cowper’s Syriac Miscell, p. 61) que defendem a virgindade perpétua de Maria.

V. De acordo com o estudo feito pelo Pe. Gabrielle Roschini foi provavelmente em meados do século II que os primeiros apócrifos da assunção começaram a circular (com proeminência ao “Transitus” de Lêuncio Carino).

 VI. Os cristãos já retratavam imagens da Virgem e do menino nas Catacumbas (vide o afresco da Virgem e do Menino na Catacumba de Santa Priscila).

 VII. São Clemente de Alexandria, por volta do final do século II (ou no máximo na primeira década do III) defende a perpétua virgindade de Maria (e esta doutrina não tem ligação direta com escatologia).

Mas, por que os padres do século II falaram pouco sobre Maria se compararmos com os padres posteriores? Simplesmente porque as heresias da época não atacavam diretamente a mariologia ortodoxa, não sendo necessário se prolongar nos assuntos referentes a ela. A partir século III, Clemente lembra que começam a surgir pessoas que atacam a virgindade de Maria no parto e então se inicia a preocupação pastoral em escrever obras com o intuito de ressaltar as virtudes da mãe de Jesus.

Logo, a afirmação de que os cristãos só começaram a valorizar a mãe de Jesus após o século II carece de fundamentação histórica.

 

CONCLUSÃO

Os primeiros Padres acreditavam que o homem possuía uma alma de natureza imortal e um corpo sujeito à morte. Eles, entretanto, rejeitavam a ideia de Platão de que essa natureza imortal procedia de si mesma (já que de acordo com Platão, a alma era constituída de uma “substância divina e incriada”). Santo Hilário de Poiters, resume tal posição: «Se as criaturas espirituais subsistem e se duram eternamente, essa prerrogativa não vem delas, mas da força do mandamento daquele que pode dar uma natureza eterna aos seres que Ele tirou do nada(Santo Hilário, In Psalm. 146). Deus é, portanto, a fonte de nossa imortalidade (diferente do que dizia a filosofia grega). São Clemente de Roma, Hermas, São Melito de Sardes, São Quadrato de Atenas, São Justino Mártir, São Teófilo de Antioquia, Atenágoras de Atenas, Santo Irineu de Lião, São Clemente de Alexandria, Santo Hipólito de Roma, Tertuliano e Orígenes sustentam essa opinião.

As primeiras condenações formais a doutrina aniquilacionista já aconteceram no século III no Concílio regional de Bostra (cf. Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica, Livro VI, 37). Ora, esse dado é de caráter significativo pois apenas crenças que já estavam bem instituídas em suas regiões eram definidas enquanto verdades de fé por Concílios regionais. Posteriormente, outras regiões também ratificarão essa posição no Sínodo de Constantinopla em 543, no Segundo Concilio de Constantinopla, em 553, e pelo Quinto Concilio de Latrão, em 1513.

Agradecemos ao autor, no entanto, o reconhecimento de que a teoria de Constantino não possui base histórica alguma e que os Padres do século III e os do fim do século II já eram católicos.

É importante que se pare de criar “teorias de paganização” da Igreja. A Igreja foi, é, e sempre será a mesma instituição. Foi o próprio Cristo que afirmou que estaria conosco «todos os dias, até o fim do mundo» (Mateus 28,20) e que «as portas do inferno não prevalecerão contra ela» (Mateus 16,18). Quem dela discorda, segundo as palavras do próprio Cristo, está em pecado não pequeno: «E se recusar ouvir também a Igreja, seja ele para ti como um pagão e um publicano.» (Mateus 18,17). Como dizia Santo Agostinho: «Vacilará a Igreja se vacila o seu fundamento, mas poderá talvez Cristo vacilar? Visto que Cristo não vacila, a Igreja permanecerá intacta até o fim dos tempos.»(Santo Agostinho, Enarrationes in Psalmos, 103,2,5; PL, 37, 1353).

 

NOTAS

[1] LUTERO, Martinho, De Wette 3,61; citado em O’Hare, “Os Fatos sobre Lutero”, p. 208.

[2] Santo Inácio de Antioquia, Epístola aos Magnésios 9,2; Epístola aos Filafélfos, V [será analisada quando tratarmos deste padre].

[3] Melito de Sardes, Peri Pascha, 102 [será analisada quando tratarmos deste padre].

[4] Pastor de Hermas, Parábola IX, 16 (93 na versão da Paulus) [será analisada quando tratarmos deste padre].

[5] “Por isso o Senhor desceu às partes inferiores da terra para levar também a eles a boa nova da sua vinda, que é a remissão dos pecados para os que crêem nele. Crêem nele todos os que esperaram, isto é, que anunciaram a sua vinda e cooperaram com suas economias, os justos, os profetas e os patriarcas. A eles, como a nós, perdoou os pecados que não lhes devemos mais imputar, se não quisermos desprezar a graça de Deus.” (Santo Irineu de Lião, Contra as Heresias, Livro IV, 27,2); e também: “Ora, [Jesus] passou três dias onde estavam os mortos, em conformidade com o que o profeta diz dele: “O Senhor se lembrou dos seus santos mortos, dos que antes adormeceram na terra das sepulturas desceu até eles para tirá-los de lá e salvá-los.” (…) E o Apóstolo diz: “Que significa ‘subiu’ a não ser que tinha descido às regiões inferiores da terra?” Igualmente disse Davi, profetizando sobre ele: “Libertaste a minha alma das profundezas do Sheol.” (…) Se o Senhor se submeteu às leis da morte para ser primogênito dentre os mortos e ficou três dias nas regiões inferiores da Terra antes de ressuscitar na carne, para mostrar aos discípulos também os sinais dos pregos (…) Tendo o Senhor ido entre as sombras da morte, onde estavam as almas dos mortos, e ressuscitando depois corporalmente, e depois de ressuscitado, sendo levado ao céu, indicou que o mesmo aconteceria com seus discípulos, pois era para eles que o Senhor fez tudo isso: as almas deles irão a um lugar invisível estabelecido por Deus e aí ficarão até a ressurreição, à espera dela; depois, reassumirão seus corpos numa ressurreição perfeita, isto é, nos seus corpos, da mesma forma que o Senhor ressuscitou, e irão à presença de Deus.” (Santo Irineu de Lião, Contra as Heresias, Livro V, 31,1-2).

[6] Justino Mártir, Diálogo com Trifão, 72 [será analisada quando tratarmos deste Padre].

[7] “João Batista morreu primeiro, sendo enviado por Herodes, para preparar os que estão no Hades para o evangelho; ele se tornou o precursor lá, anunciando assim como ele fez na terra, que o Salvador estava prestes a vir para resgatar os espíritos dos santos da mão de morte.” (Santo Hipólito de Roma, De Antichr. c. 45).

[8] “Cristo visitou, pregou e batizou os homens justos de antigamente, gentios e judeus, não apenas aqueles que viveram antes da vinda do Senhor, mas também aqueles que foram antes da vinda Da Lei,(…) tais como Abel, Noé, ou qualquer homem justo.” (São Clemente de Alexandria, Stromata, 2,9)

[9] A Didascalia é uma Tratado cristão escrito por volta de 230 d.C. Ela é enfática com relação à descida de Jesus à mansão dos mortos: “[Cristo] foi crucificado sob Pôncio Pilatos e partiu para a paz, a fim de pregar a Abraão, Isaque, Jacó e todos os santos sobre o fim do mundo e a ressurreição dos mortos.

[10]  Tertuliano também testemunha em diversas de suas obras a descida de Cristo ao Hades (de Resur. Carnis, 43, 44; de Anima 7, 55, 58; adv. Marcionem, 4.34), embora se confunda em dizer que todos nós esperaremos no Hades, afinal, Cristo já havia levado consigo os cativos da prisão.

[11] Orígenes de Alexandria, In Luc. Hamil. C.4. and In Evang. John 2, 30.

[12] São precisamente essas almas santas, que esperavam seu Libertador no seio de Abraão, que Jesus libertou ao descer aos Infernos.” (Santo Agostinho de Hipona, De Catechizandis rudibus, 1,6,3).

[13] cf. PAULUS, Padres Apologistas, pág. 13.

[14] cf. PAULUS, Padres Apologistas, pág. 13-14.

[15] cf. PAULUS, Padres Apologistas, pág. 14.

 [16] “As opiniões, portanto, daqueles [isto é, dos filósofos] que tentaram enquadrar sistemas de filosofia entre os gregos, considero que temos suficientemente explicado; E destes os hereges, tomando ocasião, esforçaram-se para estabelecer os princípios que serão depois de um curto período declarado.” (Hipólito de Roma, Refutação contra todas as Heresias, Livro I, capítulo 23)

[17]  ALMOND, Philip, Afterlife: A History of Life after Death, disponível em «Google Books»

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